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A Ética da Prevenção1
Richard Bucher2
Universidade de Brasília
RESUMO – O uso de drogas é um fenômeno social complexo em que intervêm questões de valores e de sentido. Logo, a
prevenção ao uso indevido de drogas, longe de ser neutra, contém elementos ideológicos que podem mascarar suas finalidades.
Por esta razão, a reflexão ética sobre seus objetivos, conteúdos e procedimentos é fundamental para que suas ações tenham
credibilidade e eficácia. Analisa-se criticamente a prevençã de enfoque repressivo, baseada na pedagogia do terror, à qual se
opõe o modelo da prevenção pela educação. Aí, cabe à escola um papel fundamental para despertar o potencial psico-afetivo e
criativo do jovem e para levá-lo a efetuar opções conscientes e responsáveis pela sua saúde. Esta é discutida no contexto amplo
da ecologia humana, em que as drogas são apontadas como um dos agressores que ameaçam o equilíbrio social e ambiental,
a ser resgatado a partir de uma ética da responsabilidade.
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credibilidade de um programa de prevenção – e portanto da A questão subjacente a estas diversas visões deixa-se
sua ética – depende do conhecimento das especificidades do resumir no seguinte: será que as drogas são o mal terrível,
padrão de consumo na população-alvo e das suas caracterís- pintado como uma epidemia mundial, ou será que elas per-
ticas sócio-demográficas (Carlini, Carlini, Cotrim & Silva, tazem um mito ou, melhor, correspondem a uma mitificação
1990), o que, por sua vez, depende do conhecimento dos fabricada por certas instâncias, com o intuito, talvez, de erigir
seus hábitos, dos seus problemas, organizações e modos de cortinas de fumaça perante outros problemas sociais, mais
inserção no panorama social maior. prementes, mas incômodos...?
O aspecto da credibilidade (Bucher, 1992) é fundamental O teor das políticas preventivas, atuais ou a serem im-
quanto ao alcance das metas, sobretudo em se tratando de plantadas no futuro, dependerá da resposta a esta pergunta,
intervenções na juventude, particularmente sensível à ques- novamente de cunho ideológico. Tal resposta, no entanto,
tão da veracidade dos conteúdos transmitidos e particular- não é fácil, pois evidências em ambos os sentidos se deixam
mente cética quanto às mensagens emanadas das chamadas arrolar – e se a radicalidade da questão convida a proferir
“autoridades competentes” – que, como é muito sabido, na respostas elas também radicais, cabe não esquecer que o
área das drogas talvez mais ainda, com freqüência e pouca maniqueísmo raramente produz atitudes sensatas nem so-
competência demonstram, além de tergiversações, promoções luções pertinentes.
pessoais e outras formas de politicagem. Não obstante, a questão das drogas enquanto mito nos
Esquematizando, deixam-se distinguir duas concepções parece merecer um exame aprofundado para poder dimen-
de prevenção, ambas presentes no mercado das interven- sionar corretamente o problema que representam, nem
ções: a prevenção atrelada a atividades ou recomendações subestimado nem supervalorizado, mas apreendido em suas
repressivas, ou então, a prevenção concebida como atividade incidências reais.
educativa. Estes dois tipos operam em níveis diferentes, Vejamos as razões mais comuns invocadas para sustentar
visando seja a diminuição ou “supressão” da oferta, seja a este mito. Seguindo uma reflexão de Bergeret (1990), uma
canalização dissuasiva da procura, endereçando-se, neste série de fatores já foram enumerados como sendo responsá-
caso, em particular aos jovens. Assim sendo, eles se referem a veis pela ocorrência do aumento de drogas e drogadições.
duas éticas diferentes, pressupondo duas concepções diferen- Assim, costuma-se incriminar:
tes das drogas na sociedade – mas também duas concepções
diferentes da vida social em si, do ser humano, da visão do – As discrepâncias econômicas constatadas no mundo,
homem. Duas antropologias em suma, referidas a concepções entre a abundância em certas regiões e a pobreza em outras;
filosóficas diferentes e a valores diferentemente apreciados – o relaxamento do sistema educacional;
e recomendados, inclusive no tocante à auto- realização do – a baixa da autoridade familiar;
homem, à questão do livre arbítrio, da liberdade e do sentido – a publicidade marcada por falta de decoro e de
da convivência humana. moralidade;
Nas duas visões, as próprias drogas sofrem avaliações – os excessos da civilização de consumo;
diametralmente opostas, em função de ideologias sociais – o culto da agressividade e violência presentes na mídia;
divergentes. Segundo os primeiros, elas representam um mal – a pobreza de ideais morais, políticos, filosóficos
externo à sociedade, trazido para esta por meros “acidentes do ou religiosos.
mercado”, por exemplo pela malevolência dos “mercadores
da morte”, a saber, os produtores e traficantes. Estes surgem Tais fatores sem dúvida existem – mas são eles res-
então como os novos vilões da história, responsáveis pelo ponsáveis pela ocorrência moderna das drogas? Tanto as
“flagelo” das drogas que assola as sociedades ocidentais. investigações epidemiológicas quanto a experiência clínica,
Segundo outros, não se trata de um flagelo, ou pelo menos, ou simplesmente o bom-senso indicam que tais fatores são
não seria o pior deles, visto que há epidemias mais amplas demasiadamente gerais para que possam estimular especifi-
e mais sérias que assolam as populações, como a miséria, a camente o consumo de drogas; se eles no consumo intervêm,
subnutrição ou o desemprego. o fazem enquanto fatores coadjuvantes, mas não principais.
Conforme este enfoque, as drogas não são trazidas de Querer incriminar tais fatores significaria “forçar a barra”,
fora, mas representam um mal inerente à sociedade, secretado à procura de explicações racionais que não passam de ra-
por ela em função dos desequilíbrios que a caracterizam e cionalizações defensivas. Ademais, uma tal argumentação
que suscitam válvulas de escape para canalizar as tensões esquece que além das “causas” econômicas, sociais ou his-
intoleráveis. As drogas, quando muito, revestem a carapuça tóricas intervenientes nos fenômenos de drogadição, existem
de bode expiatório do moderno “mal-estar na cultura”, ao outras situadas na individualidade de cada usuário – ficando
lado de outros fenômenos de marginalização social, como a evidente, hoje em dia, que não se torna toxicômano quem
delinqüência, o alcoolismo, os suicídios, a violência urbana quer, sendo a dependência “um fenômeno psíquico ativo”
ou do campo, os bandos de “punks”, “skinheads” ou picha- (Olievenstein, 1990).
dores, os menores de rua... Frisa-se, nesta perspectiva, que se A epidemiologia incluiu esta verdade no conceito de “fa-
há conhecimento de drogas desde os tempos mais remotos, tores de risco”. Seja como for sua definição – predisposição
que não existem sociedades sem drogas ou ainda, que toda depressiva, desestruturação da personalidade, constelações
a sociedade tem as drogas que merece, em virtude da sua familiares desfavoráveis, danos materiais, traumatismos psi-
capacidade ou incapacidade de elaborar adequadamente as co-afetivos precoces – as ações preventivas terão que levar
tensões que atravessam seu tecido populacional e que são em conta estes fatores, embora não no sentido da prevenção
proporcionais aos seus disfuncionamentos. primária clássica preconizada pela saúde pública: visto que
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as drogas correspondem a produtos que fazem parte da – Encaixar o consumo de drogas numa visão reducionista
cultura, suscitando condutas de adesão ou de repulsa. Elas e maniqueísta do homem, tipo bandido versus bom mocinho:
não se deixam comparar com agentes infecciosos a serem os bons cidadãos (ou os bons filhos) não usam drogas (sendo
debilitados por medidas de saneamento básico ou com vaci- às vezes subentendido: ou só usam drogas lícitas).
nas. Os “riscos” aos quais elas expõem são, com freqüência, Uma análise recente dos livros didáticos usados nas es-
riscos calculados ou desejados, seguindo processos psíquicos colas brasileiras de 1º e 2º graus, feita por Carlini-Cotrim e
complexos que não se deixam “combater” de fora, nem por Rosemberg (1991), ilustra bem os procedimentos adotados:
amedrontamentos nem por simples proibições: os riscos em adjetivação excessiva, apelo a dados estatísticos alarmantes,
questão remetem ao componente ética da conduta humana, mas infundados, generalizações abusivas quanto aos efeitos
e neste nível deverão ser abordados, se a prevenção quiser dos diversos tóxicos, e insistência sobre a “inexorabilidade
obter algum êxito. do percurso” de todo e qualquer usuário de drogas...
Vejamos de perto as duas concepções que norteiam os A atitude rigorosamente condenatória que permeia tais
programas preventivos mais aplicados. idéias lembra muito uma certa pregação moralista, puritana
ou vitoriana a respeito da sexualidade, em vigor desde o
A prevenção com enfoque repressivo século passado e presente até hoje. Basta folhear antigos
manuais de educação moral, de moral e cívica ou de saúde
Este primeiro tipo de prevenção orienta-se historicamente pública e ver os apelos dramáticos contra os perigos da mas-
segundo o modelo jurídico-moral ou sanitarista (Nowlis, turbação, por exemplo. Os ataques que nela se concentraram,
1982), privilegiando o aspecto da proibição legal ou do não é que visavam, além da prática solitária, o conjunto de
perigo da droga, geradora de dependências avassaladoras. práticas que proporcionam prazer fora de qualquer controle
Por conseguinte, o usuário é considerado ou como infrator social...? As drogas sem dúvida incluem a mesma dimensão
ou como vítima de uma chaga à qual sucumbe; não se tenta de prazer, sem a qual não dá para entender a atração que
compreendê-lo, nem as suas motivações, suas falhas e faltas, exercem sobre a juventude. Percebe-se que veleidades repres-
as pressões do contexto que sofre... No extremo, esta visão é sivas e obscurantistas similares, decorrentes de preconceitos,
reducionista ao ponto de enxergar apenas o produto tóxico, senão de propósitos hipócritas revestindo certos mantos de
sua nocividade para o usuário que se entrega ao consumo, dissimulação social, sempre voltam à tona adaptando-se
sua periculosidade para a sociedade na qual se espalha como aos contextos históricos mutantes. Um dos últimos avatares
um lampejo. desta atitude de falsa moral usa a pandemia da SIDA/AIDS,
Para sustentar tal visão simplificadora, apela-se a argu- responsabilizando a vida sexual desregrada pela sua dissemi-
mentos de ordem emocional, passional, moralista ou sensa- nação, insinuando, inclusive, se tratar de um castigo divino
cionalísta, ressaltando de preferência aspectos chocantes e bem merecido...
alarmantes. Estes, além de serem com freqüência exagerados, Esta atitude proibitiva e exortativa se resume bem pelo
tornam- se inverídicos quando extrapolam aquelas evidên- slogan “dizer não às drogas”, Leitmotiv, até recentemente, das
cias que qualquer observador frio e “não prevenido” pode ações preventivas oficiais dos Estados Unidos (“just say no”),
constatar com facilidade. disseminadas no Brasil por meio de grandes quantidades
Percorrendo a literatura marcada pela abordagem repres- de folhetos e fascículos importados. Uma avaliação recente
siva do problema, encontram-se idéias como as seguintes: destas ações chegou a confirmar o que se apresenta como
– A droga é o mal, o diabo, a corrupção da alma e da bastante óbvio: que ações baseadas em tais exortações surtem
sociedade, solapando seus alicerces morais e religiosos. ótimos resultados entre crianças pequenas, no caso entre 5
– O consumo de drogas é criado e incentivado pelos tra- e 8 anos. Nas faixas etárias posteriores, “não colam” mais
ficantes, à procura de lucro ou então movidos por objetivos (Klitzner & cols., 1991). Portanto, não basta dizer não.
ideológicos (antigamente, a associação com o comunismo era Existem razões mais profundas para a ineficácia de tais
fácil, insinuando, por exemplo, conexões entre o narcotráfico slogans: primeiro, eles denotam uma atitude negativa não
e as guerrilhas de esquerda). apenas diante das drogas, mas diante da vida (entre outros
– O ideal de uma sociedade sem drogas (ou “escolas aspectos, de atividades de prazer) e da sociedade; em segui-
sem drogas”) é realizável, mediante medidas adequadas, da, não detêm credibilidade diante dos jovens que assistem
sobretudo de cunho repressivo (visão que denota falta de cotidianamente a avalanches de produtos tóxicos não apenas
realismo e de compreensão dos determinantes históricos do ofertados mas também consumidos, inclusive pelos pais e
consumo de drogas). educadores; em terceiro lugar, por não levarem em conta o
– O grande mal são as drogas ilícitas (que, via de regra, desejo do jovem de “dizer sim”, de maneira ampla e irres-
são aquelas produzidas no terceiro mundo), omitindo-se falar trita: dizer sim à vida, a novas experiências, a alternativas, a
das substâncias lícitas, não menos nocivas em sua essência inovações, a procuras prazerosas e estimulantes... Ao invés
e freqüentemente mal controladas. de canalizar estas tendências naturais e saudáveis para rea-
– A grande maioria dos dependentes de heroína ou cocaína lizações criativas, os slogans em questão desviam a atenção
começou sua “carreira de drogado” pelo uso de maconha, ape- do jovem para o proibido, atraente desde a maçã do paraíso,
lando-se assim a um argumento estatístico invertido (quando e incitam à transgressão – da qual o jovem talvez precise, em
a questão correta deveria ser: qual é a proporção dos usuários certos momentos, para assegurar sua auto-afirmação, mas que
de maconha que se torna dependente de drogas “pesadas”? deve se tornar capaz de auto-administrá-los na dose certa...
De fato, o argumento assemelha-se àquele, corriqueiro, nas Na aplicação de tais atividades “preventivas”, assiste-se
propagandas para loterias: quem joga, ganha...). a uma série de situações em que se apela dramaticamente às
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emoções dos jovens – situações em que se tenta “fazer pre- A juventude, de fato, representa um público extrema-
venção” mediante argumentos de choque, presumivelmente mente crítico, atento às contradições que se manifestam na
passíveis de inculcar atitudes de medo levando ao evitamento sociedade, entre os adultos, pais, educadores e outras autori-
das drogas. Assim, enumeramos: dades. Trata-se, pois, de tocar e mobilizar suas expectativas
– Palestras para jovens em se levam vidros com fetos para o futuro, sua espontaneidade, seus sentimentos – mas
abortados, assinalando que as respectivas gestantes estavam sem sentimentalismos –, seus valores e suas convicções. Se
consumindo drogas. é verdade que estas últimas são oscilantes e passageiras,
– Insistência sobre os efeitos nefastos das drogas (a come- não é menos verdade que elas norteiam decisivamente suas
çar pela maconha) provocando, inevitavelmente, impotência condutas, inclusive seus atos desafiadores e transgressores,
e esterilidade (sendo que argumento idêntico foi usado, anti- com todo aquele potencial autodestrutivo bem conhecido,
gamente, para exorcizar a masturbação entre os jovens). mas ignorado ou subestimado pelos apelos patéticos que só
– Insistência sobre os efeitos de depravação física e moral, sabem condenar sem compreender.
levando o usuário de drogas, inevitavelmente, a tornar-se Este potencial com certeza faz parte dos “fatores de
violento, marginal, corrompido e sem caráter (em oposição, risco”, cujo impacto na saúde pública já mencionamos.
frisa-se, ao filho bom caráter, inocente, ingênuo ou otário, Paradoxalmente, ignorando seu alcance e sua seriedade,
vítima das más companhias...). a repressão – e os seus rebentos aplicados à “prevenção”
– Pregações demagógicas, religiosas ou sentimentais, – baseada na interdição dos produtos ilícitos faz aumentar
praticadas sobretudo em comícios populistas ou para gran- tais riscos, constituindo mesmo fatores de risco complemen-
des platéias e pelas quais se tenta instigar uma condenação tares. Assim, ela induz condutas delinqüentes e violências;
emocional (ao invés de racional e objetiva), além de uma faz multiplicarem-se as populações carcerárias, funcionando
adesão incondicional às idéias propostas, às vezes indisfar- como verdadeiras escolas para o crime, o tráfico e o uso de
çadamente proselíticas. drogas; amplia os perigos de superdosagem, pela freqüência
– Procura de um impacto unidimensional na base do ame- de produtos alterados; contribui a uma disseminação mais
drontar, assustar e aterrorizar, com o propósito de conjurar o rápida do vírus da SIDA/AIDS entre usuários de drogas in-
perigo “para sempre”, no sentido de uma “vacina” eficaz e de- jetáveis, relegados à clandestinidade... Do ponto de vista da
finitiva contra as drogas (senão contra todo e qualquer “desvio” saúde pública, pois, tais interdições são contraproducentes,
de normas e padronizações consideradas como certas e intocá- tanto quanto a proibição do álcool nos Estados Unidos dos
veis – velho sonho de uma porção de regimes totalitários). anos 1920; isto não significa que a liberalização das drogas
Não há nenhum exagero nestas enumerações: tais práticas seja a solução mais indicada, mas que a questão precisa de
são corriqueiras, realizadas sobretudo por entidades “filan- uma ampla discussão em nível de toda a sociedade civil, ao
trópicas”, religiosas ou leigas. Tais entidades difundem, com invés de ser objeto de um obscurantismo deliberado.
freqüência, informações sobre drogas sem o concurso de Caberia, em primeiro lugar, ponderar o peso a ser atri-
profissionais, ou ainda, com profissionais emocionalmente buído à saúde pública: até que ponto suas considerações
envolvidos e/ou mal capacitados, e propõem os seus serviços merecem prioridade ou não? Qual é a lógica das decisões
de benfeitoria moral e social às “autoridades”, famílias e as- de interdição, e como é que elas se deixam coadunar com
sociações diversas que, crédulas, lhes prestam ouvido e fé. as preocupações acerca dos fatores de risco? Nos tempos
Mas qual é a ética que sustenta uma tal “pedagogia do da SIDA/AIDS, estes são particularmente agudos e fazem
terror”, pautada na exacerbação extrema dos perigos ad- mudar radicalmente o panorama do problema das drogas,
vindos do uso de tóxicos, tão presente no cotidiano escolar com repercussões também na prevenção e na ética que a
como o detectaram Carlini-Cotrim e Rosemberg (1990)? sustenta. Assim, segundo Bergeret (1990), a história recente
Eis a questão muito séria a ser respondida, por se tratar de das campanhas de saúde pública demonstra que os fatores de
empreendimentos sociais de mais alta envergadura e res- maior relevância não são aqueles ligados a interdições ou a
ponsabilidade. Mal encaminhados à base de subterfúgios, obrigações, mas aqueles que fazem intervir a responsabilida-
alegações inverídicas e interesses escusos, eles mal atingem de individual diante de determinados fatores de risco. Por esta
a população-alvo (ou nela suscitam efeitos duvidosos), por razão, a questão fica aberta se a interdição de certas drogas faz
desconhecer (e desrespeitar) suas características sócio-cul- aumentar os riscos de consumo e de drogadição na população
turais e por emitir mensagens inoperantes, tanto pelo teor geral; não obstante, destaca-se como instrumento preventivo
manifestado quanto pelos objetivos mal confessados. o mais eficaz, tanto em saúde pública quanto em educação,
Para promover serenidade e inspirar confiança, é indis- aquele da responsabilidade pessoal, a discutir a seguir.
pensável pois, que se pratique uma certa ascese emocional.
Senão, é impossível transmitir conhecimentos seguros e A prevenção pela educação
verídicos; pelo contrário, transmitir-se-á uma pseudo-segu-
rança, ancorada nos desejos de intervenção, manipulação ou A idéia de inserir matérias sobre drogas nos currículos
dominação dos “interventores”. Constata-se, aliás, que apelos escolares não é nova. A própria Lei Antitóxico 6.368, de
condenatórios com freqüência suscitam o efeito contrário, es- 1976, até hoje em vigor no Brasil apesar do seu caráter ca-
timulando a curiosidade para com estes “produtos malditos”, duco, exige a inclusão de tais matérias no 1º e 2º grau – se
incentivando assim, sua experimentação. E que tudo que é bem que esta exigência nunca foi cumprida. De qualquer
“pseudo” não toca os jovens (ou só a uma pequena minoria, forma, haveria várias maneiras de atender a esta estipulação
não a dos mais espertos), não recebe crédito, não é acolhido legal: informar-se sobre drogas é importante, não é suficiente,
por falta de autenticidade. pois a informação é um elemento entre outros na formação
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do aluno. Ademais, as informações podem ser transmitidas, mações visando instrumentalizar o aluno para que possa
como exposto acima, de maneira dramática e inverídica ou, ingressar, bem preparado, no mercado de trabalho e tornar-se
pelo contrário, de maneira sóbria e objetiva, contextualizadas um cidadão “útil”? Ou será que incumbe a ela “formar” o
com discernimento e sem apelar a efeitos emocionais com aluno, social e afetivamente, para que possa, em seu processo
aquele impacto pseudopreventivo já assinalado. singular de socialização, chegar a fazer opções pessoais e
Tanto as experiências internacionais o apontam, quanto definir a sua própria “utilidade”? Acreditamos serem as duas
o bom-senso o indica: o jovem tem direito a saber a verdade tarefas fundamentais: sem a primeira, não haverá capacitação
sobre as drogas, sem falsidade ideológica, sem mentiras, profissional, sem a segunda, a instrumentalização não escapa
sem demagogia e sem terror. As informações, pois, devem de robotização – o que pode corresponder a um certo ideal
ser objetivas e fidedignas, usadas para veicular valores funcionalista de uma sociedade de formigas humanas, incen-
que tocam o aluno, o despertam, o interessam. Assim, não tivado pelo desprezo que conhece a educação num país como
procede focalizar a droga como simplesmente “ruim” ou o Brasil; mas ele não leva em conta o potencial humano a ser
“perigosa”, mas sim, situar a questão do consumo de drogas desenvolvido pelo jovem.
dentro do contexto social amplo: ele é em primeiro lugar uma Para que a primeira tarefa não tenha predileção na con-
realidade, a ser encarado como um sintoma – dentre uma cepção do ensino que dele se fazem as autoridades, nem na
série de outros – de um mal-estar, de um disfuncionamento cabeça dos educadores, o papel da escola deve ser visto como
social, vinculado a fatores como a injustiça social, as crises complementar da função da família, na estruturação da per-
econômicas, políticas e de valores existenciais que marcam sonalidade da criança. Escola e tamilia devem cooperar e se
as sociedades mais avançadas. escorar no desenvolvimento de duas faculdades, de suma im-
Tais crises, no entanto, não podem ser consideradas como portãncia e ultrapassando a transmissão de conhecimentos:
acidentais: o mal-estar apontado por Freud (1930/1968) não – a criatividade da criança, pelo incentivo a atividades
é acidental, mas decorre da “essência” da própria condição imaginárias criativas, lúdicas e compartilhadas socialmente,
humana. Não se trata, portanto, de visar um “bem-estar” promovendo uma maior integração psicoafetiva;
rousseauiano do homem, em contatos harmoniosos com a na- – a promoção de identificações estruturantes, por meio
tureza, como se sua natureza psíquica e social o predispusesse dos “modelos” de pais e professores: estes evidentemente
para convivências não conflitantes. Trata-se, ao contrário, devem demonstrar coerência elevada em seus propósitos e
de encarar suas contradições e de resgatar possibilidades suas atitudes (inclusive no que tange ao consumo de drogas)
de realização humana abandonadas em conseqüência das para que toquem os jovens pela sua autenticidade.
opções operadas pela humanidade no processo do seu pró- As duas dimensões são fundamentais para a estruturação
prio desenvolvimento. Tocado sob o leme do “progresso”, inconsciente da criança, para a formação da sua “persona-
quantos sacrifícios este não incluiu, de valores relacionados, lidade” e para uma socialização que escape à banalização
por exemplo, com as dimensões do segredo e do sagrado do ou robotização. Assim sendo, a “saúde mental” da criança
homem – ou ainda, daqueles aspectos éticos que deveriam também dependerá dessa dupla consolidação – e percebe-se,
ser transmitidos às gerações novas pela educação...? pela experiência clínica, que os jovens drogaditos sofrem
O objetivo de uma abordagem preventiva ampla, isto é, de profundas carências imaginárias e identificatórias, tan-
educativa e valorativa da vida humana e de qualidades de to quanto, aliás, outros jovens marginalizados, sobretudo
auto-realização sem padronização, deverá levar em conta o quando sofrem processos de exclusão passiva em função da
contexto histórico do homem, da sociedade e das suas drogas. violência social que os cerca.
Desta forma, dar-se-á relevo à dimensão ética (e não moralis- Assiste-se aqui a uma interface entre consumo (e depen-
ta!) do consumo, intimamente ligada à responsabilidade da dência) de drogas e outros problemas de jovens, facilmente
pessoa pelos seus atos, pela sua saúde, seu corpo, seu desen- detectáveis nas escolas, sob forma por exemplo de fracasso
volvimento de homem e cidadão – pelas opções, em suma, ou evasão escolar. Da mesma forma que o consumo de
que assume na vida. Uma tal visão implica, inevitavelmente, drogas, o fracasso escolar conduz sempre, inevitavelmente,
em pluralismo, o que faz parte da verdade a ser transmitida, à marginalização ou à delinqüência: ambos podem resultar
em oposição a uma visão reducionista ou maniqueísta que, de um sofrimento social e/ou afetivo, vinculado a causas
mais uma vez, não suscita a adesão do jovem, por ser con- internas e externas. Em ambos os casos, não se trata de
trastante ou até hipócrita demais com aquilo que ele conhece “lutar contra”, de punir, impor sanções ou adotar medidas
e observa na vida cotidiana. repressivas drásticas, mas de compreender as dificuldades
Quanto ao êxito dos programas preventivos, a questão que sustentam tais fracassos e exclusões. Eis a tarefa de uma
fundamental é como conseguir efeitos amplos e duradouros, verdadeira educação preventiva para a vida, a saúde, o prazer,
não somente de impacto momentâneo, mas de penetração o sucesso – dimensões a serem abertas, a serem apresentadas
social profunda. Deve-se visar a objetivos a médio e longo pelos educadores em suas incidências de responsabilização
prazo, tanto pela transmissão de informações tendo que per- pessoal, mas não de padronização (pseudo-)cultural.
mear todas as disciplinas de ensino, quanto pela formação de Uma tal abertura, no entanto, pressupõe que os educado-
profissionais (mas também dos pais de família e da comuni- res se interessem pelas vivências das crianças e adolescentes,
dade escolar em geral) podendo atuar como multiplicadores pelos seus sistemas de pensamento, seus conflitos, afetos,
na formação do alunado. expectativas, idéias e ideais, erros, enganos e acertos – mais
Tais objetivos, no entanto, pressupõem uma reflexão do que pelo desempenho escolar ou pelas performances nos
filosófica (e ética) sobre o papel da própria escola, sobre a testes vocacionais e outros.
finalidade do ensino. Será que cabe a ela transmitir infor-
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Pode-se acrescentar que os fatores de risco que predis- jovens por isto. Raciocinar assim, significaria partir de uma
põem ao fracasso escolar são semelhantes àqueles que levam ética capenga, subestimando a dignidade humana do jovem
ao consumo de drogas – isto é, que eles são inespecíficos: que porventura se aproxima de drogas – pelas quais a socie-
não há uma “inadaptação escolar” preexistente, tampouco dade tem que se responsabilizar no seu conjunto, ao invés de
uma predisposição para a drogadição, mas apenas desenvol- simplesmente condenar o que ela mesma produz.
vimentos desfavoráveis da personalidade no seu intercâmbio Constatações quanto à presença de elementos nocivos na
com os fatores ambientais. Nos dois casos detecta-se um sociedade moderna não faltam. Numerosas são as denúncias
subfuncionamento do imaginário, empobrecido, mutilado, de todas aquelas situações agressoras da vida humana que
carente de sonhos vivos e criativos, em conseqüência da po- comprometem não apenas a saúde, mas também as possi-
breza de estimulação social, tanto da parte da família quanto bilidades de comunicação e de intercâmbio. O consumo de
da escola. Como a criança não se reduz a um conjunto de drogas, de todos os tipos, se deixa compreender como uma
neurônios a serem programados (ou “formatados”) como um destas agressões contra o próprio homem, entre uma série de
disquete de computador, sua crialividade iniciante tem que outros como poluição, trânsito, publicidades sensacionalistas
ser incentivada, suas identificações cultivadas e consolidadas e consumistas, corridas armamentistas, fome, endemias,
por contribuições pedagógicas acertadas. desemprego e violência.
Hoje em dia, estas são raras, substituídas pelo massacre da Por outro lado, os movimentos ecológicos mundiais
função imaginária da criança operado pelos programas “in- preconizam a volta a tipos de vida mais saudáveis, menos
fantis” da mídia ou pela predileção dos programas escolares predatórios e menos desequilibrados no que tange aos
para as operações lógicas e formais. Porém, como a criança ecossistemas do nosso planeta – do qual o homem faz parte
não é somente uma mecânica, mas um ser vivo com afetos, como um elemento essencialmente perturbador. Assim, aos
imaginação, fraquezas e acidentes, tropeços ocorrem com aspectos bem conhecidos da erosão do solo, da escassez da
freqüência elevada: de depressão a regressão, de fracassos na água, da poluição ambiental, da devastação das florestas
integração social a fobias, delinqüência ou drogas, o jovem tropicais, do aquecimento global, da destruição da camada
desliza com facilidade. Tropeços corriqueiros e passíveis de de ozônio e outros, deve-se justapor os danos causados pelas
reversão, se é que encontram acolhimento, sensibilidade e outras agressões cometidas pelo homem, contra a natureza e
tratamento adequado, nos casos em que a prevenção escolar contra si mesmo, em ampla escala.
tinha fracassado – o que infelizmente é comum, por falta de Tanto os agrotóxicos quanto as outras drogas, lícitas e
planejamento e/ou de ética preventiva. ilícitas, agridem o homem, provocam tais danos e partici-
Querendo prevenir tais deslizes, não se trata de “prevenir” pam da poluição, seja ela mental ou externa. As questões de
a busca do jovem por alternativas e inovações, nem tampouco saúde pública e mental que levantam, devem ser discutidas
seus atos desafiadores, participando tantas vezes da evasão com urgência, pela comunidade e pela ciência, à procura de
escolar ou do consumo de drogas. Desafiar e transgredir uma “medicina planetária” de cunho curativo tanto quanto
correspondem a intenções “normais” e saudáveis; o que se preventivo; nas escolas, cabe discutir estas mesmas questões
trata de prevenir é o seu alastramento além dos limites de no contexto de uma prevenção que não se limite a exortações
uma contestação auto-afirmativa, rumo a atos que acarre- de não usar drogas, mas que se preocupe com o advento de
tam marginalização, sofrimento físico e moral e, em alguns cabeças lúcidas e corajosas, capazes de enfrentar e transfor-
casos, danos irrecuperáveis. A história recente mostra que mar a vida que a elas se apresentar. Assim, a “valorização da
não é possível evitar tais casos de todo; não obstante, é vida” (Abead, 1990) é um processo de ampliação de com-
obrigação ética da escola e das autoridades educacionais promissos do indivíduo em relação a si mesmo, ao outro e ao
proceder à implantação de uma programação preventiva com meio ambiente, na busca da realização de projetos pessoais e
um verdadeiro embasamento ético, para poder diminuir a coletivos. Enquanto meta de uma prevenção com base ética,
incidência de tais casos e para poder transmitir mensagens visa a conciliação da produtividade com a criatividade, da
de verdade, preparando melhor para as opções futuras na tecnologia com a imaginação, da verdade científica com a
vida de cada um. verdade existencial, para que a liberdade de opção de cada
jovem e cidadão não sofra entraves maiores do que aqueles
A Prevenção na Ética de uma Ecologia Humana que a vida em si acarreta.
Para ultrapassar a “razão instrumental”, alavanca opera-
Para que a prevenção seja realmente-operante, ela tem cional da modernidade, mas contribuindo ao avassalamento
que levar em conta a dimensão humana das aspirações da solipsista do homem, Habermas (1987) propõe a “razão
juventude, inseridas naquilo que ela tem de melhor: a ousa- comunicativa”, destinada a apontar caminhos de controle
dia de esperar e exigir mudanças. Abordada desta maneira, e reorientação do funcionamento social totalitarista. A ra-
revelar-se-á toda a dimensão humana da própria problemática cionalidade por ele preconizada deveria estabelecer “uma
de drogas; sem este confronto, não se entende a amplidão normatividade ética, ideológica e ecológica por meio da
da questão, nem que ela faz parte de um contexto mais intercomunicação”, para que opções verdadeiramente
abrangente, abarcando o caminhar da humanidade rumo a emancipadoras se tornem novamente possíveis. Em sentido
um destino incógnito. semelhante, Touraine (1988) preconiza o “retorno ao ator”,
Neste caminho, onde ameaça a gradual padronização da demasiadamente reprimido, na modernidade, por sistemas
cultura ou ainda, “a monotonia e estupidez de programações que o enfocam como mero receptor de mensagens injuntivas.
uniformizantes” (Jacob citado em Feyerabend, 1991), as Enquanto ator, portanto, o homem influencia seu momento
drogas oferecem alternativas atraentes. Não cabe culpar os histórico e constrói sua história própria, escapando assim
122 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, 2007, Vol. 23 n. especial, pp. 117-123
A Ética da Prevenção
Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, 2007, Vol. 23 n. especial, pp. 117-123 123