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PENSAMENTO POLÍTICO DE PLATÃO Á OT AN

Introdução de Brian Redhead

Pergunta
Por que devo obedecer ao Estado?

Resposta
1 Porque se eu não obedeço eles me cortam a cabeça.*
2 Porque é a vontade de Deus.*
3 Porque o Estado e eu fizemos um acordo.*
4 Porque o Estado é a realidade da idéia ética.*
• Risque a que não for adequada.

A história do pensamento político é a história da tentativa do homem,


através dos tempos, de se responder à pergunta: "Por que devo obedecer
ao Estado?" Mas a própria indagação nos propõe muitas outras questões.
O que é e o que deveria ser o Estado?
Como pode ele ser construído, organizado, superado?
Estaríamos melhor sem ele?

Este livro, constituído de ensaios, foi publicado para acompanhar uma série de
programas transmitidos pela Rádio 4 da BBC e busca analisar as respostas a
estas e a outras indagações formuladas por grandes pensadores do passado, e
alguns deste século. Neste processo, eles indicam o caminho para que possamos
ter contacto com as grandes idéias de nossos mais ilustres pensadores.

Consultor da série
Iain Hampsher-Monk nasceu em Londres, em 1946. Estudou na St. Marylebone
Grammar School e nas Universidades de Keele e Sheffield. É autor de artigos
sobre o pensamento político inglês dos séculos XVII e XVIII e sobre teoria po-
lítica contemporânea.

Apresentador da série
Brian Redhead é jornalista e locutor de rádio. Foi editor do jornal The Guardian,
no período de 1965 a 1969, e do Manchester Evening News, de 1969 a 1975.
Hoje, é apresentador do programa Today na Rádio 4 e diretor da World Wide
Pictures Limited, uma companhia.produtora de televisão e cinema.

UM LANÇAMENTO IMAGO EDITORA


As liturgias politicas I

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O sagrado em muito ultrapassa o


domínio do religioso e o rito é o modo
privilegiado de sua expressão. O rito
AS
LITURGIAS
- declara o autor na introdução espe-
cialmente preparada para esta adição -
é "a atitude fundamental, verbal e
postural, onde qualquer um se reco-

POLITICAS
nhece como inferior frente à manifes-
tação de uma potência". Ao mesmo
tempo em que (razão pela qual a polí-
tica se ritualiza) "o rito é o meio tea-
tral de dar crédito a uma superioridade
e, portanto, de obter respeito e honra
através da ostentação de símbolos da
dominação, de riqueza, de realizações
algumas vezes imaginárias" - acres-
centa o autor - "de que o inferior ca-
rece".
Podemos interpretar o presente li- PAPELETA
vro como uma espécie de introdução a DE
toda ritologia futura. Toda essa teori-
DEVoLUÇÃO
zação foi-nos apresentada em estilo
corrente e muito agradável.
A primeira parte do livro - "For- PROGRAMA DE PÓS·GRADUAÇÃO EM
mas Históricas" -, sempre muito bem COMUNICAÇÃO ECllTURA CONTEMPORÂNEAS
apoiada em fontes secundárias ou ~epartamento de Com~nicacãc Fac:i:dade de Com:mlcacão
mesmo na própria etnografia do autor, Cn11•mid.1de Federa: da B?.hi?
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. (Coleção Tempo e Saber)

Riviere, Claude
R525d As liturgias políticas I Claude Riviere; tradução Maria de Direção de
Lo urdes Menezes. - Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989. LUIZ FELIPE BAÊTA NEVES
(Coleção Tempo e Saber)

Tradução de: Les liturgies politiques.


ISBN 85-312-0084-9

l. Ciência política. I. Título. II. Série.

CDD-320
89-0913 CDU-32
IMAGO EDITORA
- Rio de Janeiro -
Título Original
LES LITURGIES POLITIQUES

© Presses Universitaires de France, 1988


i08, boulevard Saint-Germain, 75006 - Paris

Tradução: ;\i.: •• ia de Lourdes Menezes


Revisão técnica: Renato Lessa
Revisão: Pedrina Ferreira Faria
Angela Castello Branco
Maira Parulla
Capa: Jorge Cassol
A Siegfried e Annabelle

Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA.


Rua Santos Rodrigues, 201-A - Estácio
CEP 20250 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 293-1092

Todos os direitos de reproduç::.0, divulgação e tradução são reservados.


Nenhuma pan..:- àesta obra poderá ser reproduzida por fotocópia,
microfilme ou outro processo fotomecânico.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
SUMÁRIO
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR

L'objet social, essai d'tpistimologie sociologique, Ed. Marcel Riviêre,


1969.
Muta.tions sociales en Guinde, Ed. Marcel Riviêre, 1971
Dynamique de la stratification sociale en Guinde, Honoré Champion, Apresentação 9
1975. Introdução 13
Le systeme social, Larousse, 1976 (en collab. avec F. Bourricaud et F. Introdução à edição brasileira
Balle). 27
Guinea. The Mobilization of a People, Comell University Press, 1977. Primeira Parte
Classes et stratijications sociales en Afrique, PUF, 1978. Ouvrage cou- FORMAS HISTÓRICAS
. ronné par l' Académie des Sciences d'outre-mer.
L'analyse dynamique en sociologie, PUF, 1978 Capítulo 1. - O Antigo e o Novo Regime em festa 44
Anthropologie religieuse des Evt du Togo, Nouvelles Editions Africai- Capítulo II. - Consagração da Repóblica e celebração
nes, 1981. do trabalho 69
Capítul~ III. - Da direita à esquerda: liturgias dos totalitarismos 88
SOB A DIREÇÃO DO AUTOR:
"Traditions togolaises", Lomé, Annales de r Universiti du Btnin, nu- Capítulo IV. - Ritos nacionais das democracias ocidentais 105
méro spécial, 1979. Capítulo V. - Ritos da democracia e da autocracia na África 121
"Guerres en Afrique noire", Louvain, Cultures et Dtveloppement, nu-
méro spécial, 1984. Segwula Parte
Une anthropologie des turbulences. Hommage à Georges Ba/andier, INFERPREI'AÇÕES SOCIOLÓGICAS
Paris, Berg, 1985 (avec la collab. de Michel Maffesoli et al.).
Capítulo VI. - Para uma análise dos ritos seculares 143
Capítulo VII. - Para que servem os ritos seculares? 167
Capítulo VIII. - Dinâmica das liturgias políticas 190
Capítulo IX. - Uma simbólica redundante 218
Epílogo 245
Notas da tradução 250
APRESENTAÇÃO
Roberto Motta

..
Se fosse necessário, para benefício de leitores que nem sempre ha-
verão de ser sociólogos ou antropólogos profissionais, resumir a rique-
z.a teórica e etnográfica deste livro numas poucas teses fundamentais, a
primeira seria simplesmente a de que o sagrado em muito ultrapassa o
domínio do religioso. E o sagrado se encontra implicitamente definido,
em linhas que não serão de todo estranhas aos apreciadores da antro-
pologia religiosa de Rudolf Otto, Mircea Eliade ou mesmo Emile Dur-
kheim, como a manifestação de uma potência ou força "sobrenatural",
quer dizer, extraordinária - é este também o entendimento do sagrado
.: · do príncipe entre os antropólogos culturais norte-americanos que foi
Robert Lowie - que, se não propriamente transcende ou foge ao dia-a-
dia (pois que sentido teria postular fenômenos sociais que, em t1ltima
análise, não se encontrem imbricados e arraigados no quotidiano?),
destaca-se dentro dele como aquilo que organiza e canaliza as suas
energias. Para usar de uma comparação aristotélica que não haveria de
desagradar ao próprio Claude Rivi~re (que, além de sociólogo e antro-
pólogo, é também um filósofo muito fino), o sagrado, as ritualizações,
atuam como que na qualidade de formas, "enteléqu1as", princípio de
estruturação e organização do dinamismo social.
O sagrado, portanto, é bem mais vasto que o religioso, no sentido
convencional do termo, e o rito é o modo privilegiado de sua expres-
' são. Pois o que é o rito, afinal de contas, declara o autor com toda niti-
dez na introdução expressamente preparada para a edição brasileira de
seu livro (mas retomando conceitos-chave do capítulo VI e de outras
passagens de seu livro), senão "a atitude fundamental, verbal, gestual e
postural, onde qualquer um se reconhece como inferior frente à mani-
festação de uma potência", ao mesmo tempo em que (e aí a razão fun-

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damental por que a política se ritualiza), "o rito é o meio teatral de dar Depois vêm as "interpretações sociÓ16gicas", com quatro capítu-
crédito a uma superioridade e, portanto, de obter respeito e honra atra- los, entre os quais se destaca, quase como nócleo de todo o livro, o in-
vés da ostentação de símbolos de dominação, de riqueza, de realizações titulado "Para que servem os ritos seculares?", que não se vai aqui re-
algumas vezes imaginárias", acrescenta o autor, "de que o inferior ca- sumir, mas s6 assinalar que sua funcionalidade política configura-se
rece". O rito enfim, diz Riviêre numa passagem do início do capítulo nos papéis de legitimação, hierarquização, moralização e exaltação.
VII, "nos situa num vasto espaço de criação e numa temporalidade Notemos também que "a força do rito se mede pela emoção que susci-
humana ideal, de que faz reviver a gênese e que ele assume com a es- ta" e, ponto capital, se Riviêre não tem papas na língua para, com to-
perança escatol6gica de dominar as eventualidades do tempo destrui- das as letras, afirmar seu ponto de vista sobre as funções do rito e até
dor". sobre suas funções integrativas (azar daqueles que encaram absoluta-
Também podemos interpretar o presente livro como uma espécie de • mente tudo sob o ângulo do conflito de interesse e das lutas de classe),
introdução a toda ritologia futura. Pois, argumenta nosso autor, se há ele está também perfeitamente consciente de que, "em lugar de atuar
uma ciência dos mitos, uma mitologia, ilustrada em nossos dias por em favor do status quo, o rito pode agir contra ele e provocar mudan-
Claude Lévi-Strauss, por que não uma ritologia - para Riviêre, como ças sociais que irão repercutir por sua vez sobre o pr6prio rito ... Por
para Durkheim, como, no campo especializadíssimo dos estudos sobre isso é preciso evitar a ilusão de um tratamento simplista do rito como
o Antigo Testamento, para Gerhard voo Rad, são das mais tênues e im- invariavelmente unificador, repetitivo e resistente às vicissitudes do
precisas as relações entre rito e mito, o primeiro não se limitando ab- tempo assim como às febres das sociedades em crise".
solutamente à execução mimética do segundo - por que não então uma Mas não se pense que todo o tratamento te6rico fique reservado
ritologia, com suas estruturas e antiestruturas, suas festas e seus rite- aos capítulos finais. Claude Riviêre tem suas sutilezas e até se diria
mas (que são as unidades mínimas de significação no desempenho ri- suas perfídias, não de personalidade, mas de estilo literário. O capítulo
tual, análogas aos mitemas mitol6gicos e aos fonemas lingüísticos)? E entre todos mais inocentemente etnográfico, "Ritos da Democracia e da
dessa ritologia, em que pesem os trabalhos ainda recentes de Victor Autocracia em África", contém uma crítica cerrada da concepção da
Turner, não será um Claude, não o Claude Lévi-Strauss das "Mytholo- "socialidade" e do quotidiano nos trabalhos de Michel Maffesoli. Para
giques", mas sim Claude Ri viêre, que surge como seu principal codifi- Riviêre, "a socialidade tida como de base ao mesmo tempo em que re-
cador nas ciências sociais contemporâneas? sulta de uma socialização, contribui para produzi-la" ou, em termos
Toda essa teorização apresentada em estilo corrente e muito agra- talvez mais claros, "o quotidiano, mesmo ficando estruturalmente in-
dável. A primeira parte do livro, "formas hist6ricas", sempre muito completo, respeita uma ordem, tem seus princípios e seus c6digos",
bem apoiada em fontes secundárias ou mesmo na pr6pria etnografia do não representando, por conseguinte, o domínio da pura efervescência
autor (entre outras coisas, africanista de renome, sucessor autêntico, dionisíaca.
nesse ponto como noutros, de George Balandier em sua cátedra da J,
Mas a questão que perpassa a obra de Riviêre (que neste ponto
Sorbonne), consiste numa saborosa descrição das festas póblicas em gosta de declarar-se influenciado pelo Jean-Baptiste Sironneau de St-
França, antes, durante e depois da Revolução, chegando até de Gaulle cularisation et Religion Politiques) é fundamentalmente a mesma que
e os presidentes Giscard d'Estaing e Mitterand. Descrição, igualmente, perpassa a obra de Max Weber, dos Ensaios Reunidos sobre a Sociolo-
das liturgias (a palavra liturgia, é tempo que se diga, empregada no gia da Religião a Economia e Sociedade. E essa questão, num ou nou-
sentido etimol6gico de trabalho ou ação de ou para todo o povo) dos tro vocabulário, é a do desencantamento do mundo, que é, evidente-
totalitarismos da esquerda ou de direita (Hitler, o grande mestre de ce- mente, a questão do desencantamento da pr6pria sociedade. Trata-se,
rimônias); das democracias ocidentais e, finalmente, dos jovens países na base, em linguagem meio de Weber e meio de Durkheim, do pro-
africanos, autocráticos ou mesmo democráticos, terminando pela coroa- blema da legitimação e da coesão sociais.
ção do Imperador Jean Bedel Bokassa, num ritual bastante parecido, A atual "sociologia do quotidiano", eminentemente representada
afinal de contas, com o da sagração de Napoleão. nos trabalhos de Michel Maffesoli (A Conquista do Presente, A Som-

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bra de Dionísio, O Tempo das Tribos, entr~ outros), redescobrindo
certas características perenes da condição humana e social, salientando
a astúcia com que grupos e tribos resistem à 16gica do projeto em seu
nome exercida, redescobrindo o imaginário sempre em ato através da
socialidade, assume uma posição a seu modo otimista, pois, nessa INTRODUÇÃO
perspectiva, desencantamento e reencantamento aparecem como cor-
rentes simultâneas e complementares.
Claude Rivi~re se reaproxima do ceticismo de Max Weber. Certo,
o sagrado é mais amplo que o religioso. Sem dllvida, o conceito de rito
pode ser univocamente aplicado tanto ao campo da religião como ao da
política. Mas nada disso parece impedir o empobrecimento, o envelhe-
cimento do mundo. "As liturgias polCticas marcam uma redução temáti- Liturgia, cerimônia, festa, rito, são termos onde de imediato perce-
ca dos sCmbolos. Com algumas exceções, elas têm pouca profundidade bemos conotação religiosa. Mas no entanto não há movimento político,
hist6rica... e com freqüência os novos rituais carecem de profundida- de partido ou de regime, que deixe de recorrer à série de atos solenes,
de emocional ou de substrato ideológico", escreve Rivi~re no fim do repetitivos e codificados, de ordem verbal, gestual e postural, de forte
llltimo capítulo. Mas - esta é que é sua última palavra, no epílogo com conteúdo simbólico. Algumas manifestações públicas ritualizadas, ao
que encerra o livro - "Todo desamor é apenas transitório e a história afirmar a integração de uma coletividade, exibem uma identidade e ex-
não pára de nos revelar as ressurgências: ressurgência do religioso no primem uma vontade de existir na comunhão de certos ideais. Por mais
político, ressurgência da ritualidade através de suas diversas formas, variadas que tenham sido ao longo dos séculos as formas de valoriza-
ressurgências da fé nas religiões seculares (da ciência, do lazer, da au- ção sacra do político ou de sacralização do coletivo, graças a uma reli-
toridade .. •) depois que o Ocidente se libertou do primado da institui- ·gião ou mesmo sem ela, algumas constantes que tentaremos definir, no
Ção eclesiástica. O político é apenas um dos domínios onde se investe a seu espúito, na simb6lica e na natureza dos ritos políticos, permitem
religiosidade. . . " circunscrever um vasto campo litúrgico, intensamente cultivado nas ter-
ras apropriadas dos regimes autoritários, e com produtos mais esparsos
nos húmus democráticos.
Antes de designar a ordem das cerimônias e das preces que com-
põem o serviço religioso, a palavra liturgia (leitourgia, de leitos: públi-
co, e ergon: obra) significou em Atenas um serviço público dispendio-
so prestado em favor do povo pelas classes mais ricas da cidade. A
mesma origem profana é legível na etimologia da palavra cerimônia
que antes de referir-se às formas exteriores regulares de celebração de
um culto religioso, aplicava-se aos ritos cívicos solenes. "A cerimônia
diferencia-se da festa", diz Jean-Jacques Wunenburger, "porque não
implica uma participação ativa de todos os membros do grupo social.
Ela supõe que o contato com o sagrado é regulado, limitado, na verda-
de delegado a um certo número de eleitos" (Wunenburger, p. 48). As-
sim como a festa, com seus aspectos de jogo, de efervescência e de
consumo, tanto pertence ao registro profano (festa agrária, festa das
Mães, festa do Trabalho) quanto ao registro religioso, o termo rito já

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recobre atos estereotipados e repetitivos do domínio secular (rito do
esporte, do conciliábulo, da vida cotidiana) e do domfuio eclesiástico. de ilusões. Ora, por um lado, a sociologia durkheimiana chega a perce-
No entanto, é impossível empregar o termo liturgias políticas sem ber o religioso como caráter essencial do social: esfera para onde o
pôr em perspectiva, de modo permanente, o nosso propósito com rela- homem projeta aquilo que não domina na ordem do cosmos, das socie-
ção, não s6 ao rito religioso para dele extrair analogias formais, mas dades e dos homens, lugar do não-transparente, da força misteriosa
sobretudo ao conteúdo do religioso, à ideologia entendida no sentido (ma.na), da autoridade absoluta protegida pelos tabus. "A força religio-
descritivo e não crítico, para tentar apreender a visão do absoluto que sa", afirma Durkheim, "é apenas o sentimento inspirado pela coletivi-
motiva a prática do adepto ou do cidadão, e com relação aos movi- dade aos seus membros, mas projetado para fora das consciências que o
mentos históricos de ressurgência dos movimentos religiosos e polí- experimentam, e objetivado. Para objetivar-se, ele se fixa sobre um
ticos. objeto que assim se toma sagrado" (Durkheim, p. 327). Em parte a
Toda religião pretende um monopólio da gestão do sagrado; ora, o força política não seria também isto? Se a religião é constituída pela
que acontece nesse domfuio? O político de alguma forma não poderia sociedade, nada comprova, objetaríamos nós a Durkheim, ser ela cons-
investir-se nele? Antes de responder com uma hipótese sobre a nature- titutiva do social e não substituível por outras expressões da sacralida-
za do sagrado e sobre a extensão de seu campo ao político, seria con- de. Por outro lado, a antropologia, questionando-se sobre os funda-
veniente questionar-se sobre a evolução das relações entre religião e mentos do social a partir do caso das culturas primitivas, arcaicas ou
sociedade no período contemporâneo. tradicionais, infere o papel essencial dos mitos e dos ritos no funcio-
Em termos conjunturais as liturgias políticas aparecem como o namento de todas as instituições, até mesmo econômicas ou políticas.
produto ou pelo menos o corolário da secularização do mundo moder- Quando ao final do século XIX, início do século XX, se desenvol-
no. O abandono parcial das adesões e das práticas religiosas tradicio- ve a corrente de laicização das instituições, o argumento judicioso é o
nais promoveriam um reinvestimento no domínio do político, das atitu- da separação dos poderes e de não invasão da vida política pela reli-
des de religiosidade fortemente arraigadas. Porém, muitas idéias a esse gião, mas com o laicismo se opondo ao clericalismo, a doutrina se in-
respeito, comumente admitidas sem outra prova além de sua plausibili- fletiu numa atitude de oposição virulenta à religião. Mesmo fazendo
dade, mereceriam ser modificadas. A religião política responde sempre apelo ao rac10nalismo ou ao socialismo científico, é preciso constatar
a uma perda de fé, e de fé em quê? E se no Terceiro Mundo as reli- que a religião respondeu à ingenuidade erradicadora de seus detratores
giões instituídas se desenvolvem no mesmo ritmo que as religiões polí- com uma vontade determinada de resistência perceptível no papel con-
ticas? São os ritos profanos apenas a réplica dos ritos sagrados? Caso testatório da Igreja polonesa, nas guerras de religião na Irlanda, no re-
contrário, o que revelam eles de específico? O rito reflete mesmo a or- tomo do Islã integrista no Irã e no Oriente Próximo, e no crescimento
dem social? Como e em que medida? A intensidade da emoção condi- dos misticismos em resposta à crise do Ocidente. A religião nesses ca-
ciona a eficácia do rito? E por quanto tempo? Se a eficácia simbólica sos exerce um papel político, e alguma vezes toma-se uma importante
do rito é o poder de atuar sobre o real atuando sobre a representação do dimensão do social. Em outros casos, a descristianização pode signifi-
real, por que os fracassos da ação ritual não levam ao abandono dos car enfraquecimento, mas nunca a liquidação do religioso. O foco ar-
ritos? Está o nosso século verdadeiramente numa pane do simbólico, dente do mundo simbólico que os homens situam fora deles serve de
conforme murmuram os teólogos que das suas alturas nada vislumbram pólo de significado para o que a sociedade não poderia justificar por
sob as folhagens? sua própria existência cheia de maus passos, de equívocos de orienta-
Paradoxalmente, na medida em que a religião perde peso relativo ção e de vilanias.
em muitas de nossas instituições e na vida das sociedades ocidentais, Aliás, fenômenos compensatórios, com a investidura da religiosi-
ela cada vez mais adquire importância para os teóricos do social e ga- dade no político, podem empalidecer a erosão dos antigos dogmas, por
nha profundidade entre os fü~is. Com as Luzes, pensava-se ver desfa- · substituição de transcendência, Nação, Raça, Revolução ... colocando-
zer-se, sob os progressos da razão, o que fora denunciado como tecido se como pólos motores de um renascimento do espfrito. Os sobressaltos
dos entusiasmos sociais demonstram que o homem tem tanta necessida-
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de de opinião quanto de ciência, tanto de doxa quanto de tpisttmt. E apreensão e além de nosso poder; é o mito ou a segurança íntima (o
que a essas necessidades do homem certas elites respondam com a or- que significa a mesma coisa) de uma totalidade que assumiria a respon-
ganização de liturgias políticas ou clericais, é um fato.
Todavia, as variações históricas das adesões aos ritos nos levam a .. sabilidade do que não sou responsável. Maneira de teorizar a impotên-
cia! Maneira também de dizer que uma coerência do ser-junto se dá na
pensar que não existe consubstancialidade entre religião e sociedade, linguagem simbólica e não através da fragmentação de nossas vivên-,
que as verdadeiras invariantes são, no domínio afetivo, a religiosidade, cias. Sem dúvida a religião é mais tensão para o imutável natural e
não a religião organizada, e no plano mental, a noção do sagrado, refe- cultural, ou seja, para o impossível, e o político é mais a organização
rida a uma transcendência a que os povos atribuem conteúdos ideológi- temporária dessa aspiração à ordem. Ambos, contudo, dizem respeito à
cos diversos: gênios, Deus, imperador augusto, valores metafísicos, história de nossa privação de posse do poder que nos faz conferi-lo a
potências superiores mitificadas como pertencentes ao domínio do ine- uma instância venerável a que atribuúnos uma superioridade.
fável intangível e infonnulável, do imperativo categórico, do inques- O supra-humano algumas vezes assume consistência humana, é
tionável instituído, do arbitrário postulado, mas que na realidade trans- verdade que no messias, no profeta, no herói, mas também no déspota
ferem para o invisível as razões da ordem social. instalado que edita seu novo testamento ainda mais intangível porque
Quer se refira ao sagrado de tipo religioso ou a uma sacralidade do se afirma revolucionário e não reformista e é sustentado por toda uma
político, percebemos nisso os dois aspectos, essenciais à noção segun- "igreja" combatente. Mesmo que não pudéssemos atribuir à religião ou
do Rudolf Otto, de atração e de terror, de fascinação pelo superior e de à religiosidade a fé oficial e os ritos do hitlerismo, do fascismo musso-
temor de uma coerção. O sagrado se manifesta ao mesmo tempo como liniano ou do comunismo soviético, é preciso admitir que são fenôme-
esplendor hierofânico e dissimula os segredos do seu ser e de sua ação. nos da mesma natureza, quer o ídolo esteja revestido pelos ouropéis da
Mas pode uma instituição anexá-lo como domínio próprio? Não há razão ou quer seja considerado como a encarnação empírica de entida-
mais necessidade institutiva trans-histórica na base da religião do que des transcendentes. A passagem do chefe supremo ao deus supremo foi
na base do Estado, ainda que em muitas sociedades a religião tenha si- franqueada muitas vezes na história, e a corrente dos cesarismos é por
do durante muito tempo a pedra angular dos dispositivos políticos. natureza portadora da religião política, como poderia ser demonstrado
~ Quem provará que a existência de normas implica a existência de pelos exemplos do "Rex e Pontifex" Octavianus, do "Grande Timonei-
uma norma suprema, situada fora do social e da natureza, que a religião ro" Mao ou do "Sol resplandecente" Kim ll Sung.
monopolizaria como seu objeto próprio? Quem provará ser a heterono- Mas se a ligação entre o cesarismo, o culto do chefe e os ritos po-
mia mais fundamental que a autonomia e inversamente? Quero dizer líticos parece evidente, se a correlação entre secularização e compensa-
que a questão do fundamento do nomos, da regra, do imperativo, só ção pelas religiões políticas foi demonstrada com suficiente clareza por
pode ser resolvida pela crença e pelo rito que o fortifica. Que o algures Jean-Pierre Sironneau, foi pelo contrário insuficientemente observado o
ou o além traga ao homem e à sociedade suas determinações, é apenas que, na França revolucionária e depois republicana, os ritos políticos
um postulado! Deus ou deuses, a sociedade ou o político, o outro ou deviam ao jacobinismo.
eu, nada funda o que quer que seja, está tudo aí, em si ou por si, pouco Centralizador e autoritário, herdeiro de tradições capetíngeas ex-
importa, quem pode saber? O homem? Um ser estupefato de incertezas, pressas depois na idéia de uma república una e indivisível, o jacobi-
tendo como certo apenas o que considera como tal! É verdade que o nismo quer que o Estado regule a sociedade, que a capital domine a
ser-junto reconforta. O Ser supremo desobriga o homem da angústia de provfucia. Segundo Rousseau, nenhuma sociedade particular deve in-
suas escolhas, o político também! Não seriam então a religião e a polí- terpor-se entre o eu comum soberano e as vontades individuais. Com-
tica o conforto do homem que recusa uma liberdade difícil de vassali- primidas em vontade coletiva de um povo, essas vontades individuais,
zar, e que investe o outro e outro lugar com a plenitude que constata após 1789 todas iguais em direito, criam e sacralizam o poder público
como pólo inverso de sua contingência e de suas insuficiências? O sa- que expressa a lei e a vontade geral. Em nome do bem geral e da cons-
grado religioso, assim como o sagrado político, está além de nossa ciência do povo sempre certa, são proclamados valores fundamentais

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precisa ser corri~ida através de div~rsos argument?s ~ustrad~~ ~la et-
e códigos de virtude. Hostil à religião da Igreja e aos poderes exclusi-
nologia: 1) só muito raramente existe corresponde~cia, seque~cia por
vistas dos padres, que perturbam a solidariedade da cidade, o jacobi-
seqüência, do mito e do rito; o mito pode revelar isso com diferentes
nismo institui, acobertado pela ciência positiva, uma religião civil com
intensidades; 2) povos pobres em mitos têm ritos bastante comple~os;
um culto maior, o culto da Nação, regulado pelo Estado e pela capital.
3) 0 mesmo mito pode ser celebrado através de ritos diversos e a ~tos
É no seio do jacobinismo que se desenvolve o cesarismo de Robespier-
re e a laicidade republicana. análogos correspondem ritos diferentes de acordo com as populaçoes;
4) ritos quase idênticos referem-se a mitos totalmente dessemelh~tes'.
Deixemos aos lústoriadores a tarefa de dizer se a mesma corrente
5) muitos mitos não têm ritos que lhes correspon~em c:x.: Narcis?),
portadora de religião política aparece fora da França. Sempre é verdade
6) de toda maneira, o sentido fornecido por um rmto nao nec~ssaria­
que entre o clima de nascimento da primeira revolução francesa e o
mente legitima a sua realização; 7) as invenções ou os empr~stlmos ~e
clima do aparecimento das grandes liturgias totalitárias não faltam
ritos em certas circunstâncias conjunturais graves para.ª. s°':iedade nao
analogias: tom nacionalista ou pretensão cosmopolita de tomar-se um
supõem um referente mítico, ainda que um rel~to JUStlflc~vo. ou u~a
povo-piloto para a humanidade inteira, tendência revolucionária e im-
integração num corpus de mitos antigos os vahde a posterio~i; 8) rm-
perialista, combinação variável de vontade de solidariedade, de vonta-
tos permanecem como simples sobrevivências ap6s o esquecune?to de
de de virtude e de vontade de eficácia nacional, apelo a uma ordem
simb6lica fortemente significativa e redundante... seu significado inicial, ou enquanto comportamentos dessacraliza~os
transformados em hábitos sem referência a um background mítico;
Mas se a maior parte dos cesarismos (assim como das correntes li-
9) em inúmeros casos, o referente do rito nã~ é da ?rdem do logos ar-
bertárias) constituíram-se como doutrina, o jacobinismo foi sobretudo
quetípico, do relato de atos iniciais, mas da ideologia ou da esperança
uma atitude. O fato de ele ter engendrado liturgias políticas leva a nos
questionarmos sobre a necessidade ou a constância da relação entre de uma eficácia simbólica ou real.
doutrina e comportamento litW-gico, entre mito e rito, mais geralmente Em suma, esses argumentos insistem na especificidade d~ ~to, q~e
entre orientações ideológicas e ritualidade social. não se reduz a uma simples reatualização do mito como a tradiçao espi-
ritualista da Grécia substituída pelo cristianismo tenderia a faze~ pen-
Por mais esquemática e puramente lúpotética que seja a analogia
sar. A ritualidade não se fundamenta em todos os casos num rmt~ de
decorrente, não poderia ela ser fecunda? Assim como são abandonados
origem. O gesto não é sempre subordinado à ~alavra, ne~ a práu~a à
os grandes paradigmas ideológicos forjados no contexto das reorgani-
crença, nem a exterioridade à interioridade. Sena necessári~ reconsi~e­
zações sociais e culturais caras ao século XIX, pela orientação no sen-
rar mais a fundo, através de uma explicação sem preconc~ito deprecia-
tido das ações de alto desempenho técnico, porém repetitivas, não ha-
veria como acompanhamento dessa mudança, em muitas de nossas con- tivo, e também quem sabe, tanto como estruturante da s~.iedade qu~to
dutas religiosas e políticas, uma espécie de revalorização da ação ritual da pessoa, 0 que a etologia afi.r~ ressaltar d~ ester~oupia gestual mú-
com suas características de execução e de exibição relativas a um pen- til, 0 que tal religião destina aos infernos da .idola.tna, ou o que a pato-
samento mítico, arquetípico e imbuído de todas as emoções suscitadas logia das neuroses atribui à obsessão pelo cenmomal. . .
pela miragem de ideais? Mario Perniola, num texto, amplamente documentado, de hlst6-?a e
de lingüística latina, demonstra de maneira convincente que a caerimo;
A distinção entre a concepção dourada de nossos destinos e a con-
nia não é carimonia, de careo, ser privado de, sentir a falta de.· .. E
cepção operante da ação, foi apregoada sem cessar pela filosofia e pela
preciso deixar de pensar a cerimônia como ..formalismo, superfície e
antropologia modernas, mas sem opor verdadeiramente mito e rito na
esclerose", como pura exterioridade denotando .. uma falta de ~rofun­
medida em que elas preferiram sublinhar sua complementaridade: o
didade de substância interior e de vida", como .. uma loucura mcom-
mito autentica o rito e o legitima fornecendo-lhe significados, o rito
preensfvel". Pois pelo menos ..essa loucura constitui. a pr6pria base da
atualiza e reproduz o mito repetindo-o, representando-o a nível motor e
afetivo. O in illo tempore da origem realiza-se de novo hic et nunc. º.
religião e da mentalidade dos antigos ro~?º~· mais surpreendente é
que, na Roma antiga, exterioridade e cenmoma, nto sem rmto e sem fé,
Na verdade, a pseudodependência do rito com relação ao mito
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não se encontram no termo do processo histórico, não são a expressão comporta clivagens, tensões, conflitos, guerras, pretende elaborar-se
da decadência e do esgotamento de uma religião que teria perdido toda em tomo de crenças nos valores fundamentais que o militantismo de-
relação com a experiência vivida de onde ela nascera. Muito pelo con- seja tomar absolutos; pátria, partido, revolução, humanidade, paz, re-
trário, estas características encontram-se na origem da romanidade, pública... , e que exigem devotamento, solidariedade, sacrifício...
constituem a intuição central onde se fundamenta a concepção romana Quanto mais ele percebe a fragilidade no seu interior e a insegurança
do divino, do humano e do tempo" (Pemiola, p. 22). em tomo de si, mais se protege com interditos, mais enuncia cerimo-
Como dos deuses só sabemos aquilo que os mitos lhes atribuem - nialmente os seus princípios e os seus códigos de ação, mais exige dos
ou seja, o sagrado só tem o sentido que se lhe atribui a partir de sua cidadãos os signos exteriores, repetitivos, ritualizados, de obediência e
exterioridade - a sua verdadeira existência para nós é apenas o que se de integração social.
manifesta na objetividade da hierofania das liturgias. As insígnias mi- Da mesma fonna que o indivíduo e os grupos locais investem na
litares dos exércitos de César reunidas em feixes objetivam o juramento religião, sobretudo nos momentos de incerteza quanto à segurança da
de aliança, e o súnbolo detém um poder sagrado. A exterioridade do vida; nascimento, puberdade, casamento, morte, e nos momentos de
rito corresponde à exterioridade do sagrado, não atualização de um possível perigo, assim também os regimes políticos, partidos e movi-
sistema mas existênci<i objetiva de uma força imanente à história. mentos recorrem a manifestações ritualizadas para expressar o querer-
Certamente a referência etimológica não faz desaparecer a concep- ser da coletividade que representam, no momento em que a potência
ção cristã, mas pelo menos demonstra que pode ser dado um certo sen- tem necessidade de se afinnar; após uma derrota, ou para atenuar a
tido à exterioridade do rito, que os ritos e os símbolos têm o sentido humilhação de um terceiro estado, de um proletariado ou de uma na-
que lhes atribuem os homens, fabricantes de mitos e de ideologias. ção. O aparecimento e a intensificação das liturgias políticas na maior
Demonstra ainda que não existe precedência necessária de um signifi- parte do tempo são correlatas ao aumento dos riscos sociais e da inse-
cado, mas uma possibilidade de criação simultânea do significado e do gurança. Pelo contnújo, a certeza da segurança nacional resfria os fer-
significante, que a exterioridade do repetitivo na vida social, dublando vores rituais, traz o ridículo à majestas e leva ao desamor político. Daí
a interioridade de um vivido, enuncia em linguagem gestual, postural a necessidade, para quem deseja controlar e animar constantemente as
ou verbal a mesma coisa que o mito como relato a decriptar, ou que massas, de vivificá-las indicando-lhes, em linguagem litúrgica, as zo-
a ideologia em termos abstratos. nas de insegurança às portas do regime ou do partido. Dados empíricos
Esse tratamento do rito como objeto em si significativo era acon- tirados das revoluções francesa e soviética, dos projetos de reorganiza-
selhado por Claude Lévi-Strauss, no final de L' homme nu (não a pro- ção socialista, dos primeiros anos da Terceira República, do nazismo
pósito do político, é verdade), como perspectiva complementar às suas ou da história dos Estados Unidos tentarão justificar esse papel das li-
pesquisas sobre os mitos. Sem utilizar seus métodos e sem nos guiar- turgias como seguro total.
mos por seus pensamentos, que no entanto muito apreciamos, tentare- Como o culto muitas vezes se inscreve no político dentro de um
mos abrir a reflexão sobre a ritologia e sobre a função simbólica no contexto de mudança e incerteza, ele também geralmente é acompanha-
campo do político nas sociedades modernas, refletindo inicialmente so- do por uma tendência à sacralização geral da vida política, especial-
bre a história com suas particularidades e suas recorrências. mente nos períodos de renascimento social com criação de um novo es-
Em especial são vetores de ritualização do político certas fases púito cívico, conforme foi sugerido por David Apter.
críticas de toda sociedade, principalmente as de insegurança e as de A idéia de religião política tanto poderia ser aplicada a casos euro-
institucionalização. Não poderíamos deixar de constatar que à seme- peus ou americanos quanto ao Terceiro Mundo, objeto da reflexão de
lhança de toda religião que se propõe ao mesmo tempo como um siste- Apter. Nos novos Estados, para desenvolver um sistema de legitimida-
ma de explicação do homem e do universo e como um sistema de ação de, pensa ele, e ajudar a mobilização da comunidade para fins secula-
organizada para remediar aquilo que tem de imprevisto, de caprichoso res, as elites políticas tentam fazer a nação adotar um objetivo de rege-
e de acidentalmente trágico a vida social e individual, o político, que neração individual e social, um intuito de emancipação quanto a um

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passado imediato rejeitado como impuro, com a finalidade de aceder a existentes. O rito institui, na medida em que sanciona e santifica uma
um estado de pureza que seja uma espécie de graça inicial, penhor de ordem estabelecida. Notificando a alguém aquilo que ele é, o ato sole-
um começo sem handicap da nação independente. A glorificação do ne de investidura (de passagem) produz o que designa ("magia perfor-
sucesso da independência, acontecimento quase religioso de nasci- mativa"), tem um efeito de atribuição estatutária, encoraja o promovido
mento da nação, entra como elemento de uma sacralização também ma- a viver de acordo com as expectativas sociais ligadas à sua condição.
nifestada pela renovação do interesse por um passado semimítico que Essas diversas sugestões interpretativas inspiradas em alguns arti-
confere ao regime uma profundidade histórica e pela designação de um gos ou capítulos de obras permitiriam supor que o terreno abordado por
inimigo (colonialismo, despotismo, etc.) considerado como potência do nós já está profundamente trabalhado. Por mais curioso que possa pa-
mal que é preciso ser vigiada. recer em virtude da importância da questão, até hoje não foi publicada
Através da sacralização da ordem constitucional é favorecida a nenhuma obra de sfutese nem ensaio filosófico ou sociológico referente
criação de uma nova lealdade ao Estado. A autoridade se desenvolve às liturgias políticas no seu conjunto. Se as ideologias, os modos de
através da fé. Para evitar os riscos da instabilidade política e eliminar ação e procedimentos, assim como os sistemas políticos foram objeto
as inclinações pelos antigos poderes locais, é preciso desenvolver o de numerosas pesquisas em ciência política, o aspecto de ritualidade do
consenso em tomo de uma autoridade central através do entusiasmo político nunca foi abordado, exceto por alguns historiadores a propó-
popular e do ardor revolucionário. Para quem deseja desenvolver um sito de períodos bem circunscritos. Focalizada sobre o mundo moderno,
país mobilizando seus recursos humanos, a criação de uma religião po- a sociologia só se debruçou sobre o assunto recentemente, valorizando
lítica proporciona satisfações simbólicas capazes de fazer desaparecer os casos americanos, soviéticos ou nazistas, acentuando o aspecto
as desagregações de uma austeridade temporária. ideológico com relação ao aspecto ritual, ou sobretudo considerando a
Nos casos examinados por Apter, as liturgias políticas contribuem funcionalidade social de uma sacralização do político. Quanto aos et-
para a instituição de unia ordem nova. Elas atuam no sentido do insti- nólogos, eles algumas vezes descreveram súnbolos, atitudes e cerimô-
tuínte. Em outros casos, como a sagração de um rei, a investidura de nias demonstrando a sacralidade do poder, mas no quadro de religiões
um presidente, a iniciação de um "pioneiro" na URSS, ou a confirma- tradicionais distintas das ocidentais, e os folclonstas do Ocidente em
ção nazista (Jugendweihe), mais parecem inscritas no instituído social geral restringiram seus estudos das festas aos quadros regionais e lo-
para marcar a separação, o limite, a diferença institucional entre dois cais.
estados, o segundo mais valorizado do que o primeiro. Esta obra pretende apresentar uma primeira síntese sobre o tema
Pierre Bourdieu propõe então, com perspicácia, a hipótese estimu- das liturgias políticas, que possa interessar cientistas políticos, histo-
lante de interpretar os ritos de passagem como atos de instituição. riadores, militantes, sociólogos e etnólogos. Ela evidentemente implica
"Falar de rito de instituição significa indicar que todo rito pretende escolhas como a de referir-se de preferência a exemplos franceses, a de
consagrar ou legitimar, ou seja, fazer desconhecer enquanto arbitrário e excluir do estudo os casos onde a religião, como na Roma antiga ou na
reconhecer enquanto legítimo, natural, um limite arbitrário; ou, o que cristandade medieval, é o suporte primordial do político, e os casos
significa a mesma coisa, realizar solenemente, ou seja, de maneira lícita orientais onde nos falta documentação.
e extraordinária, uma transgressão dos limites da ordem social e da or- Também provavelmente a comparação da Europa com a África
dem mental que é preciso salvaguardar a qualquer .preço - assim como contemporânea, onde durante oito anos nossa experiência amadureceu,
a distinção entre os sexos nos rituais de casamento. Marcando solene- constituirá uma das originalidades deste trabalho. Nela encontraremos
mente a passagem de uma linha que instaura uma divisão fundamental tanto as orientações metodológicas de investigação e de análise con-
da ordem social, o rito atrai a atenção do observador para a passagem ceituai quanto as hipóteses sobre a dinâmica dos ritos, que ficam por
(daí a expressão rito de passagem) enquanto o importante é a linha" aprofundar, confirmar ou negar.
(Bourdieu, p. 58). Linha entre um antes e um depois, entre um estatuto A fim de não desencorajar o leitor por um tratamento à primeira
e um outro, mas também linha de diferenciação entre dois grupos pre- vista abstrato, nosso procedimento será inicialmente descritivo, de

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ritos seculares, que ajudará a definir uma comparação com os ritos reli-
acordo com o panorama histórico de leitura livre proposto na primeira giosos. A palavra ritual designará a ordem prescrita das palavras, gestos,
parte. Um modo de analisar as liturgias políticas consiste em considerar signos, presentes nas seqüências de ritos elementares. Às abordagens
as formas que elas assumiram historicamente desde a Monarquia e a analógicas, descritivas, estruturais e tipológicas (cap. VI) acrescentar-se-
Revolução francesa, insisúndo no que especifica sua identidade: elas ão análises funcionais, dinâmicas e simbólicas dos ritos políticos.
podem ser particulares a um regime: monárquico, republicano, ditato- Nosso esforço será então no sentido de revelar o que, do ponto de
rial ... , a uma nação: francesa, americana, russa... , ou ainda a uma vista sociológico, pretendem realizar as liturgias políticas: integração,
corrente de opinião política: socialista, revolucionária, ecológica... A hierarquização, moralização, exaltação... , por exemplo (cap. VII). Na
consideração por pares antitéticos: liturgias monárquicas versus revolu-
medida em que toda liturgia está submetida às eventualidades da época,
c~onárias (cap. 1); por par diferente: festa cívica de 14 de ·julho essen-
será interessante seguir a curva de nascimento, expansão e declínio das
cialmente francesa e festa operária de 12 de Maio com caráter interna-
ritualizações políticas nas sociedades modernas, para explicar as razões
cional, instauradas sob a Terceira República (cap.ll), pelo par, relati- desses desdobramentos (cap.Vlll). Restringindo cada vez mais o nosso
vamente análogo, do nacional-socialismo e do socialismo soviético campo de investigação, examinaremos finalmente alguns ingredientes
(cap.Ill), permitirá sugestões interessantes a partir de comparações. do ato ritual, observando os códigos através dos quais são veiculados
Fren~e aos totalitarismos que na maior parte desenvolvem uma religião
os valores fundamentais constitutivos da ideologia e dos ritos. Conside-
~lítica_ carreg~a de liturgias, as democracias ocidentais (cap.IV), com
rando toda liturgia política como um modo de comunicação cujos con-
i~eol~gias frágeis e pouco coerentes, suscitam muito pouca participa-
teúdos são traduzidos por símbolos, procederemos então à análise des-
çao ntual fora do quadro de suas próprias tradições: puritana para os
ses símbolos e de suas recorrências, sem negligenciar os contextos de
Estados Unidos, monárquica para a Grã-Bretanha, republicana para a
expressão que influenciam o significado que se lhes atribui (cap.IX).
França. Enfim, alguns casos africanos (cap. V) esboçam um contraponto
dos temas anteriores, onde a presença ou a ausência de religião política Por necessidade da análise e em virtude da mudança de perspecti-
fornece argumentos para estabelecer se existe sempre correlação direta va, alguns dos exemplos expostos na primeira parte servirão como refe-
entre o desenvolvimento dos rituais políticos e outras variáveis tais rencia e serão retomados, de maneira apenas alusiva, na segunda parte
como a laicidade, a ditadura ou a autoridade carismática de um chefe para ilustrar e apoiar a argumentação.
suscitando o culto da personalidade. Se, no grave, a África continua a
ritmar no toque do tambor o seu ressentimento, no agudo ela imita e Expressamos nossa particular gratidão ao Sr. Léo Moulin, pois sem
idealiza o Ocidente. a sua contribuição este trabalho não teria sido publicado. Sua erudição
Por mais variadas que tenham sido as nossas fontes documentais histórica, seus cursos datilografados no Colégio europeu de Bruges, as
histórica~ indicadas no final de cada capítulo, foi-nos freqüentemente discussões que com ele tivemos, contribufram amplamente para a nossa
nec~ss~o fazer referência ao único autor que tivesse procedido a uma própria reflexão sobre as liturgias políticas, e sua releitura crítica de
análise da questão. Por isso nos inspiramos mais particularmente em uma boa parte deste texto foi rica em sugestões.
Mona Ozouf, Rosemonde Sanson, Marcel Dommanget, Christel Lane
Jean-Pierre Sironneau, etc., conforme o caso. '
Nas liturgias entendidas como concatenações ordenadas e estrutu- BIBUOGRAFIA
radas de atos e palavras simbólicos, o elemento pertinente de análise
que permite destacar as constantes dos fatos observados para disso Apter David, Political Religion in the New Nations, in Clifford Geertz (ed.), Old
construir uma teoria é o rito. O valor operatório do conceito será escla- Societies and New States, Glencoe, The Free Press, 1963.
recido na segunda parte desta obra, .mais interpretativa e sociológica. Bourdieu Pierre, Les rites comme actes d'institution, Actes de la recherche en
Nosso propósito consistirá então em fornecer alguns elementos de mé- sciences sociales, n\? 43, 1982, pp. 58-63.
todo para a análise do rito político, inserível na classe mais ampla dos
-25-
-24-
Durkheim
. • Emile' Lesfiormes é.l'ementaires
· ,, la vie
ue · re1·1g1euse,
· pans,
· PUF, ed. de
1960
Lévi-Strauss Claude, L'homme nu, Paris, Plon, 1971.
P~rniola Macio, Le. rite et le mythe, Traverses, n!! 21-22, maio 1981, pp. 19-26.
S.tronneau Jean-Pierre, Sécularisation et religions politiques Paris Mouton INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
1982. ' ' '
Wunenburger Jean-Jacques, Lafête, le jeu et le sacré, Paris Ed. Universitaires
1977. ' '

Dentre todas as nússões de ensino que pude realizar a partir da Sor-


bonne, a que foi executada no Brasil em 1986 deixou-me as lembranças
mais carregadas de emoção. Por esta razão sinto-me particularmente fe-
liz ao dirigir-me a esse povo sábio e generoso, cuja carga de esperança
está na medida de seu sentido de festa. No Brasil, toda uma cultura
mestiça fundamenta o acolhimento na esperança de um reencontro, com
um santo, um orixá, um poderoso de coração terno, um estrangeiro sem
arrogância ou um anúgo de visita. E a esperança tanto se manifesta nas
fantasias do cotidiano quanto nos rituais religiosos, seculares ou políti-
cos: êxodo para a "Terra sem mal" dos Tupi, cultos Xangô do Recife
tão bem analisados por Roberto Motta, apostas nas brigas de galos es-
tudadas por Sérgio Teixeira, "jogo do bicho"* onde clandestinamente
são investidos os apelos à fortuna, procissão paroquial para receber as
bênçãos de um patrono local, eleição com grande reforço publicitário
de um presidente que varrerá as injustiças sociais, etc.
Nesse domínio da citologia, sociólogos e antropólogos já começa-
ram a trabalhar o terreno, não sem enfrentar um certo desprezo por
parte de colegas que durante muito tempo consideraram este objeto
como menor e relativo às ciências religiosas ou ao folclore. Em certas
obras jurou-se em nome das classes sociais ou das ideologias, sem per-
ceber que o objeto social não era feito apenas de obediências a grupos
diversos na cena econômica e política, e de sistemas racionais de cren-
ças, mas também de múltiplas atitudes que tentam centrar as pesquisas
atuais no cotidiano, nas festas demarcadoras de identidade como o
Carnaval ou uma partida de futebol no Maracanã, no cerimonial das
comemorações ou das sacralizações políticas.

* Em português no texto. (N. da T.)


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Para continuar a enriquecer essa corrente, tão bem conduzida há cada um suas competências. Reconheço também a carência de estudos
mais de uma década, Luis Felipe Baeta Neves solicitou-me apresentar sobre as liturgias políticas da China, por exemplo, da Coréia de Kim li
minha última obra ao público brasileiro. Agradeço profundamente a Sung ou dos regimes militares da América Latina. Mas quem pode
este amigo de uma Sorbonne que honrou-se ao tê-lo como professor pretender a totalidade? É prováv!l que, por sua vez, um especialista do
convidado, o ter-me dado oportunidade para suscitar algum apetite por Extremo Oriente não tivesse dedicado um capítulo à África por falta de
minha área de pesquisas. Como inicialmente a obra se destinava a um informações.
público francês, peço perdão pelo excesso de exemplos tirados de meu Eu talvez devesse ter sublinhado melhor, ao invés de fazê-lo ape-
país, em especial nos primeiros capítulos. Desgraçadamente, nesta in- nas através de rápidas alusões, os diferentes níveis dos ritos políticos:
trodução, por falta de infonnação e de espaço só poderei ajustar meus internacionais, nacionais, regionais, municipais; mas a festa internacio-
propósitos ao caso brasileiro parcialmente, e a partir de dados livres- nal de 12 de Maio é muitas vezes recuperada como expressão das rei-
cos. Mas já que não posso reescrever um outro livro com vistas ao Bra- vindicações nacionais a propósito do trabalho; e as liturgias regionais
sil, posso pelo menos preencher algumas lacunas, corrigir alguma idéia ou municipais, como por exemplo a deposição de flores no monumento
mal expressa e responder a alguns de meus interlocutores. ao Farrapo de Porto Alegre que recorda a revolta federalista do Rio
Em todo pensamento manifestam-se influências que situam uma Grande do Sul, do ponto de vista da estrutura dos ritos e na função de
pesquisa na confluência de muitas outras. Meus interesses pela citolo- afmnação de identidade, em nada diferem das liturgias de caráter na-
gia, já enunciados na Anthropologie religieuse des Evé du Togo de cional que recordam o "grito do Ipiranga".*
1981, foram estimulados por diversas leituras. No momento em que V. Seria sem dúvida necessário insistir mais, como fez R. da Matta,
Turner construía suas mais importantes teses referentes aos ritos, G. na revelação da identidade social produzida por certos ritos seculares,
Balandier na antropologia política ressaltava a importância das encena- como por exemplo o Carnaval. Mas a liturgia política, quer seJa nacio-
ções do poder. E E.Goffmann, sob um ângulo mais psicossocial, disse- nal quer seja particularista, não apresenta a mesma superficialidade de
cava os efeitos de dramatização na encenação da vida cotidiana e tam- uma festa puramente secular, na medida em que se reproduz de maneira
bém os ritos de interação. Sinto-me igualmente devedor em relação a bastante semelhante, de um Estado para outro. A identidade social no
outras três correntes: à de uma sociologia das religiões civis iniciada entanto é menos sentida através de uma fonna e de um conteúdo, do
nos Estados Unidos por R.Bellah, à de uma análise histórica das litur- que no investimento afetivo e participativo. De um país para outro,
gias da Revolução, dos ritos totalitários e das comemorações dos fran- apesar da semelhança dos desfiles, são outras as bandeiras e outros os
ceses conduzida pela École des Annales de Paris, e finalmente à dos unifonnes, assim como são outras as ligações simbólicas. Em toda parte
questionamentos da moderna sociologia religiosa com respeito à exten- existem partidas de futebol, mas não certamente as "peladas"* que
são da noção de sagrado e à amplitude dos processos de secularização. permitiram o surgimento de Pelé. Mesmo permanecendo festa em si,
A partir da primeira publicação destas Liturgias po/lticas, delas cada uma delas tem cores especiais na medida em que supõem no parti-
apresentei o essencial numa dezena de Universidades européias. Graças cipante, que ignora isto, um diálogo com sua própria consciência. O
às resenhas da obra, graças às sugestões, às questões e às críticas perti- que confere significado ao rito é menos o seu dispositivo concreto do
nen.tes de alguns colegas, certos aspectos do meu pensamento foram que o vivido de sua realização.
obngados a refinar-se e a corrigir-se. Mas é verdade que tanto o dispositivo quanto o vivido diferem ra-
É verdade que os teólogos tremem ou ficam zangados quando al- dicalmente quando comparados nas três categorias de ritos estudadas
guém se permite analisar o sagrado sem referir-se diretamente ao seu por R. da Matta: 1) os ritos políticos que valorizam o "caxias'', * a
credo. Mas será que o saber social avançaria deixando-se encerrar nos autoridade, o militar, a lei; 2) a festa profana do Carnaval onde os
dogmas? Entre meus leitores existe com certeza algum psicanalista ca- marginais e "malandros"* invertem teatralmente as hierarquias sociais
paz de considerar que faz falta um viés interpretativo a partir de Freud,
de Adler ou de Reich. Pois muito bem, que ele preencha essa lacuna! A
* Em português no texto. (N. da T.)
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E finalmente, pela própria divisão de uma mesma nação em vários
por alguns dias; 3) as procissões religiosas onde os fiéis exaltam os partidos, a celebração da chegada ao poder de um ho~em: provoca en-
santos e a virtude dos que renunciam. A noção de rito recobre entre- tre o grupo excluído uma acrimônia que reforça as d1v1soes apesar do
tanto os três paradigmas, o rito religioso (terceiro caso) e os ritos se- consenso majoritário. Na Franç~. algumas eleições aparecem como
culares (primeiro e segundo). E assim como o rito religioso pode tam- rupturas: por exemplo a de 1981 que levou Mitterrand ao poder. Ale-
bém ser político no caso da sagração de um rei, o rito profano pode às gitimidade da esquerda substitui a da direita e a mudança d~ ~overno é
vezes revestir-se de um caráter político apenas pelo fato de referir-se a percebida como uma mudança de regime, apesar da estab1bdade ~s
personagens políticos (festa de aniversário... de trinta anos de presi- instituições da Quinta Repdblica. O Brasil também nos fornecerá mui-
dência de F.Houphouet-Boigni, chefe de Estado da Costa do Marfim), tos exemplos dessas liturgias que mais exasperam do que resolvem os
ou por solenizar uma fraternidade reencontrada (aperto de mãos... conflitos.
histórico entre A.El Sadat e generais israelenses, entre H.Kohl e Apesar dos fracassos da eficácia simbólica e da integração preten-
M.Gorbatchev). dida, é preciso reconhecer que o político, mesmo antes do advento dos
Mas se o rito político se pretende congregador e integrador, ele na mídia, sempre tendeu à ritualização. Por quê? E a esta questão essencial
verdade só pode atuar como tal ao nível do grupo que o realiza. Eu eu respondo: porque o rito representa a atitude fundamental, verbal,
demonstrei no cerne do rito a existência de antiestruturas que even- gestual e postural, onde qualquer um se reconhece como inferior frente
tualmente o fazem desviar-se e não atingir suas finalidades; afirmei à manifestação de uma potência, e porque, ao lado da potência que se
quanto o ritualismo (negociação entre sindicatos e patrões por exem- manifesta, o rito é o meio teatral de dar crédito a uma superioridade, e
plo) tendeu a desenvolver-se em situações de conflito, cada um avan- portanto de obter respeito e honra através da ostentação de súnbolos de
çando seus peões segundo regras definidas; mas eu talvez não tenha dominação, de riqueza, de realizações algumas vezes imaginárias de
esclarecido suficientemente o fato do conflito poder se localizar no que o inferior carece, e que permitem constrangê-lo sem violência real,
próprio coração do rito na medida em que este entre na lógica da com- na medida em que criam a aspiração a um estado superior.
petição e do potlach entre grupos rivais. No mesmo dia 14 de julho de Nesta obra demonstrei de que maneira a dramatização ritual repete
1989, republicanos tradicionalistas aplaudiram a parada militar da ma- de maneira obsessiva as estruturas de legitimação e de autoridade, de
nhã, mas criticaram o aspecto modernista do desfile cosmopolita da que maneira cria complementaridades internas e um deslocamento do
noite, organizado por J.P.Goude nos mesmos Campos Elíseos, diante individual ao coletivo especialmente nos momentos críticos, de que
dos mesmos 35 chefes de Estado presentes em Paris às festas do Bi- maneira sublinha a ligação a certos valores primordiais e de que manei-
centenário da Revolução francesa. ra orienta o grupo mobilizado no sentido das reinvenções da cultura e
Enquanto manifesta identidades, particularidades portanto que às da criação de significados novos. Esses significados novos se traduzem
vezes se opõem, o próprio rito político pode ser a ocasião para expres- no discurso ideológico, mas se traduzem também através desses refe-
sar um conflito com a sociedade englobante. Assim é, na Encruzilhada rentes imaginários que são os mitos do nosso tempo.
da Democracia de Porto Alegre, onde ocorrem manifestações ritualiza- Ainda que eu tenha explicado as minhas razões para tratar isolada-
das de mulheres, de negros ou de homossexuais, reivindicando contra a mente os ritos sem referi-los incessantemente a mitos paradigmáticos, já
segregação, a favor de uma posição social melhor e pela igualdade de que segundo Lévi-Strauss mitos e ritos têm estruturas e simbólicas si-
direitos na cidade. Algumas vezes liturgias regionalistas enunciam a milares (o que hoje não me parece inteiramente comprovado), é tão pos-
oposição dos participantes a uma integração nacional, e liturgias meio sível afirmar-se ritólogo quanto a outros é possível dizer-se mitólogos,
religiosas, meio políticas, no regime de Khomeini, pretendem notoria- e após ter refletido bastante quer-me parecer que o afastamento entre o
mente levantar o Irã xiita contra o Ocidente diabólico. rito e o mito que há alguns anos eu realizava por escolha metodológica,
Também é possível a ocorrência de conflitos entre os atores dos provinha em grande parte de minha concepção um tanto ou quanto ar-
ritos políticos a propósito do lugar de um ou de outro dentro da hierar- caica dos mitos, por isso dediquei-me então a ressaltar as principais ca-
quia dos papéis, da escolha dos protagonistas e dos participantes.
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racterísticas dos mitos modernos. A este respeito, a Revolução France- lica de um paraíso terrestre inicial (ruralismo tranqüilo à moda de
sa aparece certamente como a aurora dos tempos modernos, na medida Rousseau) e na utopia (segurança contra o medo, abundância contra a
em que ap6s essa época é possível perceber o político percorrido pelas miséria, redistribuição dos bens dos privilegiados).
grandes mitologias, tais como: a denúncia de uma conspiração maléfica 9) Radicalmente negador das tensões, das crises e dos defeitos do
dos tiranos que pretende submeter os povos à dominação de forças presente, o mito político proclama um dever-ser de acordo com uma
obscuras: a idade de ouro perdida da qual se reencontrará a felicidade ordem refabricada. Ele tem valor prescritivo, afirmando-se antes à ma-
através de uma revolução redentora que assegure o reino da justiça; o neira da esperança e da iminência do que à maneira da profundidade
apelo ao chefe salvador, restaurador da ordem e da grandeza coletiva; o temporal das origens.
tema da unidade: altruísmo, banquetes, efusões pelo bem comum, dis-
10) Do ponto de vista formal, o mito se expressa através de afo-
ciplina coletiva, consagração da Nação, e amor sagrado pela Pátria.
rismas, máximas, contos, poemas, lendas históricas ou romanescas: o
Através e além dessa temática, percebe-se uma regeneração radical
herói gaúcho Bento Gonçalves de Porto Alegre, o Pedro Malasartes
da mítica nos tempos modernos, esquematizável da seguinte maneira:
estudado por Da Matta, o Augusto Matraga de Guimarães Rosa... São
1) Os mitos revolucionários e de descontinuidade temporal pre-
tipos sociais ligados a certos aspectos do ethos de um povo e que ser-
dominam com relação aos mitos cosmogônicos e etiológicos, de fun-
vem de patterns da mesma forma que o mito social servia de código e
damentação e de continuidade histórica (descolonização, desenvolvi-
de carta social.
mento, advento da democracia).
11) Se a ciência serve de base para a criação de novos mitos (a
2) Se os mitos revolucionários recortam a temporalidade em fun-
produ~ão no século XIX, o computador no final do século XX), o mito
ção da radicalidade da mudança, eles freqüentemente indicam uma su-
refabncado passa pelo filtro de grupos de pressão (publicitários por
peração através do retorno à antiga pureza: a pureza das virtudes es-
exemplo, que os disfarçam para colori-los ao gosto da moda) e de nos-
partanas dos revolucionários de 1793.
sas interpretações pessoais de tendência sincrética e sacralizante num
3) Os mitos antes proclamam o fundamento de um poder social:
mundo ~nde o indivíduo seleciona apenas resquícios de informação e
povo, nação, lei. .. do que o fundamento de uma ordem natural ou di-
os orgamza de acordo com suas próprias inspirações e aspirações.
vina.
12) Estoque de infonnações, o mito é hoje muito mais reinterpre-
4) Eles se integram num discurso abstrato, relativamente pouco
ilustrado em imagens porém teorizado em ideologia, que moraliza e tável do que outrora, mas permanece dificilmente identificável na me-
mobiliza tanto pela inflação de linguagem quanto pelos modelos de re- dida em que é possível abraçá-lo através de uma adesão muitas vezes
ferência. inconsciente, e na medida em que ele se enuncia mais por referência
5) Valorizando um herói mais coletivo: povo, classe, partido.•. , alusiva do que pelo relato imaginado ou pela alegoria desenvolvida.
os mitos políticos modernos fazem referência a um panteão de grandes . Eu não. imagino que seja possível ligar termo a termo mito e rito ,
homens em sociedades que em geral se afinnam laicas. ffiltema e ntema, mesmo com súnbolos idênticos. Entre um e outro
6) Igual às ideologias e no interior delas, os mitos são fabricados e existe muitas vezes uma não-correspondência, um diabolus in musica
manipulados por artesãos hábeis na manipulação das massas: advoga- que a Harmonia de Rameau abominava. "Diabólico", o que divide, é o
dos (Robespierre, Danton), jornalistas (Marat, Desmoulins), e escrito- antônimo de "simbólico", que reúne. Mas seria ridículo recusar-se, por
res (Mirabeau, etc ...), no que diz respeito à Revolução francesa. princípio, a pesquisar as correspondências entre mitos e ritos, assim
7) Com relação aos mitos arcaicos e aos mitos religiosos, os mitos como entre os próprios mitos e entre os diversos tipos de mitos.
revolucionários parecem mais efêmeros e fragmentados porque mani- Meu maior desejo seria que se erguesse, estimulado pela minha
pulados por facções que pretendem assegurar seu poder e eliminam-se pe.squisa, um exército de curiosos e de produtores intelectuais que
umas às outras. onentassem o seu trabalho para a análise, não apenas dos mitos e ritos
8) A esperança de uma idade de ouro se fundamenta na visão idí- religiosos e profanos, mas também dos mitos e ritos políticos específi-
cos do Brasil, seguindo ou não (e certamente criando outras) as balizas
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metodológicas que apresentei na segunda parte desta obra. Expressarei Lobato, do "Jeca Tatu", imagem do brasileiro abandonado e subali-
meu reconhecimento a todo pesquisador de mestrado ou de doutorado mentado. A exaltação das virtudes cívicas e militares brasileiras cami-
que disser: "O senhor não entendeu nada, não estou de acordo com sua nha lado a lado com os sentimentos antiimperialistas e antiportugueses,
opinião, mas o senhor abriu-me perspectivas". com uma procura das origens do povo brasileiro, e com uma renovação
Para isso, é preciso considerar de dentro a história e os arquivos, da literatura e das artes, de que participa o escritor engajado promotor
as informações orais e a documentação. Eles existem com certeza, tanto do nascimento da Ação Integralista Brasileira.
para o período da colonização, quanto para o período dos dois grandes Mas antes mesmo dessa fundação, evidenciada pelo Manifesto in-
imperadores inaugurado pelo "Dia do fico",* o dia 9 de janeiro de tegralista de 7 de outubro de 1932, diversos partidos radicais de extre-
1822, e para o período das revoltas federalistas e da República dos ma direita criaram sua organização, escolheram seus símbolos e fixa-
"coronéis"* no Brasil rural. Em seguida vem o momento do triunfo das ram suas liturgias. Na Legião Cearense do Trabalho, dirigida pelo te-
cidades com Getúlio Yargas, de que vários brasileiros já destacaram os nente Severino Sombra, os militantes de calça branca, blusão de algo-
aspectos ritualistas. dão furta-cor, balança da justiça como insígnia no braço esquerdo, res- '!'
1
Meu capítulo sobre os regimes totalitários evoca os ritos germâni- pondem com um "Pronto" unânime à saudação do chefe que vai pro- '
cos e soviéticos de uma época. Os exemplos, ainda que menos tipifica- nunciar sua alocução. No Partido Nacional Sindicalista, a roupa é ne-
dos, poderiam também ter sido selecionados no fascismo italiano ou no gra abaixo da cintura, e azul-marinho acima dela. A entrega da insígnia
regime de Vichy na França. Para o Brasil, a análise dos ritos integra- (aperto de mãos cercado de azul e negro, e de estrelas que representam
listas já foi realizada na excelente obra de Helgio Trindade, La tenta- os Estados do Brasil) ocorre com solenidade na sede do partido. Em
tion fasciste au Bresil dans les années trente, onde baseio minhas in- posição de sentido diante da bandeira nacional e do estandarte sindica-
formações sobre esse período. lista, o militante presta juramento à Família, à Pátria e a Deus.
Um texto de Emmanuel Mounier, em exergo no livro, sintetiza A Ação Integralista Brasileira quando é fundada, pretende com
muito bem a ideologia sobre a qual se fundamenta o movimento políti- certeza a conquista do poder; porém jamais o terá. Seguindo um pro-
co e a temática de seus rituais. "Uma ideologia se cristaliza, através da cesso conhecido, o chefe prega urna ideologia e obtém adesões. O gru-
potência de um Chefe; ela atua ao mesmo tempo - sobre um arsenal po se organiza de maneira hierárquica com estatutos, funções, resolu-
histórico de virtudes abandonadas: honestidade, reconciliação nacional, ções, rituais. A organização enquadra, mobiliza, atua. Ela exige a dis-
patriotismo, sacrifício por uma causa, devotamento a um homem; - so- ciplina dos militantes e a fidelidade ao chefe que centraliza o poder na
bre uma afirmação que arrasta os mais jovens e os mais extremados; e medida em que foi ele quem definiu a doutrina, exerce o monopólio da
para temperar, - sobre uma mística essencialmente 'pequeno burguesa': decisão política, nomeia para as funções principais e controla a ação de
prestígio nacional, 'retornos' sociais (à terra, ao artesanato, à corpora- seu grupo. "Na concepção de Salgado, o chefe precisa de uma 'litur-
ção, ao passado histórico), culto do salvador, amor pela Ordem, res- gia' para exteriorizar-se e comunicar melhor. Se é verdade que a ence-
peito pelo poder". (Manifeste au service du personnalisme, "Les civi- nação não substitui a eloqüência, ela cria a ambiência propícia à trans-
lisations fascistes", 1936, segundo Trindade, 166). missão da mensagem e faz nascer a ligação simbólica ao chefe. Salgado
O movimento italiano da época irá fascinar Plfuio Salgado, porém valoriza as manifestações exteriores e os rituais, o que explica a elabo-
o regime de Getúlio Vargas ficará mais próximo do populismo que do ração minuciosa de um conjunto de 'protocolos e ritos', para as ceri-
fascismo. Entre as duas guerras mundiais acelera-se o processo de in- mônias integralistas" (Trindade, 89).
dustrialização do Brasil. Ao mesmo tempo que explodem as lutas so- Informações de base, decisões do alto seguem os canais da organi-
ciais é despertado um forte nacionalismo e realizam-se as tomadas de zação e circulam de acordo com ritos estabelecidos, não sem a possibi-
consciência simbolizadas por exemplo pelo personagem, criado por lidade de interferências na informação que isolam o chefe na medida
em que sua burocracia intervém como filtro protetor. O bom funciona-
mento da informação supõe um serviço de informações; a eficácia do
* Em português no texto. (N. da T.)
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'
r

executivo supõe núlícia e tribunal; a socialização com finalidade re- conferências de informação nos sindicatos e nas universidades, de ma-
educativa supõe técnicas ritualizadas e de arregimentação: porte do nifestações públicas e de veneração de súnbolos. A eleição apresenta
uniforme (camisa verde, gravata negra, sigma grego envolvido por um um aspecto ritualista tanto na campanha que a precede, quanto no pró-
cfrculo negro no braço direito e o casquete) para os milicianos, instru- prio voto e na investidura que a ela se segue.
ção e integração numa "decúria", juramento de fidelidade ao chefe, de A história da inauguração de Brasília também está repleta de inau-
disciplina e de solidariedade (Regulamento 10), batismo integralista gurações e de súnbolos, mesmo que o projeto de arrancar os pais da
com padrinhos, ritos de iniciação dos "Plinianos", noite dos tambores pátria da influência deletéria do litoral só se tenha realizado parcial-
silenciosos, manhãs de abril. mente. Se Brasília não é a cidade igualitária pretendida por seus arqui-
"A saudação integralista faz-se com o braço direito levantado e a tetos Costa e Niemeyer, pois uma ordem de precedência e de riqueza
exclamação da palavra de origem índia, Anauê! Ela, entre os índios, é estabelece segregações entre habitação e divertimento, ela simboliza
ao mesmo tempo grito de guerra e maneira de saudar que significa: 'Tu pelo menos a perenidade do espírito empreendedor do Brasil e a cen-
és meu parente' ( ... ). A exclamação Anauê pode ser também pronun- tralização política. Um cogumelo na savana, de vidro e de concreto, de
ciada nos desfiles para aumentar o entusiasmo dos integralistas, nos ferro e de alumfuio, de arcos e de rampa, contém o cérebro das altas
vagões em marcha e nos momentos graves de luta, como um clarim de decisões nacionais, enervando a vida política e econômica por via aé-
combate e de vitória. Na saudações coletivas, o chefe nacional tem di- rea até o Rio ou até Manaus, e por terra até Belém ou até Belo Hori-
reito a três anauês; os membros do Conselho supremo, da Câmara dos zonte. É nela que agora acontecem algumas das mais importantes litur-
Quarenta, os secretários nacionais, os dirigentes arquiprovinciais e os gias políticas do Brasil, desde que veio a tomar-se a capital em 1960,
chefes provinciais a dois anauês, e finalmente as autoridades regionais depois da Bahia em 1549 e do Rio de Janeiro em 1763.
locais a apenas um anauê. Está previsto que, nas cerimônias de grande Em 31 de janeiro de 1961 o poder, mudando verdadeiramente de
importância, Deus, o criador do Universo, será saudado por quatro mãos, sem tentativa nem golpe de Estado, é solenemente transmitido no
anauês unicamente pelo chefe nacional" (Trindade, 100). palácio do Planalto pelo presidente Kubitscheck ao seu sucessor eleito
As fotos do Congresso integralista de Blumenau (Santa Catarina) Jânio da Silva Quadros. A partir da campanha que precedeu essa elei-
em junho de 1935, do desfile dos integralistas em apoio ao Presidente ção, uma análise do conteúdo dos discursos revelaria o encantamento
Vargas, criador do Brasil moderno, antes do golpe de Estado de no- produzido pela tirania do "herói carismático" da época contra os fi-
vembro de 1937 que implanta o Estado Novo, apresentam de maneira nancistas, aproveitadores, ambiciosos, cínicos, prevaricadores, corrup-
surpreendente a potência mobilizadora dessas liturgias de caráter ético tos, etc. E revelaria também a pequena burguesia fascinada pela vas-
e elitista (mas com recrutamento na média burguesia em ascensão) que sourinha simbólica que varreria a corrupção. Uma antologia conserva a
exaltam especialmente o heroísmo da juventude e saúdam a aurora dos memória da forma de governar através de bilhetinhos secos e cortantes,
tempos futuros. Toda essa ritualidade se insere no contexto da época: o enviados por telex como mensagens de instrução para os ministros ain-
contexto do salasarismo tradicionalista, do estatismo corporativo italia- da no Rio.
no, do anti-semitismo de inspiração nazista, do nacionalismo telúrico e Consultando a obra de Pierre Viansson-Ponté, Les Gaullistes, ri-
do destino messiânico da nova raça mestiça do Brasil. tuel et annuaire, um sociólogo ou antropólogo encontraria nas cin-
Tanto a eleição presidencial de 1950 levando novamente Vargas à qüenta primeiras páginas trinta rubricas capazes de permitir dissecar os
suprema magistratura após o golpe de Estado de 1945 encorajado por ritos do governo supremos: recepção, jantar de cerimônia, audiência,
Roosevelt, quanto a eleição de 3 de outubro de 1955, com a coalizão intervenção, nomeação, alocução, conselho de ministros, etc ... E sob
.PTB-PSD que conduziu Juscelino Kubitscheck à presidência da Repú- o governo Quadros não faltariam as ilustrações de uma forma de go-
blica, uma vez que os elementos legalistas do exército pronunciaram-se vernar que com certeza divertiram a crônica da época: imposição de
a seu favor, poderiam ser consideradas como jogo de forças sociais, uma hora de espera na antecâmara a Adolf Berle, enviado especial do
mas também, ritologicamente, como séries de ações publicitárias, de presidente Kennedy, para manifestar uma diferença de apreciação do

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1
caso cubano; envio de um destróier para acabar com uma greve de estu-
dantes no Recife; fiHpicas do governador da Guanabara, Carlos Lacer-
contendo uma multidão de 150.000 cariocas que se agitam e aplaudem.
da, para denunciar em 23 de agosto de 1961 uma suposta maquinação O general de Gaulle, no uniforme militar do 18 de junho de 1940 (ves-
contra as instituições tramada por Quadros e Horta: renúncia solene do timenta de sua legitimação francesa), saúda a multidão ao lado do Ma-
presidente considerando que "forças terríveis" o impedem de governar. rechal Castelo Branco, em roupas civis, como para ocultar as origens
Sabe-se de que maneira o escárnio popular se apoderou das "for- militares de seu mandato.
ças terríveis" para travesti-las em "forças ocultas" e transformá-las em
É verdade que essa visita não tem o fausto da visita do General Ei-
signo, pois em certo momento tornou-se moda tomar um uísque ou uma
senhower ao presidente Juscelino Kubitschek. Além disso de Gaulle
aguardente num bar pedindo: "uma força oculta"! O político se rituali-
responde de fato a um convite que lhe fora feito sete meses antes pelo
za no humor cotidiano, de uma graça ácida. presidente João Goulart, na esperança de que ele avalizasse a política
Paralisada a cidade carioca por uma greve ou por um golpe de Es- de nacionalismo brasileiro, e também para apagar as disposições cria-
tado, demitindo-se o presidente Quadros de suas funções, as praias do das pela guerra da lagosta. O encontro ritualizado, mas sem transbor-
Rio continuam servindo de refúgio, assim como servem para o culto de damentos nem danças populares, pois desde 12 de abril de 1964 a "re-
Yemanjá na noite de São Silvestre. Vacância do poder, parada da ad- volução militar" mantinha o país em regime de austeridade, visa por-
ministração. Política ao mar; a menos que não se seja um "revolucioná- tanto a liquidação de um conflito de pesca transformado em caso na-
rio de praia!"
cional, e a legitimação de uma política de independência, especial-
Os militares desejam o afastamento de João Goulart da presidên- mente diante dos Estados Unidos. Mas essa visita cerimonial não deixa
cia, mas Leonel Brizola, entrincheirado no Palácio Piratininga de Porto de levantar paixões contra ou a favor: Adhemar de Barros afirma-se
Alegre, através de uma técnica quase ritual de mobilização: o discurso gaullista ardoroso; Carlos Lacerda monta no Rio de Janeiro um peque-
político, consegue reunir, a favor de Goulart a opinião pública do Rio no número publicitário antigaullista; o juíz Álvaro Moutinho Ribeiro da
Grande do Sul e os chefes de guarnição de Porto Alegre. Ali, vibra-se Costa dá o seu recado saudando em de Gaulle o oficial superior, liber-
frente à simbólica bem gaúcha de um Goulart nascido em um rancho e tador de seu país, que teve a coragem e a sabedoria de, no momento
abastado criador de gado. Mas o maquignon* sabe de que maneira azado, fazer o exército retornar às suas casernas e restabelecer a prima-
afastar seu cunhado e de que modo utilizar a promoção (um rito de ele- zia do poder civil. Enquanto o ministro da guerra, Artur da Costa e
vação estatutária) para ganhar os militares, pois como será possível go- Silva, experimenta um vivo prazer ao escutar o chefe de Estado francês
vernar o Brasil sem o apoio dos três poderes reais: o exército, a igreja afirmar a importância do Brasil na estratégia mundial.
católica e a burguesia? Signo de amizade entre povos, legitimador de poderes existentes, o
Mas tão logo aponta alguma das bestas imundas do apocalipse: o rito também apresenta uma face não ritual na medida em que pode ser
comunismo, o "cesarismo primário", a tramóia ... e os militares utilizam acontecimento histórico e permitir, através das mensagens que nele são
o rito político da deposição de um chefe de Estado que, segundo eles, veiculadas ou das tomadas de posição dos mídia, o surgimento de con-
pretende bolchevizar o país. E à frente de tudo o exército, com o mare- flitos internos no país que, não fora isso, teriam passado relativamente
chal-presidente Castelo Branco! Uma ditadura? Não, uma "ditamole", em silêncio. O rito político portanto, enquanto decisão de uma instân-
ironiza Brizola, mas às vezes com uma linha dura. Deste regime, brasi- cia superior da nação pode, assim como uma paulada num vespeiro,
leiros e franceses guardam a lembrança de um ritual de encontro político. despertar paixões venenosas conforme as interpretações que suscita
Na terça-feira 13 de outubro de 1964, um carro aberto roda pela numa nação sempre dividida.
avenida Rio Branco, entre uma fileira dupla de soldados de capacete Quem estudar, sob o ângulo dos ritos, o endurecimento político e
as guerrilhas de 1969 a 1974, a liberação sob controle inaugurada em
1974 pelo general Ernesto Geisel e o novo jogo político que se seguiu
*O termo maquignon possui um significado denotativo de negociante de bois; seu uso, hoje,
se reveste freqüentemente, de tom pejorativo. (N. da T.) à reestruturação da sociedade civilj deverão considerar não apenas a
pressão integrativa do governo federal, mas também os particuiaris-
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mos dos ritos no interior dos Estados, que por sua forma e conteúdo Trindade, Hélgio, La tentation fasciste au Brésil dans les années trente, Paris,
não só ressaltam a diferença política e cultural, como também a confli- Maison des Sciences de l'Homme, 1988.
tualidade em relação ao poder central. Mais do que na França jacobina Turner, Victor, Dramas, Fields and Metaphors, Ithaca, Cornell University Press,
já há muito tempo laica e unificada, terão de examinar nos ritos do 1974.
Brasil a articulação do político, do religioso, do militar e do popular, Viansson-Ponte, Pierre, Les Gaullistes, rituel et annuaire, Paris, Seuil, 1963.
considerando aliás que o religioso pode ser lido em cerimônias pura-
mente laicas.
Do culto positivista não restam apenas alguns templos com colunas
em algumas grandes cidades brasileiras, mas também resta a divisa
..Ordem e Progresso" (o Progresso como desenvolvimento natural da
Ordem) inscrita na bandeira, e o destaque atribuído às disciplinas cien-
tíficas pelas escolas militares aptas a formar excelentes engenheiros e
pilotos. Alguns capitães de indústria (Augusto Antunes por exemplo)
ainda recorrem ao positivismo para realizar a promoção social de seu
pessoal e para manter fundações.
Se o ecologismo se ritualiza e se o movimento se amplia, não seria
por concordar com um certo pensamento religioso: a insensatez dos
projetos mundanos, a artificialidade da vida urbana, a visão catastrófica
do mundo ... males conjurados através da ascese de uma vida frugal e
comunitária, afastada do mundo onde reinam as leis de uma economia
de abundância corruptora?
Assim como os ecologistas e os pacifistas procuram conjurar a
morte investindo contra seus riscos, os governantes algumas vezes ser-
vem-se do ritual para conjurar as poluições do passado; e também utili-
zam o significado integrador dos rituais religiosos quando pretendem
conjurar as forças da adversidade, quando pretendem conjurar a desor-
dem das divisões sociais. Mas discutir in abstracto sobre as finalidades
das liturgias políticas só tem sentido após a realização do trabalho pre-
ciso e ingrato de descrição e de análise que a antropologia e a sociolo-
gia comparada reclamam... tarefa a que os estou convidando.

B/BUOGRAFIA 1
!
Balandier, Georges, Le Pouvoir sur scenes, Paris, Balland, 1980.
Faust, Jean-Jacques, Le Brésil, une Amérique pour demain, Paris, Seuil, 1966.
Goffmann, Erving, Les rites <linteraction, Paris, Minuit, 1974.
Matta, Roberto da, Carnavais, malandros e heróis, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

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1

PRIMEIRA PARTE

FORMAS HISTÓRICAS

1
alegria entusiasta da massa enlouquecida. É preciso apreendê-la através
CAPÍTULO PRIMEIRO
dos contornos, e dos desvios do político e do vivido político.

O ANTIGO E O NOVO
A / O CERIMONIAL DO ANTIGO REGIME
REGIME EM FESTA
O essencial das liturgias políticas sob a monarquia do antigo regi-
me (coloco entre parênteses as festas populares e religiosas) está cen-
trado no príncipe ou no senhor. Ao mesmo tempo que exalta a potência
de um soberano, a ritualização das relações hierárquicas e das trocas de
Habituados como estamos há cerca de um século, em certas demo-
serviços intenta celebrar, além da continuidade de um poder, a estabili-
cr~cias ocidentais: Bélgica, Holanda, Suécia... , a praticamente casar o
dade das instituições de uma sociedade onde cada um representa o seu
rei com a República, não nos surpreenderemos ao perceber, senão uni-
papel. Mascarando temporariamente os conflitos políticos, a cerimônia
dos pelo menos justapostos num mesmo capítulo, o Antigo e o Novo
pretende mostrar a imagem de um universo humano, cósmico e religio-
Regime. No ponto de articulação dos dois: a última festa do Antigo, a
so coerente, onde cada elemento permanece distante do outro de acordo
Reunião dos Estados Gerais, que é também a grande estréia do Novo
com a vontade de Deus, pois a secularização da sociedade não está
Regime, pois os deputados da Assembléia decidem legiferar sobre o
destino da Nação e instituir, ao mesmo tempo, uma nova sociedade e efetuada.
Isto será demonstrado pelo exame de algumas relações solenes en-
festas que a vitalizem, celebrem e criem ocasiões para a exteriorização
tre o prfucipe e seus súditos na sociedade francesa tomada como exem-
da comunhão das consciências.
Aí a lógica da representação é rainha.•. , apoiada nos seus bispos
plo privilegiado. Enquanto o sagrado confere ao rei um poder superior
e montada nos cavalos, durante a realeza. Como num jogo de xadrez, considerado de origem divina, que o torna inviolável, personagem tabu
os Negros (na Vendéia diz-se "os Azuis") ganham algumas partidas e "cristo" por efeito da unção, a etiqueta preserva o poder real só per-
dos Brancos. Considerando por hipótese que a pequena história das li- mitindo que tenham acesso ao soberano alguns de seus súditos, de
turgias políticas não deixa de ter interesse para o esclarecimento da acordo com um formalismo bem definido. Quanto à entrada triunfal do
grande história da França, seguiremos a festa como realidade e como rei numa cidade, ela atenua, de certa maneira, a impressão de distância
física com relação ao palácio, mas de outra, testemunha a distância so-
súnbolo, até mesmo na vida cotidiana, para nela delimitar o profano e o
sagrado, as perdas da tradição e os fracassos da inovação. cial e as relações de obediência.
A festa revolucionária continua cheia de estigmas do Antigo Re-
gime, mas disso só poderemos ler os signos com as chaves da inversão. A sagração dos reis
Em lugar da coroa sobre uma só cabeça, o boné vermelho dos escravos
libertados sobre todas as cabeças. Como espada, todos têm o chuço. Historicamente, a primeira sagração conhecida é a de Pepino o
Por que não observar a mudança na vestimenta cotidiana? Em lugar do Breve. Predileto do povo, Pepino, filho do bastardo Carlos Martel,
gibão e do calção de casimira: a carmanhola e a calça de burel dos simples prefeito do palácio, empenha-se em receber uma unção distinta
do batismo, que afirme seu caráter real e legitime sua usurpação. Os
sans-culottes! Sob a Constituinte, arrebatou-se a Soufflot sua igreja de
Annales Regni Francorum falam de uma primeira unção em Soissons
Santa-Genoveva para nela alojar em paz, no edifício então chamado
pelo arcebispo Bonifácio acompanhado por 12 padres, no final de 751.
"O Panteão" os novos patronos de Paris e os pais da pátria.
Ambígua e complexa, a festa não se apresenta tão simples quanto Como o papa Estevão II precisa do apoio de Pepino para lutar contra
os lombardos e contra os árabes, ele pessoalmente consagra uma se-
aparece nos rituais redigidos pelos analistas modernos: desperdício ili-
mitado, retomo ao tempo original, transgressão por desnudamento e gunda vez Pepino em Saint-Denis, aos 28 de julho de 754. A bênção

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1'

r i

Observaremos que a unção e o coroamento são ritos manuais e r


através da unção de óleo santo no peito, na fronte, entre as duas espá-
verbais assim como a prestação de juramento e a bênção. Ora, é bem 1
duas, à maneira dos antigos catecúmenos, aparece como a ratificação '
de um contrato político. sabida a importância da mão no tempo da vassalidade, e ~a palavra
numa civilização onde a oralidade ainda domina sobre a escnta. O pró-
Quando Carlos Magno vai a Roma, em dezembro de 800, para ar-
. assalo é "homem de boca e de mão" do seu suserano. No século
bitrar o conflito entre o papa Leão III e os romanos, ele é rei dos fran- pno v d · ·á
XIII, o cerimonial da sagntção real faz aparecer, a~sar o rei J_ ser
cos e dos lombardos. Mas o trono do Império romano do Oriente está
cavaleiro, os ritos essenciais da iniciação à cavalar~a: bru:111o punfica-
vago nessa época. Por isso os bispos e os leigos de elevada posição,
dor, porte de uma túnica branca, vigília de armas, mvestld~a através
presentes para julgar um papa por perjúrio e adultério, oferecem o Im-
das esporas, e da espada abençoada. Entre os :mblemas reais, o cetro
pério a Carlos. . . coroado pelo papa em 25 de dezembro. O fato do
equivale à couraça, a coroa é o elmo de salvaçao e esper~ça, o trono
gesto do coroamento pelo papa ter precedido a acclamatio pelos roma-
substitui 0 escudo dos godos e germanos, e suntuosas vestimen~s b~r­
nos desagradou Carlos, como uma subordinação do poder imperial ao
dadas ocupam 0 lugar do uniforme militar. Quanto ao anel, ele signifi-
poder espiritual. E através de toda a sua política, o novo "Augusto"
ca 0 casamento místico do rei que "desposa a França" segundo a ex-
afirmará ter recebido seu império apenas de Deus e não do papa, co-
roando ele mesmo em 813 o seu filho Luís o Piedoso (o Indulgente) em pressão de Luís XIV. _ . .
Aix-la-Chapelle. No decorrer dos tempos, o cerimonial da sagraçao van~ ?1ulto
pouco, como prova a comparação da Ordo de 1179 com a ediçao do
Assim como Pepino o Breve, Hugo Capeto, descendente de Carlos
Magno mas não em linha direta, fazendo-se sagrar em 12 de 3unho de
pontifical para a sagração de Luís XVI. Na ante:éspera ou na véspe~a i
da sagração, o rei faz sua entrada triunfal em_RelffiS. Na e~trada da_c~­
987 por Adalberon, arcebispo de Reims, serve-se da cerimônia para le-
dade, é recebido pelo governador da província e pelos eleito_s muruci-
gitimar sua sucessão no trono, pois ainda não ficara estabelecida defi-
pais. Entre duas fileiras de tropas e passando sob arcos de tnunfo, ele
nitivamente a herança da coroa de França por ordem de nascimento em
linha masculina. chega ao adro de Notre-Dame, enquanto os sinos tocam. Quando desce
da carruagem é acolhido pelo arcebispo, de _mitra. e capelo, cercado de
Assim como Carlos Magno, Felipe ll Augusto (1165-1223) que as-
prelados. Diante da entrada da catedral o rei se a3oelha sobre um ta~e­
sina "Rei de França" (laço territorial) e não "Rei dos Francos" (laço
te, faz 0 sinal da cruz com água benta, beija o Evangelho, ouve o dis-
pessoal) não atnbui seu poder ao papa ou à Igreja, mas à aclamação e à
curso do arcebispo, entra processionalmente no coro _para_ um Te Deum
ação dos grandes do reino. A sagração tem valor declarativo de um es-
tado de fato. cantado, durante 0 qual são disparadas salvas de artilhana. Ele escuta
Ao final da guerra dos Cem anos, a sagração em Reims do delfim as vésperas e se confessa. . .
Na manhã da cerimônia, quatro senhores da mais antiga nobreza
· Carlos Vil na presença de Joana d' Are confirma o princípio de legiti-
são enviados em cortejo para buscar na Abadia de Sait-Rémy a santa
midade na sucessão ao trono: Carlos VI não tinha o direito de designar
ampola de óleo perfumado que teria sido trazida por uma pomba quan-
como sucessor um jovem soberano inglês estranho à sua própria linha-
gem. do do batismo de Clóvis, no Natal de 498 (esta ampola foi quebrada ~a
Revolução francesa). Precedidos pelos pares eclesiásticos, os pares lei-
Segundo a tradição parece, em geral, que por um lado o contrato
gos chegam à catedral. Dois bispos (fr~qüentement~ o de _La?n e de
político atua antes da coroação, e por outro que a unção impõe o rei
Beauvais) vão buscar o rei que dormira no paláci~ arquiepiscopal.
como a única pessoa em direito de reinar. Com relação aos imperado-
Conduzem-no em procissão até o seu trono na basfüca onde chega o
res, aos reis da Inglaterra, da Itália ou da Espanha, o rei de França,
cortejo dos cavaleiros, barões da santa ~J?Ola. o_ rei então presta o J~­
como "filho primogênito da Igreja" tem, assim como o soberano pontí-
ramento de manter os privilégios eclesiásticos, viver e morrer na r~li­
fice, o privilégio de receber uma das unções do santo óleo sobre a
gião católica, e comportar-se como grão-mestre d~ ~rd~m do Espírito
fronte, enquanto os outros reis e imperadores recebem unções apenas
Santo e da ordem militar de São Luís. Frente à assistencia representan- 1
sobre o tronco e as articulações dos membros. : 1

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do o povo que o reconhece como rei, ele promete aos seus súditos paz, A liturgia da sagração estabelece assim um sacerdócio tanto real
justiça e clemência.
quanto religioso e liga o soberano, por um lado a Deus através da sa-
Segundo um ritual majestoso faz orações e gestos simbólicos, os gração e por outro ao povo através do juramento e da ovação.
ornamentos reais e a espada são abençoados. O arcebispo cinge o rei
com a espada, toma-a, retira-a da bainha, coloca o gládio nas mãos do A entrada triunfal e o cortejo cívico
monarca que o oferece a Deus depositando-o sobre o altar. Um mare-
chal (ou condestável) o manterá com a ponta levantada durante toda a Uma outra forma de ovação também ritualizada, mas onde o povo
cerimônia e durante o festim real. As unções com o santo óleo a que se participa mais, é a entrada solene do rei na cidade, que evoca os triun-
acrescentou uma parcela do bálsamo da santa ampola são efetuadas fos romanos. Aliás, o rei tinha por hábito, ap6s sua coroação, fazer
pelo arcebispo que, em longas orações, pede a Deus para conceder ao uma viagem a várias cidades de seu reino para honrá-las, confirmar
rei saúde, sabedoria e virtude. Após a bênção de cada objeto, o rei re- eventualmente os seus privilégios e fazer reconhecer sua autoridade.
cebe as luvas, o anel, o cetro, a mão da justiça e finalmente a coroa. Em sinal de fidelidade ou de homenagem a um soberano, as cida-
Ele é levado ao trono onde o clero e os pares cada um por sua vez des medievais e renascentistas tinham o hábito de honrar seu augusto
lhe rendem homenagem através da reverência, do beijo e da aclamação: visitante organizando sua entrada em forma de recepção onde se mes-
Vivat rex in aeternum. Em seguida abrem-se as portas da catedral ao clavam o protocolo da nobreza, o júbilo popular, o espetáculo cristão e
povo, que grita "Viva o rei", enquanto ressoam os toques de clarim e a simbólica das tradições urbanas, civis e militares.
as salvas dos canhões. É cantado o Te Dewn. Depois o arcebispo cele- Miniaturas, gravuras, pinturas, e crônicas testemunham, entre o sé-
bra a grande missa, enquanto uma missa baixa é dita na intenção do rei culo XIV e o século XVll, o fausto dessas entradas triunfais. Exem-
pelo seu capelão. Após o canto do evangelho, o missal do altar-mor é plos: em Paris, Isabel da Baviera em 1389; Luís XII em 1498; Maria
dado ao rei para ser beijado. Este, no ofertório, entregará ao arcebispo Tudor, filha de Henrique VII quando desposou Luís XII em 1514; Luís
o vinho, o pão de ouro, o pão de prata e uma bolsa. O beijo de paz é XIII em 1628 após a batalha de La Rochelle; em Lião, Francisco l em
dado ao rei pelo bispo que faz as vezes de diácono. A comunhão do 1515; em Bruges, Margarida de York em 1468 por ocasião de seu ca-
monarca ocorre sob as duas espécies. No final da missa, um cortejo samento com Carlos o Temerário, duque de Borgonha; em Anvers, o
conduz o rei aos seus aposentos. O cerimonial do festim segue-se à sa- infante de Espanha Ferdinando, com Rubens encarregado do cenário.
gração.
O historiador moderno Ivan Cloulas, a partir de documentos de
A sagração é ao mesmo tempo um fator de fortalecimento da auto- época, assim nos restitui a entrada em Florença, em 1492, do filho de
ridade monárquica, através do reconhecimento de uma legitimidade he- Lourenço o Magnífico, João de Médicis, no seu retorno de Pisa onde o
reditária, simbolicamente eletiva ("Viva o rei"), e um rito indicativo da jovem cardeal de dezessete anos terminara seus estudos de direito. ca-
l.µnitação dessa autoridade, pois a Igreja, conferindo e abençoando o nônico. "Seu irmão Pedro foi ao seu encontro fora dos muros da cida-
cetro e o gládio, enuncia com isso a supremacia do poder espiritual so- de, montado sobre um cavalo com arreios de ouro e cercado por patrí-
bre o temporal. Mas reconhece no rei a imagem terrestre do soberano cios soberbamente vestidos. O JOVem cardeal avançou pelas ruas em
do universo e delega-lhe uma parte de sua sacralidade. E acrescentando sua companhia. Ele cavalgava uma mula soberbamente ajaezada. Um
a auctoritas à potestas ela santifica a pessoa real. Com a ajuda do ca- cortejo de bispos e prelados vindos de toda a Toscana formava seu sé-
mareiro-mor, o rei veste, durante a sagração, as vestimentas das três quito( •.. ). O cardeal dirigiu-se primeiro à Annunziata para um ofício
ordens maiores: a túnica, a dalmática e o manto. Ele é ungido como um de ação de graças, depois ao palácio da senhoria onde foi acolhido pelo
pontífice, designado como um "cristo" e detém o poder de curar as es- gonfaloneiro e pelos priores, e finalmente ao palácio da Via Larga. O
crófulas (8 curas sobre 121 doentes apresentados a Carlos X). Comis- povo o acompanhara até a porta e o aplaudira ao deixá-lo. Durante a
sionado pela divindade, o rei deve conservar uma pureza ritual, na me- noite, acenderam-se fogueiras de alegria nas praças. Repiques de sinos,
dida em que encarna as forças vivas do reino.
cantos e alegres cadências improvisadas ressoavam em todos os bairros
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da cidade ( ... ). No dia seguinte teve lugar uma missa solene na cate-
dral, depois uma cavalgada de notáveis, de embaixadores, de membros linguagem para celebrar a vinda de Carlos V em 1522: a Ilha britânica
da senhoria e dos conselhos formou-se em tomo do jovem cardeal e foi aparece como um belo jardim onde o imperador e Henrique VIII en-
visitar Lourenço que não pudera deixar seu quarto" (Cloulas, pp. 340- contram-se e abraçam-se, enquanto o Todo-Poderoso abençoa sua
341). aliança contra Francisco" (Jean Jacquot, in Dumur, pp. 217-218).
No final da Idade Média, numa França marcada pelas tradições Quando, no Renascimento, as entradas triunfais perdem um pouco
feudais e depois pelo desenvolvimento dos burgos, é na porta da cidade do caráter ao mesmo tempo marcial e religioso que tinham durante a
que o cortejo do príncipe se reúne ao cortejo da cidade vindo ao en- Idade Média, tanto a decoração e as arquiteturas efêmeras de madeira,
contro de seu hóspede. Após o beijo na cruz estendida pelos clérigos pano, argila, estuque, quanto as referências alegóricas das representa-
ao nobre visitante, as chaves da cidade lhe são simbolicamente entre- ções vivas, são influenciadas pela história e pela mitologia antigas. Es-
gues. Ele em seguida as entrega a um edil, depois é conduzido em cor- se novo repertório monumental de signos e imagens: arcos de triunfo,
tejo triunfal ao palácio, via igreja principal para um Te Dewn. Tapeça- colunas, estátuas, carros, templos, obeliscos, fontes, manter-se-á até o
rias, panos brancos, folhagens, emblemas heráldicos, enfeitam as fa- século XIX (a Etoile, a coluna de Julho, a estátua eqüestre de Mac-
chadas durante o percurso. Se a entrada ocorre durante a noite, tochas Mahon...) passando pelo século XVII que tenderá a substituir o cená-
de cera iluminam todo o itinerário. Em certas praças erguem-se "cada- rio artificial anterior por monumentos duráveis (porta Saint-Martin,
falsos" (como se dizia na época) onde confrarias ou corporações repre- porta Saint-Denis).
sentam quadros vivos: cenas bíblicas, alegorias, grandes momentos da
No momento da Revolução francesa, os organizadores das festas
história da cidade.
não terão esquecido os libretos de entradas célebres, e repisando os
Muitas vezes os acontecimentos do dia são comparados à história
elementos tradicionais e antigos, atribuirão temas aos ritos de uma ou-
sagrada. Assim como a ilustração do casamento de Margarida de York
tra maneira, mas com os mesmos ingredientes: cadafalsos, carros, cenas
com Carlos o Temerário está centrada no tema da união da Virgem re-
vivas, alegorias, estatuária, templos... Esse gênero de espetáculo tem
dimindo a falta de Adão e Eva, o discurso em imagens para Maria Tu-
por teatro a cidade. A primeira fase é sempre o cortejo e os ritos de
dor inspira-se nas litanias de Maria. Os temas da cruzada contra os in-
honras prestadas ao poderoso, antes do desencadeamento do regozijo
fiéis ou contra os heréticos são representados em honra dos príncipes
popular. Na recepção feita no aeroporto a um chefe de Estado estran-
guerreiros, militantes da Contra-Reforma ou envolvidos nas guerras de
geiro ou a um presidente em deslocamento sobre o seu próprio territó-
Religião. Em Bruxelas, o bestiário fantástico de Bosch e de Brueghel e
rio, e depois no cortejo que o leva ao palácio, ainda percebemos em
os diabos faceciosos folgam em tomo de carros figurando a vida do
nossos dias as reminiscências dessas entradas triunfais.
Cristo. Certamente a linguagem religiosa é natural ao povo cristão da
época, entretanto o comércio exposto por ela entre o humano e o divino Apesar da festa pública e da festa palaciana terem podido ser com-
convém à valorização de personalidades, quando comparadas a tal ou plementares, muitas vezes os ritos políticos mais importantes ou os
qual santo assim como o príncipe é comparado a David ou a Salomão. mais freqüentes ocorreram, senão a portas fechadas, pelo menos em
"O romance alegórico também fornece motivos como o do jardim cfrculos restritos de nobres convidados. Assim foi com os jogos guer-
fechado que, semelhante ao do navio ou do castelo, pode facilmente reiros: torneios, balés eqüestres, carrossel, como exutório para os ardo-
tornar-se o súnbolo do reino. Na cidade de Lião em 1515, na nave de res de uma aristocracia guerreira; assim foi com as festas da corte: baile
que Francisco 1 é o capitão, o Clos de France, onde cresce um tis que de máscaras, balé, representação teatral, fantasias campestres... , para
faz pensar numa árvore de Jessé, está ali para exaltar o monarca e suas distrair cortesãos aborrecidos. Em cada um dos casos a busca de diver-
conquistas italianas; vê-se até mesmo um Jardim de Milão onde figuram timento se junta à adulação do senhor ou do príncipe, que garante às
Bom Direito e Justa Querela e onde Francisco, qual novo Hércules, gentes da corte poder continuar nas graças do soberano e participar de
subtrai as maçãs de ouro. Os habitantes de Londres recorrem à mesma seus espetáculos, tanto mais apreciados quanto neles constar o fausto, a
opulência, o bom gosto e a cultura, muitas vezes ausente das festas
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!L.
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populares marcadas pelas fogueiras de alegria, disfarces grotescos e entrada a dos membros da família real, dos príncipes de sangue e dos
fontes de vinho. grande; oficiais da Coroa, do camareiro-mor, do grão-mestre e do~
Bem mais ritualizado do que essas festas de transbordamentos lú- mestres do guarda-roupa, que têm alguns instantes para falar com o rei
dicos é o cerimonial da corte, codificando os atos da vida cotidiana do de questões pessoais. Após ter o rei se persignado e executado suas
soberano e o contato que mantém com quem o cerca. preces, os personagens das grandes entradas re~uem. Cabe vez ao bar-
beiro e ao criado do gabinete das perucas. O rei levanta-se, calça suas
A etiqueta de Versalhes chinelas. o suíço anuncia então as segundas entradas, e afinal as entra-
das das gentes de qualidade. Em ondas quantitativamente crescentes,
Na sociedade de corte, que se considera supinamente civilizada, mas hierarquicamente decrescentes, as pessor!s são intr~d~idas pelo
reina uma etiqueta profana tão rigorosa em certos pontos quanto os ri- porteiro da cânlara que anuncia o nome e a quaiidade do visitante..
tos religiosos em honra de um príncipe celeste. Essa etiqueta é favore- Os historiadores também descreveram inúmeras vezes, a parur de
cida pela estabilizaçfio do rei de França em seu castelo de Versalhes. documentos de época, a toalete, o toque terapêutico dos escrofulosos,
Segundo Jacques Levron: "Luís XIV quis domesticar a nobreza para as refeições, 0 pequeno e o grande despertar. E~ 12 de sete~bro de
roubar-lhe o gosto de conspirar ( ... ) Um outro motivo determinou a 1715, 0 Rei-Sol desaparece no horizonte da históna, te~do tx:bi~o~ co-
escolha do rei: seu gosto pelo fausto, pela grandeza que nele acompa- mo diz Saint-Simon, o "abominável veneno da adulaçao mais m~igne
nha um orgulho inato. É-lhe necessária uma corte estável, estabelecida que 0 deificou no próprio seio do cristianismo". "Sem medo ao diabo,
em tomo dele no mais belo palácio do mundo, para servir de figuração ele se teria feito adorar".
à sua existência cotidiana(...) A habilidade de Luís XIV consistiu em Substituindo simbolicamente o "Viva o Rei" pelo "Viva a Na-
convencê-los (os grandes senhores) que toda sua inteligência deve ser ção", bem cedo a Revolução contestará violentamente a~ mesmo te~p?
aplicada na observância da etiqueta, que toda sua riqueza não vale a
0 poder pessoal monárquico estigmatizado como despotismo, os ~pnv~­
mais medíocre pousada em Versalhes, e que, longe do soberano, a vida légios dos aristocratas e dos clérigos, ass~ como as c?nsagraçoes _li-
se toma insípida" (Levron, pp. 48-49). túrgicas conferidas pela Igreja aos que dommam o _terc:iro esta~º·. Sig~
Ao cerimonial que criou, dobra-se o próprio Rei-Sol, especial- nificará a desativação das igrejas uma total desati vaçao do relig~os~ ·
mente após 1682. Ele sanciona as ausências e equívocos, e vela para Para sabê-lo, nada melhor do que apreender a ritualidade nas suas JUStl-
que ninguém usurpe as prerrogativas de um outro mesmo não se iludin- ficati vas ideológicas e com sua parte de espetáculo e de festa.
do sobre a futilidade dos detalhes. Mas para um súdito, o favor de uma
participação no rito, "as pequenas preferências" já não têm valor
quando Luís XIV não tem mais "graças bastante a distribuir para criar B / A FESTA SOB A REVOLUÇÃO FRANCESA
um efeito contínuo", afirma Saint-Simon.
Através das frases deslocadas, das palavras acerbas e corrosivas do A religião civil de Jean-Jacques Rousseau:
combativo Luís de Rouvroy, duque de Saint-Sin1on (1675-1755), frente
dogmas e ritos
a Luís XIV, deslumbrante como um sol poente, são fielmente descritos
os trejeitos, precedências, e rapapés dos circunstantes ao mesmo tempo Em sua Lettre sur les spectacles, J.-J. Rousseau se insurge contra
que a particularidade do modelo. desejo de d' Alembert de generalizar a prática teatral, impondo-a até
0
Desde o despertar do rei, a etiqueta se impõe. Por volta das sete e mesmo em Genebra, que a rejeitava desde a Reforma. O Malwmet de
meia, o criado-mor que passou a noite na câmara aproxima-se das cor- Voltaire, 0 Catilina de Crébillon, a Phedre de Racine ou a _Médée de
tinas do leito real e murmura: "Sire, eis a hora". Em seguida a visita Comeille, tomados como exemplo, demonstram que ~ tragédia ass~s~a­
do médico-mor e do cirurgião-mor. Às oito e um quarto, o primeiro fi- dora e cruel só poderia aguçar o gosto pela barbárie ou pela pru__xao.
dalgo da cânlara abre as cortinas do leito. Tem lugar então a grande Quanto à comédia, sua complacência pela fraqueza, pela corrupçao, e

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savoyard. A história retruca: E se a intolerância teológica uma vez su-
pela imoralidade, faz com que se tome nociva. Antes do teatro, arte da
primida não desse lugar a uma tolerância total? E se a concepção do la-
cidade decadente, preferir-se-á a festa popular, das comunidades aldeãs
onde reinam a alegria e a concórdia. ço social exigisse uma inteira comunhão espiritual como em certos Es-
tados? Quantos terrores ditatoriais! Quantos gulags!
Aliás as Considerations sur /e gouvernment de /,a Pologne pro-
põem estabelecer festas cívicas segundo o modelo das manifestações Sabe-se que Le Contrat social atravessou a prática revolucionária
onde o povo é ao mesmo tempo ator e sujeito. O efeito dessas festas se- como um modelo utópico, verdadeiro, bom, legítimo. Mas será que a
rá o "de reforçar o caráter nacional, aumentar as novas inclinações e nova ordem invertendo a antiga fez realmente aparecer em sua aparên-
conferir energia nova a todas as paixões". Nada de ritual social pro- cia de exuberância festiva os mecanismos da espontaneidade? A festo-
posto com precisão. Contentar-nos-emos com cerimônias "simples e mania revolucionária exclui a violência que a viu nascer? Não dissi-
tocantes", das quais Rousseau define sobretudo a função pedagógica. mularia ela o sinistro da solidão dos excluídos, designados como sabo-
Na festa cívica, pensa ele, realiza-se uma conformação sub-reptícia dos tadores e traidores pela vindita pública? Um rito de comunhão sem ex-
espúitos através das séries de lições nunistradas sem que se revele o clusão, uma festa de unanimidade onde todas as idades e sexos se en-
pedagogo. À força de estar cercado por imagens, o povo deixa eclodir contrem sem escárnio nem anátema, permanece o sonho simples de Mi-
em si a idéia a ser seguida. Além disso, reunida num espaço, a socie- chelet. Péguy pensa mais justamente na festa revolucionária como um
dade aprende a conhecer seus laços de união. alistamento em massa; Aulard, como um expediente do patriotismo.
Mas a festa não substitui o contrato, ela é o seu suplemento e pre- Mas existe realmente um esquema típico da festa revolucionária apesar
cisa ser organizada pelo legislador. Mas em nome de que e inserida em da variedade de suas organizações sociais entre a Bastilha e Bonapar-
que contexto justificativo? Le Contrat social, liv. IV, cap. VIII, nos te? E se esse modelo existe, será que ele revela, como um "fenômeno
fornece a razão última dessa ritualização do social na religião cívica social total" maussiano, a totalidade da Revolução?
que reivindica uma certa ascese espiritual. "Estado algum foi fundado
sem que a religião lhe servisse de base". Mas que religião? A do ho- A Federação dos grupos fragmentários
mem ou a do cidadão? O teísmo, "sem templos, sem altares, sem ri-
tos", "rompe a unidade social e não vale nada", pois não confere auto- Muitas vezes tomada como modelo pelos historiadores, a Festa da
ridade a lei alguma. A religião nacional como a dos hebreus ou dos Federação, o 14 de julho de 1790, aparece como a estréia dramática da
romanos "tem seus dogmas, seus ritos, seu culto exterior prescrito pe- unidade recomeçada ap6s a comoção de 1789. Na verdade, segundo
las leis", mas não poderia ser universalizável: "Fora a única nação que Mona Ozouf, ela é a ordenação parisiense de uma onda de festas pro-
a segue, tudo para ela é infiel, estrangeiro, bárbaro". A religião cris- vinciais espontâneas mais ou menos selvagens e conotadas por aspectos
tã.•• atribui aos homens duas legislações, dois chefes, duas pátrias: de sublevação. Ela se diz festa espontânea da unanimidade nacional, e
temporal e espiritual. "Estranho" reconhecer como irmãos os filhos do o povo miúdo a percebe exatamente assim, em oposição às festas do
mesmo Deus sem ligar o coração dos cidadãos ao Estado! Favorável Antigo Regime de caráter aristocrático e outorgadas pelos grandes. Ela
demais à tirania, à servidão e à dependência, o cristianismo desacredi- é sentida como festa calorosa, fraternal, contagiosa, da comensalidade
tou-se. cívica em oposição à festa segregadora de outrora. Os sonhadores emo-
Por isso Rousseau opta por uma religião civil, fundamentada em cionados por Rousseau vêem-na como instauradora, expressando o re-
sentimentos de sociabilidade e de fidelidade, incitando o cidadão a tomo à pureza natural e às origens, pois proclama os direitos do ho-
amar seus deveres, os dogmas ditados pelas luzes naturais e não pela mem e as virtudes cívicas fundamentais, enquanto o Antigo Regime fi-
autoridade dos homens: "A existência da divindade poderosa, inteli- zera reinar o vício e negara a igualdade dos cidadãos. Festa única em
gente, benfazeja, provedora, a vida futura, a felicidade dos justos, o Paris, ela tem seus desdobramentos nas províncias e seus amanhãs, no
castigo dos malvados, a santidade do contrato social e das leis: eis os retorno da bandeira levada pelos Federados.
dogmas positivos". Banir: a intolerância, como já propunha Le vicaire Mas se existe mesmo alegria e efusão popular, é uma reação con-

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~a ~ medo pânico que corre pela França rural. À desestabilização ins- Certos patriotas de província, intensamente fascinados pela festa
titucional provocada pelos Estados gerais e ao temor da fome, corres- parisiense realizaram, muitos pela primeira vez, magnífica peregrinação
ponderam cenas de sublevação, crescimento de rumores de banditismo à capital. Arrancando-se ao seu horizonte cotidiano, viveram uma ex-
e de violências mais ou menos simbólicas: aqui arranca-se o cata-vento traordinária viagem num espaço territorial miticamente sacralizado co-
do castelo, r~tira-se e queima-se os bancos da igreja, lá se impõe oco- mo único e não mais fechado em aldeias estranhas umas às outras. A
car ao prefeito, em cortejo precedido pelo tambor municipal; e planta- provação das estradas foi compensada pela embriaguez dos contatos e
s~ n~. praça pública a "árvore de maio" que ambivalentemente sempre das farândolas. Dessa peregrinação federativa foi geralmente trazida
s1gruf1cou a alegria local e a sedição. uma relíquia: diploma outorgado pela Cidade de Paris, quadro da De-
Em conseqüência, as festas federativas de província têm inicial- claração dos Direitos do Homem e do Cidadão, efígie de Luís XVI ou
mente como agente a Guarda Nacional (eventualmente a guarnição) de La Fayette, pedra da Bastilha, medalha ... , e sobretudo bandeira fe-
que assegura a defesa contra os bandidos e os inimigos da revolução. derativa da delegação, que se toma uma espécie de arca da aliança de
~pós 1880,_ º.pacto defensivo nacional garantido pelo agente militar poder miraculoso. É verdade que ela poderá perfeitamente figurar nas
amda constituirá o elemento chave do 14 de julho transformado em procissões do Santíssimo. E além disso, internamente fica-se transfor-
festa nacional. Assim como a festa parisiense, as festas federativas de mado pela alegria da festa que até mesmo tem laivos de religião. No
província comportam juramento solene, discursos de notáveis e bênção altar da pátria, acontece do padre, único letrado em sua aldeia, fazer o
de bandeiras pelos curas. discurso. E o entusiasmo das celebrações se expressa, durante os meses
seguintes, através de batismos, casamentos e dotações de moças po-
. C~rentes ~om o imaginário social da Federação, representação
bres, registrados nos processos das municipalidades.
sunbóhca da urudade nacional, confundidas todas as diferenças de or-
Em 1791, o caráter fúnebre dos serviços em memória de Mirabeau,
dem, de idéia, de idade e de sexo, fazem-se ouvir outros mitos e ideo-
morto durante este ano, e de Voltaire, morto em 1778 e trasladado em
logias: a identificação de Luís XVI com o "bom rei Henrique", a ima-
1791 para o Panteão, irá eclipsar o fervor lúdico do aniversário de 14
gem do "soberano esclarecido", a aspiração ao equilíbrio dos poderes,
o sonho de uma legalidade universal. de julho. É verdade que a primeira Federação havia deixado a Mira-
beau a lembrança de um fracasso: o do rei em recuperar em proveito
Nessa missa celebrada pelo povo para si mesmo no Campo-de- próprio a afetividade flutuante e em jugular o que havia de impetuoso
Marte, tendo Talleyrand como oficiante, acompanhado por uma multi- no entusiasmo amotinado dos revolucionários. Aliás, nem o conde de
dão de padres, na presença do rei, de sua família e dos deputados em Mirabeau nem seu rival o bispo Talleyrand, desejavam renovar a expe-
anfiteatro, assim como no JUramento que em seguida se presta à Cons- riência de misturar o religioso com o cívico. Em 1791, tanto um quanto
tituição, ou seja, à Lei, ao Rei e à Nação, são de fato os notáveis -
0 outro propõem como solução substitutiva, para não confundir os gê-
tendo os militares aberto o cortejo oficial - que representam os primei- neros religioso privado versus cívico público, a criação de "grandes
ros papéis. O juramento, religiosamente solenizado, é de obediência do festas leigas" (Talleyrand), de nove "festas civis, públicas e militares"
povo aos seus representantes políticos que legiferam sobre os valores e (Mirabeau). Objetivo: a comemoração de acontecimentos caros a um
as instituições novas. Reencontramos aí, tirada do modelo rousseaunia- povo livre. Função: a representação do fervor comunal. Acessório_s: os
no, a articulação entre a instituição jurídica e a organização festiva. súnbolos da liberdade e da igualdade, as artes e espetáculos, que hgam
Mas onde se situa o povo? Na periferia: nos trabalhos de aterro do os cidadãos jovens ou velhos às leis.
C:amP?"'de-Marte antes da festa, na recepção dos Federados da provín- Mas no ano seguinte de 1792, a proclamação da "pátria em peri-
cia tnunfalmente recebidos em Paris e como espectador do grande go" não leva os Voluntários à festa. Seus corações batem pelo ruído do
contrato que põe em cena o aparelho político. E graças às festas de in- canhão, seus passos são ritmados pelo rufar do tambor e suas vozes_ se
tuito educativo que a Revolução não cessará de inventar, o povo exercitam no Canto de guerra para o exército do Reno, em segwda
aprenderá a representar-se como sujeito político. chamado de A Marselhesa. Na festa de Châteauvieux, arrasta-se em

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1 1

A festa utópica durou apenas dois anos, a veia paródica esgotou-se


dois sarcófagos o espectro da morte. Entretanto em setembro, antes de como uma moda. Mas em meio ao desatino popular, é um bispo de Pa-
interromper as sessões, a Constituinte acrescenta à Constituição o se- ris que joga seu hábito às urtigas e aceita que Notre-Dame ao invés do
guinte artigo: "Serão estabelecidas festas nacionais para conservar a Palais Royal seja o teatro do culto da Razão. À "montanha" instalada
lembrança da República francesa, manter a fraternidade entre os cida- no coro é levada a tocha da Verdade. Os músicos da Ópera, em presen-
dãos, ligá-los à Pátria e às leis".
ça da Guarda Nacional executam o Hino à Liberdade de Jean-Marie
Chénier com música de François Gossec. Uma atriz, de bons costumes
A veneração dos prindpios
segundo os organizadores, representa a Razão, mas a reputação das
moças que a cercam é, para o povo parisiense, a das "Marianas" um
Em junho de 1793, cabe ao antigo padre Lakanal, especialista em sinônimo de "catin", ele mesmo diminutivo de Catarina. 1
pompas e encarregado da Instrução pública, propor um plano de festas
nacionais. E o calendário é elaborado pouco a pouco. Num ano se Se a festa do Ser supremo foi instituída em 8 de junho de 1794,
prescreve, no outro se elimina. As comemorações dos acontecimentos deve-se isso ao espfrito de Robespierre, pouco antes de sua queda, co-
imortais da grande familia nacional, e não mais da familia real como mo reação ao vazio dos encontros decadários, contra o desenvolvi-
outrora, remetem sobretudo ao tema "Morte e insegurança". Além do mento de um ateísmo considerado por ele tão nocivo quanto a supersti-
14 de julho de 1789, vitória contra a insegurança do povo, comemorar- ção e contra as orgias irracionais ocasionadas pelo culto da Razão. No
se-á o 10 de agosto de 1792, data do massacre das Tulherias, com uma programa dessa encenação de David: tambor, um Hymne à l'Etre su-
homenagem aos mártires da Revolução, Lepeletier, Chalier, Marat; o prême de Gossec, o Chant du départ de Méhul, o auto-da-fé de urna
21 de janeiro de 1793, data da execução do rei Luís XVI, e o 31 de estátua do ateísmo ... , que queimava mal. Assim como na igreja, os
maio de 1793, data da insurreição parisiense em que vinte e sete depu- homens ficavam de um lado, as mulheres do outro. Assim como no
tados girondinos e dois ministros foram presos. O 9 termidor será domingo de Ramos, os figurantes das quatro idades: infância, adoles-
acrescentado a elas, marcando a queda de Robespierre. Essas festas, cência, idade viril, velhice, traziam na mão mirta, carvalho, oliveira.
pelas lembranças recentes que evocavam, tocaram muito mais as popu- Assim como na festa campestre do Antigo Regime, quatro bois adorna-
lações do que outras inscritas no calendário republicano pela lei de dos com guirlandas puxavam a carroça dos produtos artesanais e rurais
brumário do ano IV: festa dos Esposos ( 10 floreal: 29 de abril), do Re- (exaltados pelos fisiocratas). Assim como no altar da Virgem durante o
conhecimento (10 prairial: 29 de maio), da Agricultura (10 messidor: batismo, as mães ofereciam seus filhos no altar da Natureza.
28 de Junho), etc. Mas será que assim como no cristianismo a devoção Entre todas as festas da Revolução, confessado por Mathiez, esta
ao mártir não prevaleceria sobre a devoção ao confessor, e o temor so- foi ao mesmo tempo "a mais brilhante" e "a mais popular", apesar de
bre a sabedoria?
não se diferenciar em nada da festa da Razão pelos cenários, costumes,
No entanto, só o calendário não é suficiente para atribuir conteúdo discursos e figurantes. Ela sem dúvida satisfazia uma religiosidade ain-
à liturgia do dia. Certas festas são vazias, outras sérias e processionais, da vigorosa formada pelos filósofos, na medida em que a homenagem
algumas lúgubres, e de 1793 a 1794, o povo miúdo, talvez cansado das era prestada ao Criador e não a algum princípio abstrato revestido de
festas burguesas, entrega-se de coração aberto ao burlesco, ao carnaval ouropéis alegóricos. Do velho fundo religioso emergia o gosto pelo rito
e à galhofa, como para validar a teoria de Georges Bataille sobre o as- e pelo encantamento lfrico que a cerimônia preenchia perfeitamente.
pecto transgressivo da festa, já que anteriormente a decência e a ordem Nem um pouco improvisada, é verdade que essa festa tocava os cora-
predominavam. É verdade que bebeu-se aguardente em cálices, que os ções em virtude do cenário e dos cânticos, mas também porque tanto o
berros, tambores e os flajolés tocaram a rebate da realeza, que as far- cenário quanto o Verbo tematizavam duas das coisas mais procuradas
ras, bailes e fogueiras de alegria acompanharam os festejos dos sans- na época: a abundância agrária e artesanal, o apego a uma moral de
culottes, que manequins de anstocratas foram guilhotinados, que asnos justiça e felicidade. Porque a festa foi concebida e organizada por Ro-
foram ajaezados com ornamentos episcopais (cf. Ozouf, pp. 101-108).
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bespierre, e porque o colocava em destaque, os historiadores não pre- multidões mais do que os banquetes fraternais para celebrar o culto da
·cisaram refletir muito para saber quem era o Ser supremo. Apoteose de Pátria.
um dia! Percurso rápido desse estrado ao cadafalso! É preciso terminar com a Revolução, ou seja, com uma hlstória
movimentada demais, e ao mesmo tempo com o remanejamento inces-
Festa dos Mortos e festa da Natureza sante das festas. Alguma vez já se vi•.t conteúdos sacramentais (pala-
vras, leis, instituições, homens, lugares) modificarem-se num ritmo tão
Mas 1794 ainda não marca o fim do rito secular mais impressio- infernal?
nante de toda a Revolução: o da máquina de Guillotin. Colheita inespe-
No entanto o tempo parece medido com precisão pela ritualidade
rada dos assim chamados inimigos públicos, tribunal revolucionário,
do registro civil. Para substituir um calendário tradicional comemorati-
veredito sem apelo, última noite atrás das grades, confissão, carroça,
vo da história religiosa, Fable d'Eglantine propôs em 1793, doze meses
chuços, tambores, cadafalso, carrasco... Ça irai Sus aux Aristos!. . .
de trinta dias, divididos em três séries de dez dias, aos quais se acres-
Algumas das 2.632 cabeças cortadas em 502 dias de terror servem à
Sra. Tussaud, que as compra do carrasco Sanson, para um molde de ce- centa um saldo de cinco "sans-culottides", para acertar as contas e fa-
ra particularmente realista. Como explicar o entusiasmo do público zer a festa. Mas por que então substituir as referências mensais a Juno
pelos guilhotinamentos? Talvez o interesse pela máquina do doutor, ou a Marte e semanais a Mercúrio ou Vênus, pouco incômodas para os
veneradores da Antiguidade, pelos nivosos e os vindimiários, e no
aperfeiçoada pelo fabricante de violas Schmidt, porém mais ainda pela
messidor um duodi "aveia", um tridi "cebola" e um décadi "regador"?
saciedade da inveja dos pequenos burgueses, exultantes ao ver guilho-
O camponês se diverte muito com essas fantasias de poeta ignorante do
tinados os corpos de quem os ultrapassara por uma cabeça. Mas a Re-
trabalho da colheita e da vindima, que enraíza sua aveia na cabeça e
volução não inova quanto ao castigo político público. Dos enforcados
não na terra. Mas até o desaparecimento desse falbalá em 1806, a al-
de Pisanello ou de Villon ao esquartejamento do conspirador Ravaillac
ou à execução de Brinvilliers, as artes e os anais fervilham de exem- guns pareceu bonito e bem ritmado: 10 + 10 + 10 = 30, 3 x 4 = 12.
Mas entretanto alguns equívocos: festas demais no verão, que esvaziam
plos vigorosos, por antífrase, da ordem moral eterna sancionada por um
poder promotor de morte que, inversamente, pode imortalizar na festa os campos; e essas sans-culottides que esvaziam tonéis demais!
comemorativa. Além da glorificação da Natureza, muito "fim de século XVIII"
Após o Terror e após Termidor, vividos como períodos de angus- e ... sem hlstória, tem lugar no calendário republicano a comemoração
tiante incerteza, personalidades como: P.-C. Daunou, M.-J. Chénier, (perpetuação, apelo, conservação) da história da República bem novi-
Valentin Hauy, Bernardin de Saint-Pierre, Dupont de Nemours, propu- nha mas já amante de inúmeros heróis e com suas bolsas cheias de lâ-
seram (cf.Mathlez) um sincretismo de culto protestante (os teofilantro- minas de guilhotina e de bens nacionais. Daí a pequena cura de lem-
pos pretenderam chamar-se "cristãos primitivos"), cerimônias decadá- branças frescas post-Lakanal, já enunciada, usando para abrir o baile
rias (já decadentes), idéias filosóficas e maneiras maçônicas. Mesmo esse gentil 14 de julho: o Cogito da Liberdade (Ozouf, p. 206).
que a tentativa tenha fracassado por falta de meios, de apoio e de sún- Mas o décadi não funciona nos campos! E nos antigos domingos o
bolos referentes, é interessante observar que o culto teofilantrópico trabalho é sempre recusado por apego conservador ao ritmo cristão dos
tenta preencher um vazio provocado pela perda da fé na religião e na trabalhos e dos dias calcados na Gênese. Trabalhos e dias portanto não
virtude purificadora da Revolução. seguem o ritmo do barulho dos sinos - foi preciso fundi-los para fazer
Sob o Diretório acrescenta-se, em 27 de julho de 1798, uma festa balas de canhão - mas o ruído do tambor, de boa pele de vaca republi-
da Liberdade das Artes, com numerosas carroças levando obras-primas cana, batida à vontade.
da escultura e da pintura italiana: LaocoonJe, Apolo de Belvedere, qua-
dros de Ticiano, de Veronese, de Rafael. •. O saque da campanha da
Itália! Mas essa festa exclusivamente parisiense não entusiasma as 1

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1

Um espelho multifacetado
Nela se aprende em baixo-relevo a Justiça, a Virtude, a Fidelidade, du-
Então o que é que funciona na festa republicana? Um pouco de tu- rante a festa do Ser supremo. Nela se aprende em flâmulas os méritos
do, porque existe de tudo, como se pode perceber sacudindo o calidos- de Rousseau: "Ele nos deu o Emile por modelo". "Ele restituiu as
c6pio. mães aos seus deveres e as crianças à felicidade". "Renunciar à sua li-
Em primeiro lugar, um museu das idéias ditas filos6ficas e das fi- berdade, é renunciar à sua qualidaàc de homem" ... , durante a inaugu-
guras gloriosas do passado recente. De preferência em escultura mais ração de sua estátua em Lião, em 16 dt. Olltubro de 1794 (Robiquet, p.
eloq~ente do que o texto para um excesso de iletrados, e colossal: mais 150). Mas os triunfos, os concursos e recompensas assemelham-se de-
heróico do que a miniatura. Resta saber se nele a iconografia ativa o mais a uma distribuição de prêmios. Penitência decidida em Rodez em
espírito. A alegoria, rainha sem reino, apresenta-se como um enigma a 19 de novembro de 1795: "O Comitê de Vigilância ocupar-se-á de fa-
decif~ar. Infeli.zme?te, de papel, tecido ou estuque, ela é tomada por zer raspar os bigodes daqueles que são indignos de trazê-los", e isto "a
um simulacro marumado e mobiliza pouca emotividade. "Deusa" viva seco pelo pior barbeiro" (Robiquet, p. 112).
demais, ela pede a avaliação do espécime, mas não do significado. Em sexto lugar, um circo, com cavalos dos guardas nacionais, tou-
Em segundo lugar, um teatro espetacular com separação entre a ros para o Ser supremo, rei "Capeto" representado como marmota, e
cena e a sala, entre os atores e os espectadores, com a retenção num porcos encarnando o pessoal das basses Cours 2 alemãs.
espaço mais ou menos fechado da exaltação ou da apatia dos partici- Em sétimo lugar, um Campo-de-Marte, com militares desfilando
pantes. No Campo-de-Marte, "nada pode ser comparado à beleza dessa de uniforme e políticos dispostos em degraus, e sobretudo com uma so-
festa. Ela parecia elevar o povo e colocá-lo no nível de sua potência. A ciedade aparentemente conectada.
multidão que acompanhava esses cortejos era prodigiosa". (0. Bous- Em oitavo lugar, um encontro fraterno onde cada um tem o seu lu-
tanquois, in Robiquet, p. 147.) Na Pont-Marie "eram homens e mulhe- gar e a sua posição conforme o sexo e a idade, representa seu pequeno
res recém-mortos cujos membros ainda estavam bastante flexíveis por- papel ajuizadamente, e depois se banqueteia com todos os cidadãos-ir-
que não se haviam resfriado, de modo que a perna de um deles ultra- mãos da aldeia. Em suma, a comunidade ideal de Rousseau com rela-
passava a charrete, do outro lado, os braços ou a cabeça". (Robiquet, ções de dádiva e de troca recíproca entre as idades e entre indivíduos
p. 166.) iguais.
Em terceiro lugar, uma tribuna onde cada um irá em busca de Por querer representar demais: a utopia da idade de ouro, as idades
arengas e discursos, habituados como estão a escutar o sermão ou a da vida, as virtudes morais, a grandeza do político, a história da Re-
homilia. Na Assembléia sabe-se manejar o aforisma e a sentença, aliás, volução, a festa se dispersa. No entanto a diversidade de suas facetas
quantos oradores loquazes ali, e quantos lacônicos nas campanhas! não impede que nela tenhamos uma festa revolucionária típica com uma
Bourdaloue e Massillon nada ficam a dever à eloqüência revolucioná- personalidade coletiva durando dez anos, com suas normas, suas ima-
ria. E o sentido das imagens se esgota tão depressa que até mesmo a gens e seu imaginário. Seu espaço dominado pela delimitação simbóli-
virtude pedag6gica da redundância toma-se um vício. ca da estatuária permanece sem barreiras sociais e seu tempo medido
Em quarto lugar, uma sala de concerto. Em lugar dos "Natais" de pela delimitação do registro civil toma espetacular a ucronia da festa,
Balbastre que faziam acorrer o Tout-Paris, canta-se hinos, como nas que afirma revogado o passado e eterno o presente revolucionário.
vésperas. Gossec e Méhul se fazem ouvir, mas com tão ruins libretos e Vendo nela uma política do signo, J. Davallon a caracteriza como
músicas tão ruins que ainda hoje desencorajam a discografia. Sem a sendo ao mesmo tempo instauradora, educadora e prática utópica. Uma
improvisação de compositores acerbos como Ângelo Pitou sob o Dire- de suas fecundas hipóteses, consiste em demonstrar que: "A festa re-
tório, pode-se obter alguma coisa além da ancilose e do clichê? volucionária, seguindo a economia rousseauniana da representação, irá
Em quinto lugar, uma escola aberta a todos, freqüentada com re- paradoxalmente abrir caminho para uma acumulação de poder no Esta-
gularidade e que acrescenta a educação nacional à instrução pública. do e transformará o modelo político de Rousseau numa representação
ideológica da sociedade( •.. )". "As instituições, as representações e o
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1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _~.........il~~
sujeito político constituirão uma esfera cada vez mais fechada e autô- za-se Brutus, Ziguette ou Pissenlit com um vaso de água, enquanto o
noma, que no entanto pretenderá representar de maneira universal, "padrinho" recita o Decálogo republicano. O casamento civil não en-
neutra e transparente a totalidade da sociedade real" (Davallon, p. tusiasma. São necessárias "núpcias verdadeiras" com cerimônia reli-
194). giosa e festim público! Mas quantas pompas fúnebres, especialmente
para os mártires. . . da Liberdade, certeza da imortalidade na memória
Um 1Wtável sincretismo coletiva! ... Quem ousar me contradizer levante o dedo! Ser-lhe-á
cortado. Desde Durkheim sabe-se bem que o coletivo é coercitivo, que
A festa revolucionária é com certeza o espelho da sociedade da o religioso é coletivo. Quanto à festa revolucionária, ela é ao mesmo
época em sua totalidade, mas de uma sociedade que se afirma nova e tempo religiosa e cívica, ritualista sem fervor e coercitiva. Tarde acres-
oposta ao catolicismo, e ao mesmo tempo recupera muitos de seus tra- centaria: imitava! Boissy d' Anglas também já pensava isso em 1790
ços, a tal ponto que o exame dos cultos cívicos faz ressaltar um notável quando escreveu: "É preciso que César seja Deus, que o Magistrado
sincretismo de elementos na sua maior parte embebidos nos ritos cató- seja Padre ... " O restabelecimento da ordem só pode ser obtido "pela
licos, mas também na cultura antiga, nas posturas maçônicas e nas fes- reunião do Pontificado e da Soberania nacional, do Sacerdócio e da
ta8 rurais arcaicas. Magistratura".
Suspeito, acuado ou interdito, o catolicismo não se esfuma no dia Essa linguagem só pode admirar a quem ignora que inúmeras das
seguinte. Na noite do 14 de julho de 1789, os vencedores da Bastilha grandes figuras da Revolução foram educadas por religiosos nos exer-
encontram-se em Notre-Dame para uma ação de graças. Em 14 de julho cícios de piedade e na cultura clássica, que foram marcadas pela reli-
de 1791, é cantada uma missa solene pelo repouso da alma de Mirabeau. giosidade confusa de Jean-Jacques Rousseau e posteriormente habitua-
Juramentado, o clero é tolerado, mas o apóstata inquieto guilhoti- das ao simbolismo das lojas maçônicas.
nado. Assim, em 13 de abril de 1794, tem lugar a execução capital do Do colégio, Carnille Desmoulins e Mme. Roland trouxeram Plutar-
antigo bispo de Paris, Gobel, por ter pretendido fundamentar o governo co e modelo de grandeza. Se a filosofia das Luzes ilumina alguns he-
francês sobre o ateísmo. Poderíamos dizer que são vestígios. Assim róis, são os de urna antiguidade inocente e nova, ajustando o ato à pa-
como o são outras manifestações da vida religiosa necessitadas de uma lavra. O juramento dos Horácios (1784) de Jacques-Louis David pre-
linguagem. Torna-se então mais fácil decodificar os vestígios daquilo cede seu Juramento do Jogo de Ptla nunca terminado e seu Marat as-
que já se aprendeu. Não vemos no templo da Razão (a igreja de outro- sassinado de 1793. A atualidade remete aos padrões helênicos: Esparta
ra) a "montanha santa"? Em lugar das Tábuas da Lei: a Declaração dos para os Montanheses (daí Sait-Just), Atenas para os Girondinos. Solon
Direitos do Homem e do Cidadão, "catecismo nacional" (segundo e Licurgo haviam sido, assim como os Republicanos, ao mesmo tempo
Barnave) recitado pelas crianças nas escolas. Um altar, o da Pátria, Legisladores, fabricantes de leis, e Instituidores, detentores do poder
centro sagrado onde será exposto o pão da Fraternidade (sugestão de de instituir. Obeliscos, pirâmides, feixe de litor, espada, direito, Ana-
Benoist-Lamothe)! Nada de incensório, mas defumadores de perfume. cársis, e Gracchus Babeuf dizem respeito à grandeza, não à decadência
Uma estatuária de Três Graças com as Damas Liberdade, Igualdade e de um mundo. Cabe a Mona Ozouf concluir com justeza: "O recurso à
Fraternidade. E à Marianolatria cabe substituir a Mariolatria! Bandeiras Antiguidade nas festas revolucionárias não traduz apenas uma nostalgia
em cortejo, como na procissão do Santíssimo! Nas litanias, associa-se o de esteta, nem mesmo a necessidade moral de povoar com grandes
coração de Marat ao Sagrado Coração de Jesus. "Hinos e orações" pa- exemplos urna memória que deles se esvaziou. É também e sobretudo,
trióticos ou ainda "Cânticos e odes" preludiam e encerram o "sermão" num mundo onde se descolorem os valores cnstãos, a necessidade do
cívico do ofício republicano. Ao lenho da cruz substitui-se a árvore da sagrado. Uma sociedade que se institui deve sacralizar o próprio fato
Liberdade. As inaugurações de bustos ou de medalhões tomam o lugar da instituição" (Ozouf, pp. 332-333).
das bênçãos de estátuas de santos. Ao invés do domingo, dia de repou- O mesmo autor indica as referências maçônicas empilhadas sobre
so, de oração e de jogo: o décadi, dia de aborrecimento terrível! Bati- as reminiscências clássicas: nível, compasso, esquadro, triângulo, colu-

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na do sol e da lua, olho da razão penetrando através das nuvens do er-
ro, templos da virtude, calabouço para os vícios, pai de familia pontífi- e pela ascese. Ela acompanha a história para celebrá-la em seus gran-
ce, cantata ao Eterno copiada de um hino ao Grande Arquiteto do Uni- des momentos, é verdade que também a inúta, por exemplo com os pi-
verso (ibid., p. 334). "Assim se ligam, como nessa religião saint-simo- ques, tambores, salvas, desfiles de guardas em períodos conturbados
niana que flanqueará o templo de laboratórios e de oficinas, os astros e mas ~ua ~unç~o principal é representar um mundo em ordem regulad~
os cultos, a origem e os fins, a ciência e a religião. De resto aí está a pelo irnagmário de um século de utopia.
maneira de expressar com segurança a sacralidade de uma Revolução Mas por que essa tentativa de instituir urna religião cívica através
que é ao mesmo tempo uma figura científica e astral" (ibid., p. 335). de fes~s e símbolos novos se ela está desvalorizada por um fracasso?
Em resumo, não é um vazio sacro, mas uma u·ansferência de sa- Sum~~ente - ~is retornaremos ao assunto a propósito do declínio
cralidade para uma festa nova cheia de ressurgências das festas de ou- das litW:gias políticas -, diremos que as causas são de dois tipos: cau-
trora. Além do religioso de caráter antigo, cristão ou maçônico, apa- s~s partic~lares ao próprio aspecto das festas: esterilidade da irnagina-
rente na parte formalizada da festa, ressurgiu o popular através das ç~o,. opacidade dos símbolos, frieza e academicismo das pompas, au-
efervescências lúdicas. O zelo pastoral republicano esbarra nas ovelhas sencia de ordem e de decoro, versatilidade das decisões referentes às
rurais obstinadas, de ritmo lento. Muitas vezes os comissários encarre- festas e ~ pessoas a quem se erige estátuas (Mirabeau, Marat) e depois
gados de fazer executar as novas medidas confessam-se desencoraja- se destrói. Em suma, trabalho de amador, pouco esclarecido sobre as
dos. Essas medidas, freqüentemente tornadas na precipitação e aplica- forças do psiqui~mo! Mas também causas mais profundas e sociológi-
das às tontas, algumas vezes dão a impressão de uma vontade de ex- cas: c~m~ ~denam as perseguições, as lutas partidárias, a guerra civil
temúnio da vida popular tradicional. Mas para proteger-se das formas e as v10lencias r~volucionárias deixar de matar rapidamente qualquer
excessivas do poder, os grupos locais conseguem, através da inércia de chance de comunicação real? A guilhotina matou a festa revolucionária
um silêncio conspirador ou do ardil da obstinação, expressar-se como assim como havia matado o rei e as festas reais.
outrora pelo carnaval, festa patronal, reuniões, fogos de artifício, car-
rilhões e rebates de sinos, jogos de péla, ramos de flores, plantação de
árvores de maio (ambivalentemente pau-de-sebo e pau-da-forca) dentro BJBUOGRAFIA
de um espírito de crítica. A árvore, "signo sensível da regeneração dos
franceses", é anexada pela Revolução em sua panóplia simbólica, mas O CERIMONIAL DO ANTIGO REGIME
com folhas, selecionada entre as melhores espécies para o refloresta-
mento da França. Batiza-se esse testemunho do crescimento das gera-
Bayard, Jean-Pierre, Sacres et couronnements royaux, Paris, Trédaniel, 1984.
ções: árvore da liberdade. Assim como o carvalho forma gaulês, o
Bloch, Marc, Les rois thaumaturges, Strasburgo, Istra, 1924; Paris Gallimard
choupo forma povo. 3 1983. ' '
Cloulas, Yvan, Laurent te Magnifique, Paris, Fayard, 1982.
Na verdade, a festa folclórica não se opõe à festa cívica, elas se Dumur, Guy, Histoire des spectacles, Paris, Gallimard, 1965.
complementam. E além da diversidade calidoscópica, percebemos indi- Elias, Norbert, La société de cour, Paris, Calmann-Lévy, 1974.
cações de sentido único: a festa revolucionária, modelo ideal-típico de Froissart, Jean, Chroniques, Paris, Gallimard, 1952, liv. IV, cap. I.
festas diversas propostas por grupos sucessivos com políticas diferen-
Guénée, B. e Lehoux, F., Les entrées royales de 1328 a 1515, Paris CNRS
tes, responde a um projeto único, pois serve como meio ritual para 1%~ ' '
instaurar urna ordem nova exibindo urna simbólica nova centrada no Jacquot, Jean, Lafête princiere, in Dumur, op. cit.
patriotismo, enunciando através do discurso, do juramento, do cenário Levron, Jacques, La vie quotidienne à la cour de Versailles aux XVl/e et XVflle
e do canto, os valores fundamentais de uma sociedade que procura siecles, Paris, Hachette, 1965.
criar sua felicidade não pelo desperdício e pelo fausto mas pela virtude 1
Saint-Simon duc de, Mémoires, Paris, Gallimard, 1947-1959, 6 vol. .1
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u
A FESTA SOB A REVOLUÇÃO FRANCESA
CAPÍTULO II
Aulard, F.-A., Le culte de la Raison et te culte de !Etre suprême, 1793-1794,
Paris, Alcan, 1892. CONSAGRAÇÃO DA REPÚBLICA
Biver, Marie-Louise, F êtes révolutionnaires à Paris, Paris, PUF, 1979.
Davallon, Jean, Les fêtes révolutionnaires, une politique du signe, Traverses, nÇ!
E CELEBRAÇÃO DO TRABALHO
21-22, maio 1981, p. 187-195.
Ehrard, J. e Villaneix, P., Lesfêtes de la Révolution, Actes du Colloque de Cler-
mont, Paris, Clavreuil, 1977.
Mathiez, Albert, La théophilanthropie et de culte décadaire, 1796-1801, Paris,
Alcan, 1903. Desapareceram então as festas dos príncipes e as do terceiro esta-
Les origines des cultes révolutionnaires, 1789-1792, Paris, Société Nouvelle do, desapareceram as grandiosas revistas dos exércitos napoleônicos e
de Librairie et d'Edition, G.Bellais, 1904. as orgias de depois da vitória, desapareceram as liturgias da ciência e
Ozouf, Mona, Lafête révolutionnaire, 1789-1799, Paris, Gallirnard, 1976. do trabalho inventadas por um socialismo utópico? Não totalmente!
Robiquet, Jean, La vie quotidienne au temps de la Révolution, Paris, Hachette, A torrente da vida festiva se reconstitui sem cessar a partir de suas res-
1938. surgências. Jours de France, Dynastie e lmages du monde ainda exi-
bem o fausto cerimonial das coroas européias. Nossas vivências nacio-
nais de democratas ainda estão carregadas de lembranças da Bastilha,
da participação num cortejo partidário ou patriótico, do encantamento
pelo desfile das colunas de tropa. Que nacionalismo, vibrante apesar de
tudo, um dia ou outro não se colore de sentimentalismo, de militarismo
ou de chauvinismo?
Mas as festas nacionais regulares, aquelas oficiadas pelas instân-
c~as políticas, permanecem raras. Como o 8 de maio que está desapare-
cendo nas masmorras da memória, o 11 de novembro, já bastante apa-
gado pela festa cristã dos mortos celebrada dez dias antes, só mobiliza
alguns edis municipais e umas poucas delegações de velhíssimos com-
batentes. Apesar das vozes discordantes do internacionalismo proletá-
rio nos cortejos de 12 de Maio, que não mobiliza mais o mito da greve
geral, e a despeito do fastio pela moda tricolor, quando muitos festejam
o solstício de verão em hotéis estrangeiros de turismo, o 14 de Julho e
o 12 de Maio ainda parecem as duas maiores ocasiões para se fazer ou-
vir o civismo junto com os morteiros republicanos e para se atestar a fé
no trabalho, descansando.
Para fazer esquecer a morosidade litúrgica do presente nos reporta-
remos ao passado, para compreender a gênese de nossa festa que se
tomou nacional após o realista marechal Mac-Mahon ter sido demitido
do poder em 1879, e para explicar as progressivas transformações de
sentido do trabalho socialista com ressonâncias políticas.
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A/ UMA FESTA FRANCESA REPUBLICANA E CÍVICA: tra o poder monárquico para que ele não a suprima quando sobe ao tro-
no. Sob a Restauração, uma coluna erigida em memória dos mártires de
O 14DEJULHO
julho de 1830 pretende apagar, na praça da Bastilha arrasada, lembran-
ças de sublevações. Quanto a Napoleão III, ele fixa em 15 de agosto a
Os atos fundaà-ores data da festa nacional.
Quando em 6 de julho de 1880 foi instituída a festa nacional ~o 14 Após a derrota de Sedan, em 2 de setembro de 1870, a França re-
de Julho, dentro de um contexto de consagração do regime repubhcano torna à República, mas uma República paradoxalmente representada,
contra os nostálgicos da monarquia, a comemoração da tomad~ da B~­ um ano depois, por realistas, eleitos majoritariamente. Tendo aprendido
tilha pretendeu enunciar uma continuidade históri~a (~ Terceu-a Repu- a lição de Robespierre (Relatório ao Comitê de Salvação Pública de 18
blica era filha da Revolução) e ao mesmo tempo cnstahzar em tomo do floreal, ano li) a propósito do uso das festas como meio de educação
Estado a solidariedade dos cidadãos. Os vizinhos também exalta."am pública, Gambetta trabalha em seu diário La, République française, as-
sim como nos discursos que encerram os banquetes de propaganda re-
seu patriotismo após as recentes unificações da A~emanha e da lt~i~ e
publicana, pela adoção do 14 de Julho como festa nacional.
a Coroa britânica veiculava no mundo inteiro o bnlho de suas trad1çoes
Inúmeras razões pleiteiam em favor dessa escolha. Valorizando
ao mesmo tempo que os produtos de seu avanço indus~al. .
Seguindo a tradição das festas nacionais estabelecida pela Cons~1- 1789 e as Federações de 1790, apresentar-se-ia a República como o lu-
tuição de 1791, no sentido "de conservar a lembr~nça da Rev~luçao gar da reconciliação e da solidariedade frente a uma Prússia sempre
ameaçadora, brandindo a bandeira tricolor os Republicanos justificar-
francesa, manter a fraternidade entre os cidadã?s e. ligá-lo~ à Pátri~ e às
leis", 0 14 de Julho se engrandece com o imag~náno do mtto, o mtto do se-iam da acusação de comprometimento com os participantes da Co-
ato demiúrgico, originário, através do qual foi fundado um mundo no- muna de bandeira vermelha; enfim, apelando para os Direitos do ho-
mem e do cidadão, e para as origens ideológicas de 1789, ganhar-se-ia
vo. .ó. d para a causa republicana um certo número de indecisos. Conforme pro-
1789: Tomada da Bastilha, ano l da Liberdade,. v~t na .. povo º posta de Benjamim Raspail, a Câmara adota o 14 de Julho como festa
contra 0 arbítrio real, confraternização vibrante entre ci~1s e mtlitares.
14 de julho de 1790: Apoteose de um imenso m?vrmento de Fede- nacional e a lei é promulgada em 6 de julho de 1880. Mas se todos es-
- no c ampo-de- Marte · Quatorze mil pessoas vmdas de todos al
os tavam de acordo quanto à virtude das festas cívicas para confraternizar
raçao . os cidadãos, independente de suas condições sociais, tergiversou-se a
departamentos são reunidas em tom? do altar da Pátna. Os m:smos ~
tares são levantados em muitas aldeias da França, com plantaçao ~e ár propósito da data: 4 de agosto (abolição dos privilégios), 21 de setem-
vores da Liberdade, construção de arcos de triunfo e porte dos signos bro (proclamação da república em 1792) ou 14 de julho. Esta última
ven< eu definitivamente porque além das lembranças de conquista das
da potência popular: cocar, boné frígio, pique.. . .
14 de julho de 1794: Em Angers, Cahors, Reims, Rouen, Bast~as liberdades e da solidariedade cívica da Federação, ela se refere a uma
de cenário são tomadas de assalto diante de espectadores que revivem vitória política essencial: a vitória do povo sobre a realeza. Resposta
sacramentalmente 0 ato original antes de se entregarem aos prazeres da do eco: ·de agora em diante a esquerda republicana domina a direita
monárquica!
dança e do divertimento. .
Sob 0 Diretório, a festa da Concórdia de 26 mess1dor, ano VI,
A belle époque do 14 de Jldho
honra 0 exército num ritual de exibições militare~ e comemora a. c~n­
vocação em massa contra os inimigos externos e internos. O p~trt~tls­
mo aparece como unanimidade de um ~ovo na defesa de seu temtóno e O mito se enriquece entre 1880 e 1914, ao mesmo tempo que são
de seu direito após a conquista de sua liberdade. acirrados os conflitos políticos e sociais. De uma festa em relativa es-
Mas a jornada que concorreu para a glória do c~nsul ~º?aparte clerose decorre o resplendor talvez reavivado durante as efervescências
vitorioso lembra demais ao imperador Napoleão 1 uma msurreiçao con- temporárias: em 1919 após a vitória dos peludos, no Front Popular, por

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efeito da reação contra a ocupação alemã durante a segunda guerra
mundial ou pela estratégia do presidente Giscard d'Estaing. Mas como peito aos divertimentos vis do populacho, proletários coletivistas de
sublinha Rosemonde Sanson, a quem se deve a notável síntese histórica extrema esquerda que denunciam a festa da burguesia triunfante e o su-
base de nossa documentação: a belle tpoque da festa nacional situa-se focamento do sentido revolucionário do 14 de Julho pelo ritual.
entre 1880 e 1914. Apesar da alta hierarquia militar ainda conservar fiéis do Antigo
Os ingredientes do ritual são então fixados. Essencialmente "reu- Regime, o presidente Jules Grévy recupera muito habilmente os senti-
niões de caráter didático: festas leigas nas escolas, inaugurações de mentos de honra e de patriotismo do exército, para impelir os franceses
estátuas e revistas das tropas. Desde a primeira celebração, a revista é ao respeito pela autoridade, ao sentimento do dever e ao espírito de de-
apresentada como a 'atração' da jornada. A decisão é hábil. De fato, se votamento, quanto distribui bandeiras e estandartes aos regimentos re-
a escolha da data irremediavelmente suscita reticências, pelo menos a constituídos e condecorações aos que bem serviram à Pátria, antes do
política de regeneração militar é capaz de obter a concordância de to- desfile das tropas, aberto pela escola de Saint-Cyr. A partir daí, o 14
dos os franceses afligidos pela perda da Alsácia e da Lorena. Além dis- de Julho tornar-se-á a festa do exército, com seus prestigiosos unifor-
so, ficaria assim superado o fosso ideológico que separa os oficiais, mes, suas marchas de regimento, seus equipamentos específicos mar-
quase todos realistas, e a República. Mas os organizadores não esque- cando ano a ano os progressos da Defesa Nacional. O interesse atribuí-
cem de toda a gama de divertimentos dirigidos aos jovens e aos mais do às paradas militares não diminui enquanto elas são alimentadas pelo
velhos, para quem toda festa é em primeiro lugar uma ruptura com o boulangismo, pelo caso Dreyfus, pela conquista das colônias e pela
cotidiano. Após ter criticado os métodos demagógicos dos monarcas ameaça alemã. Na falta de militares a cumprimentar, as aldeias e pe-
que, para atrair as multidões durante as festas principescas, recorriam quenas cidades encontram os erstaz rutilantes: capacetes dos bombei-
aos fogos de artifício, a simulacros de batalhas, às revistas, às arengas ros, cobres do orfeão municipal. E desfilam as sociedades de ginástica,
oficiais e aos jogos grotescos e, algumas vezes, toleravam ignóbeis or- os batalhões escolares da comuna e as ligas de patriotas, todos eles ga-
gias, os iniciadores da festa de 14 de Julho retomaram as mesmas re- rantias da segurança republicana assim como os militares são os prote-
ceitas já experimentadas. Em suma, o programa cerimonial e festivo ca- tores da integridade territorial.
rece de originalidade mas conta-se com a espontaneidade dos cida- Quantas manifestações antimilitaristas se desenvolvem naquele dia
dãos" (Sanson, pp. 40-41). entre os intelectuais de tendências anarquistas e alguns sindicalistas re-
No cardápio do dia: distribuições de víveres ou de auxílio aos in- volucionários, mas elas só correspondem a ínfimas minorias que exa-
digentes pelas municipalidades assim como a Igreja fazia com os po- lam seus humores contra o exército, escola de morte e de imoralidade
bres, o embandeiramento dos edifícios públicos, inclusive as igrejas, e promotora do imperialismo e protetora da burguesia. Mas esse bemol à
dos trajetos do desfile, repicar de sinos para a abertura das festivida- unanimidade mal é escutado em meio à polifonia da liturgia onde os
des, iluminações e procissões à luz de tochas, banquetes de edis em oficiais são oficiantes e onde o espetáculo das tropas de calças verme-
torno de uma mesa simbolizando o altar da pátria, inaugurações de lhas permanece tão tranqüilizador quanto apreciado.
bustos de Mariana com barrete frígio, a Santa-Maria da República co- Após a festa militar, vêm os divertimentos populares: jogos diver-
locada sobre o altar portátil em meio a ramos de flores e feixes de ban- sos, barraquinhas, marchas à luz das tochas. Assim como na festa do
deiras, desvelados em grande pompa pelo prefeito e abrindo seus ouvi- Santíssimo, abundam as flâmulas, auriflamas, guirlandas de flores, ar-
dos de argila às arengas cívicas do organizador. cos de triunfo cheirando a tecido e a pasta de papel. Da cacofonia en-
No início certamente não faltam descontentes: curas que fazem tusiástica participam as salvas de artilharia, o repicar dos sinos, a "ma-
soar o dobre de finados para fazer ouvir sua recusa à laicização. Cam- nia das bombas", os concretos sob os quiosques e as Marselhesas al-
poneses em plena colheita que recusam abster-se de trabalhar em mea- gumas vezes parodiadas: "Aux annes charcutiers. Prenez vos tabliers.
dos de julho, realistas que instituem a contrafesta de Joana d' Are para Hachez, hachez tous les curts. Nous enfrons des pâtés!" .4 Ataviados
enunciar o sentido de seu patriotismo, burgueses desdenhosos com res- com penduricalhos tricolores, galões, cocares e penachos, os cidadãos
eventualmente participam de banquetes ditos "ágapes patrióticos" e
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continuam enchendo a cara no botequim ao ar livre. Aqui planta-se 1939: 14 de julho de divisão após a desagregação do Front Popu-
urna árvore anticruz, ali promove-se urna revoada de balões. Concursos lar. De 1940 a 1944, as tintas afetivas da festas passam do recollú-
de bola ou a justa náutica, disputa nas corridas de bicicletas, nas brigas rnento à esperança na medida em que a Resistência retorna a tocha dos
de galos, nas competições de ginástica. E para terminar, numa noite soldados do ano II.
transfigurada por urna iluminação feérica, lanternas venezianas, fogos 1945: de 14 a 16 de julho, a França festeja sua vitória e sua liber-
de bengala e peças pirotécnicas, os bailes populares celebram a intimi- dade através dos desfiles de militares e resistentes que promovem tem-
dade republicana, urna intimidade de subúrbio que nove meses mais pestades de aclamações em meio à profusão de bandeiras. O regozijo
tarde faz eclodir as flores de França. popular na festa é interpretado corno descarga das pressões do perigo e
da violência anterior.
Do fervor ao folclore De quarenta anos para cá, a festa paradoxalmente degenerou, ao
mesmo tempo que foi tornada pela civilização do lazer. Nada de entu-
As variantes locais da festa nem alteram a sua trama nem o seu siasmo republicano marcado por urna proliferação de bandeiras e insíg-
tom. As variantes temporais (tempos fortes, tempos fracos) são instruti- nias! Urna revista, é verdade, mas apreciada na televisão! Um interesse,
vas para esclarecer a dinâmica geral das liturgias políticas. certamente, porém mais acentuado na esquerda do que na direita! Bai-
1890: Já dez anos após o rito inaugural! Entusiasmo e participação les ainda, mas as discotecas dos hotéis de turismo a cada noite também
decrescem em virtude: 1) de um relativo desgaste por ausência de re- transbordando de clientes! Abandonadas as tochas para dar lugar aos
novamento da ritualização; 2) da redução dos créditos e simultanea- fogos de artifício, sem dúvida, mas com grupos mesquinhos de cida-
mente das decorações e espetáculos pela comissão das festas; 3) pelo dãos que perderam sua flama cívica. O que é 1789 para uma parte da
firme estabelecimento do regime republicano que já não tem mais tanta juventude? O espetáculo da Fábrica de Cartuchos de Vincennes repre-
necessidade do credo de seus fiéis; 4) da tendência dos habitantes das sentado pela Compagnie du Soleil. O mestre não é mais o apóstolo da
cidades para abandonar seu ambiente costumeiro para um passeio ao religião patriótica. Segundo Agnes Yilladary, 47% dos jovens desertam
campo nesse feriado. Mas nos campos franceses, pelo contrário, a cele- as cerimônias oficiais de 14 de Julho (Villadary, p. 123).
bração do 14 de Julho se amplia na medida em que se estende o radi- De vez em quando, as lutas políticas do momento ainda suscitam
calismo. algumas vibrações nos órgãos da imprensa do Partido Comunista que
1915: Por estarem os peludos nofront, são proibidos os banquetes, lembram o papel das massas nas mutações históricas. Em 1953, odes-
bailes, fogos de artifício e festejos públicos. file termina em escaramuças opondo os norte-africanos anticolonialistas
1919: A data de 14 de Julho foi escollúda para o desfile da Vitó- às forças legais. Em 1958, de Gaulle escolhe o 14 de Julho para anun-
ria. O 11 de novembro será o dia do recollúrnento. Vencida a basti- ciar seu projeto de urna Comunidade Francesa. A partir de 1961, gru-
lha germânica, retornada a Alsácia e a Lorena, ovaciona-se magnifica- pos de rnajorettes, copiados dos Estados Unidos, acrescentam um bri-
mente o exército salvador corno observa com lirismo Maurice Barres lho feminino aos desfiles de combatentes homens que já não têm gran-
emL'EchodeParisde 15dejulhode 1919. de coisa a combater. Em 1972 e 1973, os partidários da esquerda fes-
1935: A coalizão da esquerda que deseja consagrar a Reunião Po- tejam seu antimilitarismo nos Causses du Larzac.
pular dá nova vida ao mito revolucionário dos cidadãos em armas e da Em 1974, o segundo impulso tentado pelo presidente Giscard
tornada do poder pelas massas contra o perigo fascista. Em Montrouge, d'Estaing, recentemente eleito, à festa do 14 de Julho, escolhendo o
na manhã do 14 de julho, realizam-se as "Sessões da paz e da liberda- itinerário Bastilha-República para o desfile, e modificando a disposição
de". De tarde, 500.000 manifestantes desfilam pelo significativo traje- das cerimônias, nada mais consegue do que provocar urna vaga ironia
to: Bastilha-Nação. Durante o período do Front Popular, as bandeiras tanto na esquerda comunista quanto na extrema direita. Estratégia para
vermelhas misturam-se às tricolores e os slogans partidários aos slo- dotar " o regime de um certificado de batismo revolucionário", diz R.
gans patrióticos. Sanson (Sanson, p. 165).

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Em suma, a reconciliação cívica permanece artificial. O Circuito B/ UMA FESTA SOCIALISTA DO TRABALHO: O 1\? DE MAIO
da França, naquele dia, obtém maior atenção. Institucionalizada de-
mais, a festa sossobra no show ou provoca a contestação. Popular de- Uma instituição de militantes socialistas
mais, ela só interessa às pessoas de condição modesta. Para reavivá-la
localmente, uma municipalidade comunista mistura à sua propaganda a
do baile-quermesse que organiza. Lille junta os gigantes de seu Carna- Da mesma maneira que a festa do 14 de Julho é melhor compreen-
val a um dos desfiles, e as culturas regionais se autenticam através de dida pelo estudo da atmosfera política da época de sua institucionaliza-
um F est Noz bretão aqui, uma competição de pelota basca, de bola an- ção, a festa proletária e socialista do 12 de Maio se esclarece através do
gevina ou de petanque ali. Entretanto não resta dúvida de que o folcló- contexto sociológico no momento do acontecimento fundador: estratifi-
rico é apenas uma modalidade do recreativo quando o filão cívico está cação em classes criada pela civilização industrial, e um movimento
esgotado e a ressurgência inconsciente de hábitos festivos imemoriais operário que pretende, mesmo reduzido apenas à representação de uma
ligados à estação das colheitas não está. parte da sociedade, internacionalizar seus valores, suas palavras de or-
dem, sua ideologia, fazendo da manifestação de união dos trabalhado-
Quando de sua instituição, a festa cívica de 14 de Julho corres- resuma forma de expressar as reivindicações proletárias.
pondeu a intenções determinadas, como observa Jean Duvignaud: "A 1 Desde meados do século XIX, reivindica-se nos Estados Unidos
comemoração nacional está dirigida para o 'povo' de quem pretende
promover a educação política ensinando-lhe ao mesmo tempo a grande-
l da América a redução da jornada de trabalho a oito horas, o que
é obtido pelas Obras Públicas em 1868. Durante o Congresso da Ame-
za do passado, a serventia da unanimidade coletiva, do respeito das rican Federation of Labour, na cidade de Chicago em 1884, por pro-
instituições e das autoridades atuais, a vacuidade da violência ou dos posta de um certo Gabriel Edmonton, militante dos sindicatos de car-
desacordos políticos" (Duvignaud, in Dumur, p. 259). À semelhança pinteiros e marceneiros, o comitê executivo decide fixar a jornada de
da festa da Federação, das paradas de Napoleão III ou das festas jubila- trabalho em oito horas para todas as organizações operárias a partir do
res da rainha Vitória, a oficialização do 14 de Julho como festa nacio- l~ de maio de 1886 (mas trabalha-se sábado). A greve será utilizada
nal serve também para desviar a atenção dos conflitos internos e para como arma para coagir os empregadores que se recusarem a obedecer
focalizá-la na concórdia aparente através da participação dos cidadãos a resolução (corporativa e não socialista) do Congresso. Após greves
no cerimonial cívico, nos ritos militares e no júbilo popular. A Nação violentas em março de 1886, é repetida no 12 de Maio do mesmo ano,
se oferece em representação a ela mesma numa festa laica que tem co- em manifestações e passeatas, a seguinte palavra de ordem: "A partir
mo acessórios diversos símbolos de liberdade e de identidade nacional, de hoje nenhum operário deve trabalhar mais do que oito horas por
utilizando as artes, o espetáculo, os combates e os jogos como meios dia! Oito horas de trabalho! Oito horas de repouso! Oito horas de
para tomar as pessoas felizes. educação!" Segundo M. Dommanget, a quem devemos a obra de refe-
Mas o caráter da celebração reflete o contexto político da época: an- rência, Histoire du Premier Mai, teria havido 5.000 greves e 340.000
timonarquismo e anticlericalismo, pátria em perigo, fervores socialistas grevistas; 125.000 operários teriam obtido as oito horas reclamadas.
do Front Popular, renovação giscardiana, ressurreição das culturas regio- Prolongando-se as greves, incidentes sangrentos (fuzilaria com seis
nais. Da avaliação histórica ressalta também que o mito da Liberdade vítimas em 3 de maio de 1886, bomba matando oito policiais dia 4,
conquistada pela Revolução se desmorona na medida em que o regime re- enforcamento de cinco militantes considerados responsáveis, dia 11 de
publicano adquire estabilidade. Simultaneamente, o rito da revista e da novembro de 1887) fornecem a substância passional que confere ao 12
entrega de condecorações perde seu interesse em proveito do diverti- de Maio o valor de gesto exemplar arquetípico fundador de uma li-
mento popular. A função pedagógica e ideológica da festa laica desapare- turgia.
ce então diante do aspecto de dia feriado. O esporte obtém maior receita Durante o Congresso Internacional Sindical de Londres em 1888,
do que o espetáculo alegórico, e a distração mais do que a militância. o belga Edouard Anecele pede que o apelo à união de todos os proletá-

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rios se concretize através de uma manifestação em 1!? de maio, em to- Por que, contrariando a opinião de muitos militantes socialistas,
das as partes do mundo onde exista liberdade de associação. Em julho essa manifestação foi chamada "Festa" do Trabalho? Porque, para não
do ano seguinte é a vez do Congresso Socialista realizado em Paris de- amendrontar os não-socialistas, era conveniente sublinhar com o termo
cidir generalizar em todos os países e em todas as cidades, no mesmo o caráter pacífico da jornada. Esta bem rapidamente tornou-se, fora das
dia a cada ano, essa demonstração de força operária. Assim eclode a cidades operárias, como na Suécia onde já era meio-feriado, uma jor-
"Festa do Trabalho" num clima de luta operária recuperada pelos par- nada de descanso ... , sempre boa para se aproveitar.
tidos socialistas que organizam seu ritual segundo os meios clássicos Diante da festa nacional de 14 de Julho de caráter patriótico e
da mobilização: cortejos com bandeiras, insígnias, emblemas, flâmulas, "burguês" segundo os proletários, a festa de 12 de Maio é demarcada
as quais ajudam na identificação dos participantes, hinos, cantos, slc- por seu caráter de luta operária, patente no vocabulário polemológico
gans, folhetos com o intuito de afirmar um sentimento de vínculo e de do socialismo: front, combate, vitória, tática, ação de retaguarda ... e
ganhar simpatizantes. Passeatas nas quais as idéias básicas do movi- pela escolha de símbolos exclusivos: A Internacional e não A Marse-
mento se amplificam através dos discursos, entrega solene de petições lhesa, a bandeira vermelha e não a bandeira tricolor. As mulheres usam
às autoridades por delegações sindicais, cumprimentos com punhos cer- a fita vermelha. De acordo com as regiões e as modas locais, a papoula
rados. ou o cravo vermelho será preferido; em Lancashire, a rosa silvestre; na
Nas franjas desse movimento socialista, alguns anarquistas apro- França de 1906, o pilriteiro. Mas a partir de 1908 o junquilho, muito
veitam-se da manifestação, em Fourmies ou em Lodz~ para passar da cultivado na Ile-de-France, parece levar vantagem como flor-amuleto.
violência simbólica à violência real, e em muitos lugares acontece de a Suas campainhas soam tempos melhores para a classe operária, não o
manifestação ternúnar em combates mortais. aburguesamento, mas a melhoria de suas condições, e em conseqüência
Alguns militantes blanquistas em 1895 recusam-se a "canonizar a o enfraquecimento da violência reivindicatória.
data" de 1!? de maio e outros propõem como dia de reunião o do ani- De 1897 a 1899, diz ainda Dommanget, "nenhum grande feito vem
versário ou do massacre dos participantes de Comuna, ou de uma das ilustrar uma jornada que perdura, parece, por tradição, por hábito, em
jornadas revolucionárias de 1793. Mas, neste caso, a sacralização litúr- virtude da velocidade adquirida e como um rito sem conseqüência no
gica da data seria menor? A escolha do 1!? de Maio pode ser explicada calendário das manifestações operárias" (Dommanget, p. 191). O pró-
pelo peso do exemplo americano. Este dia corresponde ao Moving Day prio Aristide Briand vê o 1!? de Maio como "pretexto para banquetes,
dos estados da Pennsylvania e de Nova Iorque, data em que se inicia- bailaricos ou discurseiras". Mais do que o desfile, desordenado, unitá-
vam as locações, arrendamentos e contratos de trabalho anuais. Dom- rio ou não, dos sindicatos numa atmosfera social pacificada, os traba-
manget, que fornece essa explicação, lembra também, além do maio lhadores apaixonam-se pelo passeio ao campo naquele dia, pela corrida
cristão e do mês de Maria, os hábitos de plantação das "árvores de de garçons ou pela eleição da mais encantadora "rainha do trabalho".
maio", da pesagem das moças, das rainhas de maio: "A festa do Tra- As situações são tão diversas quanto as histórias locais.
balho, escreve ele, nasceu sob uma boa estrela, nos países ocidentais,
porque ela pode se apoiar sem dificuldade nos velhos costumes relati- O "J'! de Maio" em Charleroi
vos à ressurreição da natureza ( ... ) Em todo caso, o fato de o 12 de
maio ter caído na época do ano que representa a magia do novo só au- O exemplo de Charleroi na Bélgica, estudado por Albert Piette de
menta o seu caráter simbólico e o seu coeficiente de afetividade" quem utilizamos informações inéditas, permitirá refinar a análise da di-
(Dommanget, pp. 328-329). Mas a data não foi escolhida para lembrar nâmica histórica de uma festa assim periodizada por ele: 1890-1914, a
a "Festa da Natureza visível" (l!? de maio) proposta por Lakanal em festa é a expressão de um milenarismo político: entre as duas guerras,
junho de 1793 em nome do Comitê de Instrução pública, nem em refe- ela traduz sobretudo uma ideologia do progresso social e depois dra-
rência à "Festa do Trabalho" sugerida por Fabre d'Eglantine em seu matiza a crise sócio-econômica; após a segunda guerra mundial, uma
relatório à Convenção de 1793. vez legalizada em 1947, a festa de 12 de Maio, identificada a um dia de

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folga para todos, perde o seu significado original de celebração do Em seguida à primeira guerra mundial, tendo sido recompostos os
"contra-Estado" socialista e busca novos significados. direitos sindicais e jã que o Partido Socialista faz parte do governo e
O movimento operário em Charleroi aparece de 1884 a 1894 for- que o sufrágio universal e a jornada de oito horas foram obtidos, a di-
temente ligado a uma sociedade secreta: a Cavalaria do Trabalho, e a mensão projetiva da festa se apaga sob o seu aspecto retrospectivo.
um líder carismático, Jean Callewaert. Durante uma greve de vidreiros 1919: desfile dos soldados da batalha do Yser uniformizados ao som da
em Charleroi em 1884, realiza-se a afiliação dessa "aristocracia operá- Internacional. 1922: cortejo de ginastas com faixas vermelhas na cintu-
ria", de confortáveis salários, à "Noble Order of the Knights of La- ra. 1927: discursos de caráter nitidamente comemorativo. 1928: atribui-
bor" criada em 1869 na cidade de Filadélfia. Esta associação que utili- ção dos lucros da festa a diversas organizações socialistas. Símbolo de
za o segredo e o esoterismo para defender a causa dos trabalhadores, e uma mudança de condição: o chapéu de feltro do operário substitui o
fundamenta-se como muitas outras sociedades da época numa filosofia barrete.
de fratenúdade e de solidariedade universal, criou seções no estrangei- Nos anos 30, momento em que a crise econômica causa estragos, a
ro. Ap6s os vidreiros, aderem a ela os mineiros, incentivados por Cal- Festa do Trabalho, com efetivos duas vezes superiores (cerca de
lewaert, atraídos pelo aspecto simbólico e místico da Ordem, e levados 20.000) aos da década precedente, retoma sua dimensão fortemente
assim a destacar-se do Partido Operário Belga, cuja atitude era consi- reivindicatória. De forma ainda mais poderosa, porque os socialistas
derada muito medrosa. (excluindo os comunistas dos desfiles) adquiriram sua legitimidade go-
vernamental propondo, num drama político, remédios concretos para a
Em 1890, após uma greve vitoriosa lançada pelos Cavaleiros do
depressão: aumento da idade de escolarização, diminuição da idade pa-
Trabalho (tendo-se omitido dela o Partido Operário Belga), o cortejo
ra recebimento de pensão, redução para 40 horas semanais de trabalho.
do 12 de Maio é uma procissão de súnbolos para a glória da Ordem,
As flâmulas de 1934 cantam um lamento em várias vozes. À dor das
Callewaert à frente paramentado com seus graus e insígnias: fita ver-
mulheres: "Viver tomou-se um martírio, nossos filhos têm fome", res-
melha guarnecida de dourado, roseta, globo da fratenúdade universal.
ponde em contraponto a advertência dos assalariados do serviço públi-
Entre os 20.000 participantes, onde os mineiros aparecem com seus
co: "Agricultor, a ruína está à sua espreita", e o grito dos desemprega-
instrumentos de trabalho e algumas fanfarras, canta-se A Marselhesa e
dos: "Não queremos esmolas, queremos trabalho".
desfralda-se a bandeira francesa (adotada pelo Partido Socialista Repu-
Os caracteres sucessivos da festa são assim pertinentemente resu-
blicano, dissidente do Partido Operário Belga). A bandeira vermelha e
midos por A. Piette: "Em sua primeira fase, o 12 de Maio aparecia so-
as flâmulas exigem a jornada de oito horas.
bretudo como um ritual de encantação, trans{)<' tando o futuro dentro
Mas em 1891, greves sem resultado roubam crédito aos Cavaleiros, do presente e depois, no tempo das reformas sociais do p6s-guerra,
enquanto o Partido Operário Belga recupera terreno na V alônia e a rei- como uma celebração da alegria pelas vitórias obtidas. Nos anos de cri-
vindicação do sufrágio universal aumenta o crédito do Partido Socia- se e de atualidade social crítica, o 12 de Maio apresenta-se como um
lista. Em 12 de maio de 1895 é divulgado o "catecismo socialista" com pilar na estratégia governamental socialista". Após a segunda guerra
seus valores exaltados e as proposições capitalistas combatidas. Uma mundial, o 12 de Maio é legalizado como festa sem obrigação de tra-
flor vermelha ornamenta as lapelas. Em faixas de pano lê-se: "Viva os balho e remunerada a partir de 1947. "Num país em vias de desindus-
socialistas". Os livres-pensadores portam seus estandartes. . . Em 12 de trialização, com um socialismo aberto ao setor terciário, penetrado pe-
maio de 1898, a iconografia viva dos carros enuncia aquilo que triunfa: los compromissos governamentais e algumas vezes alterado pela oposi-
Mariana, com a tocha da liberdade numa das mãos e na outra uma es- ção partido-sindicato, a tomada de consciência da classe operária só
pada quebrada, "o socialismo abolirá a guerra". Outras alegorias: o su- poderia enfraquecer-se. Muitos slogans ressoam desde então no vazio:
frágio universal esmagando a "hidra reacionária"; na frente do cortejo, "Saúde gratuita para os velhos" ou "Áreas de lazer para as crianças".
a rainha é carregada por dois robustos operários. Significado inscrito: Como o Partido Socialista perde o controle político dos sindicatos,
"O socialismo é o futuro". ocorrem duas manifestações diferentes em 12 de maio de 1947, uma

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delas dirigida pelos sindicatos cristãos. Em 1949 vence o espetáculo, tejo, ap6s teatralizar as vit6rias militares e operárias, é vivido como um
com um cortejo de carros representando as profissões mais numerosas drama político da crise econômica geral que golpeia violentamente a
em Charleroi: mineiros, metalúrgicos, agentes do serviço público. Em região mineradora. Mas o aspecto festivo e lúdico assume uma impor-
1961, tudo está focalizado em tomo da juventude: crianças, estudantes, tância cada vez maior, especialmente ap6s 1937, como testemunham os
JGS, Falcões Vermelhos, afirmam seu orgulho de ser socialista e exi- bailes, corridas de bicicletas, sessões de teatro ... , descritas pelo Jour-
gem escolas gratuitas. Enfim, a temática da época (desemprego, contra- nal de Charleroi.
cepção, greves, subdesenvolvimento... ) atravessa a animação cultural 3 / Logo ap6s a segunda guerra, os sindicatos se distanciam de um
dos 1!! de Maio dos anos 80, que utiliza os meios da época: exposições, Partido Socialista que participa do governo. A diversidade das mani-
filmes, shows de cantores... , para proclamar entre outras coisas a hos- festações fragmentadas e partidárias do l z de Maio em Charleroi reflete
tilidade dos socialistas à coalizão cristã-liberal no poder. O observador os confrontos políticos dos belgas. A co-presença não comunal dos
do cortejo de 1986 percebe sem condescendência o atraso da simb6lica participantes do cortejo, seu aspecto desordenado e apressado, a quase-
com relação à realidade social, a heterogeneidade dos grupos vindos do ausência de espectadores fazem com que se perceba o desengajamento
cantão que não estão .tnidos por uma forte vida associativa, o lado "in- da população mais ávida de descanso privado do que de grandes missas
gênuo" do cortejo de tagarelas, mãos nos bolsos, seguindo através de coletivas.
uma volta hiper-rápida pela cidade algumas fileiras de dirigentes socia-
listas e sindicais, o condimento lúdico dos balões, atados às coleiras de A páscoa dos trabalhadores
cães, que inflam reivindicações: "Não toquem na escola pública",
"Não toquem na Previdência Social". Através do cortejo desordenado Entretanto não resta dúvida de que o socialismo brotara inicial-
lê-se o desengajamento, enquanto, nesse mesmo dia, para lutar contra o mente como um rebento de religiosidade num tronco popular onde
monop6lio do Partido Socialista sobre o cortejo e o espetáculo, os ou- germinava naturalmente o gosto pela festa e pelo rito. Cedendo à incli-
tros partidos às vezes realizam minicongressos para denunciar a inca- nação natural para a sacralização, o mundo anticlerical do século XIX
pacidade dos socialistas em propor uma política alternativa que tenha reutiliza, transpondo-o, o vocabulário cristão para expressar seus sen-
credibilidade. timentos. Drachkovitch, Dommanget e L. Moulin recolhem a seguinte
Em seu percurso através dos 12 de Maio de Charleroi, como leitor antologia entre os liturgistas do socialismo de finais do século XIX:
de jornais e observador de campo, A. Piette destaca três tipos hist6ri- "Minha religião é o socialismo; s6 nele encontro a verdade, a moral,
cos de configuração festiva, a partir de uma transposição da semi6tica a justiça e a fraternidade" (A.Labriola). Existe uma páscoa para os ca-
de Greimas em torno dos eixos sério versus lúdico. Sem entrar em de- t6licos, agora haverá uma páscoa para os trabalhadores" (A. Costa). O
talhes, nem usar esse quadro, é possível esquematizar assim: 12 de Maio é visto por E. Vandervelde como uma "renovação do mila-
1 I Antes de 1914, o Partido Socialista, carente de crédito e dele- gre de Pentecostes", pois os povos mais diversos conseguem compre-
gitimidade, expressa numa mensagem messiânica a sociedade socialista ender-se "graças a esse novo Espfrito Santo: o socialismo". No desejo
ideal. O cortejo de l !:? de Maio, como elemento lúdico de participação, de Eduard Bernstein (1905): "É preciso que o lZ de Maio seja uma
é vivido como ritual se encantamento visando a realização dessa socie- ( ... ) festa popular" semelhante às festas religiosas antigas, Domman-
dade ideal ... get responde "Amen" . .. Assim como o recurso ao simbolismo e à ale-
2 I No entreguerras, o Partido, inserido no tabuleiro de xadrez go- goria: a Paz, a Humanidade, o Proletariado... , faz lembrar entre os
vernamental, tem um interesse ao mesmo tempo estratégico e ideol6gi- agn6sticos as formas de expressão da arte cristã, os "Catecismos do
co em valorizar através da comemoração verbal o resultado das ações Povo" (Delhasse, 1838; Tedesco, 1848; Defuisseaux, 1886). Os dez
por ele conduzidas: jornada de trabalho de oito horas', sufrágio univer- mandamentos do socialismo, os ritos de passagem: atribuição batismal
sal, auxílio às vítimas de catástrofes nas minas, criação de sociedades do nome de "Primo Maggio" a italianos nascidos em 12 de maio (da
de ginástica e incentivo às greves para o aumento dos salários. O cor- mesma forma que os africanos denominam "Fête Nat" aos nascidos em

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14 de julho), uso da toga com o pretexto da puberdade, casamentos 14 de Julho l'! de Maio
vermelhos e enterros civis, são remanescências de um cristianismo lai-
cizado e secularizado.
Se "o socialismo possui seus apóstolos, seus profetas, seus santos 1. Contexto do nascimento
e seus mártires", como escreve Henri de Man, esquecendo seus heréti- Sacralização da República. Movimento de revolta social,
cos (Briand, Millerand, Doriot, Déat, Mussolini e ele mesmo ...), suas esperanças.
peregrinações (aos muros dos Federados), suas pias batismais, suas
ruas, suas praças, suas singelezas vestimentares à Jaures, suas meda-
2. Extensão
lhas, seus chapéus, suas barbas à Bebei. .. , ele possui sobretudo o seu
sistema de finalidades últimas que conferem sentido à vida e consti- Festa cívica exclusivamente Festa operária de caráter
tuem padrões de referência para apreciar acontecimentos e ações. Para francesa. internacional.
atingir a finalidade suprema - a realização de uma comunidade livre e
fraterna dos homens ~través da supressão da luta de classes -, o plano 3. lntuito
de salvação passa por meios tais como a revolução e a adesão ao parti-
do, seção eleita desta humanidade. A análise do profetismo de Marx, Expressão da concórdia entre os Melhoria da sorte dos trabalhadores
realizado por Joseph Schumpeter em Capitalisme, socialisme et dlmo- cidadãos e do bom funcionamento e preparação da luta final.
cratie, vale também para o próprio socialismo, de que o marxismo é das instituições.
uma das expressões mais radicais. Assim como numa religião, a dissi-
dência não é apenas erro, mas culpa a ser reconhecida, o que explica as 4. Tipo de festa
muitas frases incandescentes, acusações apaixonadas e atitudes vinga-
Retrospectiva e comemorativa. Projetiva e reivindicatória.
tivas nos discursos proféticos dos socialistas do século XIX. Aos ul-
trajados e aos infelizes o socialismo oferece o discurso terapêutico que
eles desejam para reassumir, nesse século positivista, o que resta no 5. Rito principal
homem de aspirações extra-racionais não satisfeitas por uma religião A revista militar, exaltação da O cortejo de partidários, de
em declínio.
ordem e da força nacional. sindicalistas e simpatizantes.
Festas nacionais frente a frente 6. Ritos secundários
Ágapes republicanos e divertimentos Meetings ideológicos e jogos
No entanto, desde que o 12 de Maio se tornou, após 1947 na Fran- populares. populares.
ça, festa nacional e feriado remunerado semelhante ao 14 de Julho, ele
não parece ter mais a mesma faceta exclusivamente socialista de outro-
ra. Ritos bastante idênticos em ambas as festas - desfile, jogos popula- 7. Símbolos maiores
res para os participantes, fuga para fora dos locais de trabalho para as Mariana, a bandeira tricolor, A Humanidade, a bandeira vermelha,
demais pessoas - tendem a banalizá-las. Mas será que então as especi- A Marselhesa. A Internacional.
ficidades de cada uma foram apagadas? O quadro seguinte recordará as
diferenças sublinhadas pela nossa análise:
8. Variações epis6dicas
Segundo a atmosfera política. Segundo os acasos
socioeconômicos.

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9. Ofensas expressadas
1 I O desaparecimento dos fervores ongmais, pelo esgotamento
Festa burguesa. Festa da divisão dos cidadãos. de protocolos centenários e pela erosão do rito através do tempo.
2 I A perda do sentido do rito pela satisfação das esperanças e
10. Perturbaçiio da festa promessas que sustentavam os combates pela democracia e pelo forta-
Por anarquistas, guesdistas e lecimento do regime republicano, ou contra o estado de desamparo do
Pela esquerda hiper-revolucionária
antimilitaristas. proletariado que não está mais em vias de pauperização absoluta. Após
ou pelos reacionários agressivos.
a obtenção das oito horas, das 3 x 8, do SMIG, da quinta semana de fé-
rias remuneradas, da dupla ou da tripla remuneração pelas férias, e até
Mesmo que inicialmente tenham sido celebrações cívicas ou socia-
mesmo da co-gestão, não se poderia suscitar uma ardente mobilização
listas, o 14 de Julho e o 12 de Maio tornaram-se ambas festas ditas fe- pela semana de trinta ou de trinta e cinco hora;,.
riados nacionais na França. Ambas foram instauradas no último quartel 3 I O recuo para um horizonte longínquo das esperanças susten-
do século XIX por ateus hostis a toda religiosidade, que erigiram está- tadas por um discurso utópico. É verdade que lutamos contra as demis-
tuas de Mariana nas prefeituras e de Edouard Anseele em Gand, e co- sões e as ameaças de desemprego, mas sabendo o desemprego ao mes-
locaram Jaures no Panteão junto com outras glórias nacionais. Em al- mo tempo técnico e estrutural e percebendo, pelo menos quando não
gum momento ambas se aproveitaram do apoio da franco-maçonaria, nos diz respeito, a necessidade de uma mobilidade profissional exigida
misturando sua simbologia à da Terceira República (prumo) e do so- pelas mutações técnicas do final do século presente.
cialismo (mãos entrelaçadas), e seu ritual ao da classe operária, como E assim como a sociedade mudou - homens, partidos, relações de
demonstra a participação festiva da loja "A Escola Mútua de Paris" na força -, os próprios socialistas tornaram-se não apenas os defensores
Festa do Trabalho de 1893. dos direitos adquiridos e algumas vezes de certos privilégios de grupos
Ambas proclamam o mito da mudança radical: instauração da Re- ou de classe, mas também, junto com outros, os gestores da crise mun-
pública sobre as rufuas do despotismo real para uma, sociedade sem dial. Seu slogan dos anos 30: "Pão, Paz, Liberdade", cabe agora aos
Juta de classes para a outra: "Do passado façamos tábuJa rasa. O mun- terceiro-mundistas.
do vai mudar de base", afirma A Internacional. Ambas sacrificam ao
rito da parada-cortejo, antes de mudar-se em regozijo popular: espetá- BIBUOGRAFIA
culos, concertos, partidas, jogos diversos. Na URSS, o 12 de Maio é
tão semelhante ao nosso 14 de Julho que é até mesmo ocasião de um Agulhon, Maurice, Marianne au combat, Paris, Flammarion, 1979.
desfile militar; mas é verdade que os defensores da pátria são conside- Bessonet-Favre, Lesfêtes républicaines depuis 1799 jusqu'à nosjour, Paris, Ge-
rados como trabalhadores e que todo trabalhador deve ser um militante, dalge, 1909.
guardião da integridade ao mesmo tempo do socialismo e de seus bas- Chambart, Pierre, La messe républicaine, Traverses, n~ 21-22, 1981, "La céré-
tiões territoriais. Finalmente, onde o Partido é o Estado como iremos monie", pp. 196-204.
perceber a diferença entre festa cívica e festa partidária? Onde o Esta- Dommanget, Marcel, Histoire du Premier Mai, Paris, Société Universitaire d'E-
do coordena as festas e pode obrigar os cidadãos a participar delas, não dition et de Libraire, 1953.
seria possível testar a realidade da adesão do povo às suas liturgias na- Dumur, Guy, Histoire des spectacles, Paris, Gallimard, 1965. Cf. o capítulo de
cionais. Jean Duvignaud: "La fête civique".
Mas na França de hoje, parece que o estiolamento das liturgias po- Nora, Pierre (ed.), Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1984, t. 1.
líticas, legível nos lamentáveis cortejos de 12 de Maio e da reduzida Piette, Albert, Fête en Wallonie, Université de Paris V, 1987, tese de doutorado
multidão de espectadores à parada de 14 de Julho nos Campos Elíseos, não publicada.
segue uma dinâmica de declfuio correlativa ao formalismo que se apo- Sanson, Rosemonde, Les 14 juillet,fête et conscience nationale, 1789-1975, Pa-
dera do rito, essencialmente por três razões: ris, Flammarion, 1976.
Villadary, Agnés, Fête et vie quotiedienne, Paris, Ed. Ouvrieres, 1968.
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Em seguida a uma amarga hecatombe desenvolveu-se o culto dos
CAPÍTULO III mortos, associado ao culto do sangue. A grande insegurança econômi-
ca, política e cultural da Alemanha ap6s a primeira guerra mundial fora
um tempo favorável à emergência de um grande mestre de cerimônia
DA DIREITA À ESQUERDA: dos vaticínios patéticos. Hitler, num momento doloroso para um país
LITURGIAS DOS TOTALITARISMOS desamparado, selou com sua voz de oráculo o destino do povo alemão.
Um rito testemunha o triunfo do regime sobre os criadores de insegu-
rança política, como narra Jean-Pierre Sironneau: "No Congresso do
Partido em Nuremberg, exibia-se a 'bandeira ensangüentada' manchada
pelo sangue dos mártires tombados durante o putsch fracassado de
Seria temeridade ou fantasia condenável apresentar no mesmo ca- 1923. Durante a cerimônia dita da 'bênção dos estandartes' no decorrer
pítulo - diríamos tal vez entrelaçadas - as liturgias nacional-socialistas deste Congresso, Hitler tomava em suas mãos a relíquia sagrada e to-
e socialistas-internacionais, ou seja nazistas e soviéticas! Elas na ver- cava a nova bandeira como para comunicar-lhe a força mágica do anti-
dade correspondem a sociedades industriais que proclamam suas dife- go fetiche. Depois pronunciava o juramento de fidelidade aos mortos
renças e essas diferenças são diferenças de fundamento. Umas tiveram enquanto os jovens cantavam: 'Nossa bandeira é mais forte do que a
curta duração, outras parecem eternas. morte (... )'. Em 9 de novembro em Munique, dia do aniversário do
É verdade que ao nível dos intuitos políticos (exceto o expansio- putsch de 1923 ( ...), dois templos da Kõnigsplatz de Munique abriga-
nismo), os sistemas se reconhecem em conflito. Mas os inimigos são vam os dezesseis sarcófagos contendo os restos dos primeiros mártires
irmãos. E ambos são promotores de guerras e de explosões. Mas no do movimento. Uma marcha solene foi realizada da Kõnigsplatz até a
plano dos meios de ação quantas analogias! O hipercontrole estatal e a Feldhermhalle, lugar onde haviam sido desfechados os tiros. Ali, Hitler
mobilização seguem lado a lado com a ritualização: cortejos, meetings, subiu os degraus cobertos por um tapete vermelho e, de braço erguido,
arengas, protocolos, símbolos... , como em toda parte, mas para uma celebrou o sacriffcio perfeito das testemunhas do sangue" (Sironneau,
exaltação limite. Como se o excesso de decoro e de rigor fosse a marca p. 313). A seqüência da história foi testemunha em vermelho sangue e
do totalitarismo! Como se o apogeu das liturgias políticas estivesse na em negro.
negação das religiões de caridade para substituí-las por uma religião do Mártires, bênçãos, sacrifício... , ressoam como termos religiosos.
orgulho nacional ou de uma pseudo-igualdade internacional. Mas são apenas indicadores de uma profunda tendência para utilizar o
Sim, o Ocidente, nascido do Egeu assim como as Hegemonias gre- vocabulário da religião cristã. A colheita nos textos da época obtém um
gas, foi mesmo o berço dos contrários: a ditadura e a democracia, e o magnífico feixe: "o sacramento do nosso combate"; "o juramento é ...
cadinho por vezes explosivo dos complementares: a Igreja e o Estado. a prece de todos ao nosso criador"; "as fontes batismais do Reich"; "a
peregrinação dos grandes homens"; "percebemos a atmosfera sagra-
da"; "o Führer levante a mão para uma saudação eterna" (Sironneau,
A / LITURGIAS DO NACIONAL-SOCIALISMO p. 314).
Ap6s um desejo inicial de conciliação do cristianismo (purgado do
Uma dramaturgia do sangue e da morte judaísmo) com as crenças na superioridade da raça ariana, Hitler num
certo momento pretendeu subverter a religião desde o interior, e depois
Não poderíamos compreender como a irracionalidade das crenças extirpá-la da Alemenha, substituindo-a pelo culto da Nação, dos heróis
nazistas pôde propagar-se e traduzir-se em imensos ritos durante o e do sangue germânico.
tempo tão curto e tão tumultuado do Terceiro Reich, se não considerás- Mas como a religiosidade da educação primária permanecia, a so-
semos uma situação de derrota e uma ausência de tradições verdadei- lução consistiu em modificar o fundo conservando uma certa forma. No
ramente democráticas.
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Natal, junto com o solstício de inverno, por que não celebrar o nasci-
auditório reduzido de uma ágora ou de uma catedral, os novos meios de
mento do salvador heróico? Na Páscoa, a ressurreição do povo alemão
difusão pelo som e pela imagem ampliavam o efeito de choque provo-
de sangue puro? A cruz passará a ser gamada, e o "Eu creio na Alema-
cando a reação de milhões de auditores num mesmo momento. Eles
nha eterna" substituirá o súnbolo de Nicéia. E será recitado na festa
permitiam, através da película cinematográfica, da onda sonora e da
das Colheitas.
imprensa, repetir a comoção original. A comunhão das massas talvez
Da mesma forma que o calendário dos Republicanos de 1794 re-
não tivesse tão bons resultados, se a propaganda não fosse dirigida a
velava os valores de um regime, as festas anuais nazistas proclamavam
indivíduos em sua maioria urbanizados, portanto isolados, atomizados
uma ideologia glorificadora da Natureza: solstício de inverno (25 de
pela derrota e pela crise, sofrendo uma espécie de nostalgia da vida
dezembro), solstício de verão (21 de junho); da fecundidade germânica:
comunitária. Algumas fagulhas de política, numa Alemanha romântica,
festa das Colheitas (fim de setembro) e festa das Mães (início de maio);
de latências passionais, bastaram para ideologizar massas orwellianas
do ardor socialista: festa do Trabalho (1~ de maio); da Nação germâni-
em busca de um absoluto. Deve-se a Joseph Goebbels essas fantásticas
ca: festa dos Heróis (meados de março); do regime partidário: Congres-
encenações, prefiguradas por Schiller ou Wagner, que levam a tomar o
so do Partido (início de setembro), aniversário do putsch (9 de novem-
Giraudoux de La, guerre de Troie n' aura pas lieu por um Marivaux.
bro), aniversário da tomada do poder (30 de janeiro); do Führer, ani-
As analogias entre os processos de condicionamento pavloviano da
versário (20 de abril).
propaganda comunista e os que foram utilizados por Hitler diferem
Do arcaísmo agrário à identificação com o novo Wotan, o passo a
muito pouco se nos reportarmos aos conselhos para a "criação do entu-
ser franqueado é o da incorporação ao partido que supõe a profissão de
siasmo num meeting" descritos por Serge Tchakoutine:
fé e a aceitação eventual do sacrifício supremo: o derramamento do
próprio sangue pela pátria. A pas&agem dos grandes momentos da vida
- manutenção das pessoas em expectativa antes do meeting, através de
se faz através de etapas iniciáticas ritualizadas, algumas com cenário de
árias populares de bravura, amplificadas por alto-falantes;
Himmler. Nos batismos, coruirmações, casamentos, funerais, realizados
- lei de progressão crescente do dinamismo do auditório, até o final da
pelos mais comprometidos com o Partido e com a Ordem negra, a so-
reunião;
brecarga de súnbolos também traduz os mitos partidários: figuras rúni-
- diálogo entre speaker e a massa com questões que pedem respostas
cas e cantos wagnerianos referentes ao arcaísmo germânico, galhos de
coletivas em sim ou não;
bétulas e candelabros enunciando a vida da Natureza, juramento sobre
- alternância de discursos relativamente breves, cantos executados de
o Mein Kampf, a bíblia do regime, etc.
pé, esquetes divertidos, poemas, coros falados; .
- descanso pontual através de quadros vivos, cartazes,jlashes lununo-
Os terríveis milagres da presença real
sos·
- dec~ração da sala com slogans e símbolos em faixas de pano, estan-
Ao contrário do que ocorreu na França da Revolução, a referência
dartes, folhagens; .
ao passado não estava excluída, nem os elementos populares apagados;
- serviço de segurança assegurado por militantes com braçade~as; .
apenas transmutados pelas técnicas modernas de comunicação e de mo-
_ gritos de adesão lançados de vez em quando, gesto de apoio (Frei-
bilização.
heit, punho erguido); .
A fim de modelar o povo numa só massa, Hitler utilizou técnicas
_ encerramento do meeting com um hino popular, de acento combati-
de exaltação das multidões pela propaganda, meios bastante modernos
vo.
fundamentados em recentes aquisições da psicologia das massas e da
psicologia das profundezas. É verdade que a libido se desencadeava
Bastante significativas da religião nazista do sangue (s~bo~iza~a
através de fantasias, mas muito melhor ainda através de uma presença
pelo punhal e pelo vermelho da bandeira), da morte ~caverra no uru-
real e direta do líder carismático em público. Ao invés de só atingir o
forme negro das SS), da noite (trevas do Walhalla sublimando a morte)
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e do destino (marcha de combatentes atrás das bandeiras, ao som das go da passarela que leva à tribuna. Durante seis minutos, é muito lon-
trombetas do apocalipse, mantendo uma flama eterna e escandindo o go. . . Eles estão erguidos, imóveis e urrando em compasso, os olhos
grito de fera: Sieg Hei[) foram as grandes reuniões de Nuremberg, que fixos nesse ponto luminoso, nesse rosto de sorriso extasiado, e as lá-
eletrizaram massas enormes (até 200.000 participantes) vindas de cen- grimas correm sobre as faces, na sombra... Eu compreendi (... )
tenas de quilômetros em imensa peregrinação para assistir a esse espe- Acreditava-me num meeting de ma&sas, em alguma manifestação políti-
táculo minuciosamente organizado pela equipe de Goebbels, e de que ca. Mas é o seu culto que eles celebra.n e é uma liturgia que se desen-
Robert Brasillach, simpatizante do regime, fornece o seguinte relato: rola, a grande cerimônia sacra de um religião que eu não sigo" (Rou-
"É noite. O estádio imenso está iluminado apenas por alguns pro- gemont, pp. 319-320).
jetores que permitem imaginar os batalhões compactos das SA vestidos A mesma tonalidade de delírio coletivo na festa do 12 de maio de
de castanho: no momento exato em que ele (o Führer) entrou no está- 1933 em Berlim. Embandeiramento, paradas, algazarras de rádios,
dio, mil projetores em tomo do recinto iluminaram-se, assestados verti- cantos, aviões sobrevoando a multidão concentrada para escutar pri-
calmente para o céu. São mil pilares azuis que agora o envolvem, como meiro Goebbels depois o velho marechal Hindenburg, desfile de qua-
uma jaula misteriosa. Serão vistos brilhar durante toda a noite, do cam- torze colunas, e às 20 horas: grande discurso-programa antimarxista,
po, designam o lugar sagrado do mistério nacional e os organizadores anti-semita, patriótico e demagógico pelo Führer, encerrado por fogos
deram a essa assombrosa fantasia o nome de Lichtdom, a catedral da de artifício (cf. Dommanget).
luz. Eis o homem agora de pé em sua tribuna. Desfraldam-se então as
bandeiras. Nem um canto, nem um rufar de tambor... Um silêncio so-
Os ingredieJúes do êxtase
brenatural e mineral, como o de um espetáculo para astrônomos, num
outro planeta. Sob a ab6bada rajada de azul até as nuvens, as grandes
vagas vermelhas estão agora apaziguadas. Acredito jamais ter visto em A maior parte das reuniões nazistas geralmente ocorre em espaços
minha vida espetáculo mais prodigioso" (Brasillach, pp. 268-269). limitados: Sportpalast de Berlim, Forum de Nuremberg, praça de Mu-
Ao efeito teatral do cenário acrescenta-se o wagnerianismo do es- nique ... que aparecem como lugares sagrados onde s6 se penetra de-
petáculo. Como Wagner, místico e rebelde, Hitler anuncia tempos no- purando todo o individual existente na consciência, para se afogar nu-
vos, rebaixa a potência divina para exaltar a dos homens. As flamas ma coletividade uniformizada, projetar suas aspirações e seu superego
cromáticas de A Valqulria fazem cintilar as noites de Nuremberg. Os para a pessoa de um chefe. Atordoado pelo rufar dos tambores, o com-
passos são martelados no ritmo de forja de O Ouro do Reno. O tema passo das botas, o tinido das armas e a escansão dos slogans, fascinado
vibrante da espada de Siegfried prepara uma futura cavalgada das Val- pelas cores das flâmulas e emblemas, excitado por uma música de me-
quírias através da Europa. Será o incêndio do cosmos o "encantamento tais estridentes, o povo meio em sono hipnótico está então pronto, em
da Sexta-feira Santa" ou prefiguração do envolvimento do mundo? unanimidade extática, para deixar-se enfeitiçar pelo mágico supremo.
Acontece sempre que, para impressionar as massas através dos senti- Ao lado das remanescências da festa primitiva no arquejo dos gri-
mentos, só é preciso esse Führer subindo, braço estendido, os degraus tos, no encantamento do fogo ou nos urros brutais do orador, observa-
do templo entre alas de bandeiras e de tochas, com um fundo de música se uma notável exibição da ordem germânica. Entre os participantes do
fúnebre. E desencadeia-se então o êxtase coletivo ("Horror sagrado" desfile ou da parada, quer sejam militares ou ginastas, a exaltação do
para Denis de Rougemont) pela explosão histérica do discurso que faz corpo são e potente demonstra, através do alinhamento e das cadências,
vibrar! que a disciplina prepara para o exercício da força vitoriosa e para o sa-
A mesma sacralidade litúrgica na Festhalle de Munique, em 11 de crifício supremo.
março de 1936: "O homem avança muito lentamente, saudando com É inútil acrescentar alguma coisa ao que já foi muitas vezes dito
gesto lento, episcopal, em meio ao trovejar ensurdecedor dos 'Heil' sobre o magnetismo de Hitler. Ninguém nega seu talento de médium,
ritmados( •••). Passo a passo ele avança, recebe a homenagem, ao lon- nem sua técnica inata para o exercício da autoridade, correspondendo

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ao gosto germânico pelo chefe inspirado, enquanto os latinos preferem de encarnar o próprio destino da coletividade. O princípio da unidade
o soberano legista. Mas no entanto a forte afetividade de um povo e o nacional também conduz ao racismo germânico "ariano" chegando à
gosto do século XIX pelo lirismo e pelas epopéias nórdicas só expli- eliminação física dos judeus designados como bodes expiatórios.
cam parcialmente o racismo do regime e a idolatria de que foi objeto o
Führer. O culto do Führer, apesar de parcialmente espontâneo, foi po-
B I LITURGIAS SOVIÉTICAS
tencializado sobretudo pela Volkskulturwerke e pela Hauptkulturamt,
órgãos de propaganda do Partido.
Totalitarismos em superposição
A cultura cristã aí também está presente em filigrana, travestida ou
caricaturada no culto dirigido ao Führer: "O Cristo foi grande. Adolf Sem negar as fortes particularidades do nazismo e as do fascismo
Hitler foi maior... ", é afirmado por que jornal? O M ünchener Katlw- italiano com relação ao bolchevismo que acusa os vizinhos de reacio-
lischer Kirchenzeitung! Como crucifixo nas casas: o retrato de Hitler! nários a serviço do grande capital, não deixa de ser interessante proce-
Quem quer um milagre? Hitler o realiza reconciliando a Nação e fun- der à anatomia de sistemas que se consideram diferentes, a fim de des-
dando o novo Reich. Está tudo pronto! Gott mit uns, e "o Redentor do tacar os traços estruturais constantes para além da variedade das situa-
povo alemão" também! Daí a ação de graças que se segue à refeição ções histórico-sociais:
dos pequenos órfãos nazistas: "Eu lhe agradeço pelo meu pão quoti- 1 I Uma ideologia globalizante e oficial apresenta-se como um
diano. Oh! Fique comigo. Oh! Não me deixe nunca. Führer, meu Fü- saber correto enquanto discurso de fé que faz apelo a estados psíquicos
hrer, minha fé e minha luz" (Conway, p. 237). Seduzido pela organi- fortes como a ansiedade ou a agressividade. Ela propõe um decifra-
zação hierárquica da Igreja de Roma, Hitler realizou sua transposição mento do sentido da história a partir da revolução das instituições e dos
para o partido onde se impõe o dogma da infalibilidade do chefe e é comportamentos que pretende instaurar.
praticado o fudex-censura e a excomunhão. 2 I Uma vez conquistado o Estado, o partido de massa que assu-
Com empréstimos feitos à ordem dos Jesuítas e ao esoterismo da me essa ideologia impõe-se como único. Seu aparelho tentacular sub-
franco-maçonaria, criou-se o cfrculo elitista dos melhores arianos, tam- metido aos princípios de uma hierarquia rigorosa e de uma obediência
bém iniciados por etapas. As seqüências rituais assemelham-se às de cega converge para o chefe supremo que o dirige.
todas as iniciações: testes de seleção, esporte, trabalho, aprendizado 3 I A força, como principal meio da ação política, tem como bra-
ideológico das virtudes guerreiras: obediência, coragem, integração fi- ço secular, mais ainda do que o exército apesar de este ser bastante de-
nal com recebimento de um súnbolo: o punhal. Para conhecer os outros senvolvido, uma polícia (SS, KGB) com rituais paramilitares: sauda-
rituais da vida do SS e as cerimônias de incorporação ao estreito cfr- ção, desfile, uniforme, bandeiras, insígnias. Se as virtudes do comba-
culo dos chefes, para analisar a vida comunal e a fé dos nazistas, nada tente - obediência, fidelidade, camaradagem, heroísmo -, são ofereci-
melhor do que a esplêndida tese de Sironneau. Ela articula, na explica- das como modelo a uma juventude que representa as forças do futuro e
ção, o nacional-socialismo e o comunismo leninista-stalinista. a modernidade em marcha, o aparelho repressivo (delação, espionagem,
Com toda certeza não poderíamos negar a especificidade nacional exclusão, assassinatos) é particularmente desenvolvido contra os que
do nacional-socialismo. Nele a nação é exaltada como valor supremo, e não seguem a linha do Partido.
o povo (Das Volk) e o Führer são a tal ponto sacralizados que a ordem 4 / Em três setores importantes: comunicações de massa (para a
política orienta-se primordialmente, por um lado, no sentido da criação informação e propaganda), armamento, e organizações econômicas,
de uma coesão interna do país através do prevalecimento de uma auto- realiza-se um controle monopolístico de tal maneira rigoroso que todo
ridade forte sobre os direitos e liberdades pessoais, e pelo outro lado poder econômico, militar, cultural, fica submetido ao político.
no sentido do crescimento do prestigio internacional e da potência da 5 / Questionando os valores do individualismo definidos pela fi-
nação dirigida por um chefe, salvador providencial, com a atribuição losofia das Luzes, a ação estatal, num primeiro tempo, produz uma

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atomização social através da destruição dos antigos corpos intermediá- uma política anti-religiosa tenha podido produzir um culto do Partido.
rios (famílias, igrejas ... ) e depois uma recoletivização e uma mobili- Que a entrada para o Partido seja uma entrada para a religião, um com-
zação da população enquadrada pelos órgãos do Partido. promisso total, já havia sido muitas vezes sugerido por Léo Hamon,
Neste retrato sociológico em superposição do nazismo, do fascis- Annie Kriegel e Edgard Morin. A entrada para o Partido supõe a ado-
mo e do comunismo leninista-stalinista, reconhecemos o sistema totali- ção de uma visão de mundo totalizante com uma esperança escatológi-
tário (cf. Arendt). Para o nosso propósito, tal sistema sugere a utilida- ca de triunfo do proletariado. Os clérigos (aliás o aparelho) têm o seu
de, nesses regimes, dos ritos políticos, no intuito de facilitar através de seminário de teologia (a escola de quadros) e quando se tomam perma-
comportamentos simbólicos padronizados as idéias de coesão e de or- nentes e bem materialistas, devotam-se, sem mais questionar a matéria,
dem que o Partido tenta inculcar. Pelo rito, manifesta-se especialmente ao ministério da palavra. Indicam o lugar da verdade e mantêm a reti-
a ética de respeito e de distância social no fundamento de toda hierar- dão ideológica entre seus camaradas.
quia. No ápice desta, o líder impõe mais facilmente sua autoridade Referindo-se às tábuas da lei escritas por Marx, Engels, Lenin e os
quando conjuga a sacralização cultuai de sua pessoa com esses ritos pais da Igreja vermelha, fica fácil para eles levantar os heréticos des-
negativos que são os interditos. E para valorizar tanto a ordem vital viantes, suspendê-los e excluí-los da Ordem. O clero também adminis-
quanto a ordem política, nada melhor do que a solenização ritual dos tra o "sagrado" organizando e dirigindo o culto durante as reuniões de
momentos capitais de mobilidade na vida e de promoção no aparelho trabalho e os meetings. Através da agit-prop (agitação e propaganda),
partidário. ele testemunha seu proselitismo. Sob Stalin, ele celebra o Pai dos po-
vos com outros dignitários especializados na tradução ritual da adesão
Teoria e prática soviéticas ideológica. Para subir na escala hierárquica que vai do nível "simples
fiel" ao "núcleo central", é-lhe necessário corresponder a critérios
Na verdade, nos países soviéticos, onde incessantemente se faz re- precisos de idade, profissão, de compromisso, de antiguidade. Existem
ferência à teoria, talvez se tenha esquecido que etimologicamente ateo- curas ambiciosos ou hipócritas, bispos arrivistas e carreiristas.
ria, antes de tornar-se o agrupamento dos meninos do coro, designou a Um pequeno mundo de segredo envolve hermeticamente os con-
deputação encarregada de oferecer um sacrifício ao deus. O sentido da flitos e filtra as informações em função de códigos de que apenas al-
palavra com toda certeza variou de maneira radical desde os gregos. guns eleitos possuem as chaves. A fim de conservar a pureza interior
No entanto, foi muitas vezes sublinhado que um socialismo que se do Partido, espiões e delatores estão à espreita, denunciando os quistos
pretendia científico apresentava mais uma doxa do que uma épistém!. e os corpos estranhos. No coração do in-group, uma forte consciência
Atualizando o velho mito de Prometeu, não estaria Marx sendo o ofi- de identidade ritualiza a amizade através de um caloroso tratamento ín-
ciante de um mito saturado? Ainda que seja de mau gosto para os pro- timo. Frente ao seu partido, com que o clero se identifica, a única ati-
tagonistas do desencantamento do mundo admitir que a virtude de uma tude lógica é a abnegação, o sacrifício, a militância. Já que o partido
doutrina se apóia essencialmente em sua carga simbólica, não deixa de onisciente tem sempre razão, aos faltosos que se recusam a renegar sua
ter interesse perguntar-se de que maneira a maison Marx (cf. F. Geor- fé e querem permanecer no seio da Igreja, só resta passar pelo tribunal
ge) pôde, por uma espécie de desatino, motivar as massas multiplican- da penitência: "A confissão é a forma suprema que assume o devota-
do em profusão as práticas para-religiosas induzidas pela teoria: pere- mento revolucionário quando o revolucionário nada mais possui para
grinação a Moscou, culto da personalidade de Stalin, referência inces- despojar-se além de sua honra pessoal de comunista" (Kriegel, b/,
sante às santas escrituras de Marx, Engels, Lenin, e aos comentários p.70).
dos padres conciliares: Plekhanov, Boukharin, Riazanov, etc., desfiles Quanto à liturgia da palavra de que participa todo devoto convicto,
grandiosos, entrega de condecorações, batismos de cidades e de usinas, ela ocorre nas reuniões de educação política, já que a pedagogia é a
protocolo hierático dos grandes chefes do Kremlin ... obsessão do sistema. Ali explica-se a eterna teoria e as decisões dos
De início parece um paradoxo, mas em seguida fica evidente que estrategos, repete-se as fórmulas matrizes da ideologia e aprende-se a

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responder às objeções. Na URSS, o rádio enfeitiça com sua linguagem
1 /Rito do batismo: As primeiras tentativas de criação de wn "ba-
obsessiva-encantatória. Nas usinas e kolkoses sob Stalin, lia-se e co-
tismo" socialista, chamado "Oktyabriny" ocorreram a partir dos anos
mentava-se coletivamente o Pravda. E pessoalmente sabemos a impor-
20. Rapidamente caído em desuso, o rito foi restaurado em 1963 na ci-
tância do breviário por ter lido o curso de resistência dos materiais do
dade de Leningrado após preparação na organização urbana do Partido
Prof. Lebedev, xerografado em 1967 no Instituto politécnico de Cona-
e nos comitês de Komsomol. Manifestaram-se resistências por parte das
kry, para os estudantes de mecânica industrial da Guiné: as sete primei-
religiões católica e islâmica. Ele consiste no registro solene do recém-
ras páginas comportavam treze citações de Marx. Que mente resistiria a
nascido com a atribuição de wn nome, sob o patrocínio de "padrinhos-
semelhante condicionamento?
honorários" que tomam-se garantias da futura formação política da
criança. Os oficiais do Partido parabenizam os pais e lhes oferecem um
Modeios litúrgicos f.
opúsculo sobre os cuidados com o bebê e sobre a educação das crian-
ças. Isto ocorre numa sala prevista para essa finalidade onde parentes e
amigos, portando a certidão de nascimento e eventualmente velas, reú-
Assim como a leitura de Georges Bortoli nos instrui sobre as lita-
nem-se, precedidos por jovens algumas vezes em costume nacional. Em
nias cultuais endereçadas ao: Pai dos povos, guia genial dos trabalha-
geral a execução do hino soviético encerra o rito.
dores, grande timoneiro, arquiteto do comunismo, corifeu das ciências,
arco-úis da humanidade progressista, águia das montanhas da revolu-
2 / Entrega do passaporte: Após 1976 foi generalizado o uso in-
ção ... , a leitura de Jean-Pierre Sironneau nos esclarece sobre o mo-
delo basicamente constante das grandes liturgias soviéticas: "No decor- •.
~ terno de wn passaporte (nossa carteira de identidade) que, no tempo
dos tzares, permitia estabilizar o camponês no mir e controlar seus
rer das cerimônias para a glória de Stalin, foi desvelado o essencial do
deslocamentos. Em 1933, ele havia sido recolocado em vigor, mas ape-
ritual comunista: por um lado eram realizadas reuniões de todo tipo,
nas para os habitantes das aglomerações e das fazendas do Estado. De
com proliferação dos discursos usuais, repetição de slogans, entrega de
agora em diante, ele facilitará o controle da ordem pública, pois nin-
medalhas; por outro lado grandes reuniões de massa utilizavam símbo-
,.
guém pode escapar dessa obrigação, e portanto do serviço militar. Ou-
los (bandeira vermelha, foice e martelo, estrelas), retratos gigantescos e
trora esse passaporte era entregue sem formalidades. De agora em
flâmulas; sucediam-se os desfiles, de jovens e de adultos, de homens e
diante tem lugar uma cerimônia na presença de um deputado do distri-
de mulheres, de trabalhadores de diversos corpos de ofícios, de solda-
to, de policiais departamentais, de membros do Komsomol e do serviço
dos e de esportistas, o conjunto acompanhado por música, cantos, im-
cultural municipal. Na casa da cultura, decorada com posters e emble-
pecáveis movimentos de grupo, paradas gigantescas, uniformes ruti-
mas soviéticos, um discurso indica o sentido do procedimento: tomar-
lantes ou imensas projeções luminosas" (Sironneau, p. 449).
se integralmente um cidadão da União Soviética e cumprir com orgulho
É bem este o esquema geral das grandes manifestações de massa.
os deveres referentes ao título. Depois o mestre apresenta três exem-
No entanto percebe-se que toda a vida do soviético, tanto na familia
plos a serem seguidos: heróis da revolução, da guerra e do trabalho, e
quanto na aldeia, e não apenas durante as grandes festas de tradição
distribui os passaportes. Fica-se de pé para a execução do hino nacio-
militar e revolucionária, está instruída pelo político e traduzida de ma-
nal. Depois um dos recipiendários agradece e promete em nome do
neira próxima aos ofícios religiosos. Assim ocorre para os ritos do ci-
grupo cumprir os deveres de cidadão. Após uma pausa, wn concerto e
clo vital, os ritos de iniciação, os do trabalho, os que se referem à natu-
danças constituem a vertente festiva não-política da festa. Através de
reza e à vida rural, às festas patrióticas e às festas revolucionárias (cf.
ritos de passagem particulares são também celebradas em grupo a en-
Lane). Como os ritos soviéticos nos servirão de exemplo para o estudo
trada para a escola, para o Komsomol, para o exército, e para a classe
da gênese e da dinânlica dos rituais (esse regime de fato perdura, en- trabalhadora.
quanto as liturgias d<:i Revolução francesa ou do nazismo foram bas-
tante transitórias), apresentaremos aqui algumas amostras:
3 / Festa das Colheitas: Recuperada e encorajada pelas autorida-
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des soviéticas, a antiga festa tradicional foi secularizada e toma-se oca- 5 I Funerais: Como em toda parte, os vivos assumem os danos da
sião, assim como a festa da Foice e do Martelo em setembro, de um en- morte ritualizando-a, para inseri-la num corpus de certezas. O desapa-
contro entre operários e camponeses, vindos os primeiros em visita à recimento de um grande homem de Estado é sempre um momento em
fazenda coletiva e ali mantendo a animação política. Esta festa desen- que a sociedade se interroga sobre seu futuro. Para conjurar a desor-
volvida no início dos anos 60 substitui a festa ortodoxa local do santo dem, nada mais eficaz do que expressar sua piedade e seu desamparo
padroeiro e comporta uma procissão cerimonial com os produtos agrí- através da linguagem religiosa. No falecimento de Stalin, Bach impera
colas, um meeting com anúncio público dos resultados, honras verbais sobre as ondas da Rádio de Moscou. A adoração não é bem expressa
prestadas aos heróis do trabalho, uma apresentação cênica ou um con- pela música proletária, mesmo a de Chostakovitch. Quando da morte de
certo sobre o tema das colheitas, um jantar comunal e jogos diversos. Andropov soam todos os sinos de Moscou para um ofício ortodoxo em
Mas observamos que em virtude do isolamento das fazendas coletivas e memória do número um soviético.
da grande religiosidade tradicional dos camponeses, os ritos agrários Outrora, a suprema segurança de um povo consistira em guardar
politizados são bem menos desenvolvidos do que as festas das empre- consigo o seu chefe bem-amado, Lenin, embalsamando-o (após a extra-
sas industriais. Mas se alguns desses ritos são algumas vezes de inspi- ção de sua massa cinzenta: l.340g), construindo-lhe um mausoléu, para
ração local, ou se apresentam variantes nacionais em sua forma, nem lá dirigir-se em peregrinação, sempre recitando a litania: "Lenin viveu,
por isso permanecem menos socialistas no conteúdo. Lenin vive, Lenin viverá". Quer se tratasse de uma forma de sacraliza-
ção ou de um instrumento de socialização cívica, ideológica e política,

4 / Aniversário da Vit6ria: Celebrado em 9 de maio desde o final pouco importa: a conservação dos grandes mortos do regime comprova
da Segunda Guerra mundial, essa festa é, por ordem de importância, que o regime se conserva. Regime contínuo, logo regime verdadeiro e
a terceira do calendário oficial soviético após o aniversário da Revolu- regime seguro!
ção de outubro (7 de novembro) e o 12 de Maio. Ela pennite um ceri- O fausto funerário é também a medida da extensão e da potência
monial mais rico do que, por exemplo, o aniversário do nascimento de dos sovietes. Louis-Vincent Thomas sublinha, a propósito dos funerais
Lenin (22 de abril) ou o dia da mulher (8 de março). Para uma ideolo- de Brejnev, o que havia de grandioso no cerimonial quando colocava
gia de pretensão internacionalista, o patriotismo só pareceria suspeito lado a lado o político e o militar: "Ataúde acolchoado de vermelho,
se a URSS não tivesse sido uma das maiores vítimas da guerra. Como a exposto ao póblico sobre a carreta de um canhão, conduzido ao som da
festa da Vitória tem incompatibilidades- locais, celebra-se também o dia Marcha FWiebre de Chopin, depois colocado no chão pelos membros
da Liberação em outras datas fixas. EJn Moscou, retransmitida pela te- do Poliiburo. O impecável e interminável desfile militar, os elogios, os
levisão, tem lugar, assim como nas tradições patrióticas e militares pa- tiros de canhão e a multidão recolhida levândo bandeiras e retratos, tu-
risienses, a homenagem ao soldado desconhecido: desfile de veteranos, do isso diz muito sobre os recursos do ritual laico, mesmo se, no caso,
discurso, música, recitação de poemas, apresentação de armas, oferta o culto refira-se mais à ideologia marxista do que à pessoa do morto"
de flores, reanimação da flama, minuto de silêncio, Marcha Fl1nebre (Thomas, pp. 97-98).
(Chopin), salva de artilharia, entrega de medalhas. Aqui uma parada
militar ou uma marcha à luz de tochas tem como ponto terminal o mo- Convergências das ritualizações
numento aos mortos. Ali visita-se pequenos museus consagrados às
glórias militares. Alhures, na presença de oficiais, de delegações sindi- Após essas evocações dos ritos soviéticos e as anteriores dos ritos
cais e do Komsomol, lê-se compungidamente a lista dos mortos pela .. nazistas, o confronto, ainda que para alguns isto seja sacrílego, deixa
pátria. Mas essa festa ainda continua menos espetacular do que o ani- perceber com facilidade as analogias. Nas duas sociedades, a ritualiza-
versário da Revolução de outubro, cujos momentos essenciais conhe- ção foi sobretudo um trabalho da elite no intuito de realizar a curto
cemos através dos mídia internacionais. prazo uma transformação política e social radical, e promover a longo
prazo um milênio cujo mito tenha sido amplificado pelo messianismo

u.
'' ~·
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f. 4~ü1 f.
1 lu GIJUOHO 11
revolucionário subjacente ao movimento socialista do século XIX. Entre 4 I Apesar dos rituais do trabalho serem mais desenvolvidos no so-
as reorientações políticas, tem sido de importância capital a adoção do cialismo soviético do que no nacional-socialismo, os dois regimes lou-
partido único como órgão de organização de um Estado forte e central~­ vam a nobreza do trabalho manual, criam brigadas de trabalho, feste-
zado onde os interesses individuais sacrificam-se aos interesses coleti- jam o 12 de Maio e reforçam através das inaugurações de fábricas a
vos, definidos pelos gestores políticos. Quer a tônica seja verbalmente colaboração do trabalho individual às realizações coletivas.
colocada sobre a nação (nazismo) ou sobre as massas (comunismo sovié- 5 I As duas sociedades marcam com festas as mudanças das esta-
tico), na verdade é o Estado que, em todos os casos, afinna seu predo- ções, e reencontram assim as tradições do povo, quer seja gennãnico,
mfuio sobre toda a vida social, como na tradição jacobina na França. quer seja russo, enraizando então uma ideologia nova sobre um terreno
Para obter a socialização política impõe-se um doutrinamento, or- antigo, ao mesmo tempo para conferir-lhe cartas de nobreza, assentar
ganizado pelo Ministério da Propaganda. Se o nazismo procura pe~sua­ sua aparência de eternidade e apagar séculos de práticas cristãs que ha-
dir apelando para os instintos e para a emoção, e se, pelo contrário, o viam encoberto a veia popular. Mas os ritos nazistas são mais forte-
marxismo joga com o argumento racional e os sentimentos morais, na~a mente politizados e mais místicos do que seus equivalentes soviéticos.
impede que os dois regimes desenvolvam liturgias inspiradas nas tradi- No plano dos súnbolos observa-se uma freqüência idêntica na uti-
ções populares ou militares e na religião cristã que eles repelem. lização do fogo e da luz (archote, fogueira, marcha à luz de tochas),
De fato, no hitlerismo tolera-se a religião desde que ela não faça com recuperação dos significados pagãos. A bandeira como emblema é
sombra ao culto do Führer e não sabote o ideal de força do povo ale- particulannente significativa dos fervores patrióticos, tanto mais que,
mão. É possível até mesmo referir-se a Deus como noção transcenden- l nos ritos, ela não se apresenta isolada mas, poderíamos dizer, em gru-
te, enquanto na URSS a erradicação do religioso resulta da ideologia po. O mar de bandeiras vermelhas ou de cruzes gamadas atuam tanto
da supressão das alienações. . como slogan como quanto signo de unanimidade nos corações. O ver-
Mas nas duas sociedades, os ritos regulam ao mesmo tempo a Vida melho do ardor e da potência é também o vermelho do sangue a ser
coletiva e a vida privada, e os calendários do Estado fascista não dei- vertido no nazismo. Por mais festivos que sejam habitualmente as mar-
xam de apresentar semelhanças com os do Estado socialista: chas de grupo, desfües militares, desfiles de ginastas, danças em cos-
1 / Para eliminar a idéia de esfera privada e encobrir a socialização tumes locais, eles têm como finalidade demonstrar ao mesmo tempo a
familiar pela socialização política, são estabelecidos ritos de passagem participação global e a mobilização das massas, o que também é o in-
relati vos ao ciclo da vida. Os nazistas controlam então a raça, o sangue tuito das músicas ensurdecedoras e dos discursos.
e a procriação, enquanto os soviéticos visam principalmente politizar e Quanto ao culto do herói, presente em ambas as sociedades, ele na
coletivizar os acontecimentos da vida privada. Os funerais em toda Alemanha se colore pela valorização da força física e das proezas de
parte apresentam uma interpretação secular da imortalidade. uma "raça", enquanto na URSS o heroísmo é o do dever cumprido no
2 / Em ambas as sociedades, a socialização política da juventude trabalho para a comunidade socialista. Se numa e noutra encontramos o
realiza-se através de ritos iniciáticos, comportando aspectos de fonna- culto do líder, a adulação do Führer aparece como um elemento essen-
ção política e de educação militar. Mas apenas a URSS ritualizou a in- cial do nazismo, enquanto o culto de Stalin (sem negar a complacência
corporação no mundo do trabalho. do interessado) foi sobretudo um instrumento de submissão ao regime,
3 / Para a legitimação e sacralização da ordem, são em geral cele- da mesma forma que o messianismo póstumo de Lenin.
brados os aniversários dos grandes momentos da vida do Partido, que
constituíram uma virada da história do país. Para os cidadãos esta é a
ocasião de expressar seus compromissos patrióticos, mas também de
... Enfim, as ideologias em toda parte subtendem os rituais, mas no
nazismo tendem para o mito e no comunismo para o logos, apesar da
existência de um subsolo mítico do comunismo pré-marxista. Além dis-
exibir forças militares, seja com um espírito ofensivo (Terceiro Reich), so, a propaganda do ateísmo nem exclui um maniqueísmo radical, nem
seja para demonstrar a potência defensiva de um regime fechado a fé absoluta na ciência marxista, nem a crença escatológica na parúsia
(URSS). muito próxima da sociedade sem classes. Aliás, como absolutizar o ter-
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restre e a matéria sem suscitar ipso facto um processo de sacralização,
sendo a sacralização por natureza uma absolutização que se traduz com CAPÍTULO IV
facilidade pela intolerância e pela repressão, especialmente com relação
aos dissidentes?
RITOS NACIONAIS DAS DEMOCRACIAS OCIDENTAIS

BIBUOGRAFIA

NACIONAL-SOCIALISMO:

~ Cores nacionais
Brasillach, Robert, Notre avant-guerre, Paris, Plon, 1971.
Conway, J .s., La persécution nazie des Eglises, Paris, Ed. France-Empire, 1969. 1
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Fest, Joachim, Hitler, Paris, Gallimard, 1973, 2 vols. bloco ocidental parecem bem menos numerosas, bem menos apaixona-
Reich, Wilhelm, La psychologie de masse dufascisme, Paris, Payot, 1971. das, bem menos organizadas e bem menos seguidas.
Rougemont, Denis de, Journal cfune époque, Paris, Gallimard, 1968. Na França já vimos que tanto a tradição republicana e patriótica,
Sironneau, Jean- Pierre, Sécularisation et religions politiques, Paris, Mouton, como a tradição socialista e operária coloriram com tons fortes as festas
1982. tradicionais de 14 de Julho e 12 de Maio. Ao lado das festas patrióticas
Tchakoutine, Serge, Le viol des foules par la propagande politique, Paris, Galli- e das festas do trabalho, do armistício ou da vitória dos aliados, outras
mard, 1939. liturgias excepcionais de caráter político só dizem respeito a mundos
restritos: os parlamentares durante as sessões, os militares em suas ca-
SOCIALISMO SOVIÉTICO: sernas, ou os partidários de uma ideologia de paz... Evocaremos al-
gumas delas.
Arendt, Hannah, Le systeme totalitaire, Paris, Seuil, 1972. Na Grã-Bretanha, a importância das tradições monárquicas, há
Bortoli, Georges, La mort de Staline, Paris, Laffont, 1973. muito tempo arraigadas, confere um caráter muito particular aos ritos
Desanti, Dominique, Les staliniens, Paris, Fayard, 1975. desse país que são apresentados pelos guias turísticos e pelas obras so-
George, François, Souvenirs de la maison Marx, Paris, Christian Bourgois, 1980. bre a civilização britânica. A coroação da rainha Elisabeth II e o casa-
Hamon, Léo, Acteurs et données de rhistoire, Paris, PUF, 1970.
Kriegel, Annie:
.. mento do príncipe de Galles nos servirão de exemplo.
Quanto aos Estados Unidos, sua história mergulha numa tradição
a/ Les communistesfrançais, Paris, Seuil, 1970.
religiosa cristã tão particular que é preciso a qualquer preço recolocar
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1972. raram teorias que não foram acompanhadas por confirmações empúi-
Lane, Christel, The rites of rulers, the soviet case, Cambridge University Press.
cas, sustentadas por dados factuais.
1981.
Monnerot, Jules, Sociologie du communisme, Paris, Gallimard, 1963.
-.,. Mas antes de examinar a situação de algumas democracias ociden-
Morin, Edgard, Autocritique, Paris, Julliard, 1959. tais quanto ao nosso propósito, destacaremos os traços mais constantes
Thomas, Louis-Vincent, Rites de mort, Paris, Fayard, 1985. de suas liturgias políticas, para perceber as semelhanças e as diferenças
em relação aos países totalitários.
O nacionalismo sustenta as mais importantes liturgias políticas.
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Se a nação alcança uma dignidade nova na época das Luzes e se em Se, em todos os países, algumas liturgias nacionais são dirigidas
Montesquieu evoca uma coletividade que ultrapassa o quadro estatal, é ao conjunto dos cidadãos, e suscitam um consenso quase geral, exis-
no século XIX que ela se afinna nos planos sentimental, ético, lógico e tem outras de caráter mais fragmentário, na medida em que são prati-
religioso. O fato lingüístico e cultural transforma-se nela em fato polí- cadas por membros de um partido (saudação do punho erguido) ou de
tico e em imenso desejo de unificação, especialmente do lado alemão e uma região aímnando sua especificidade (a fala bretã ou as bebedeiras
italiano. Na França de 1882, amputada da Alsácia e da Lorena, Renan, dos estudantes de Rennes). Escolhas políticas são expressas através
durante uma célebre conferência na Sorbonne, em 11 de março, coloca delas. Mas nas democracias ocidentais, se as imposições sociais se
a questão: "O que é uma nação?" e responde: "Uma nação é uma al- manifestam pela participação nos ritos políticos, isso corresponde a
ma, um princípio espiritual". Em La rtfonne intellectuelle et morale de pressões difusas provenientes da sociedade inteira e não de pressões
/,a France, ele estabelece que "uma agregação de homens, sãos de espí- ideológico-afetivas realizadas por um Estado-partido. Em nosso país, o
rito e calorosos de coração cria uma consciência moral que se chama sucesso da festa muitas vezes depende menos de sua ordem e de sua
nação; enquanto essa consciência moral comprova sua força através perfeição de estilo que do estado de sobrecarga energética social expe-
dos sacrifícios exigidos pela abdicação do indivíduo em proveito de rimentado por um povo em detenninado momento, como durante fune-
uma comunidade, ela tem o direito de existir". E Fustel de Coulanges, rais nacionais ou a Libertação. Não há dúvida de que em Pyongyang
em sua Resposta a Mommsen a propósito da Alsácia, escreve: "O que ou em Moscou uma organização perfeita dos desfiles e uma execução
distingue as nações não é nem a raça nem a língua. Os homens sentem impecável dos figurantes dão uma impressão de beleza e de harmonia
em seu coração que pertencem a um mesmo povo quando possuem uma semelhantes a um balé do palácio Garnier, mas o espetacular pode ma-
comunidade de interesses, de afeições, de lembranças e de esperanças. tar a emoção.
Eis então o que faz a pátria... A pátria é o que amamos" (cf. Valade, Na realidade, as democracias ocidentais (exceto a Inglaterra) mui-
pp. 96 e 98). tas vezes experimentaram fracassos de encenação. Em lugar do unifor-
À nação está ligada a idéia de pátria, terra dos pais, assim reco- me de gala, os protagonistas do rito vestem o sombrio temo formal.
nhecida em virtude de diversos fatores históricos que forjaram uma tra- Percebemos o descuido no nó malfeito da gravata e o embaraço nos
dição comum e uma comunidade psicológica. Com a exaltação do pa- braços desengonçados. A sem-cerimônia democrática apresenta-se co-
triotismo na segunda metade do século XIX desenvolveu-se na Europa mo antítese do decoro dos monarcas e ditadores. A logorréia latina
uma linguagem simbólica e cultuai com vistas a fixar as identidades produz mais freqüentemente a banalidade dos discursos improvisados,
nacionais através dos signos utilizados pelas liturgias: bandeira, hino exagerados ou mal lidos do que as intensas vibrações dos Mussolini ou
nacional, divisas, homenagens aos mortos, protocolos... A simbólica dos Fidel Castro. A Marselhesa desperta mais chauvinismo quando res-
se atribui afetivamente lembranças gloriosas e dolorosas do passado e soa para homenagear um vencedor no podiwn dos jogos Olímpicos do
sublinha a permanência de valores compartilhados: liberdade, fraterni- que para identificar um grupo de conscritos sem entusiasmo.
dade, trabalho, família, civismo, devotamento, etc. Além dos pais fun- Desprovida da comunhão sonambúlica de tipo fascista ou de tran-
dadores, Garibaldi ou Bolivar, Washington ou Masaryk, mais ou menos ses khadafistas, a citologia do Ocidente moderno corre o risco de ser
mitificados pela lenda, uma série de grandes figuras é objeto de vene- atingida pelo mesmo tédio das vésperas na Igreja católica de quarenta
ração na medida em que souberam vencer o inimigo, obter a paz, ou anos atrás. No entanto não poderíamos aímnar que tenham desapareci-
manter a honra nacional: Francisco-José ou Churchill, Pilsudski ou de
Gaulle, Tito ou Clemenceau. A peregrinação a Colombey, a visita às . ·:
do os valores liberais, personalistas e democráticos. Se alguns ritos cí-
vicos são criticados por uma parte da imprensa falada ou escrita (lem-
esculturas monumentais das Rochosas, a leitura do Pequeno Livro bramos alguns editoriais sobre François Mitterrand), essa própria não-
Vennelho, o recolhimento no túmulo do imperador sob a cúpula dos unanimidade e esses dardos arremessados contra as convenções ceri-
Inválidos, vêm desse culto prestado às glórias da pátria, algumas vezes moniais não são por si mesmos afmnações de pluralismo e de estabele-
efêmeras com Pétain ou Mao. cimento de um gosto sub-reptício pela cacofonia do acompanhamento

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que serve de fundo para algumas grandes melodias patrióticas. Recu- tanha reforça o sentimento de confiança em seu destino e reenuncia sua
sar-se a ter a polícia como mestre de coro ainda é valorizar a diferença coerência através do apego a um símbolo específico: a família real.
dos temas, dos ritmos, dos timbres, ainda é optar pela democracia e Como se o soberano pertencesse à nação da qual ele seria a imagem vi-
pela igualdade de todas as músícas do coro, sob a condição, no entan- va, e a monarquia representasse um papel de mediação entre o sagrado
to, de que a voz do racismo e da xenofobia não domine as outras, fa- e o secular.
zendo o patriotismo virar totalitarismo. Durante a cerimônia de coroação de Elisabeth li, em 2 de junho de
1952, após ter recebido a homenagem de obediência de seus súditos,
Tradições da Coroa sua graciosa majestade presta juramento solene de fidelidade às leis e
costumes da sociedade britânica, assim reconhecida como superior à
Na Grã-Bretanha, as liturgias políticas não constituem como na sua própria pessoa. A presença do duque de Norfolk, um católico, nes-
URSS um substituto da religião, pois o Estado não tem o monopólio sa abadia de Westminster, testemunha o valor ecumênico do ato sagra-
dos valores sagrados e não exige uma obediência exclusiva. A religião do. Esta sacralidade religiosa manifesta-se ainda mais quando o mode-
serve apenas de suporte para a expressão de certos atos políticos. A rador das Igrejas apresenta à rainha a Bíblia Sagrada dizendo: "Here is
instância política protege a religião e a religião conforta o político. Não Wisdom. This is the royal Law. These are the lively Oracles of God".
se trata como na França de uma simples tolerância mútua. Depois o arcebispo de Canterbury procede às unções em forma de cruz
Do ponto de vista formal, o papel da religião no reino britânico é sobre as mãos, o peito e o alto da cabeça da soberana evocando a un-
aquele estabelecido quando da fundação da Igreja Anglicana, mas na ção real recebida por Salomão do padre Zadok e do profeta Nathan.
verdade outras vertentes além da anglicana participam do mesmo siste- Enquanto em seguida o arcebispo ora pela rainha, esta permanece
ma de valores patrióticos. Em sua grande maioria elas são fiéis às tra- ajoelhada em sinal de submissão a Deus. Depois a espada, símbolo do
dições e até mesmo orgulhosas da participação nas cerimônias de cará- poder que sanciona a ordem moral e política, o globo, signo da autori-
ter ao mesmo tempo político e religioso: cerimônias excepcionais como dade territorial, o bracelete da sinceridade e da sabedoria, e o manto
a coroação da rainha que marca o laço entre Church e Crown, como os real do chefe da Igreja da Inglaterra são entregues à rainha antes da
funerais de Churchill ou um casamento principesco; cerimônias anual- bênção do arcebispo e do próprio rito de coroação.
mente recorrentes como o Trooping the Colour, aniversário oficial da Que essa cerimônia, orquestrada pela mídia, tenha sido um ato co-
rainha, celebrado no primeiro ou no segundo sábado de junho no palá- letivo de comunhão, está comprovado pelas preces e serviços religiosos
cio de Saint-James, ou a abertura solene do Parlamento no final de ou- que ocorreram nesse mesmo dia no país, assim como pelo movimento
tubro ou no início de novembro, em presença da rainha que pronuncia da multidão perto do palácio de Buckingham e em Londres nos dias
a fala do trono diante da Câmara dos Lordes; cerimônias de investidura seguintes, ou pelas doações feitas aos pobres e às crianças nessas oca-
em suas funções de sumidade do reino. siões por algumas municipalidades. É verdade que o charme da sobera-
Na Grã-Bretanha, onde o papel da Coroa é tão psicológico quanto na e a atração exercida por sua família explicam o entusiasmo popular,
constitucional, as cerimônias de coroamento aparecem como uma festa mas a ele acrescentava-se então um sentimento mais profundamente
de louvor à Nação. Os valores morais implícitos (generosidade, carida- compartilhado de sacralidade da vida comunitária e das instituições.
de, lealdade e justiça segundo Shils e Young), com os quais a socieda- Assim como Shils e Young, em quem nos inspiramos, interpreta-
de está de acordo e que são explicitados apenas pelos clérigos, filóso- ram a coroação da rainha, Dayan e Katz procederam ao estudo da me-
fos e profetas, são nessa ocasião reafirmados num ato de comunhão de tamorfose televisada do casamento do príncipe de Galles com Lady
todo o povo inglês. O protocolo, os costumes, os gestos, os cantos, as Diana. Graças à mídia, a cerimônia vira espetáculo, o ritual privado, de
palavras herdadas de uma longa tradição de hieratismo, têm como ob- uso público. A televisão de fato transpõe os limiares das moradias e
jetivo expressar nessa cerimônia-espetáculo, a grandeza da Nação. permite aos espectadores a entrada num universo liminar, mas também
Numa atmosfera de simpatia, de ternura, de calor humano, a Grã-Bre- transforma as dimensões cultuais do acontecimento, o sistema de seu

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desenvolvimento e a forma pela qual é evidenciado o seu sentido. Em su-
No dia de sua posse, o presidente Mitterrand dirige-se ao Panteão
ma, ela inflete o ritual viabilizando-o. Mas também facilita a focalização
para uma homenagem aos grandes homens que inspiraram seu partido e
das atenções diminuindo as distâncias e sublinhando a eloqüência das
sua ação. No único grande templo da República francesa penetra o che-
dramaturgias estruturadas pelos três organizadores: o palácio, o exército
fe único. Ao vencedor eleito por urna maioria pró-socialista, convém
e a Igreja. Interpretando esse casamento corno um "conto de fadas", entrar com seu emblema. Ei-lo sozinho no mausoléu subterrâneo, rosa
a núdia tele visual faz a transposição, segundo os termos de V. Turner,
vermelha na mão. Florindo três sepulturas (3, número perfeito), ele se
de urna definição indicativa (o mundo é aquilo que ele é) a urna defini- declara herdeiro de várias grandes tradições francesas. Após essa des-
ção subjetiva (o mundo torna-se aquilo que deveria ser) da realidade. Na cida aos Infernos; "incursão solene ao além", "conversação silenciosa
estrutura religiosa da ação, o momento mais significativo é certamente
com os mentores defuntos" (Dayan e Katz, p. 3), o representante da
o das palavras sacramentais e da troca dos anéis na catedral após a apre- ,' Nação pode subir ao Eliseu, assim corno Dante ao paraíso. Ele é o che-
sentação pelo arcebispo de Canterbury de um comentário sobre a sacra-
fe salvador que trará não só a mudança, mas também esse "estado de
lidade do ato e o início para os esposos de urna aventura universal.
graça" que marcou o início do mandato. . . _
Aliás, é o toque sociopolítico que contribui para a flamejante ce- Cumprindo esse gesto, o chefe de Estado situa-se numa trad1çao
nografia do acontecimento: 1 I o povo se concentra para ver passar o
socialista francesa muito rica em liturgias e em súnbolos, apesar de
cortejo real e as carruagens. Camisetas, minichapéus-coco, balões, mi-
nascida de um positivismo industrial que despreza as ilusões. Os Saint-
niaturas de bandeiras, são os acessórios sem valor que, por contraste,
Simon, Cornte, Proudhon, Fourier, Buchez, Cabet... todos eles sonha-
sublinham a aura dos ricos acessórios principescos. Eles representam
ram com uma religião cívica capaz de permitir à nova sociedade asse-
também a emoção e a homenagem; 2 I formando um corrimão, a força
gurar sua coesão.
pública (ala de policiais, rampa móvel de guardas a cavalo) delimita os
Por isso o sonhador e algumas vezes doido Fourier, que teve au-
espaços; 3 I um casamento basta para exaltar um cidadão: Lady Diana
diência no meio católico, regulamenta toda a vida de maneira maníaca
chega à catedral cercada por policiais comuns, e dela parte escoltada e despótica. Basta ler seu ritual das cerimônias do casamento, seus
pela guarda real; 4 / durante a aparição conjunta da familia real no bal- graus de galanteria e seus quadros de esposas! Basta observar as séries
cão de Buckingham, a multidão britânica aplaude a sua própria unidade •
"harmonianas" do Falanstério de Jean-Baptiste Godin em 1859!
nacional através do súnbolo interposto; 5 I a comunhão popular durante
Além do seu Cattchisme des industrieis (1823-1824), Saint-Simon
o acontecimento religioso e político é também de imitação: os teles-
escreve o Nouveau Christianisme (1825) e sustenta a idéia que vem a
pectadores consomem o suco de laranja e a omelete como a família
se tornar bem socialista, de que "um sistema social é apenas a aplica-
real. Em seguida, inúmeras jovens inglesas usarão urna cópia do mo-
ção de um sistema de idéias" (Durkheirn, p. 128). Se a ciência é o
delo do vestido da princesa Diana durante a cerimônia de seus próprios
motor do progresso, é normal que o poder espiritual pertença aos ho-
casamentos.
mens de ciência e de ofício (excluídos os juristas pois eles "raciocinam
abstratamente sobre fatos gerais"), mas todo desenvolvimento da pro-
Aos grandes homens, a pátria reconhecida dução deve ser subordinado ao desenvolvimento dos produtores. Em
função desse último princípio, uma nova moral e urna religião laicizada
Na França, procuraríamos em vão cerimônias que encantassem
serão apresentadas por discípulos propondo a coletivização e a planifi-
tanto e da mesma maneira as multidões. Mas ao invés do coroamento, cação corno meios de alcançar a justiça social. Para não ver a ciência e
pode ser que a autoridade política superior procure assegurar a sua au-
a indústria desenvolverem-se anarquicamente, o estranho saint-simo-
toridade através de um ritual simbólico muito espetacular: sacralização niano Enfantin institui os padres da ciência e os padres da indústria.
na falta de sagração. Nada de disfarce, mas rito de confrontação com Missões e prédicas multiplicam-se. A doutrina seduz por sua audácia e
Jean Jaures e Jean Moulin, para teatralizar fervorosamente a instaura- seu feminismo. Elabora-se um ritual. Assim como Enfantin é o "Cristo
ção da nova ordem. das nações", o Proletariado é o "Cristo da sociedade moderna". Sa-
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crilégio segundo os católicos! Excesso de aparato cerimonial para os mento e do exército, o ligam à Pátria" (Escola Superior de Guerra,
protestantes! Novo clericalismo, dizem os operários! Liturgias ridículas 94a. promoção, Le dr~monial militaire, 1982).
da comunidade utópica de Ménilmontant (condenada em 1832), clamam Falamos das celebrações onde o exército participa como protago-
muitos parisienses! nista do culto da pátria, na religião secular nacional, e onde as ações
Por sua vez, Auguste Comte, ainda mais animado pelo espírito da seqüenciais organizam-se em tomo da bandeira (apresentação à bandei-
ordem que do progresso, deseja criar uma religião da Humanidade, ra, apresentação de armas, desfiles ...). Se o exército não tem o mono-
comportando não só uma sacerdotisa suprema, Clotilde de Vaux, mas pólio da gestão do súnbolo nacional, pelo menos pratica em relação a
também dogmas e nove sacramentos, entre eles a apresentação da ele os ritos mais constantes, mais formalizados e muitas vezes os mais
criança ao sacerdócio, o sacramento do retiro e o da incorporação do ricos liturgicamente. Dois lugares de memória são os pólos do nosso 14
defunto à Humanidade. E enquanto os ritos dos socialistas utópicos, de Julho: a praça da Bastilha, e mais ainda o arco do triunfo da Etoile,
como Marx os chamou, jamais viram a luz, os do positivismo comtiano onde se ergue um monumento súnbolo da glória militar, ao pé do qual
gozaram de algum crédito no Brasil até a Segunda Guerra mundial. está enterrado um soldado desconhecido. Trezentos e oitenta e seis
nomes de generais estão gravados nas arcadas do monumento. Durante
No final do século XIX, assistimos antes a uma popularização da
a apresentação à bandeira no 14 de Julho, o espaço cerimonial está
festa do que a uma ritualização da ideologia da revolução socialista
distribuído entre o poder civil, de quem é reconhecida a primazia polí-
(exceto o 12 de Maio). Mas a história da Comuna de 1871 e a do Front
tica, e o poder militar, defensor da pátria. O exército, por suas posições
Popular de 1936 estão salpicadas de liturgias políticas (desfiles, cantos,
ordenadas, seus uniformes, seus signos hierárquicos, aparece em pro-
uniformes, tiros de canhão, etc.) marcando simultaneamente as grandes
ximidade direta com o sagrado que emana dos súnbolos nacionais. Du-
esperanças de uns e o grande medo dos outros.
rante o desfile, é ainda o exército que determina a ordem patriótica e o
Frente a essa tradição de ritualidade socialista de forte carga sim- movimento dos batalhões que recentemente participaram na história na-
bólica não se coloca realmente uma tradição de direita ou de centro, cional. E "a retaguarda ideológica dos elementos de culto que sacrali-
mas no entanto podemos nos questionar se, para a direita, o patriotismo zam o exército é exclusivamente nacionalista" (Boulegue, inédito).
não se expressa na idéia de uma legitimidade superior da instituição À margem dessas tradições nacionais nasceram outras que, apesar
militar em relação à de um mundo civil algumas vezes tentado pela de não organizadas pelo poder estabelecido, mas antes internacionais e
anarquia. A igualdade dos direitos e a fraternidade dos homens não são contestatórias, devem ser consideradas como liturgias de caráter políti-
reivindicadas da mesma forma como ideais franceses pela esquerda e co.
pela direita (reconhecendo como tendenciais essas duas orientações di-
reita-esquerda que definitivamente delimitam mal a complexidade das ''Da pacem''
escolhas políticas francesas). A quase-ausência de ritos políticos nos
governos de direita parece ter como paliativo uma espécie de delegação Sem dúvida, seu aspecto mais ou menos desordenado, popular e
ao exército do culto dos emblemas nacionais. Não falamos aqui dos ri- festivo leva a classificá-las antes como manifestações do que como ri-
tos e signos que abundam nos circuitos militares, alguns marcando o tos. Mas será que existe uma diferença muito grande entre os cortejos
pertencimento a um corpo (linguagens vemaculares, vestimentas, pro- do 12 de Maio e os cortejos dos ecologistas? Os de 11 de Novembro ou
cedimentos), outros as passagens hierárquicas (iniciação dos jovens re- do Remembrance Day têm por objeto as guerras passadas, os dos paci-
crutas, "triomphe" em Coetquidan da nova promoção de subtenentes, fistas denunciam o perigo possível de uma guerra nuclear.
"carrousef' de Saumur), outros ainda as saídas e as inversões ("pere É verdade que foi elaborado um sistema de segurança coletiva in-
cent" e "quille" nos corpos de tropa, "galette" nos de Saint-Cyriens), terestatal para prevenir qualquer ameaça de emprego da força, por parte
mas todo esse cerimonial militar tem como função fazer o soldado de qualquer Estado, e fazer fracassar uma eventual agressão. Mas sa-
apreender "a natureza quase mística das solidariedades que, através do bemos do fracasso das tentativas da SDN a esse respeito. A Carta das

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Nações Unidas tem também suas fraquezas, e sua aplicação pode ser nhou o conjunto da sociedade americana e fica patente por um lado nas
paralisada pelo veto de uma superpotência ou através de confrontos por festas regulares - Independência, Memorial Day, Thanksgiving Day,
pequenos Estados interpostos. aniversários de nascimento de Lincoln e Washington, culto da bandei-
O movimento pacifista internacional, apesar de não institucionali- ra ... -, e por outro lado durante acontecimentos raros ou episódicos tais
zado, tenta fortalecer o sentimento popular ritualizando a oposição à como a eleição e a investidura de um presidente, sua morte trágica como a
insegurança coletiva. O sit-in (do Larzac, por exemplo) e o jejum do presidente Kennedy ou o Bicentenário da revolução americana.
ideológico constituem modalidades de resistência passiva. A passeata Antes de nos interessarmos por alguns ritos políticos dos Estados
também é clássica nas manifestações antinucleares. Nas passeatas anti- Unidos, parece necessário situar sua interpretação no horizonte das
nússeis do outono de 1983, vimos ao lado dos jovens e de carrinhos de discussões nascidas em torno das teses de Bellah. "A religião civil na
criança, militares alemães e franceses de uniforme. Alternando com América, diz ele, não é o culto da nação mas uma forma de compreen-
slogans e silêncios, elevam-se cantos emocionantes como We shall der a experiência americana à luz da realidade última e universal"
overcome ou Give peace a chance lançados por Joan Baez. Um dia (Bellah, p. 22). Manifestando-se principalmente a nível do subcons-
estende-se uma corrente humana entre a embaixada dos Estados Unidos ciente, tem como tendência ser pragmática, moralista e temporal, e não
e a da URSS. Em 22 de outubro de 1983, a corrente entre duas cidades contemplativa e teológica. Ela se apóia numa piedade bastante geral
alemãs percorre 100 km. que expressa a crença na existência de Deus e no desígnio divino a
Durante a guerra do Vietnam, além da queima simbólica da ban- respeito da história da nação americana, que se pensa como um novo
deira nacional e de convocações militares, ocorreram em Nova Iorque Israel e associa símbolos nacionais e bíblicos. A religião civil tem co-
manifestações de milhares de jovens que, deitados no chão, expressa- mo funções maiores atribuir uma finalidade transcendente ao sistema
vam seu horror à morte nos pântanos longínquos da Ásia. Numerosas político e motivar os cidadãos a atingirem essa finalidade através de
testemunhas também acharam comovente, no Central Park e em frente à meios orientados para os temas do sucesso e do sacrifício, relativos à
Casa Branca, o lançamento, comandado, de balões brancos, signos de missão de nação eleita. No The Broken Covenant, Bellah esclarece
vida, e de balões negros, símbolos da morte dos G.I. * Gestos e súnbo- que, além de um pacto social quanto às estruturas legais e políticas da
los ritualizados de sentido idêntico às preces durante a guerra e aos mi- sociedade americana, existe um contrato mais pessoal proveniente da
nutos de silêncio em seguida. teologia puritana e da filosofia política romana, que se refere ao bem-
estar da sociedade.
Ler a hist6ria de joelhos A idéia não está distante da idéia de James Coleman sobre a sepa-
ração de dois diferentes sistemas de ação, o da religião civil social e o
Essa evocação dos Estados Unidos suscita interrogações quanto da religião civil pessoal, retomando Richard Fenn quando ele fala de
à importância da ritualização política na vida americana e ao significa- uma identificação apenas parcial do indivíduo à sociedade, sendo o in-
do que deve ser dado a tais manifestações com relação a outras de am- divíduo mais móvel do que as instituições.
plitude nacional e orientadas para a exaltação do nacionalismo em co- Enquanto Bellah analisa a religião política através das palavras e
nexão com o passado religioso da nação. comportamentos de Washington, Jefferson e Lincoln, ou através do
Os trabalhos de Robert Bellah provocaram o primeiro debate ani- discurso inaugural do presidente Kennedy, antes de assinalar a ruptura
mado entre os sociólogos sobre o tema da religião civil nos Estados do contrato durante o Watergate, Ronald Wimberley aborda as eleições
Unidos, que até então havia sido abordado sobretudo pelos historiado- presidenciais de 1972 opondo Nixon a McGovem como um teste da in-
res. Foi assim chamada a atenção para a existência atual de um sistema fluência da religião civil na América, Nixon conquistando votos com
de valores que se originou durante o período de formação do país, ga- suas freqüentes referências à transcendência divina. Martin Marty in-
siste sobre o papel sacerdotal do presidente Eisenhower. Mas o pro-
blema no cerne de inúmeros debates é o das raízes religiosas da reli-
* G.1.-Abreviatura de governmcnt issue; pracinha, soldado raso dos EUA.
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gião civil que em grande parte detennina a dimensão religiosa da exis- berdades individuais sob a responsabilidade de uma comunidade atenta
tência cívica dos americanos. à dignidade humana. Em conseqüência, os ritos políticos não atingem
Para William Garrett, que identifica três tradições religiosas - necessariamente, como na URSS, o conjunto dos cidadãos. Como em
1 / uma religião da razão e da cultura; 2 / uma religião da revelação muitas democracias, eles assumem importância sobretudo nas metró-
e da eleição; 3 I uma religião das Igrejas institucionalizadas -, sún- poles e mobilizam sobretudo os corpos civis (portanto as escolas) e mi-
bolos comuns são compartilhados através dessas diversas tradições e litares constituídos, com papel preponderante na socialização política.
significados comuns são enraizados em estruturas de intencionalidades Ao inverso dos países totalitários, as democracias ocidentais só muito
distintas. A fonte evangélica permanece primordial para a afirmação excepcionalmente têm criadores de ritos. Ma - podem ser realizados ar-
dos direitos naturais, base da teoria política e das idéias fundadoras da ranjos nos esquemas tradicionais segundo a épvca e os lugares.
religião civil. Esse quadro de referência transcendente serve também O Memorial Day nos Estados Unidos é uma festa cívica celebrada
como base de legitimação para a política nacional. mesmo nas pequenas cidades. Afirmando a continuidade temporal da
É verdade que rn princípios evangélicos inspiraram os fundadores coletividade, ela fornece a ocasião para o reencontro dos diversos seg-
da nação nas classes ~uperiores e que houve um consenso dos puritanos mentos da comunidade urbana, a fim de expressar coletivamente os
para estabelecer a harmonia entre a Igreja e o Estado. O modelo purita- sentimentos dos vivos com relação aos desaparecidos. Nos discursos e
no entretanto não estava baseado na convicção de direitos inalienáveis preces são feitas referências sobretudo aos grandes líderes que encarna-
do indivíduo mas na doutrina segundo a qual o homem foi criado para ram particularmente o ideal e as virtudes do povo americano ou que te-
a maior glória de Deus. nham vertido seu sangue pela pátria. Os veteranos sobreviventes das
Será o puritanismo realmente o prelúdio intelectual da religião ci- guerras americanas são também honrados nos cortejos que, partindo do
vil? Examinando as idéias de Jefferson em oposição à visão puritana, centro histórico da cidade, dirigem-se para os cemitérios impecavel-
duvidamos disso. Para Jefferson, campeão da tolerância religiosa, as mente preparados para a circunstância. No cemitério, diversas organi-
virtudes republicanas fundamentam-se em um contrato horizontal entre zações promovem sua homenagem particular aos mortos antes que se
os homens, não em uma relação vertical com Deus. O individualismo desenvolva um cerimonial com a participação da comunidade inteira.
utilitário substitui a idéia de redenção, resíduo de uma piedade medie- Ao mesmo tempo que lembra a história da coletividade local, o rito
val. De fato, muitas tradições historicamente diversas serviram de fun- deixa cada indivíduo diante de sua futura morte e o faz esperar ames-
damento à política americana: o deísmo francês de Rousseau, o deísmo ma comemoração em seu proveito, eliminando assim o medo de ser es-
inglês menos intelectual e mais prático, o puritanismo com certeza, mas quecido.
também todos os grupos separatistas que se opunham ao establishment A celebração do Tricentenário de Newburyport (Massachusetts),
puritano da Nova Inglaterra e que deixaram sua marca sobre os senti- chamada de Yankee City por W. Lloyd Warner (Warner, pp. 107-225),
mentos e experiências do povo. Através do estudo das constituições também é vivida como um apelo da história através dos súnbolos, como
elaboradas entre 1775 e 1789, dos Estados das colônias americanas, uma reificação do passado naquilo que ele tinha de nobre, de glorioso e
e inspiradas na Declaração dos Direitos do Homem, constatamos que a de ideal, permitindo em contrapartida valorizar o presente, e a cada um
primeira das liberdades reconhecidas é a da independência religiosa ou glorificar-se pelo pertencimento a determinada coletividade local. O re-
antes da diversidade das obediências. Presbiterianos, metodistas, ba- corte seqüencial do acontecimento faz surgir: 1 I uma primeira fase de
tistas, etc. contribufram todos para a edificação dessa religião civil su- preparação por organizadores eminentes, indivíduos ou coletividades
bentendida pela idéia da nova nação americana ser uma espécie de que definem uma temática, especificam os súnbolos a serem utilizados,
agente redentor do mundo moderno. Assim como a coexistência de planificam as operações e distribuem aos diversos segmentos da comu-
confissões diversas exige tolerância, é compreensível que essa tolerân- nidade os 43 quadros vivos ou inanimados do passado a serem realiza-
cia seja uma espécie de elemento doutrinal da própria religião civil. A dos no desfile; 2 / uma segunda fase de participação ativa de todos os
democracia política supõe o respeito à independência pessoal e às li- corpos de ofício e de todos os cidadãos na iconização de sua história,

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na limpeza das fachadas das casas, na plantação de touceiras de flores, dos símbolos. Se, como Durkheim, Warner e outros pretenderam que
na reconstrução de monumentos e na inauguração de novas estátuas. essas comemorações periódicas são necessárias para preservar o espí-
Uma bela cidade só é digna de uma bela história; 3 / uma terceira fase rito comunitário da coletividade, nesse caso o Bicentenário ofereceu
de cinco dias de celebração precede a data de aniversário. Antigos ha- uma ocasião única de participação maciça nessa festa exemplar da reli-
bitantes de Yankee City retornam para a ocasião. Conferências reúnem gião civil" (Brody, p. 265).
grandes auditórios. A parada de história viva tem lugar na rua princi- A partir de nossas sumárias evocações, não é possível sondar a
pal, e, para encerrar, todo o povo desfila junto, marcando assim a sua profundidade da adesão real à ideologia política que serve de substrato
unidade e identificando simbolicamente o seu presente ao seu passado. aos rituais, nem dizer em que medida o laço entre a ideologia política e
O significado não é menos político do que o do Grande Tatoo de a religião convencional pennite utilizar o termo de religião civil para os
Edimburgo. Estados Unidos e de religião política para a URSS. Coleman aliás pre-
Do Bicentenário da Revolução Americana, os franceses retiveram fere o termo de "nacionalismo secular" para designar o monopólio ri-
sobretudo o que lhes foi apresentado pela televisão: a reconstituição da tual do Estado na URSS, e propõe levar em consideração outras situa-
marcha de Rochambeau para Y orktown. Mas trata-se apenas de um ções como a do Estado-responsável no Japão xintoísta e da religião-
episódio marcante de festividades que duraram de 1!? de março de 1975 responsável no budismo do Ceilão (Coleman, pp. 67-77). Mas a ques-
até 31 de dezembro de 1976. A ata do Congresso que decidiu atribuir tão das relações Igreja-Estado exigiria outras investigações históricas, e
tamanha amplitude a esse aniversário propunha ligar em tomo desse o problema das relações entre ideologia, rito e adesão prática reclama-
tema o passado, o presente e o futuro dos Estados Unidos, consideran- ria longas incursões para fora de nosso tema das liturgias políticas.
do que uma visão globalizadora da história seria, tanto para os indiví- Nosso tipo de abordagem mais etnológica do que sociológica constitui
duos quanto para os grupos, um poderoso meio de reforçar seu senti- um handicap para a compreensão do impacto das liturgias. São elas
mento de vínculo político a uma nação que preenche sua pouca profun- apenas oficiais ou realmente dominantes, impostas ou aceitas e muito
didade histórica através de uma memorização ao mesmo tempo exata de populares?
suas grandes horas e mitificada de sua fundação. Conviria também conduzir a pesquisa sobre a percepção dessas li-
Desde o comitê nacional de organização até a menor localidade, turgias entre a elite e entre o povo para saber em que medida elas real-
não existem atores sociais que por algum tempo não sejam mobilizados mente preenchem as aspirações e de que maneira são efetivamente per-
por esse grande propósito de ritualização fortemente integrativo. Dez cebidas. Pelo menos, temos algumas indicações a propósito do 14 de
mil cerimônias foram organizadas em todos os estados, sendo dois ter- Julho atual, o 12 de Maio em Charleroi e de algumas outras festas da
ços pelos poderes locais, sem contar os milhares de gestos espontâneos vida quotidiana estudadas por Villadary. Mas será que devemos então
de particulares. Uma retórica persuasiva promoveu a atividade simbóli- deduzir da desativação dos ritos uma degradação geral dos sistemas de
ca como meio de socialização. Conferências, exposições, colóquios, valores? Isto não é verdade. As transferências de sentido conduzem a
trem da liberdade, caravana das Forças Armadas, desfiles, reuniões, outros tipos de festas ou de cerimônias, e se os novos mídia reduzem
discursos, decoração das casas e dos automóveis com emblemas histó- algumas vezes a assistência nos locais dos ritos, provocam ao mesmo
ricos, acontecimentos esportivos, shows televisados contribuíram para a tempo fortes reações afetivas e conotativas à distância. Resta portanto
promoção do acontecimento numa atmosfera de festa e de divertimento, um vasto campo a ser explorado através da observação e de pesquisas
de onde não estavam excluídos os interesses comerciais. A temática de opinião, mas infelizmente apenas nas raras democracias onde essa
histórica e nacional e as cargas simbólicas foram suficientes para investigação é possível.
transmutar os ritos seculares correntes em ritos de significado socio-
político. Essas festas "serviram para perpetuar e transmitir conheci-
mentos acumulados da sociedade às gerações seguintes de cidadãos
oferecendo-lhes um forwn para nele expor esse conhecimento através

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CAPÍTULO V
B/BUOGRAFIA

Bellah, Robert W., La religion civile en Amérique, Archives de Sciences sociales RITOS DA DEMOCRACIA
des Religions, n 2 35, 1973. E DA AUTOCRACIA NA ÁFRICA
Bocock, Robert, Ritual in Industrial Society, A Sociological Analysis of Ritualism
in Modern England, Londres, Allen & Unwin, 1974.
Boulegue, Jean, "Sur l'idée de légitimité politique de l'armée dans la société
française contemporaine", comunicação ao Congresso da AISP, 18 de julho
de 1985, inédita. Baseando-nos em exemplos europeus, tenderíamos a estabelecer
Brody, M.Kenneth, Yankee City and the Bicentennial, Sociological lnquiry, 52, uma correlação direta entre a secularização (ou laicização) do mundo
4, 1982. moderno e o desenvolvimento, como efeito, das liturgias políticas. Ora,
Cherry, Conrad, American sacred ceremonies, in Phillip E.Hammond e Benton tanto na África quanto em certos países da Ásia, percebemos a amplia-
Johnson (eds.), American Mosaic, Nova Iorque, Random House, 1970. ção simultânea da prática religiosa (islâmica, cristã, budista... ) e a ri-
Charlton, David, Secular Religion in France, Oxford University Press, 1963. tualização do político. Com toda certeza, na maioria das vezes, este úl-
Coleman, James, Civil Religion, Sociological Analysis, 31, 1, 1970. timo fenômeno ressalta de uma decisão deliberada dos jovens Estados
Dayan, Daniel e Katz Elihu, Rituels publics à usage privé: métamorphose télévi- que aspiram, através desse meio, constrttlr a nação, legitimar seu poder
sée d'un mariage royal, Annales, 38, 1, 1983. e mobilizar os cidadãos. Mas também parece que essa ritualização au-
Diversos, "On civil religion'', número especial da Sociological Analysis, 37, 2, menta paralelamente a duas variáveis, nem sempre independentes uma
1976. da outra: a militarização dos regimes políticos, sua marxização ou seu
Durkheim, Emile, Le socialisme, la doctrine saint-simonienne, Paris, Alcan, 1928. caráter próximo ao comunismo tomado como modelo (Congo, Benin,
Greenberg, B.S. e Parker, E.B. (eds.), The Kennedy Assassination and the Ame- Guiné, Moçambique... ).
rican Public, Stanford University Press, 1965. Não tentaremos provar essa correlação hipotética, mas iremos su-
Richey, Russel B. e Jones, Donald G. (eds.) American Civil Religion, Nova Ior- geri-la através de exemplos progressivos desde o rito tradicional da
que, Harper, 1974. palabre de repercussão política, até o rito dramático dos ..expurgos" de
Shils, E. e Young, M., The Meaning of Coronation, Sociological Review, 1, Sékou-Touré, passando pelas reuniões de bairros, as turnês de chefes e
1953. a sagração de um imperador.
Valade, Bernard, L'idée de nation, in Mythes et croyances du monde entier, Paris,
Lidis, 1985, t. 5. O polftico no social
Warner, W. Lloyd, The Living and the Dead, A study of the symbolic life in Ame-
rica', New Haven, Yale University Press, 1959. Mesmo na socialidade africana tradicional, nas relações significa-
tivas da vida cotidiana da aldeia, o político está presente no interior de
comportamentos ritualizados. Frente ao otimismo funcionalista daque-
les que consideram a socialidade um joguete do pensamento - livre das
tensões e conflitos da sociedade global e harmonioso como uma espé-
cie de belo fruto natural da vida social -, convém pensá-la como fre-
qüentemente conflitual e o rito como um instrumento de tranqüilização.
A socialidade não é a negação do societal, do político, da ideolo-
gia. Os exemplos pretenderão comprovar que:

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· 1 I Existe ideologia na socialidade, e não apenas imaginário. Per- existir socialmente). O silencioso nunca é reprovado, dizem os bamba-
ceberemos a penetração da ideologia tradicional na palabre e da ideo- ra. O falante se responsabiliza, pois a tomada da palavra é um gesto
logia política nas reuniões de bairros na África. audacioso que compromete o locutor e seu interlocutor. A palabre se
2 I O objeto dito móvel e desordenado constituído pelo cotidiano, situa nessa perspectiva de comprometimento de si mesmo e do outro no
mesmo permanecendo estruturalmente inacabado, respeita uma ordem, ato de falar: o homem fala para o grupo, e no tempo do seu discurso,
princípios, códigos. Sua efervescência é de modo mais freqüente a de no quadro de um debate, ele recoloca em questão (mais ou menos de
um movimento do que a da transgressão dionisíaca. acordo com a sua eloqüência e o seu prestígio social) uma certa orde-
3 I A ordem social, inerente à realidade cotidiana, está transpa- nação da vida. A palabre é entendida como um debate aberto, contra-
rente nos rituais de duração breve e de extensão restrita. Todo ajunta- ditório, público, sobre probiemas tanto Jurídicos, políticos quanto fa-
mentos, retomando o termo de J.Beauchard, ou seja, toda relação intra- miliares, envolvendo a coletividade e na África negra assumindo a
grupal mesmo nos microgrupos supõe, como sublinhou E.Goffman, que forma da redução de um conflito através da linguagem. Segundo Benoít
se faça boa figura e que se mantenha as aparências. Nós teatralizamos Atangana, a palabre "é a violência tomada humanamente na discussão,
até mesmo nas menores relações sociais. submetida à ação eficaz da onipotência do Verbo" (Atangana, p. 460).
4 I A socialidade tida como de base ao mesmo tempo em que re- As ocasiões da palabre revelam uma socialidade tempestuosa:
sulta de uma socialização, contribui para produzi-la. 1 / As trocas matrimoniais e as prestações são objeto de discus-
5 I O político e o institucionalizado não são "surplombants" 6 que sões algumas vezes ásperas durante o pedido em casamento. Aprecia-se
se situariam fora dessa socialidade, conforme pensa M.Maffesoli. Eles o possível cônjuge, sua reputação, sua famflia. A valia-se o dote, seu
a informam e a controlam, por um lado enquanto horizonte (no sentido pagamento, suas insuficiências; decide-se adiar para consultar os orá-
fenomenológico) das condutas interindividuais, e por outro lado como culos, ou aliar-se para eliminar os desacordos anteriores.
elemento de retórica social, pois a identidade sociopolítica dos atores, 2 I As transações fundiárias e o uso dos terrenos (cultura, cons-
da mesma forma que os temas polfticos de certas comunicações da vida trução, queimadas, danos ao rebanho, direitos sobre a terra e os olhos
corrente, faz parte dessas situações catalogadas e dessas interações re- d' água) constituem pontos freqüentes de desacordo exigindo uma pala-
pertoriadas que fazem nosso universo familiar, não identificado assim bre em conselho de aldeia.
com o universo do frívolo. 3 / As acusações de adultério, os conflitos interfamiliares a pro-
Esse universo é também o universo das lutas; tensões, perigos, an- pósito de relações sexuais conhecidas e interditas, de filhos por nascer,
gústias, ao mesmo tempo individuais e coletivas, que justificam ore- de incompatibilidade de gênios, de desentendimentos entre esposos, de
curso à ritualização. Enquanto a palabre é um ritual verbal próprio para ' divórcios envolvendo restituição do dote, pedem urgentemente uma
desdramatizar o cotidiano em caso de crise, as reuniões dos comitês de palabre para tratar do assunto.
base dramatizam para mobilizar. 4 / As acusações de feitiçaria, em seguida a doenças, calamidades
ou morte humana, os roubos, as mentiras ou injúrias afetando a honra
A palabre africana das linhagens, reclamam também uma solução através da palabre.
5 / Algumas vezes, antes de uma grande festa, como o Pe Ekpe
Numa civilização de oralidade onde a palavra (palabra em espa- dos Mina ou a festa dos inhames no país Akan, a palabre serve para
nhol) significá a grandeza do homem, o verbo é tão primordial na cria- uma liquidação das queixas acumuladas durante o ano e para um per-
ção do mundo bambara ou dogon quanto o é para São João, e onde os dão mútuo dos participantes que em seguida se purificarão ritualmente.
mitos tanto servem de paradigmas para os ritos comemorativos quanto Em suma, a palabre é uma reunião relativa a uma comunidade res-
para os cotidianos, considera-se que além de sua carga semântica as trita (linhagens, aldeia) e que, após o rompimento da paz nessa comu-
palavras detêm uma espécie de poder recriativo sobre as coisas e as si- nidade, pretende reunir informações, procurar a verdade dividida, re-
tuações sociais (é no dia da atribuição do nome que a criança passa a valorizar as partes envolvidas, restaurar a concórdia, ou seja, restabele-

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cer uma ordem social rompida recorrendo ao modo de resolução dos onde a estética e a emoção têm seu lugar. O procedimento de fato se
conflitos proposto pela tradição, e impregnando essas relações sociais fundamenta na expressão da indignação, da cólera, da alegria, do des-
com a idéia que se faz da tradição, ou seja, da ideologia tradicional (es- prezo, provocando a ab-reação. E leva-se em conta não só o valor dos
tilo de audiências, expressão por adágios, protocolo das intervenções). argumentos, mas também a beleza da linguagem.
Essa ideologia propõe códigos de interação e um esquema de tea- Mas, se o cenário não parece segregador (nada de "acusado, le-
tralização: uma autoridade preside o debate (chefe da aldeia, notável, o vante-se", sobrenome, nome, idade, p1.)fissão; nada de advogado espe-
mais velho, por exemplo). As partes em presença reuniram seus parti- cializado; junto com o indivíduo está em questão a honra de um clã),
dários e, em certos casos como os julgamentos públicos, os curiosos em alguns casos ele pode isolar o ausente da palabre, acusado de recu-
têm o direito de juntar-se ao grupo. O líder ou o encarregado apresenta sar a conciliação, arriscando-se a ser tacitamente excluído da comuni-
a situação; os litigantes intervêm com seus argumentos respectivos; os dade.
acusados defendem-se especialmente louvando a sua linhagem e os Quanto à socialização, ela é lida na maneira pela qual os grupos se
seus feitos. Daí os exercícios de eloqüência, a fala através de metáfo- formam de acordo com o sexo, a idade, o vfuculo ciânico, na maneira
ras, máximas e provérbios que representam um papel didático e peda- pela qual ocorrem as intervenções de acordo com as precedências, no
gógico. Para desapaixonar o debate, coros falados, cantos apropriados, efeito de aprendizagem produzido: aprendizagem da cultura (provér-
risos ap6s uma palavra engraçada ou um gesto, podem pontuar os dis- bios, cantos), das regras da comunidade, da linguagem elegante, da re-
cursos. A avaliação dos argumentos, a ponderação dos equívocos, o presentação dos papéis. Aprendizagem também da aceitação de um ve-
veredito visam um entendimento final. O rito está assim codificado, redito, consistindo quer na divisão dos prejuízos, quer no reconheci-
não apenas no que diz respeito aos papéis e aos processos de desenvol- mento de uma culpa, eventualmente assumida pelos membros de uma
vimento da ação, mas também quanto ao lugar (sob o cincho da praça comunidade familiar e traduzida por multa, raspagem da cabeça, purifi-
pública, na corte do rei de Lere, no bolon manding, antecâmara da cação, oferta de um sacrifício... A unidade do grupo é protegida ao
concessão) e ao tempo (manhã de um dia feriado, ap6s uma desordem, mesmo tempo que a autoridade do chefe é mantida e a hierarquia ratifi-
antes de uma festa) onde deve se desenrolar. cada.
A palabre é certamente um fenômeno político, pois a história da
comunidade é nela evocada através dos propósitos dos litigantes e da As reuniões polfticas de bairros
avaliação das responsabilidades. Na medida em que as discussões ul-
trapassam o assunto limitado do conflito e promovem disputas de pre- É esse efeito indireto na palabre que as reuniões de comitês de al-
cedência entre linhagens, relações de força entre clãs, entre primogê-- deias ou de bairros na África monopartidária visam mais diretamente.
nitos e caçulas, elas também atingem a organização política da mini-so- A partir das independências guineana (1958) e tanzaniana (1961: Tan-
ciedade aldeã. Além disso, vindas das autoridades, as decisões valori- ganyika; 1963: Z.anzibar), bem como da revolução de 1974 na Etiópia
zam o chefe e seus assessores nos seus papéis. Enfim, a reunião, opor- de Mengistu, o debate eventualmente contraditório para discutir políti-
tunidade para participar na reorganização política da cidade, tem um ca se estabeleceu de um modo que se poderia dizer próximo da tradi-
intuito essencialmente integrativo, legitimador do poder, valorizador cional palabre, mas que me parece mais ligado ao meeting político:
dos estatutos, regulador dos comportamentos e restaurador da harmo- 1 / Já que nelas celebra-se essencialmente o regime, suas orienta-
nia, pois não se deseja a exclusão do faltoso ou do culpado, mas a sua ções e suas realizações. Nas reuniões semanais de bairro ou de aldeia, .
reabilitação e sua reinclusão na comunidade após a busca de um ponto são reenunciadas as idéias, súnbolos e formas de organização socialis-
de entendimento. Às vezes, o acordo final é selado com bebidas, dan- tas. A finalidade déssas reuniões consiste menos em desenvolver um
ças e refeição comunal. consenso do que em impô-lo, promovendo a ratificação de uma política
O rito sociodramático se constrói com relação a um imaginário do pelos cidadãos, e veiculando mensagens para realizar mudanças de si-
conflito, espécie de fogo devastador no mato, e dentro de um quadro tuação.

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mo da revolução" mesclavam-se à reenunciação de slogans pregando o
2 / ~á que .através do estabelecimento de papéis, e da afinnação socialismo, o desenvolvimento do país através de um trabalho árduo, a
d~ uma hierarquia de valores e de prioridades, o formalismo dos proce- necessidade de combater pela liberdade, o fim de toda exploração co-
dimentos e o formalismo das fórmulas servem para transmitir a mensa- lonialista, a necessidade de tomarem-se homens novos, etc. Anunciava-
gem de .que certas coisas são inquestionáveis, ou não devem ser postas se ou repetia-se algumas grande:, decisões tomadas a nível nacional,
em dúvida (o sagrado moderno), ressaltando assim o controle dos ho- explicitando-as e esclarecendo as repercussões que teriam a nível do
mens sobre os assuntos sociais e o controle de uns sobre os outros. comitê .
. ~ / Já que o aspecto do debate livre, a expressão de argumentos Segundo os guineanos interrogados por mim, pareceu-me que três
positl~os e negativos, as possibilidades de improvisação e o leque de temas retomavam freqüentemente à ordem do dia: 1 / as realizações e
dec1soes encontram-se enormemente reduzidos pelos constrangimentos os trabalhos públicos da coletividade: escola, dispensário, adução de
impo~tos atr~vés do sistema político, que esboça os limites de situação água, por exemplo; 2 I a busca de recursos financeiros e de investi-
e defme muitas vezes com antecedência, ou pelo menos sugere forte- mentos humanos, com pedido de contribuições e nomeação de pessoas
mente, os meios de resolver wn problema. encarregadas de levantá-las; 3 I as violações da lei e os desvios com
Mais do que um acontecimento local e um incidente momentâneo relação à linha do Partido Democrático da Guiné. Junto com o apelo à
·-
a reuruao semanal do comitê, na Guiné que eu conheci (na época todo' assiduidade e ao trabalho coletivo vinham as multas e repreensões aos
adulto deveria ter sua carteira do Partido), era um elemento dentro da que não respeitavam as instruções. A predominância desses temas indi-
trama de ocorrências paralelas (as dos outros c.:omitês) constituindo a ca três figuras principais do governo: 1 I o Estado como doador de
base do edifício político nacional, e sustentando o debate democrático. fundos e tutor dos trabalhos públicos; 2 / o Estado como tomador de
Em princípio, todos os adultos residentes no bairro ou na aldeia contribuições e de trabalho humano; 3 I o Estado como decisor, encar-
saudáveis e sem o encargo de crianças, eram instados a comparecer'. regado do executivo, logo das sanções.
Em geral, o enorme absenteísmo era interpretado como um "sinal de A ordem das intervenções: presidente de comitê, secretário, tesou-
individualismo" e de indisciplina dos "inimigos do trabalho .;oletivo" reiro, responsáveis diversos (jovens, mulheres...), ouvintes. • . e a
ou do Partido. Para lutar contra essa "tendência perversa contrária aos extensão das intervenções, tornam perceptível a hierarquia administra-
objetivos da cooperação", em determinados momentos, quando o pre- tiva e partidária. O formalismo do discurso é um meio para indicar as
sidente Sékou Touré ou os altos membros do Partido resolviam aquecer coisas desagradáveis ou perigosas de admitir, e de classificá-las dentro
a vida política nacional, os milicianos iam às ruas para anunciar com de uma ordem e memorizá-las. A discussão de algumas sugestões dos
apitos o início da reunião das 17 horas. Eu os vi entrar com varas nas administrados permite fazer crer na democracia real, oferecendo dela
concessões para desalojar homens que se achavam repousando, provo- um simulacro. É verdade que a tomada de decisão pública supõe uma
cando grandes conflitos nos bairros de Conakry, tanto mais porque es- certa margem de incerteza, de possibilidades abertas nas quais é possí-
ses milicianos eram muitas vezes desempregados que exerciam seu zelo vel fazer escolhas. Porém quanto mais essa tomada de decisão coletiva
militante contra pessoas fatigadas por sua jornada de trabalho. é orientada pela instituição e formalizada, mais a margem de abertura é
Reunidos na sala do comitê, ou na casa de um responsável do Par- reduzida, mais são domesticados os elementos de incerteza pelo con-
tido ou ao ar livre, as pessoas sentavam-se em bancos ou no chão texto formalista que reduz as possibilidades de improvisação. Muitos
aguardando o início da reunião. Na Tanzânia, essas reuniões começa- dos problemas levantados já têm suas decisões resolvidas. É preciso
vam algumas vezes com uma prece cristã ou muçulmana. Na Guiné, aceitá-las. Considerações de responsáveis sugerem claramente que o
após ter recitado slogans conhecidos: "O imperialismo - Abaixo! O debate está encerrado, que as coisas foram decididas de cima, e por-
colonialismo - Abaixo! O neocolonialismo - Abaixo! Vitória - ao po- tanto é inútil discutir. Se os responsáveis têm sobretudo um papel de
vo! Tudo para o povo!", o chefe do comitê enunciava a ordem do dia transmissão e de explicação, por sua atitude eles não demonstram im-
em grande parte transmitida pelas instâncias da seção e do politburo potência. Pelo contrário, associam-se ao poder. Na realidade, essas
nacional. Homenagens ao "nosso chefe bem-amado", ao "guia supre-
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l

reuniões subli~am ~ inserção da socialidade na sociedade. Elas põem pois apesar da socialização política e da propaganda nelas se desenvol-
e~ contato os cidadaos agrupados (elemento visível) com o Estado in-
verem ou se manifestarem, nunca nelas se organizam, pois a decisão
v~sível, re~resentado pelos líderes e responsáveis vinculados às instân-
está em outro lugar. Elas se situam na periferia do sistema, ou seja, na
cias supenores do Partido. Elas põem também em conexão as decisões
entrada, pois trazem sustentação, expressam as limitações em recursos
tomad~ com a li~a ideol6gica prescrita, e o aparelho organizacional
humanos, técnicos e financeiros, e na seleção de demandas endereçadas
da aldeia ou do_ brurro ~om todos os outros do mesmo tipo no país.
aos governos. E também se situam na saída do sistema, no que contri-
_No plano id~ol6gico, opera-se uma identificação do povo com 0 buem para a aplicação das decisões tomadas, permitindo a ilusão da
Partid?, e do Partido com o governo. Este decide sobre o futuro sempre
tomada de decisões pela base.
bom~ enquanto ?s desc~nhos, a desigualdade, a pobreza, a ignorância,
A palabre, pelo contrário, situa-se no próprio coração do político
a bruxa ~roduçao constituem um vestígio da dominação colonial. Daí
tradicional, regulado em parte coletivamente. Na palabre são recebidas
a necessidade ~e se. desfazer das idéias capitalistas para que reine uma
e selecionadas as informações, pesados os interesses e as urgências,
ordem revolucionária de tal maneira que o explorado seja livre, 0 país
combinadas as demandas dos partidos, emitidos os julgamentos refe-
fraco torne-se forte, o ignorante letrado, o dependente independente.
rentes à regulação dos grupos e tomadas as decisões.
~~tro dessa transmutação no entanto deve-se temer os inimigos do so-
Sob um ângulo já agora funcional, oporemos assim as duas formas
cialismo, um socialismo tomado de moralidade. Por isso em 1965 o
~so ~a mini-saia foi proibido na Guiné. Indecência e llcença sex~al de ritos seculares:
1 I Na palabre, a integração ocorre a nível da instituição primária,
identificadas com o capitalismo, onde reina a licença econômica.
em termos de Cooley, ou seja, a nível da família e da vizinhança. Na
A função de moralização do rito transparece por sua vez no fato de
reunião do comitê, é verdade que a reunião seletiva se opera em bases
as reuniões _permitirem inferiorizar o povo que ali ignora onde está o
geográficas de vizinhança, mas pondo entre parênteses (de forma rela-
seu verdadeiro bem, determinado pelo Partido. Essas reuniões na ver-
tiva) as relações de parentesco. O intuito da integração se opera no
dade_ culpam os ausentes, mas culpam também os presentes que negli-
plano político nacional, ou seja, a nível de uma instituição secundária.
genciam as ordens e são exortados a fazer melhor.
2 I A legitimidade do poder no primeiro caso se reforça através de
Se a aparente atenção polida, os aplausos e slogans criados sobre a
uma progressiva modelagem das convicções, no interior de uma comu-
ordem, a a~sê~cia de objeções sérias, são interpretados pelas autorida- nidade que acaba escolhendo o que ela imagina ser o caminho da sabe-
~es como si~rus de sucesso, essas autoridades não ignoram que a retó-
doria; enquanto no segundo caso, a adesão se opera em função de im-
nca do Partido não tem a longa tradição da linguagem cotidiana da et- posições provenientes do exterior da assembléia e sem espontaneidade
~a,. nem a le~timidade do costume e dos hábitos. Elas mal conseguem
de expressão, com a possibilidade do poder permanecer subterranea-
dissnnular o nnpacto posterior da reunião: indiferença laisser-aller
. ... atitudes que já aparecem na pr6pria reunião
expectativa ' quando al-' mente contestado.
3 I No primeiro caso, a participação se expressa efetivamente atra-
guns, de maneira quase sacrílega, murmuram ou riem, destruindo a ilu-
vés de julgamentos, intervenções, panegíricos, cantos; no segundo ca-
são de unanimi~ade, deixando evidente a convencionalidade dos pen- so, a mensagem de participação é percebida como contraditória, pois o
samentos e sentimentos prescritos, assim como a não-congruência entre apelo à iniciativa popular e às sugestões contraria o comportamento pe-
a aparência de aceitação das diretivas e os pensamentos futimos dos
remptório dos oficiais do Partido.
presentes. 4 I O efeito de moralização na palabre se traduz através de uma
regulação tranqüilizadora, e nas reuniões de comitês através das tenta-
Comparação dos dois ritos tivas freqüentemente abortadas de responsabilização e de mobilização,
assim como através da insistência verbal sobre a ética do Partido.
Quem _quer que utilizasse as grades da análise sistêmica do político
5 I Quanto ao aspecto de teatralização, ele aparece na palabre: seu
reconhecena que essas reuniões se situam na periferia do sistema,
cenário, seus papéis, as mensagens emitidas, as emoções suscitadas.
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O lúdico po~e intervir nos momentos de exaltação como uma trégua nho, e da proclamação da República, dia 14 de outubro, presença nas
e te.ndo em v1st~ u~a paz posterior. Nas reuniões do comitê, pelo con- reuniões, visitas, conferências...
trário, a dramat1zaçao dos papéis e dos arranjos políticos é a celebração Nas reuniões organizadas pelo chefe da aldeia para comunicar in-
formal de uma_ or~em,. mas de uma ordem que remete a paz-serenidade formações administrativas, os comportamentos são expressivos, apesar
a um. fu~uro nao nnediato e incessantemente reclama agitação (mudar de uma aceitação formal da modernidade, já que neles observamos: o
contribuir, trabalhar, participar...). ' uso de vestimentas européias, a ausência da ordem de linhagem na ma-
neira de colocar-se no espaço, a tomada da palavra sem fórmula de es-
As turnês do chefe de cantão cusa endereçada aos anciãos presentes, a não-repetição da mensagem
por um intermediário antes da resposta do chefe, a partida dos partici-
Contribu~ é o que reclama o chefe administrativo em sua turnê pantes sem aguardar o sinal dos anciãos.
para o recolhimento do imposto, como observa Gérard Althabe, de É o recebimento do imposto, "espinha dorsal da atividade admi-
q.ue~ estamos explorando as proposições. Em seu estudo sobre os bet-
nistrativa", que dá lugar à mais forte teatralização das relações entre
Slllllsaraka de Madagascar, Oppresssion et libération dans fimaginai- subordinados totais e subordinados parciais, colocados em tal ou qual
r':, esse autor apresenta ~ notável exemplo de ritualização bem pr6- nível da hierarquia. . . De uma periodicidade imutável, o recebimento
xrmo do precedente. Ao nto da palavra mobilizadora alia-se 0 do tri- do imposto é repetitivo tanto em suas ocasiões quanto em seu conteú-
buto e ~a homenagem vassálica. Essa ilustração das relações entre a do, e marca as hierarquias. Os camponeses reúnem o imposto até o vi-
pop~a~ao e os chefes, agentes da administração, pode servir como gésimo primeiro dia de cada mês. No dia 21, o chefe de cantão recebe
tr~siçao P3:ª nos levar à suprema liturgia de glorificação do poder que
a visita dos chefes de aldeia, representados pelos chefes de bairro. No
foi a sagraçao de Bokassa. dia 30, o chefe de cantão leva o imposto ao subprefeito.
De 1958 a 1961, o esforço governamental para o desenvolvimento A visita do chefe de cantão a Fetraomby vale o seu peso em ou-
de Madagascar pode ser traduzido por ações bastante variadas: infor- ro ... convertido em numerário. G.Althabe, que assistiu à cena, assim a
mações, criação ~e um ~entro do Campesinato, distribuição maciça de descreve: ••o ponto central é a arenga do chefe de cantão, que parece
pla.!1os. de caf~zai.s grat~tos, anúncios, plantações experimentais, con- particularmente nervoso; ele amarrou uma corda à viga da varanda e,
ferenci~ explicativas, premios para recompensar esforços, empréstimos durante seu discurso, aponta para ela com um dedo ameaçador; é a
monetários... sorte que aguarda todo refratário ao imposto. Seu discurso é apenas a
ameaça da ira da autoridade superior, através dos gendarmes, para o
_ ~udan?o de mão o poder não havia mudado de conteúdo e o povo
nao via razao em apressar-se para integrar os novos valores da moder- caso do imposto não entrar ainda mais depressa. Um representante da
nid~de ao universo aldeão. Em virtude do fracasso dessas medidas de
população lhe responde: ele o agradece pessoalmente, ele agradece a
~ádiva generosa e de tutela amigável, as autoridades superiores incen-
administração que, enquanto 'pai e mãe', tem razão em empurrá-los,
tivadas por funcionários formados pela antiga escola, inconsciente- eles que são apenas crianças desobedientes; ele promete, em nome de
~nte reencontraram o modo anterior de exercício do poder através do
todos, de agora em diante obedecer, trabalhar para poder pagar o im-
nto e da coerção, que são instrumentos de distância social. posto. Este discurso oficial acontece cerca de 10 horas; antes, delega-
Não é a coerção o signo do executivo? Por isso os chefes, grandes ções vindas de todas as aldeias sucedem-se à porta da casa de cada
e. pequenos, governam através de obrigações e multas: limitação a um funcionário, cada uma delas trazendo uma dádiva (jaka) composta de
d~a d~ duração das_ cerimônias funerárias que ocupavam de quatro a
arroz e de frangos, ao mesmo tempo em que faz um discurso afirmando
oito dias, compressao das despesas cerimoniais para facilitar 0 retomo a obediência dos aldeãos, sua total submissão à administração e a seu
fiscal, inscrição de todos no registro civil, posse da carteira de identi- representante a quem, em sinal de obediência e de respeito, é apresen-
dade, compra da carteira do Partido governamental (PSD Partido So- tada esta dádiva que se lhe suplica aceitar ainda que seja indigna de
cial-Democrata), celebração das festas da Independência, dia 26 de ju- sua grandeza" (Althabe, pp. 32-33).

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!f

Digna de uma ostentação do poder é a varanda sombreada e eleva- mwn da ritualização do político, que entre as cabeças coroadas de ouro
da; significativa do poder coercitivo é a corda, força simb6lica; pr6- e as encasquetadas de estrelas não existe uma grande diferença de aspi-
prios das relações de dominação-sujeição, as censuras e agradecimen- ração entre os chefes de Estado, que se distinguem seja pelo gosto do
tos; indicativo do respeito à autoridade é a vestimenta cuidada do cam- lucro, seja pelo culto da personalidade, seja pela atribuição de títulos
ponês de pé, enquanto os funcionários em vestes sombrias, gravata e prestigiosos, belos espécimes femininos e palácios encantadores.
camisa branca, estão sentados nas cadeiras. Até 20 de setembro de 1979, data em que o ex-presidente David
Tudo na distribuição do espaço, na simb6lica vestimentar européia, Dacko retoma o poder destronando seu "primo", a Centro-África foi
sinal de superioridade para uns e de veneração para os outros, na enun- um império de dois milhões de habitantes dirigido por Jean Bedel Bo-
ciação dos discursos em francês pelos funcionários, e em malgache flo- kassa.
reado com palavras francesas aprendidas pelos camponeses que inter- Nascido aos 22 de fevereiro de 1921 em Bolangui na Oubangui-
vêm, contribui para a teatralização do poder. O tempo do rito fora fixa- Chari (depois Rep. Centro-Africana), batizado Jean-Baptiste de La
do. Em geral, na véspera da visita chega uma circular anunciando-a; os Salle (Jean BDL no calendário das repartições públicas, daí o nome d~
habitantes da aldeia comparecem; à chegada do chefe, sempre de ma- Jean Bedel), o pequeno Bokassa ficou 6rfão aos seis anos, ap6s seu pru.
nhã cedo, grita-se: "Eis o vazaha", ou seja, o estrangeiro, já agora a ter sido bastonado até a morte em 13 de novembro de 1927, por ter-se
personalidade malgache (substituindo o colonizador) que atravessa a oposto à prisão arbitrária de alguns compatriotas. Ele vai então para a
aldeia sob esta ovação, flanqueado por dois policiais, armados com um escola de Santa Joana d' Are de M'Baiki e continua seus estudos em
fuzil sobre o ombro mais para o desfile do que para a segurança. Às 10 Bangui e Brazzaville até maio de 1939, quando aos dezoito anos se en-
horas acontece o discurso; ao meio-dia a refeição. No discurso apare- gaja no exército francês. Ali pennanecerá durante vinte e três anos, até
cem ritualmente os mesmos ingredientes temáticos (imposto, atividade 0 momento de sua transferência, em 1963, para as Forças Armadas cen-
tradicional produtora de víveres - tary - trabalho nas plantações) e tro-africanas. Nesse momento o capitão torna-se comandante. Em 1964
formais (exortação a prosseguir, ameaças aos que não se conformarem ele é promovido a coronel e depois a chefe do estado-maior do exército.
com as exigências, agradecimentos pelo esforço realizado) Na noite de 31 de dezembro de 1965 ele derruba David Dacko através
Ponto final do ritual: a função de reunião mobilizadora está preen- de um golpe de Estado e toma seu lugar. É promovido a presiden~e vi-
chida, a eventual desordem contida, o poder legitimado e a sociedade talício em 2 de março de 1972, nomeia-se marechal em 19 de mru.o de
civil mantida em seu lugar na hierarquia de subordinação ao poder. 1974, crià o Império em 4 de dezembro de 1976 e faz-se coroar em 4
de dezembro de 1977 (cf. La Croix de lg de dezembro de 1977).
A sagração de Bokassa Os detalhes exatos da coroação podem ser lidos em Le Monde de 6
de dezembro de 1977, mas principalmente em La Libertl de l' Yonne, 1-
Que o ritual da sagração de Bokassa tenha sido um exagero e mi- 9 de abril, 14-16 de abril e 21-23 de abril de 1978. Durante o mês pre-
nha escolha de mau gosto, não tenho nenhuma dúvida. Li pela impren- cedente à sagração, plantou-se um cenário para tornar Bangui mais gar-
sa: "Patacoada indecente... , vento de exotismo bufo... , pretexto para rida: estradas refeitas, lojas emboçadas, jardins floridos, bases dos
zombar da África ... , pantomima do poder e de suas vaidades... , car- troncos pintadas de branco antiparasita. Bandeiras, guirlandas e jatos
naval político que fere a miséria anônima .. , as zombarias do poder: d'água nas cores centro-africanas (verde, amarelo, vermelho, branco,
Ave Bokassa" (ver especialmente Jeune Afrique de 16 de dezembro de azul: de uma a três cores da África, de três a cinco cores da França) fo-
1977, Les Nouvelles littéraires de 22 de dezembro de 1977, entre os ram dispostos por toda parte assim como flâmulas com a divisa nacio-
semanários mais mordazes). nal: "Unidade, Dignidade, Trabalho". Em suma, a toalete habitual de
Reconheceremos entretanto que todo pesquisador tem o direito de qualquer capital africana em festa!
se apoderar da hist6ria, pequena ou grande, para interpretá-la, que a Três arcos de triunfo foram construídos, com o frontão decorado
cerimônia da sagração representa muito bem, pelo seu fausto, um swn- por um sol de bronze. No átrio da catedral de São Paulo foram coloca-

-132- -133-

1
dos um ~ossel v~rmelho e dourado, assim como duas estátuas de impe-
rador e nnperatnz romanos. Instalou-se também uma fonte luminosa re- nascimento, aparece o imperador, a fronte cingida por uma coroa de
presentando um sol deslumbrante diante do palácio do Renas · t
Alé d. ·á cnnen o. touros de ouro. Adianta-se até o estrado. Sucedem-se quatro oficiais: o
m isso, J que o _cor~amento iria acontecer no Palácio dos Espor- primeiro traz o cinturão e a espada; o segundo, ajudado por seus solda-
~s, este, cobe~o e climatizado, foi inteiramente adequado a essa fina-
dos, o manto imperial; o terceiro, a coroa (de diamantes, é lógico) e
lidade. Um tecido aveludado verde foi estendido sobre 0 chão reco- último o cetro. Bokassa, à semelhança de Napoleão, coroa-se a si
berto n~ centro por um tapete vermelho que ia desde a entrada ~té um 0
mesmo, depois presta juramento à Constituição. Ele jura I "diante do
estrado igualmente recoberto por tapete vermelho. Acima do estrado foi povo, diante da humanidade inteira e diante da História", garantir a in-
posto um d?ssel nas cores centro-africanas. Sobre o estrado colocou-se dependência nacional, a integridade do território e o respeito aos trata-
o tron~ do nnperador, represen~ando uma grande águia dourada, sendo dos. Em seguida coroa a imperatriz. Os corais do MESAN cantam em
~ cadeira de veludo vermelho. A sua direita 0 trono da imperatriz Cata-
língua sango uma homenagem aos soberanos.
nna, todo ~m v~ludo vermelho com galões dourados e recoberto por A família imperial troca o palácio dos Esportes pela catedral onde
um baldaqumo. A sua esquerda, uma pequena cadeira vermelha e ouro decorrerá a missa solene. Após a missa haverá um coquetel. As festivi-
para o príncipe herdeiro.
dades recomeçam à noite nos jardins do palácio do Renascimento com
V amos ~então para os elementos cênicos do aparelho simbólico: 0
um Jantar e atrações ...
ve~elho purp~a, símbolo de autoridade, de poder; o estrado que real- Observaremos primeiro a separação do público. Para o povo, proi-
ça, o trono que isola um poder bem assentado; os dosséis e baldaquinos bido o acesso ao palácio e à catedral, a distância do imperador, que só
que _repr~~entam a cúpula cósmica; os arcos de triunfo que celebram a aparece de carruagem e com um séquito pomposo, aumenta o trabalho
~~na _militar: as bandeiras ~ue c~nclamam ao consenso nacional; o sol, do imaginário fantástico já exigido pelos preparativos e pela publicida-
p~arua w:an1ana, símbolo nnpenal (assim como a águia) que significa
a vida e a imortalidade. de.
Quanto ao protagonista, ele representa ser imperador, atribuindo-se
. Abandonando os dados codificados - manto de 8 metros de com- a aparência e as maneiras. O semideus se destaca dos homens por sua
pnmento ornado com 1.300.000 contas de cristal, trono de 2,8 tonela- posição central, seu pedestal, sua distância, seu gestual, frente aos
das comportando 800 plumas de bronze dourado, 24.000 garrafas de convidados respeitosos, mas participantes do jogo, e que pelo menos
champanhe, 200 motos BMW, custo total de 7 bilhões de francos CFA simulam estar maravilhados. A etiqueta estabelece os lugares segundo
(cf._ Jeune Afrique de 16 de dezembro de 1977) -, e negligenciando os direitos, e os cardápios segundo as mesas, as três mesas oficiais ten-
muitos detalhes para ir ao essencial, o cenário de domingo 4 de dezem- do direito 'a um cardápio mais elaborado, entre outros: caviar, cama-
bro de 1977 em Bangui é o seguinte:
rões, fois grass, antílope e .•. suprême de capitão à azedinha! O papel
~ partir das 7 horas da manhã os convidados começam a afluir ao
bem ensaiado elimina todos os erros, exceto as falhas de memória e li-
~alác10 dos Es~rtes, transformado em palácio do Coroamento. Os mi-
geira hesitação: foi necessário primeiro retirar os louros para depois
litantes e as militantes do Movimento para a Evolução Social da África colocar a coroa imperial sobre o chefe. Não há dúvida de que o rito
Negra (MESAN), partido único de que Bokassa é o secretário geral napoleônico com sóis e águias, autocoroação e regalia: manto, coroa,
entram em pnmeiro
· · lugar, seguidos
· pelos outros convidados: chefes de' cetro, cai às mil maravilhas em quem efetuou uma rápida ascensão no
Estado ou. seus representantes, embaixadores , ministros • . • A tele v1sao
· - exército, chegou ao poder através de um golpe de Estado (a cada um o
centr~afr1cana_ e a televisão francesa se instalam. Às 9 horas todos os
seu 18 Brumário), transformou seu consulado decenal em consulado
con~dados estao em seus lugares.
vitalício, e ao sagrar-se procedeu piedosamente.
. As 10_ horas, o tambor bate. Um quarto de hora mais tarde, 0 prín- No teatro de Bangui, o ator Bokassa, em cenário napoleônico, re-
cipe herdeiro, _três anos, seguido por sua mãe Catarina, entra no recin- presentou o seu papel de ator único diante do público de convidados
to. Alguns mmutos depois, vindo de carruagem do palácio do Re- localizados de acordo com sua categoria. O herói é apreciado na medi-
da em que abraça uma função dramática ~ujos três motores foram a sur-
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presa (golpe de Estado de 12 de fevereiro de 1966), a ação (operação para as dificuldades presentes. Ele atua tam~m c~mo ~ ~rev~ntiva
Bokassa... ) e o sucesso (cf. a mensagem do ano novo de 1968). destinada a liquidar fisicamente os adversários reais ou unagmários do
Assim como a teatralização faz reviver reservas de imagens e de regime aos quais o governo atribui sempre uma lógica de ação desti~­
súnbolos herdados do passado colonial, a mitificação reorganiza as ge- da a destituir o chefe de Estado. O cenário parece imutável. O presi-
nealogias classificatórias (de Gaulle, "meu pai"; Boganda - pai da in- dente anuncia em meio a um fluxo verbal inextinguível que a vigilância
dependência - "meu tio") para legitimar o poder através das leis da he- do Partido permitiu descobrir in extremis uma "manobra impe~alista
rança, uma herança mestiça: branca e negra, modernista e tradicional. destinada a derrubar o governo revolucionário legal da República da
Quanto ao ato cerimonial: a sagração, ele sacraliza. O rito de passagem Guiné". Em breve, agentes acostumados à técnica combinada de amál-
do profano ao sagrado permite então o distanciamento frente aos mor- gama e de repressão espalham-se por toda a parte e prendem_ durante a
tais comuns, tornado significativo pelo afastamento - representado, ou noite homens e mulheres muitas vezes fichados por seu nao-confo~­
seja fingido - da cena política. Bokassa deixa então o governo e retor- mismo. É então que um grupo restrito de companheiros fiéis do presi-
na à sua terra ancestral, a Berengo, aldeia natal de M'Balanga e de Bo- dente se erige para a circunstância em tribunal revolucionário. Ele diri-
ganda, onde estabelece sua corte de maneira bastante protocolar, de- ge as investigações, procede aos interrogatórios rápidos e dá um vere-
vendo cada um aquiescer através de um "Sim, Majestade imperial" dito geralmente severo, em todo caso sem recurso algu~..Ao ~usado
após ter realizado a seis passos de distância uma ligeira inclinação da nenhuma possibilidade é dada para defender-se. Como ~ns1one~o, está
cabeça para frente (comunicado do Sr. Ange Patassé. Cf. Le Monde de proibido de comunicar-se com os membros de sua famfha, que ignoram
10 de dezembro de 1976). sua sorte e o local onde se encontram detidos.
Ali, o Imperador irá comandar o real pelo imaginário e a razão Será que não estaria na natureza dos regimes totalitários esp~ular
pela violência, o que levará à sua perda, as manifestações de 1979 ex- com o medo e a insegurança de duas maneiras: por um lado, reduzmdo
pressando a desilusão e o descontentamento do povo miserável, contri- através de ritos políticos obrigatórios e aparentemente unanimisW. os
buinte de "dádivas" obrigatórias para pagar as despesas com a sagra- riscos de desvio social; e por outro lado, criando através de pnsoes,
ção. expurgos, exflios, execuções, uma espécie de insegurança instituciona-
Tanto no caso de Bokassa, quanto no de Amin Dada, a utilização lizada e psicológica destinada a fazer tremer os eventuais opone~tes e a
desmedida da violência física, através da intervenção do exército e da obrigar cada membro da nação a cantar em uníssono o credo nacional .e
polícia, tornou visível o não-estabelecimento do consenso e colocou em a glória do chefe? A festa comemorativa alg~ v~zes repe~e u~ vi-
perigo a imagem de legitimidade de um poder que se revelou castrador tória sobre 0 medo. A ritualização do temor visa a alinhar os infié1S nas
e paranóico. Mas aconteceu também que um poder violento tenha-se fileiras dos fiéis.
mantido através da ritualização institucionalizada da própria tirania.
Esse último exemplo de ritualização do trágico felizmente perma-
Os rituais de repressão dos complôs na Guiné nece bastante raro na África, assim como também o que poderia haver
de derrisório, porque excessivo e mimético do colo~ador, na .s~graçã~
De triste memória, Sékou Touré foi mestre na arte de ritualizar seu de Bokassa. Entretanto, a entronização real já é mais uma trad1çao afri-
absolutismo através da repressão em momentos estratégicos. Na Guiné cana do que a investidura de um Presidente da Repúblic~. Basta lem-
de 1960 a 1984, cada complô ou pseudocomplô corresponde a uma brar as belas páginas de Michel Izard sobre a realeza moss1 do Yatenga
conjuntura política, econômica ou social particularmente difícil para o no Burkina Faso as de Alfred Adler sobre o rei de Lere no Tchad, no
regime. As prisões vêm sempre a propósito para evitar as reivindica- texto de Mirabelle Fréville sobre Sobhuza ll, rei da Swazilândia. Mas.ª
ções, responder aos protestos nascidos das dificuldades de abasteci- investidura de um chefe de Estado republicano não deixa de ter soleru-
mento ou resolver crises de ordem essencialmente política. O "com- dade, mesmo nos países de catecismo não-burguês e de ~erimonial
plô" serve então de derivativo, de manobra de diversão, de exutório marxista-leninista-congolo-n'guessista. Por exemplo, o artigo 66 da

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Constituição congolesa de 8 de agosto de 1979 estipula: "Durante sua
entrada em função, o Presidente da República presta solenemente,
Atangana, Benoit, Actualité de Ia palabr~, Revue de Paris, ab~ de .1965. .
diante do plenário do Comitê Central e da Assembléia Nacional Popu- Fréville, Mirabelle, Sobhuza li, nota de pesquisa inédita, Uruvers1dade de Paris
lar, o seguinte juramento: 'Eu juro fidelidade ao povo congolês, à Re-
volução e ao Partido Congolês do Trabalho. Eu me comprometo, V, Sorbonne. e b ·d U ·
· MSH e am n ge ru-
Izard, Michel, Gens du pouvoir, gens de la terre, paris,
guiando-me pelos princípios marxistas-leninistas, a defender os estatu-
versity Press, 1985. _
tos do Partido e a Constituição, a consagrar todas as minhas forças para
Moore, Sally F. e Myerhoff, Barbara G., Secular Ritual, Amsterda, Van Gor-
o triunfo dos ideais proletários do povo congolês no Trabalho, na De-
mocracia e na Paz'." cum, 1977, cap. VIII. · · édita u ·_
Poujol, Sophie, Bokassa et les rituels politiques, nota de pesquisa m ' ru
Além desses momentos raros, abundam ritos políticos que merece-
versidade de Paris V, Sorbonne. . .
riam estudos aprofundados: ritos de acolhimento a chefes de Estado
Riviêre, Claude, Guinea. The mobilization of a people, lthaca, Cornell Uruvers1ty
estrangeiros, de reconciliação de irmãos inimigos, dos Congressos na-
Press, 1977, cap. IV.
cionais, eventualmente de eleições, do apoio às decisões do Presidente
(moções, telegramas, marchas), da animação cultural e política através
das festas ginásticas, artísticas ou esportivas, do retiro em Yamoussou- '
koro antes das decisões importantes de Houphouet-Boigny na Costa do i
Marfim, de libações aos ancestrais antes dos primeiros congressos do
CPP (Convention People's Party) em Gana, etc.
Perceberíamos aí uma tendência tropical ao cesarismo, relativa-
mente admitida por povos pouco habituados à abstração do poder, um
gosto pela sacralização de heróis nacionais através da estatuificação
das figuras da luta especialmente anticolonial, a consulta do soberano
ou o recurso ao chefe-taumaturgo para terapias individuais ou sociais,
o confisco do poder partidário por um grupo único, colegiadamente so-
lidário, decidindo toda a teatralização do político. E nas encenações:
uma decoração diferente do cotidiano, uma simbólica redundante, uma
escolha de atores privilegiados, papéis definidos através do lugar ocu-
pado na hierarquia política, cenários que fazem o informal festivo ser
precedido pelo regulado impositivo e, pela figura de proa: aquele que
manda na terra, no ar e no mar, através de seus exércitos.

BIBUOGRAFIA

Adler, Alfred, La mort est le nu1sque du roi, Paris, Payot, 1982.


Althabe, Gérard, Oppression et libération dans fimaginaire, Paris, Maspero,
1969.
Armstrong, Robert G. (et al.) Socio-political aspects of the palaver in some Afri-
can countries, Paris, Unesco, 1979.

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· - '1
1
SEGUNDA PARTE

INTERPRETAÇÕES SOCIOLÓGICAS
CAPÍTULO VI

PARA UMA ANÁLISE DOS RITOS SECULARES

Se a ciência política quase chegou a negligenciar o problema da


ritualização do político, foi sem dúvida porque o considerou não essen-
cial à compreensão de seu objeto. E lá onde os politiqueiros mais ri-
tualizam a vida pública, é tabu analisar esse modo exterior de reforço
de um regime que lembra demais o forcing das consciências, o jogo das
ilusões, o artifício da propaganda. Mas quem sabe se o relativo silêncio
dos cientistas políticos não é proveniente da sua carência das chaves
analíticas que podem ser encontradas nas caixas de instrumentos do so-
ciólogo, do etnólogo, do historiador das religiões?
Supondo toda análise uma redução a elementos simples, demons-
traremos que as liturgias políticas podem ser compreendidas a partir da
noção de rito, e especialmente de rito secular, cuja idéia é clarificada
com a ajuda da teoria antropológica dos ritos religiosos e através da
sua crítica.
Modalidade particular de uma encenação da vida coletiva e ao
mesmo tempo simulacro onde se investe o imaginário social, o rito se-
cular tende cada vez mais a atrair a atenção dos sociólogos, seja dentro
de uma perspectiva de análise da vida cotidiana à maneira de Goffman
e dos interacionistas, seja dentro do quadro de reflexões que Bellah,
Verba, Shils e Kimberley chamam, na seqüência de Jean-Jacques
Rousseau, de «religião civil".
Esta noção de religião civil, a cujo propósito proliferam mais as
conceitualizações do que os dados empíricos, supõe em cada povo a
existência de uma dimensão religiosa através da qual ele interpreta sua
experiência histórica à luz de princípios éticos que o transcendem.
Distinta da religião da Igreja, assim como da religião da política, a re-
ligião civil aparece no entanto como a dimensão religiosa da vida polí-
tica pois fornece uma finalidade transcendente aos processos políticos.
Ela se expressa em crenças como, por exemplo, a de uma nação eleita
por Deus, campeã dos direitos do homem, em súnbolos venerados co-
mo expressão da identidade nacional e em comportamentos ritualizados

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durante celebrações coletivas. Assim como existe nos Estados Unidos submeter à sua lei a maior parte das manifestações da vida social, in-
da América o dia da lembrança (Memorial Day), de importância capital clusive a ética, tradicionalmente incorporada ao domfuio da religião,
para a comunidade que então renova a ligação e o fervor devotado ao mas com finalidade social e guiada por uma axiologia que de agora em
espírito de sacrifício de seus mártires, da mesma forma na URSS o diante tanto pretende gerir o político quanto o religioso.
mausoléu de Lenin, santuário do socialismo, em certos dias recebe um " Quer falemos de religião civil, cívica ou política, os procedimentos
cortejo de peregrinos. Se tal religião pode coexistir com sentimentos de para a apreensão dos fenômenos continuam análogos, ª-tal ~onto que
uma experiência confessional ativa, ela pode também corresponder a podemos ressaltar na literatura americana sobre a questao cmco gran-
uma transferência do religioso para o político numa sociedade forte- des tipos de problemas propostos: Em que consiste a re~giã? ci~il em
mente secularizada, em busca de valores fundadores e de uma forma de tal contexto nacional? Quais foram seus fundamentos históricos. Que
legitimação sacra da autoridade. ligações observamos entre Igrejas e religião civil (secu~arização, absor-
Com toda evidência, em função das tradições religiosas de cada ção, interinfluência)? Quais instituições tendem mais a engendrar,
povo, das concepções da ordem política e das relações entre religião e manter, modificar as religiões civis? Por que tal nação desenvolve uma
moralidade, serão diferentemente acentuados tal ou qual aspecto ideo- religião civil? _ .
lógico, comportamental ou cultural, a tal ponto que alguns como Ham- Eu não pretendo responder a essas diversas questoes na_ ~ida _em
mond preferirão empregar o termo "religião cívica" para descrever o que minha pesquisa, apesar de situada nesse campo das rehgioes_ ditas
culto da democracia nos Estados Unidos ou o do socialismo na URSS, civis cívicas ou políticas, a elas s6 se prende como um elemento isola-
enquanto outros como Apter, interessados nos sistemas de mobilização do ru'iaüticamente. Eu nada diria por exemplo sobre mitos e ideologias,
do Terceiro Mundo, irão optar pelo vocábulo "religião política". sobre valores e crenças, sobre organização e modo de funcionamento
Talvez fosse o caso de diferenciar os regimes autoritários que fa- das religiões civis, mas limitaria meu interesse nest~ capítulo a ~g~1?as
zem do político uma religião (religião política), e os regimes democrá- maneiras de abordar a questão dos rituais, aproveitando contnbmçoes
ticos que utilizam as religiões como elemento de sustentação do políti- recentes.
co (_religião civil). Essa distinção entre religião política e religião civil, De fato, do encontro, desde há uma vintena de anos, de numerosas
realizada por R.C.Wimberley, seria delineada através de três traços pesquisas efetuadas pelos sociólogos a propósi~o ~as f~s~ profanas
principais: 1 / nas religiões políticas, o elemento religioso estaria con- com uma tradição antropológica de estudo dos ntuais religiosos, r~no­
tido na sacralização da ordem política existente; nas religiões civis, ele vada na sua problemática e no seu modo de análise pela escola dma-
seria proveniente de um laço entre essa ordem e um poder transcen- mista de Gluckman e Turner, surgiu todo um questionamento sobre as
dente, na base das crenças religiosas variadas professadas por essa so- transferências do religioso para o político e sobre as articulações poss_í-
ciedade; 2 / nas religiões políticas, o poder afirmaria sua autoridade, veis entre ritual religioso e cerimônias laicas, tanto no nível da teona
não apenas no domínio político, mas em toda a vida social; nas reli- como no nível dos métodos de dissecção dos fenômenos.
giões civis, o poder limitar-se-ia ao domfuio político; 3 / nas religiões
políticas, existiria um sistema específico de valor e de normas; nas reli- Alguns obstáculos imprevistos
giões civis, seu conteúdo teria tal nível de generalidade que não entra-
ria em conflito nem com as religiões, nem com as normas políticas. Nesse caso, apresenta-se inicialmente um problema de definiçã~. A
Por mais sedutora que seja essa oposição, ela parece no mfuimo maior parte das definições até agora estabelecidas a propósito ~os ntos
discutível, na medida em que a maioria dos casos observados no mundo s6 se aplica em determinados quadros. Panoff comp~~ende o ntual má-
contemporâneo constitui mesclas de religião civil e de religião política. gico-religioso como um "conjunto es~tamente ~odificado de palavras
Em toda parte os comportamentos religiosos continuam a existir, acei- proferidas, de gestos realizados, de objetos marupulado~',.e correspon-
tos, tolerados ou recuperados sob certas formas pelo político que, dendo à crença ativa em seres ou forças sobrenaturais . (P~off,_ P·
avançando progressivamente sobre domínios outrora vizinhos, visa 233). Apreendendo o fenômeno de ritualização entre os arumrus, Julien

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Huxley o definiu como "a formalização ou a canalização adaptiva de
um comportamento de motivação emocional, sob a pressão teleonômica radas, e o profano, ou pelo menos o secular que suscita numerosas
da seleção natural" (Huxley, p. 9). Esta última definição do conceito questões ainda não resolvidas: Se nas sociedades modernas o elemento
numa ótica etológica e funcionalista carece de pertinência em alguns sobrenatural desaparece, o cerimonial muda radicalmente de natureza
pontos na medida em que outras condutas além das rituais alcançam os com relação aos critérios que o definem dentro de um contexto religio-
mesmos fins. Edmond Leach e Victor Turner insistem sobre outra ca- soe mágico? Se o rito foi muitas vezes considerado como a ilustração e
racterística do rito, tal como a sua repetitividade, sua resistência às a repetição no plano da ação daquilo que é afirmado pelo rito no plano
mudanças, sua irracionalidade prática, sua universalidade, sua expres- das idéias, deveríamos procurar para os ritos seculares um equivalente
sividade, abrindo caminho a uma compreensão mais ampliada. do mito que seria a ideologia, ou talvez negar a constância do laço mo-
Enquanto Leach evidencia o aspecto "condutas de comunicação" delo-representação, ou ainda, por escolha de método, diferenciar, como
dos ritos, que ele considera como sistemas de sinalização a partir de Lévi-Strauss, o rito, o mito e a iconografia como três planos sobre os
códigos culturalmeme definidos, Turner sublinha características tais quais se projeta uma mesma realidade, possuindo cada um a sua própria
como: 1 / o aspecto ao mesmo tempo concreto e metafórico das infor- estrutura?
mações estocadas em objetos, gestos e palavras rituais simbólicas; Seria também necessário explicar psicologicamente a tendência
2 / o retorno desses súnbolos, catalisadores de ação, a valores decisi- bastante geral para a ritualização dos comportamentos. E, supondo que
vos para a comunidade e com forte ressonância afetiva; 3 / a ordena- pudéssemos distinguir, como Blandine tentou, trinta e dois itens como
ção dos meios de contato com o numinoso para as finalidades profun- elementos fundamentais de um ritual, resta esclarecer as razões da sele-
das do ritual; 4 I a estrutura dramática do rito comportando uma pro- ção de alguns dentre eles, a maneira pela qual se ordenam em tal tipo
gressão das ações, reciprocidade dos papéis, definição dos lugares e in- de cerimônia, assim como seus significados. Qualquer exegese com es-
serção do efeito de breves ações rituais em uma longa duração. se propósito permanece ambígua na medida em que o rito é uma lin-
De acordo com seus interesses e sua lógica demonstrativa, outros guagem que remete a múltiplos níveis de sentido. Nenhuma técnica nos
autores acentuam ora a violência, ora a negociação. Por isso René Gi- poderia desenhar os limites de seu campo semântico, nem revelar as
rard tende a privilegiar o paradigma do rito sacrificial para interpretar o partes relativas da eficácia social e da participação ideológica espera-
ritual como violência desviada, sublimada e transcendida. Para Michel das e realizadas pelos participantes. E podemos indicar com exatidão as
Maffesoli, os ritos "tendem a negociar com a alteridade, quer seja a fronteiras do ritual e do não-ritual, do sagrado e do profano, do religio-
alteridade da deidade ou a alteridade esparsa do social. Aquilo que é so e do laico? Não são exibidos súnbolos religiosos nas cerimônias lai-
outro é ameaçador, mas é ao mesmo tempo fundador. É isso mesmo que cas (orações durante uma sessão do Congresso americano), e não têm
constitui a ambivalência da violência com a qual é preciso negociar as instituições tais como as Igrejas aspectos profanos temporais (territó-
sempre e de novo" (Maffesoli, p. 191). rios sacralizados), financeiros (coletas durante o ofício) e políticos (in-
Não podemos concordar com a aplicação das idéias de violência e fluências de padres e bispos nas escolhas de ordem comunal ou nacio-
de fundação a toda forma de rito. As teorias unificadoras mascaram as nal)? •.. Além disso, seria equivocado atribuir rituais religiosos às so-
nuances do real por pressa de concluir. Para os rituais seculares, que ciedades ditas primitivas e rituais laicos às sociedades ditas complexas.
não deveremos considerar a priori como sobrevivência de ritos religio- As sociedades ditas primitivas também têm ritos seculares e as socieda-
sos, com transformação de seus referentes e de seu gestual, a contribui- des complexas ritos religiosos. E como poderíamos considerar estas úl-
ção definidora antes reclama uma comparação. A investigação permiti- timas totalmente laicas ou seculares quando nelas não só percebemos as
rá dizer quais são as semelhanças e as dessemelhanças de ritualidade consagrações do poder como também toda uma ritualização da vida
entre os animais, na vida cotidiana dos homens, nos comportamentos coletiva?
religiosos, nas seqüências festivas da política ou do esporte, etc.
O confronto principal será entre o religioso, com teorias já elabo-

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Procedimento anal6gico sublinhar as constantes sem esquecer de nuançar nossas asserções.
Epistemologicamente, postularemos que toda teoria nova contém a an-
Entretant~, teólogos, historiadores e sociólogos das religiões te - tiga sob forma de aproximação e tentaremos integrar as teorias dos ri-
d em, para
F . evitar confusões, a acentuar as diferenças,
. como sublinha n tuais religiosos numa teoria mais ampla incluindo os rituais cotidianos,
te:~ois Isambert quando ~e refere criticamente à oposição termo a políticos e seculares em geral.
ai propos~ por_ Pa~ Ricoeur, da manifestação e da proclamação Quer seja religioso ou laico, o rito aparece repetitivo em suas oca-
que g~s nao hesitariam em utilizar para diferenciar os ritos reli i siões, seus conteúdos, e relativamente invariável ou muito lentamente
sos dos ntos seculares (lsambert, p. 289). g o- variável nas suas formas. Um erro, uma omissão ou uma variante na sé-
ne das operações basta, aos olhos dos atores e segundo as observações
dos etnógrafos, para explicar seus fracassos. O aspecto repetitivo su-
Manifestação de uma potência. Proclamação pela palavra. blinha que a mensagem é sempre durável e serve para conduzir o futu-
Teologia do nome. Hierofania do ídolo. ro. Acontecendo pela primeira ou pela centésima vez, a cerimônia co-
Modalidade do fazer co.n a Evocação da história. letiva tem os efeitos de uma tradição pois ela repete, num estilo rígido,
potência. formas e conteúdos de representações que os participantes têm em co-
Simbolismo cósnúco. Conteúdo ético e histórico. mum. Entretanto, no caso de um ritual religioso, a referência ao back-
Lógica simbólica. Lógica existencial. ground mítico global parece mais explícita, mais consciente e mais am-
pla do que na cerimônia laica, remetendo, através de símbolos menos
numerosos e menos carregados de sentido, a um determinado aspecto
-É verdade _q~e Ricoeur, por um lado, só quer mostrar duas polari- da cultura: página da história nacional, culto do líder ou do campeão.
zaçoes
vand . tendenciais
- há e ' por. outr
- o 1a do, tempera sua apresentação obser- Resta no entanto observar que a reiteração de valores e de gestos não
itoo~ nao pala~ra c_nsta sem sentimento de dependência com res- se opõe à inovação sob outros ângulos, e que muitos ritos políticos
pe . uma ~otência; nao há fé sem signo; não há perda total de sim- pretendem apenas provocar uma coesão para orientar os atores sociais
bohsm.? c?srmc~ quando se passa para o regime da roclama - - na direção de mudanças.
há ausencia de simbolismo numa lógica da existência. p çao, nao O rito implica, além disso, um jogo de papéis, ou seja, de palavras e
Mas se opu~éssemos: manifestação de uma potência e hierofania de ações não espontâneas que se apresentam como um espelho parcial
do íd~lo, e ~epois teologia do nome e proclamação pela palavra a di- e por vezes invertido dos arranjos sociais e dos modos de pensar. O rito,
coto~a ficana bastante reduzida: o que é uma hierofania senão a'mani enquanto etiqueta de um outro lugar na encenação da vida cotidiana,
festaçao de uma potência? E se o ídolo é a potência da nação acredita= marca as relações entre papéis, é uma promessa de continuidade. Ele em
?1ºs _menos nele do que no poder de Santa Rita? A palavra ídolo é parte autoriza as predições referentes ao aspecto futuro dos papéis, so-
JOrauva para os que se situam do lado da fé religiosa mas fé pe- bretudo se ele interrompe "desordens" (dramatização guineana da des-
homem é de natureza diversa da fé no homem que os' cristã~s c::i= coberta de complôs), se procura contê-las ou as permite temporaria-
Deus e em _outros que eles decretam estar no céu? Não é o nome verbo mente controlando-as (carnaval, festa dos Loucos, rituais de rebelião).
e a teo}ogia . proclamação verbal daquilo que acreditamos saber d~ Constantemente esses papéis são atribuídos através dos lugares e das
Deus? E a . éuca
. menos es senci·al ao rehg10so
. .
?
t do que ao secular políti-
co. E históna de Bu~a, de Jesus ou de Maomé, não constituem o
ponto ocal de todas as hierofanias para o homem religioso?
precedências, tanto nos rituais de entronização ou de morte quanto nas
cerimônias de trote nos calouros, de abertura solene do ano universitário
ou de aula inaugural no College de France. Durante o rito não se realiza
_Fundamentados ~o r~iocínio por analogia e para progredir no nenhuma transformação essencial do mundo das relações sociais mas
sen~o d: uma conceituahzação extensiva dos ritos através de uma es- apenas uma manipulação temporária de alguns elementos relacionais.
pec icaçao e uma acumulação de traços comuns, começamos então por Geralmente ele exige comportamentos particulares diversos dos

-148- -149-
º problema dos sucessos e dos níveis · da m · tegraça- 0 ) ' renovar e revivi-
comportamentos adotados na vida corrente. Sob o ângulo da soleniza- fi car crenças propagar as idéias de uma cultura e dar-lh~s uma forma
ção, ele se apresenta em ruptura com o cotidiano, bem menos formali- ··
(o que remete' a uma dimensão cogrut1va), de limitar papéis e .tentar es-
zado. Entretanto, na vida cotidiana já existem as condutas de respeito, truturar nos comportamentos a maneira pela qual uma sociedade ou
de zombaria, de evitação sobre as quais o rito secular produz um efeito social se pensa. A ausência de referê~cia ao sa~rado ~té agor~
de aumento. Ele s6 desvela de maneira mais veemente, mais coerente e ~a tomar vulnerável esse primeiro ensaio ~a análise, ~is ~s de
mais consistente o verdadeiro tecido das relações sociais. Ele proclama ~ensores de uma tradição antropológica recusariam .ª de,no;naçao ~e
de modo mais forte do que de hábito as mesmas mensagens, mesmo que rituais ao que considerariam apenas "cerimônias laicas' . . as ~e e:ce
eventualmente use c6digos diferentes. Consideremos em especial toda a último termo só designa comportamentos fot mais n~ domfuio nao t -
práxis gestual, meticulosa e complexa, do teatro asiático, tomando de ló . não percebemos bem o que marca sua diferença de outras
no gico, . ifi · rta pouco se con-
empréstimo às cadeias de reflexos e de atitudes semi-automatizadas al- a ões estereotipadas. E no entanto o s1gn icante Impo - .
ç . nif' do Aliás devemos nós tao levianamente
~=º:es~~r~t~s %~e~~s ~astam'
guns elementos dos códigos de relações cotidianas, mas atribuindcrlhes
uma importância nústica e esotérica. Conhecemos o elevado quociente a idéia de sacralidade? Quer-nos
comunicativo da arte da dança e da pantomima hindu, e como o zen parecer ~ue a retificação da idéia de sagrado e do lugar do sagrado ?º
automatiza conscientemente as práticas da cerimônia do chá e da luta mundo moderno deve ser proposta pela extensão de uma concepçao
de espadas. Assim, através de sua ordem e de sua rítmica, o rito liga o muito particularizadora.
universo humano ao cosmos.
Enquanto acontecimento ordenado onde aparecem, segundo as se- O sagrado modenw
qüências prescritas, pessoas e elementos culturais, ele só poderia deixar
que se expressasse a espontaneidade, do transe africano por exemplo, Fundamentada numa recessão bastante geral das práticas _religiosas
ordenando seus pontos de vista, tempo e lugar. É sem dúvida a exati- Ocidente apesar dos fudices de renovação, produ~-se n~o apenads
dão exagerada dessa ordem que a diferencia do cotidiano bem menos no
uma disjunção' do sagrado e do prof ano, mas um menor 1nvesumento o
. de
padronizado. Mas é verdade que em muitos acontecimentos da vida co- sa ado na vida cotidiana, na medida em que ~s .~ogmas e as no~asan-
tidiana - acesso a um lugar privado, manifestações de gratidão, abor- grduta parecem reduzir-se em proveito de opuuoes e gostos mai~ tr
dagens sexuais, aniversários -, também se incorporam símbolos e en- coo
·tó ·os porém não menos imperativos, ve1cu · la dos por uma. sociedade
~~d~ o' consumo de supérfluos e de lazeres assume uma importancia
A •

caixam-se ritos.
Eu não insistiria sobre o aspecto de teatralização que sublinharam maior do que a produção de subsistência. A •

muito bem, entre outros, Georges Balandier em Le pouvoir sur scenes, A degradação dos ritos antigos explica-se também ix:la referencia a
e Michel Maffesoli em La conquête du prtsent, nem sobre as analogias uma outra concepção do tempo num m undo que amphou espantosa- . ..
entre o jogo e rito abordadas por Guy Dorfles em Mythes et rites a norama cinético· a incrível aceleração das poss1bil1da-
mente o seu P · . recordes de
d' aujourd' hiti, a não ser para observar quanto o elemento ritual "entra des motrizes permitindo a ultrapassagem mcessante, po~ ' rá
em jogo" nas competições esportivas de nosso tempo e no aparato do múltiplas barreiras do tempo psicológico e topocronológ1co. M~s.::
político que visa, através de uma estilização evocadora, feita de sím- que assim nós realmente não desmitificamos o alé~ do tempo v1v~~~
o conhecido ou quem sabe até mesmo nao abnmos um
~ fic~ões,
bolos manipulados e de estímulos sensoriais, criar um estado de espí-
rito e transmitir mensagens de forte significado social e forte carga :!:çamplo às aos mitos do futuro e à fetichização das téc-
. ?
afetiva, que solidificam as solidariedades entre os participantes.
Isso pretende sugerir que os ritos tanto se definem por suas finali- ru~as~ sar do que poderíamos chamar de eclipse do sagrado o~ d; um
dades quanto por sua morfologia. Tanto num mundo religioso quanto roces1: generalizado de dessacralização, surge~ ~onas de res1stenc1a
nas sociedades civis, eles têm.como finalidade refazer e reforçar laços, ~o sagrado, porque o homem é um animal religioso e porque uma
algumas vezes expressando conflitos para ultrapassá-los (o que levanta
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aculturação religiosa, durante séculos, imprimiu modos de comporta- poder, do modelo de nova sociedade, do desenvolvimento ou da revo-
°:1ent? e de. pensamento que deixam uma certa nostalgia de uma interio- lução a fim de mobilizar o povo.
"As sacralizações inevitáveis em todo processo de mudança social
nzaçao mais fort: d?s princípios religiosos. Nos países islâmicos, por
exemplo, a tendencia é atribuir ao benefício da fé o dinamismo e a onde grupos que ascendem ao poder têm interesses em impor a evidên-
melhoria do bem-estar geral comprovados pelos Estados. cia de seu poder", diz Vicent Cosmao, "tanto mais arriscam-se a ser
ocultadas quanto mais os sistemas religiosos estiverem implicados na
A ren?vação da_s ade.sões relig!o~as (retomo à prática, atração pe-
sacralização da ordem antiga e quanto mais as dessacralizações neces-
las comurudades cansmáticas, multiphcação das seitas moda das sabe-
dorias orientais) provavelmente tanto corresponde às i~certezas do pre-
sárias forem feitas contra eles: sua impotência em assegurar efetiva-
mente a regulação das sacralizações inerentes à ordem antiga os des-
sente e d~ futuro quanto às decepções com certas esperanças de mu-
qualifica para a regulação das sacralizações em curso" (Cosmao, p.
dança _social, colocadas num engajamento ideológico profano ou numa
mutaçao estrutural do Estado independente. 383). Simultaneamente, a regulação política pretende afrrmar-se como
· · Mas o que revela a permanência do sagrado mais claramente ainda reguladora de tudo, até mesmo da religiosidade. Para escap~ ~ e~a em
caso de sujeição e de recusa, poder-se-á escolher quer a religiosidade
d? que a ~tribuição de uma transcendência a valores como o homem, a
despolitizante de certas correntes místicas, quer a sacralização negati~a
v~da, a saude, .~ub~nhados pelos tabus, ou do que a mitificação de no-
da violência insurrecional. Por isso, mesmo nas sociedades dessacrali-
çoes como a ciencia e o progresso, parece-me ser a transferência do sa-
zadas, a religiosidade inconsciente (o inconsciente é re~igioso, afrrmam
grado do domúúo religioso para o domúúo temporal. Assim como cada
os psicólogos) jaz nas camadas profundas do ser e contmua a preencher
~ulo fa~brica suas utopias e seus códigos, cada regime político se atri-
bui um sistema de representações ideológicas que considera científicas. uma função essencial na economia da psique.
Por isso é preciso convir que o sagrado (jascinans e tremendum) é
Ele .f~rmula seus im~r~tivos e cria seus ritos seculares com função
mobihzadora ou terapeutica. Por grandes clérigos, ele tem os da Corte uma dimensão antropológica fundamental, que seu campo não poderia
Suprema e a intelectocracia da política, da medicina ou da universida- ser reduzido ao das religiões instituídas, como tampouco a análise de
de~ na maior parte do tempo atuando em uníssono para assegurar o res-
suas manifestações à uma sociografia das práticas religiosas.
Como então demarcar o que recobre o sagrado no quadro da mo-
peito às regras. Por força apostólica: toda uma coorte de devotos cha-
dernidade atual, e especialmente com referência aos ritos seculares? Se
mados ~itan~es. Qu~nto ao líder supremo, Redentor Osagyefo (Nkru-
o rito não supõe necessariamente uma crença nos espíritos (dive:giI~os
mah), T~onerro Nac~onal (Eyadema), Guia Esclarecido (Sékou-Touré)
que fabnca seu catec~smo em ~ois volumes com perguntas e respostas, da opinião de Durkheim), ele pelo menos manifesta-se c~m refer~n~ia a
um sagrado em domínio bem mais amplo que o domúuo do reh~1oso,
~.erá p~a ele verdaderramente Impossível sondar os rins e os corações?
na medida em que recobre aquilo que, nos princípios, na ideologia, no
Eu nao temo nada, X... (o chefe de Estado) conhece o meu valor"
lemos numa faixa em certa capital da costa do Benin! ' poder, não poderia ser questionado. O~ o~j~tos, ~únbo~os, ,:o~po~­
mentos, idéias, que fazem parte das cenmoruas laicas sao tao mques-
Em toda. p~~· a religião dominante, entendida como função regu-
ladora da rehgiosidade, revela-se impotente para controlar os desenca- tionãveis quanto os que fazem parte dos ritos religiosos e podem ter um
deamentos desta religiosidade entendida como tendência sacralizadora igualmente forte poder afetivo e mobilizador.
como conduta que constrói e institui o sagrado. O processo dito de se~
o sagrado moderno é o domínio do preservado, do reservad~, da
autoridade imperativa, do assim dito legítimo indubitável. Os nt~s,
cularizaçã~ oculta muitas vezes a proliferação sei vagem da religiosida-
cujas conseqüências ultrapassam seus puros efeito~ sociais, fazem m-
de. Aos dikt_ats est_atais de rejeição ao ópio do povo correspondeu o
tervir noções de autoridade e de verdade que perrnitem a:anscender ?s
c~lto ~e S~n~ assim como o culto da Razão seguiu os ataques revolu-
c10nários dmgidos contra o poder do clero e contra os mitos alegados conflitos pela referência a um interesse superi?r. ~u c~n~1dero que .nao
existe diferença radical de natureza entre os ntuais religiosos ~rov1dos
por ele para garantir seu.poder. Na África o sonho de uma política lai-
de tabus, porque atuam sobre o sagrado fundamentalmente pengoso, e
ca favorece os delírios das políticas auto-sacralizantes: sacralização do
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(a que crenças se refere?), o componente semântico (que símbolos
certas cerimônias políticas onde se expressam interditos de poder e on- aciona?) e o componente motor, já que todo rito é uma atividade motriz
de a verdade é orquestrada pelas autoridades. privilegiada com finalidade propiciatória, apotrópica, liberadora ou sa-
Sacralidade e autoridade não deixam de ter dimensões comuns, a cramental.
tal ponto, que n~ zon~ dos poderes religiosos e políticos, o indubitável Teremos o cuidado de examinar o ajustamento de níveis diferentes.
e 0 post~lado sa? ~mto mais uma questão de grau do que de espécie. De fato, todo cerimonial, também chamado rito sistêmico total (por
En~e o ?t~ rel~gio~o e laico, a diferença é mais ideológica do que
? exemplo de nascimento, de casamento, de morte), comporta seqüências
soci~lógica. 0 pn1:11erro poe em jogo um outro mundo, o segundo põe rituais algumas vezes denominadas ritos sistêmicos elementares (purifi-
em Jogo es~e aqui mesmo (mas transcendendo-o, é verdade). Ambos cação, sacrifício, apresentação à família), que incluem ritemas, opera-
porém sublinham . 8:5 ~lações fortes dos homens com a potência de ções ou ações rituais. Esses ritemas, considerados como motivos inva-
cert~s valor~s espmturus, econômicos ou políticos. Ambos incorporam riantes, como andar em círculos, ainda podem estar associados a vários
ideais de uruda~e ao ~eal do visto e do sentido (o grupo e os súnbolos), elementos ou argumentos. Por exemplo, em um ritema funerário de an-
mesmo que a drmensao doutrinal esteja menos afirmada na cerimônia dar em círculos deveremos distinguir os atores, o eixo do movimento, a
secular. Ambos respondem a questões de sentido e de eficácia não repetição, o contato... Diremos assim que sete velhos do sexo mascu-
servem _para questionar e trazem uma forte carga emotiva. A hipe~con­ lino dão três voltas no sentido dos ponteiros do relógio, em tomo de
centr~~ao. provocada pelo ritual leva a uma certa perda de controle da um cadáver envolto numa mortalha branca, sem tocá-lo. É então a es-
conscienci~ e dá a impressão de uma vida mais intensa assim como de pecificidade da relação entre elementos que detennina o motivo e não
uma espécie de e~grandecimento dos sentimentos e do poder do ho- os próprios elementos. Concebemos então por hipótese a possibilidade
mem. Poder e sentlmento de poder ligam-se estreitamente, tanto entre de expressar o comportamento ritual a partir de um pequeno número de
?s ~dero~os quanto entre os dominados, através de um processo de matrizes, os motivos, com a ajuda de elementos, objetos e indivíduos
identificaçao com o poder do Estado ou do grupo. os mais diversos.
l!"ma vez estabelecidos em seus grandes traços os caracteres gerais Após ter procedido à análise de um rito como a de um texto, re-
dos ntos, após a ~nfrontação dos religiosos com os seculares, só po- cortando-o até os seus últimos componentes, deveremos então apreen-
deríamos progr~rr ~a especificação de uns com relação aos outros der nesse rito os níveis de realidade investidos de um valor estratégico
p:1"oc.e~endo a nnnuc1osas descrições e análises metódicas tanto de seu (traços mais importantes e acontecimentos mais significativos) com a
significado simbólico quanto de sua organização estrutural. fmalidade de apreender o modelo, ou seja, o sistema simbólico de re-
presentações, articulando as propriedades aos principais aspectos da
Análise descritiva realidade considerada.
No intuito de discernir nos conjuntos de súnbolos aqueles que têm
. É i?útil. apresentar técnicas de investigação que, para 0 estudo dos uma riqueza semântica e possuem uma estrutura específica, Victor Tur-
ntos, na~ diferem dos métodos habituais da antropologia qualitativa: ner (in Huxley, pp. 76-77) propõe uma análise tridimensional. Cada
observaça~ sobretudo participante, relatos de vida, pesquisa direta ou elemento do ritual - gesto, objeto -, segundo ele, possui um significa-
através de mformantes, a~álise de conteúdo, etc. Nessas pesquisas esta- do que se desenvolve de acordo com: 1 I uma dimensão exegética que
remos a~ntos ~to .às dtmensões espaciais (local, praça, estação, tea- corresponde ao corpus de explicações fornecidas pelo informante. Tais
tr~, ~s~10, escntóno...) quanto temporais (datação, tempos fortes da explicações, ou fundamentos semânticos, são de três espécies: nomi-
~xtstencia, cronometragem das. operações, mitificação da extratempora- nais, ou seja, correspondentes aos nomes atribuídos aos símbolos nos
hdade). Observaremos o cenário e os objetos simbólicos, os gestos e as contextos rituais, substanciais, definidas através das propriedades natu-
postur~, o texto e o lugar d~s atores, suas relações verbais e compor- rais e materiais selecionadas pela cultura como característica desses
~entrus permanecendo particularmente vigilantes para apreeender os objetos; artificiais, correspondentes ao tratanlento e à conformação in-
tres componentes fundamentais do rito: o componente gnoseológico
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tencionalmente imposta ao objeto; 2 / uma dimensão operatória, legí- exegese sintética de um episódio homogêneo. Considerando o número
vel na utilização do súnbolo, feita pelos que participam do ritual; limitado dos ritemas e a infinidade de suas combinações, duas cerimfr
3 / uma dimensão posicional: sendo o súnbolo encarado sob o ângulo nias podem organizar os mesmos ritemas em ordens diferentes, o que
de suas relações com outros símbolos. pede uma explicação. Às vezes uma mesma festa consistirá num con-
Esse método de pesquisa deve certamente ser modulado de acordo junto de cerimônias onde o lugar de cada uma (o desfile militar por
com o caso. Ele não ficaria menos sugestivo se uma simbólica social, exemplo) dentro da seqüência irá variar de acordo com os anos e se-
investindo-se oficialmente no religioso, pretendesse reorganizar-se em gundo as circunstâncias. A ordem seqüencial tende a ser mais rigorosa
compromissos profanos ou numa forma de expressão política. Mas de nos ritos de regimes autoritários e nos ritos de regimes democráticos de
que maneira decidir se uma interpretação dos súnbolos é mais válida do tradição forte (ex.: as cerimônias da Ordem da Jarreteira que remonta à
que outra? Não poderíamos ficar limitados às interpretações dos atores, cavalaria inglesa do século XIV). Muitas vezes a duração estruturada
às racionalizações dos "devotos" que também devem ser interpretadas. remete a uma duração estruturante, a do mito ou do ~ontecimento fun-
Seria conveniente portanto interpretar o ritual no interior de seu con- dador servindo de paradigma à série de ritemas.
texto empírico apreeendendo os objetos de pensamento e os sentimen- 2 / A estrutura dos papéis: Aqui a atenção se dirige para a situa-
tos a que se refere o simbolismo, mas também através de comparações ção, a posição dos atores e suas condutas estereotipadas eventualmente
com outros contextos e do esclarecimento das idéias teóricas gerais ligadas a outros sistemas que não rituais, numa espécie de drama insti-
veiculadas por esse simbolismo, sem que absolutamente seja possível tuído. Devemos ao Goffman de La mi.se en scene de la vie quotidienne
verificar a verdade ou a falsidade da interpretação divergente. esse tipo de análise em termos psicossociológicos de interação, de es-
Para os próprios ritos a recontextualização também é capital, como tatuto, de papel mais ou menos codificado, em situações familiares ou
lembra Arnold Van Gennep: "Um rito ou um ato social não tem um teatralizadas em modelos típicos.
valor nem um sentido intrfuseco definidos de uma vez por todas; mas As liturgias políticas se constituem em tomo de três tipos de ato-
muda de valor e de sentido de acordo com os atos que o precedem e os res: os organizadores, os atores propriamente ditos e os espectadores.
que o seguem; de onde se conclui que para compreender um rito, uma Os efeitos sobre os últimos estão em parcial decalagem com relação às
instituição ou uma técnica, não é preciso extraí-lo arbitrariamente do intenções dos primeiros e às realizações dos segundos. O estudo da 16-
conjunto cerimonial, jurídico ou tecnológico do qual faz parte: pelo gica social dos atores deve levar em conta, junto com as condições de
contrário é preciso sempre considerar cada elemento deste conjunto nas produção e de organização da festa, a reciprocidade dos papéis entre os
suas relações com outros elementos" (Van Gennep, p. 160). atores e sua totalidade orgânica inspirada por um esquema hierárquico
(Nuremberg) ou igualitário (12 de Maio). Se na festa profana e popular
Abordagem estrutural eventualmente existe reversibilidade dos papéis, podendo o espectador
tomar-se ator ou organizador, e não provocando o papel conseqüências
O intuito da análise estrutural (diferente de uma análise estrutural à na vida cotidiana, o mesmo não se dá no rito religioso ou na liturgia
maneira de Lévi-Strauss) consiste justamente em destacar esses con- política: o lugar habitual na hierarquia define a atribuição de tarefas
juntos de elementos. Reexplorando algumas intuições de Turner, Leach rituais, a representação visa um efeito não lúdico e a partilha de ideais
e Thomas, pareceu-nos que poderiam ser considerados cinco aspectos comuns. Funcionando de acordo com o eixo controle-dependência, o
estruturais dos ritos: rito sublinha as relações assimétricas entre duas posições sociais.
1 / A estrutura temporal da ação: O procedimento consiste em re- 3 / A estrutura dos valores e dos fins: Em linguagem muitas vezes
cortar o ritual em fases e subunidades que correspondem ao arranjo es- alusiva expressam-se as escolhas primordiais de uma sociedade, das
pecífico de atividades ou de objetos simbólicos (cf. Evans-Pritchard: o quais algumas são enunciadas verbalmente como aspirações a serem
casamento segundo o costume entre os luo; Turner: ritos ndembu de realizadas, outras indicadas pelo arranjo dos gestos, símbolos e atitudes
nascimento de gêmeos). O recorte seqüencial permite a cada passo a referentes a hábitos éticos e culturais. O feixe desses valores decisivos,

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ligados uns aos outros, não fortuitamente reunidos, e relativamente hie-
rarquizados, que examinamos a propósito dos ritos revolucionários ou pode ser comprometida pelo processo de comunicação: música, dança,
bebida. E assim esse processo pode transformar a mensagem de tipo
dos ritos nazistas por exemplo, constitui a estrutura ideológica que ser-
ve de m~del.o c?memorativo ou de modelo projetivo para o rito. O mítico em ritual de divertimento para o público (folclorização das anti-
contexto mstltuc1onal do rito deixa aparecer preferências coletivas (ex.: gas máscaras religiosas outrora proibidas aos não-iniciados e agora
esforço e frugalidade pelos pioneiros puritanos instalados nos Estados exibidas em festas políticas africanas como simples símbolos de identi-
Unidos), intuitos subjacentes (integração, doutrinamento, mobiliza- dade regional). Em outros casos, o processo de comunicação, único resí-
ção...) dos organizadores de ritos, e uma ordem das potências consi- duo do cenário ritual, torna-se a principal mensagem da festa (desfile,
baile, fogo de artifício do 14 de Julho). Ou ainda a comunicação de tipo
deradas supn:mas ou superiores (deus, santo, herói) ou delegadas adi-
ferentes níveis. Mas ao conteúdo cognitivo e avaliativo das ideologias festivo só intervém após a representação da mensagem (para os sindica-
acrescenta-se uma ressonância afetiva indiscutível que o ritual permite listas que desfilam em 12 de Maio). Algumas vezes a comunicação festiva
ler através da participação, da emoção, da memória dos atores e espec- subseqüente também destrói com seus excessos e com o ridículo o sentido
tadores. de uma mensagem que as elites pretenderam transmitir numa liturgia polí-
4 / A estrutura dos meios: A estrutura teleológica dos fins e valo- tica que reuniu participantes de maneira mais ou menos coercitiva.
Entre a tradução repetitiva e rígida de uma ordem concebida como
r~s i~plic~ o emprego de meios ordenados para realizá-los, ainda que o
fün nao seja sempre o princípio de onde deduziu-se o meio e que a dis- absoluta e os elementos improvisados, variáveis, que expressam a cria-
posição de certos meios pudesse incitar a atribuir-se certos fins. Para tividade do social, e algumas vezes um lado anárquico e conflitual,
entrar em contato com o numinoso ou adquirir paz e certeza, ou defen- existe uma oscilação evidenciada por Turner em sua abordagem do rito
der a pátria, ou realizar uma certa igualdade, são acionados e ordena- como estrutura e antiestrutura em The Ritual Process.
dos entre si meios variados de significado simbólico e não técnico: lu- Mas a análise estrutural dos ritos poderia ser tão formalizada
gar santuarizado (arco de triunfo, altar, tumba), tempo definido (todo quanto a análise utilizada por Lévi-Strauss a propósito dos mitos? Por
do_mingo, 11 ~e novembro, ~ de julho nos Estados Unidos), objeto (pão que não? Mas até hoje, ninguém se dedicou com rigor a separar as leis
ázuno, bandeira, ramo, vestimenta, máscara), gesto (sinal de cruz sau- de composição interna dessas estruturas, sua formação e suas transfor-
dação militar, marcha), palavra (prece, canto, slogan, discurso). 'Mes- mações, suas relações de inclusão ou de complementaridade. Para uma
mo que nos rituais de inversão os meios pareçam contrários aos fins é abordagem sistemática que em parte recorta as nossas proposições, foi
possível realizar uma leitura lógica através de uma filosofia da catar~. proposto um outro esquema de análise por Barbara Myerhoff e Sally
Esses agregados de símbolos aos quais dedicaremos nosso último ca- Moore durante um colóquio realizado em Burg Wartenstein (Áustria)
pítulo desvelam certos aspectos do inefável e do inacessível, ocultan- em agosto de 1974.
do-os sob formas metafóricas. Eles constituem catalisadores da imagi- Cinco dimensões capitais, em diferentes níveis de profundidade,
nação, da ação e da comunicação. serviram de balizamento para uma abordagem abrangente dos rituais
5 / A estrutura das comunicações: O rito apresenta-se como sis- seculares:
tema de estocagem de informação em súnbolos e como sistema de 1 I As finalidades explícitas, ou seja, o sentido manifesto mais
transmissão de mensagens carregadas de eficácia mística. Por isso nos abrangente e muitas vezes o mais superficial, mesmo sabendo que as
interrogamos sobre a seleção dos emissores e dos receptores: Quem razões de uma cerimônia nem sempre são expressadas numa doutrina
comunica? Como? Em que ordem? Em que momento? Tentaremos de- ou numa ideologia formal.
finir, além do conteúdo e da forma da mensagem, os eventuais ruídos e 2 I Os símbolos e mensagens explícitas, em relação com um qua-
distorções no fenômeno da transmissão, assim como o modo de deci- dro cultural mais amplo de pensamentos e de explicações. Além das
framento da mensagem. metáforas que momentaneamente expressam um fragmento de ideolo-
Quando se associa a uma ambiência festiva, a mensagem do rito gia, estudaremos os elementos simbólicos não-sistematizados e separa-
dos, para tentar ligá-los de novo ao seu significado cultural.
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3 I Os elementos implícitos, ou seja, os materiais sociológicos e singularidades através dos tipos de ritual e substituindo-se à experi-
psicológicos menos conscientes como as perturbações, incertezas, con- mentação impossível, serão pensadas as diferenças entre ritos seculares
flitos e paradoxos que são mascarados, ou as dificuldades do presente e serão procurados dialeticamente o diverso sob o semelhante e o idên-
que se procura negar afirmando a certeza de uma linha política, a con- tico (as estruturas comuns) sob o diferente. Recusar-se o auxílio das ti-
tinuidade de uma instituição ou uma esperança escatológica. pologias inferindo seu arbítrio é privar-se dos recursos heuósticos da
4 I As relações sociais que são simuladas. Qual é a identidade dos teorização.
participantes implicados nos papéis? Quais sãos os contatos coletivos Mas é preciso distinguir a classificação de um objeto social no in-
entre atores e as relações particulares entre os comunicantes? De que terior de uma tipologia e a construção de uma tipologia que permita se-
maneira a mensagem emitida é recebida e se traduz em ação no rito e riar as formas mais fecundas deste objeto. Por exemplo, Jean-Pierre Si-
depois? ronneau redige uma tipologia dos fenômenos milenaristas e esclarece
5 I A cultura oposta ao caos. Afinnação de uma ordem cultural de que maneira, sob cinco aspectos, as religiões políticas a ela se in-
oposta ao vazio e à indetenninação, o rito celebra significados culturais corporam: 1 I objetivo: transformar a sociedade inteira; 2 I meio:
detenninados e nomeados. O ordenado, o formal, o repetitivo de uma violento; 3 I mensagem: de ordem política e social; 4 I orientação: o
cerimônia constituem uma espécie de declaração contra o duvidoso, futuro; 5 I grupo visado: os oprimidos. Estas analogias talvez tenham
o indetenninado, o conflitual vivido nas relações cotidianas dinâmicas. valor para o nazismo e o comunismo, mas e para outras religiões políti-
cas? Uma tipologia dessas religiões sem dúvida demonstraria de que
Construção de tipologias maneira algumas delas diferem dos messianismos.
Para a classificação dos ritos seculares, tudo ou quase tudo está
A análise descritiva e analógica, assim como a pesquisa das estru- para ser criado. Entretanto, por transposição e com circunscrição é pos-
turas já utilizam a abordagem comparativa. Esse esforço caminha no sível utilizar numerosas distinções elaboradas a propósito dos rituais
sentido de uma sistemática capaz de fazer aparecer uma lógica das for- religiosos (Thomas, p. 382), muitas vezes de caráter dicotômico, a par-
mas sociais, depois de isolar elementos e comparar traços idênticos e tir de um critério preciso, como a relação ao transcendente; rito positi-
dessemelhantes para deles extrair tipos fundamentados no critério de vo de ação participante ou rito negativo de corte com o poder perigoso
semelhança suficiente. através do interdito (Riviere, p. 267-287); a expressão do comporta-
Toda tipologia como estrutura conceituai analítica responde a uma mento: rito manual ou rito verbal; a relação com a ordem: rito de inver-
vontade fundamental de classificação, ou seja, de integração de ele- são ou rito de conversão; a dialética indivíduo/grupo inspirada em Van
mentos discretos em unidades coerentes segundo uma ordem contfuua. Gennep: rito de separação, rito de segregação, rito de integração... Os
Em sua elaboração inicial, quando ainda pennaneciam próximas da ritos militares são classificados por André Thiéblemont em ritos de tipo
empiria, todas as ciências da natureza fizeram grande uso de tipologias. regulamentar com agentes especializados (ex.: a chamada de cada ma-
Edificar quadros conceituais com poder de generalização empírica pa- nhã) e ritos de tradição oral sem agentes especializados (ex.: a "Galle-
rece ser um procedimento inicial de todo saber em fonnação, corres- te" de Saint-Cyr", o "Pékin de Bahut") (Thiéblemont, p. 7-14). Para
pondendo a vários princípios epistemológicos: 1 I o da redução ope- as festas populares analisadas pelos folcloristas, não carecem tipolo-
ratória consistindo em distinguir o essencial do acessório nos materiais gias. Entre todas essas classificações são possíveis inúmeras articula-
empfricos; 2 / o da concentração das pesquisas em casos considerados ções, tanto mais que muitos elementos rituais interferem ou se seguem
como amostras privilegiadas contendo mais informações do que outros; dentro de um conjunto cerimonial. Mas muito poucas entre elas cobrem
3 I o da economia, visando reduzir a complexidade do sistema expli- todo o campo dos ritos.
cativo, não à custa do rigor, mas evitando as definições supérfluas. Os critérios básicos das classificações têm origem em realidades
Cada um desses princípios supõe um outro mais fundamental: o da mwto diferentes, daí a possibilidade de vários deles estarem presentes
identificação. Através da análise comparativa que pennite articular as num mesmo rito; por isso um rito pode ser classificado numa ou noutra

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das categorias conforme nos prt:ndamos a tal ou qual aspecto: partici-
pantes, fins perseguidos, modo de ação suposto, etc. noz de cola na intenção (realmente efetiva) de designá-lo corno perjuro
A propósito dos ritos seculares, os dados reunidos até agora ainda caso ele se envolvesse em um complô contra o chefe supremo da Re-
são pouco numerosos e demasiado fragmentados para justificar tipolo- volução.
1
gias um pouco mais exaustivas, tanto mais que a interpretação filosófi- .J. 2 I Os ritos constitutivos podem dizer alguma coisa a propósito da
co-sociológica tende muitas vezes a tornar a dianteira sobre urna infor-
mação objetiva com respeito à dimensão exegética do ritual, obtida a ' ordem. Estabelecida uma convenção, eles celebram valores derivados
de adesões anteriores. Assim como a sagração de um rei soleniza o fato
partir da vivência dos participantes. Mesmo bem elaborada, toda tipo- de conferir autoridade, a ordem do dia no Parlamento aparece como um
logia, apesar de útil, é incapaz de responder às questões relativas à procedimento de invocação solene da autoridade; um veredito judiciá-
forma, à morfologia dos ritos, aos elementos de que se compõem, às rio é a afirmação de um poder e o registro de casamento é o rito oficial
modalidades de uso dos objetos e súnbolos, e finalmente à sua organi- de constituição de um lar legal.
zação. 3 / Os ritos esquematizadores, que imaginaríamos confinados no
Julgaremos no entanto construtiva a tipologia proposta por Robert mundo científico enquanto construções de modelos conceituais, encon-
F.Goodin que, após ter esclarecido só considerar os ritos a partir dos tram-se também em política, especialmente na doutrinação ideológica,
caracteres de atividade e de solenidade (excluindo assim, por exemplo, na repetição de slogans ou de pensamentos chave do chefe do Estado,
tanto o uso habitual de um badge ou as passeatas de apoio, quanto às por exemplo em cada manhã na Rádio do Togo ou em cada diário de
gozações amigáveis a quem quer que retome dos esportes de inverno La Nouvelle Marche de Lomé. Mais do que os outros ritos eles têm a
com uma perna engessada), cruza os critérios natureza e de ficção para linguagem como suporte.
obter o seguinte quadro: 4 / Os ritos representacionais (ditos naturais e ficcionais) marcam,
assim como os ritos de passagem, a ultrapassagem de uma etapa, ou
rememoram-na. O 12 de Maio na Praça Vermelha demonstra a coesão
Naturais Não naturais do proletariado contra as sociedades de classe. A parada do Orange
1
,.1 Day em tomo do perúnetro dos bairros católicos de Belfast afinna a
Não ficcionais Esquematizadores Mágico-religiosos
' coesão dos protestantes e lembra o estado de sítio de um espaço cir-
Ficcionais Representacionais Constitutivos cunscrito como espaço dos oponentes. Se a leitura dos princípios cons-
titucionais do governo que acaba de se constituir nos Estados Unidos
não incide diretamente sobre a integração do grupo que se introduz, ela
vale pelo menos como demonstração da integração às normas. O crime
1 I Os ritos mágico-religiosos, presentes na vida política dos pri- de Nixon será o de ter quebrado esse mito do respeito às normas que
mitivos, mas também na vida moderna apesar do declfuio das práticas une os americanos ao seu chefe e em tomo dele. Ainda que muitas ve-
religiosas institucionalizadas, fazem apelo a poderes sobrenaturais nos zes dirigido para finalidades integradoras, os ritos representacionais
quais os participantes acreditam. Eles devem ser realizados correta- não significam necessariamente esclerose e podem eventualmente ex-
mente para serem eficazes e demonstram que o componente religioso pressar um apetite de mudança social, ou até mesmo sacralizar a mu-
não desapareceu dos rituais políticos. O autor propõe como exemplo dança como durante a cerimônia do Panteão em maio de 1981.
o juramento sobre a Bíblia do Presidente dos Estados Unidos. No Evidentemente, é pena que R.Goodin não tenha se pronunciado
mesmo dossiê poderíamos incluir os sacrifícios de carneiros ou de boi com mais exatidão sobre o que ele entende por natural e por ficcional.
oferecidos por ministros africanos para não serem vítimas de um rema- Eu não percebo muito bem como os ritos esquematizadores (aliás,
nejamento ministerial iminente, ou o pacto selado por Sékou Touré em quantas esquematizações sem rito e absolutamente neutras!) poderiam
Faranah com o coronel Kaman Diaby trincando publicamente com ele a ser mais naturais do que os ritos constitutivos, e por que os mitos má-
gico-religiosos são classificados corno não-ficcionais. Mas apesar de
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tudo, mais vale uma classificação contestável do ponto de vista de seu
valor operatório do que uma ausência de classificação. A inconsistên- Foi sugerido o rompimento da polarização habitual nos sociólogos
cia de certas noções sobre o primitivismo, o escravagismo e o feuda- entre sagrado e profano, a fim de perceber urna fonna de sacralização no
lismo não provocou o surgimento de estimulantes reflexões sobre os interior da vida cotidiana e da prática política. A desconfessionalização
modos de produção de linhagens asiáticos? do vocabulário permite escapar ao etnocentrismo do discurso religioso e
No mais das vezes, ao invés de utilizar tipologias preestabelecidas, tratar o rito de maneira sistemática, estudando-o como uma estrutura
será mais interessante, após a análise de uma situação particular, elabo- dramática. O cenário, por exemplo, é o das condições temporais e lo-
rar sua própria classificação como foi tentado por P.P.Kampars e cais da ação, definidas no quadro de cada liturgia política. Analisa-se a
N.M.Zakovich que, estudando as cerimônias civis soviéticas, distingui- ação em seqüências de episódios e em arranjos de ações no interior de
ram; 1 / as festas do Estado Revolucionário; 2 I as festas dos trabalha- instituições sociais. Os atores participantes e observadores encontram-
dores proletários; 3 / os rituais civis ligados às etapas da existência se incluídos nas combinações de papéis. A comunicação através dos
(entrada no grupo dos Pioneiros, recebimento de um passaporte aos de- símbolos constitui a linguagem performativa através da qual os atores e
zesseis anos, circunscrição militar, aniversário de casamento); 4 / as os espectadores valorizam uma fonna de ordem social. Para essa finali-
festas tradicionais ligadas ao ritmo das estações e à alternância dos tra- dade concorrem meios de ordem material, instrumental e expressiva.
balhos agrícolas. Christel Lane por sua vez distingue além disso no A perspecti vação com respeito ao teatro ou à religião pode levar
grupo 1 / tradição revolucionária e tradição militar, e no grupo 3 I os no entanto a uma interpretação errada, pois as liturgias políticas não
ritos do ciclo de vida familiar e os ritos de passagem de caráter político poderiam ser consideradas nem puramente convencionais, recuperando
e partidário. valores' formas e símbolos anteriores, nem simples substituto ,
de urna
Todas essas tipologias constituem o precedente para uma aborda- religião abandonada, posto que não lhes acontece, nem na Africa nem
gem funcional na medida em que visam um reagrupamento dos compo- na Europa, serem praticadas concorrentemente com os ritos religi.oso~,
nentes com a mesma natureza a partir dos quais são mais facilmente mas em circunstâncias diferentes. De maneira ambígua, esses ntuais
destacáveis as exigências funcionais comuns, latentes ou manifestas. são ao mesmo tempo seculares - dependendo de uma temporalidade
,. histórica - e sacralizados por sua orientação teleológica (advento do
Conclusão comunismo, da democracia ou de urna pureza ariana absoluta) ou pela
autoridade do poder que os elabora.
Mas a análise funcional, assim como as abordagens dinâmicas e
simbólicas dos ritos suscitam tantos problemas que merecem as longas
exposições dos capítulos seguintes. BIBUÓGRAFIA
Por enquanto, nossas proposições metodológicas pretendem apenas
oferecer alguns meios de pesquisa num setor até agora muito pouco ex- Balandier, Georges, Le pouvoir sur scenes, Paris, Balland, 1980.
plorado, ou explorado apenas pela descrição histórica dos fatos. Os ri- Bril, Blandine, Étude analytique des invariances du rituel, tese de 32 ciclo, Paris
tuais estiveram presentes, não só à maneira de Durkheim, como "práti- V, 1977, xerografada.
cas definidas que se referem a objetos dados nas crenças", mas tam- Dorfles, Guy, Mythes et rites d' aujourd' hui, Paris, Klincksieck, 1975.
Girard, René, La violence et le sacré, Paris, Grasset, 1972.
bém em seu aspecto etológico e psicológico, como atos repetitivos,
compulsivos, ligados a urna imposição de caráter mais promocional do
que repressivo, e sob um ângulo serniológico com um caráter simbólico
.. Gluckman, Max, Essays on the Ritual of Social Relations, Manchester University
Press, 1962.
ligado à sua função de comunicação entre os seres através de signos Goffman, Erving, La mise en scene de la vie quotidienne, Paris, Minuit, 1973, 2
padronizados, de tal maneira que o rito aparece como urna quase-lin- vols.
guagem. Goodin, R.E., Rites of Rulers, British Journal of Sociology, 29, 1978, n2 4, pp.
281-299.
-164-
-165-
Huxley, Julien (et ai.), Le comportement rituel chez l'homme et chez !animal,
CAPÍTULO VII
Gallimard, 1971.
Isambert, François-André, Le sens du sacré, Paris, Minuit, 1982.
PARA QUE SERVEM OS RITOS SECULARES?
Kampars, P.P. e Zakovich, N.M., Sovetskaya grazhdanskaya obryadnost, Mos- -·
cou, 1967. '
Lane, Christel, The Rites of Rulers, Cambridge University Press, 1981.
Leach, Edmund, Ritualization in Man, in Philosophical Transactions of the Royal
Society of London, série B, 1966, 251, pp. 403-408.
Não existe nenhuma obra referente aos ritos religiosos que não te-
Lévi-Strauss, Claude, Sur les rapports entre la mythologie et le rituel, Bulletin de
ta Société française de Philosophie, 48, sessão de 26 de maio de 1956, pp.
92-125.
.. nha abordado o problema de sua função, através de um enfoque qual-
quer. Em Les formes éltmentaires de la vie religieuse Durkheim, si-
McDowell, Jennifer, Soviet Civil Ceremonies, Journalfor the Scientific Study of
tuando-se dentro da corrente de idéias do seu tempo, propõe ui;na teoria
Religion, 1974, 13, pp. 265-280.
das conseqüências das crenças e das práticas, e insiste sobre a virtude
Maffesoli, Michel, La conquête du présent, Paris, PUF, 1979.
consensual dos ritos. Estes afinnam a unidade do grupo e pretendem
Moore, Sally F. e Myerhoff, Barbara G., Secular Ritual, Amsterdã, Van Gor-
reforçar a natureza social dos indivíduos situando-os culturalmente, por
exemplo, na continuidade de um phylum ciânico quando se trata de so-
cum, 1977.
Panoff Michel e Perrin, Michel, Dictionnaire de f ethnologie, Paris, Payot, 1973.
ciedades de base parental ou ainda permitindo reagrupamentos coleti-
Riviêr;, Claude, Interdits et pouvoirs politique dans les nouveaux Etats africains,
vos que provocam uma impressão de solidariedade em tomo dos mes-
Ethno-psychologie, XXIX, 4, 1974, pp. 267-287.
mos valores. À necessidade de conciliar a simpatia dos humanos res-
Thiéblemont, André, Les traditions de contestation à Saint-Cyr, Ethnologie
ponde a necessidade de conciliar as potências telóricas e numinosas em
française, IX, 1, 1979, pp. 7-14. .
um mundo cheio de forças dominadoras. Para se proteger do contágio
metafísico da morte, ritualiza-se a relação com os desaparecidos aos
Thomas, Louis- Vincent, Le rite, in Mythes et croyances du monde entier, Paris, ,, quais se atribui a imortalidade e que são venerados como ancestrais.
Lidis, 1985, t. 5, pp. 379-388.
Turner, Victor, The Ritual Process, Structure and Anti-Structure, Londres, Rou-
Nas atitudes religiosas, a realidade individual concreta é transcendida
tledge & Kegan Paul, 1969.
através de sua incorporação no esquema de uma condição humana abs-
trata, relativamente constante através do tempo e do espaço.
Van Gennep, Arnold, Les rites de passage, Paris, Nourry, 1909.
Wimberley, R.C., Testing civil religion hypothesis, Sociological Analysis, 37, O rito aliás reafinna simbolicamente o que é a unidade do mundo
1976, pp. 341-352.
para o homem sensível ao desgaste do tempo e ao fracionamento dos
lugares. Ele nos situa num vasto espaço de criação e numa temporali-
dade humana ideal de que faz revi ver a gênese e que ele assume com a
esperança escatológica de dominar as eventualidades do tempo destrui-
dor.
Considerados do ponto de vista de sua regularidade, de sua nor-
matividade e de sua repetitividade, os ritos também compartilham do
caráter tranqüilizador das regras através das quais o homem ordena sua
condição humana. Mas a ordem do vivido é também uma ordem das
potências, e o rito, teatralizando os papéis, sugere a cada um que a se-
gurança perfeita consiste em ocupar seu lugar e em respeitar os códigos
de relações entre os níveis de uma hierarquia em cujo ápice o poder,

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aureolado pelo sagrado se atribui os meios de sua donúnação. E mesmo colos e tantas teatralizações dos papéis, isto não aconteceria com a fi-
que a religião tenha abandonado à ciência o seu papel cognitivo, man- nalidade de sacralizar e fazer assinúlar uma poderosa visão da ordem
tém sua função de reforço da integração. social? A ~re.sença de j°:1"ados de todas as origens sociais nos processos
Sem retomar à ambigüidade da noção de função, denunciada pelos contém a idéia de uma igualdade entre o rico e o pobre diante da lei.
críticos do funcionalismo como ligada, seja a uma necessidade, seja a As idas e vindas dos projetos de lei entre a Assembléia Nacional e o
uma finalidade, seja à ação de elementos do sistema em sinergia com Senado tranqüilizam quanto à realidade da democracia e à evitação da
sua totalidade, é sempre útil observar o mesmo uso ambíguo da palavra ditadura. O conjunto dos procedimentos políticos, judiciários e adnú-
integração, geralmente definida como o ajustamento recíproco dos ele- nis1:1"ativos tem como função manifesta simbolizar a ordenação de uma
mentos constitutivos de um sistema pernútindo a este formar um todo sociedade onde prevalece a justiça social e onde o governo é responsá-
organizado. Nas ciências sociais o termo pode ser aplicado de maneira ;\ vel pelos cidadãos. Na ideologia oficial das democracias, as eleições se
bastante diferente ao ajustamento das regras sociais entre si, à coesão aprc:,se~tam como as formas mais importantes dos rituais políticos, cada
dos traços culturais, papéis e instituições num sistema cultural global, à naçao mterpretando a participação nas eleições como um critério de
solidariedade existente entre os membros de um grupo que buscam democracia, ou seja, como a aceitação pelos votantes do sistema políti-
identificar-se aos interesses e valores desse grupo, à simbiose dos gru- co e do seu papel no interior desse sistema de acordo com a lei da de-
pos sociais em tomo de um Estado organizado, ao funcionamento har- volução do poder à maioria, pressupondo que os cidadãos sejam livres
monioso dos diversos subsistemas, etc. em sua escolha, mesmo que s6 se lhes apresente uma lista única de
candidat~s. Dessa maneira, a justiça e a adnúnistração legitimam e per-
O reforço do consenso petu~ ntualmen~e as representações coletivas que contribuem para a
estabilidade do sistema político vigente, ajudando a defmir sua verda-
Apresentados esses problemas de significado, observaremos que deira natureza e recusando as alternativas.
até os anos 60 a tendência foi subestimar a importância funcional das Todo ritual politicamente organizado traduz também a ordem
cerimônias nas sociedades modernas. Mas quando se começou a estu- existente. À semelhança de um ritual religioso, a parada do exército
dá-las, talvez se tenha atribuído importância excessiva à sua função soviético na praça Vermelha também declara e demonstra. Ela é ao
integradora, interessando-se sobretudo por alguns tipos particulares de mesmo tempo informação ideológica e afirmação de uma força. Em
outros caso.s - jornada folclórica organizada por uma capital regional,
rituais políticos.
ou uma qumzena artística -, a afirmação de elementos culturais tem
É verdade que em inúmeros casos essa função não poderia ser ne-
mais peso do que a referência ideológica. Muitos cerimoniais comemo-
gada. Porém, no mais das vezes a cerimônia política celebra de fato a
rativos, como o aniversário da formação do Partido único ou o acesso
ordem instaurada ou a ser instaurada, e visa demonstrar a existência de
ao poder de tal presidente, servem como fonte de estabilidade social,
uma comunidade ou criar essa comunidade. Ela comunica, acobertada
graças ao doutrinamento que se desenvolve naquele dia. Portanto, sob
por uma autoridade, aquilo que poderia ser questionado. Drama cultu-
um ~gulo cibernético (entendido como sistema de governo), é possível
ral liberador de energia recalcada, ela realiza a síntese simbólica da or-
considerá-los como mecanismos adaptativos ou de auto-regulação de
dem com a potência. E se alguns ritos não parecem ter uma incidência
um sistema social incessantemente ameaçado por eventuais conflitos.
direta sobre a integração global, eles pelo menos enunciam a integração
Eles teriam então a finalidade de sublimar as tensões sociais. Ficando
das normas entre si, senão a das pessoas, como acontece durante a evo-
por explicar os casos em que certos rituais manifestam e até mesmo
cação pela Corte Suprema dos Estados Unidos dos princípios constitu-
exasperam conflitos ao invés de resolvê-los. Os resultados integrativos
cionais do governo que se acaba de constituir. O efeito da demonstra-
ou desintegrativos dependem da maneira pela qual as pessoas reagem
ção é correlativo à deferência dos sujeitos.
ao que vêem e ao que lhes tentam fazer acreditar.
Se os aparelhos judiciários e legislativos suportam tantos proto- A importância atribuída às funções integrativas por uma corrente
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Que o assassinato de John Kennedy tenha produzido uma emoção
neodurkheimiana no mundo anglo-saxão merece ser ilustrada com al- tão forte, amplificada pela televisão, tanto sobre os americanos quanto
guns exemplos. sobre a opinião mundial, e que seus funerais tenham provocado uma
Segundo E.Shils e M. Young, as cerimônias do Coroamento da rai- participação tão forte, provém do fato de ter o presidente um papel
nha da Inglaterra têm como função reenunciar valores morais que co- simb6lico de representação não s6 da nação americana mas também dos
nectam não s6 a Grã-Bretanha como também a grande família do valores democráticos aos quais estão ligadas muitas populações do glo-
Commonwealth. Um ato de comunhão renova a devoção a esses valo- bo, como foi observado por Sidney Verba. Tendo o seu juramento
res quando a sociedade reafinna, através de múltiplas celebrações reli- constituído uma espécie de legitimação religiosa da mais alta autorida-
giosas e laicas do rádio, da imprensa e da televisão, que ela é boa e de política.
bem governada. E ao mesmo tempo que aumenta o respeito pela mo- Situando essas diversas manifestações rituais no contexto da reli-
narquia britânica, que não exclui instituições democráticas, a relação gião civil na América, Robert Bellah observa que o primeiro período
com a rainha reforça um consenso fundamentado no sentimento de uma criativo capaz de determinar o seu simbolismo sagrado foi a Revolução
sacralidade das instituições e da vida em comum. (ligada aos mitos do Êxodo e da Nova Jerusalém), e depois a guerra ci-
Mais recentemente, durante o casamento do príncipe de Gales, fo- vil introduzindo com Lincoln os temas da morte, do sacrifício e do re-
ram exaltados a solidariedade familiar e o orgulho nacional, através do nascimento. Essa religião secular tem os seus pr6prios profetas, seus
casal, objeto de afeição senão de identificação pessoal para a maioria próprios mártires, seus próprios acontecimentos e lugares sagrados,
dos britânicos. seus próprios rituais e símbolos solenes seletivamente transferidos da
Em American Life; Dream and Reality, Lloyd interpreta o Memo- tradição religiosa, que suscitam efeitos de mobilização das motivações
rial Day como representação coletiva sacralizada. Os grupos que parti- pessoais para atingir os intuitos nacionais.
cipam dos ritos de homenagem aos mortos supostamente representam a Na integração das sociedades industriais modernas, os rituais polí-
comunidade inteira, a comunidade de uma nação poderosa feita mais de ticos representam um papel crucial pois criam um consenso sobre os
mortos do que de vi vos. Nessa ocasião comemora-se toda uma hist6ria valores, o que contribui para a manutenção do equilíbrio do sistema so-
cuja trama é forjada em epis6dios variados através de múltiplos aconte- cial, como em geral sublinham os funcionalistas americanos debruçados
cimentos. E assim por mais diversos que sejam os grupos originaria- sobre as religiões civis.
mente constitutivos da nação americana, a lembrança de sua progressi-
va integração num país já agora unificado lhes proporciona um senti- Ambigüidade e limites da integração
mento de força coletiva e de bem-estar.
Periodicamente então a comunidade comemora o seu triunfo sobre No entanto uma tal insistência sobre o sucesso integrativo dos ri-
a morte rememorando as ações coletivas que foram as guerras, períodos tuais nos parece tão suspeita quanto a teoria malinowskiana pareceu a
criativos de forte integração e de intensificação do sentimento de soli- Merton. Será que não escolhemos exemplos privilegiados e procedemos
dariedade. Memorial Day is "a cult of the dead which organizes and a uma indução rápida demais? Foram os rituais examinados com preci-
integrates the various faiths and national and class groups into a sacred são suficiente em suas causas, seus desenvolvimentos, seus efeitos la-
unity. It is a cult of the dead organized around the community cemete- tentes e manifestos? Não recobre o termo integração realidades dife-
ries. Its principal themes are those of the sacrifice of the soldier dead rentes demais? Certos ritos aparentemente integrativos a nível dos sub-
for the living and the obligation of the living to sacrifice their indivi- grupos que deles participam não podem ter efeitos desintegradores no
dual purposes for the good of the group" (Warner, p. 8). plano da sociedade global? E ritos seculares não trazem em germe ris-
Outras festas como o Thanksgiving ou o 4 de Julho, no calendário cos de uma derrapagem no sentido da contestação e da dissensão?
cerimonial da sociedade americana, sublinham as semelhanças e a he- Entre os primeiros a examinar a questão dos resultados integrado-
rança comum, minimizando as diferenças e contribuindo para suscitar res dos ritos políticos, Stephen Lukes critica em particular aos neo-
uma comunidade de pensamento, de sentimento e de ação.
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durkheimianos (Shils, Young, Blumler, Warner, Bellah, Verba) sua no- partes da sociedade; 7 / a compatibilidade funcional entre a ordem ins-
ção excessivamente simplista da integração social, a estreiteza da sele- titucional de uma sociedade e sua base material; 8 I a persistência de
ção e da análise dos rituais. Mesmo sublinhando, como Durkheim, a certos traços estruturais além do tempo em que eles poderiam ser fun-
dimensão cognitiva do ritual, o autor demonstra que, em certos casos, cionais.
os rituais políticos não contribuem para a integração da comunidade, "" E, para cada um desses sentidos, conviria estabelecer, em função
mas para o reforço de grupos específicos que exercem ou procuram de situações empíricas, toda uma série de gradações. Por isso a expli-
exercer o poder. O essencial de seu procedimento crítico consiste em cação em termos de valores partilhados fica parcial se não esclarecer-
precisar o que se entende por papel integrador dos ritos políticos, em mos em que quadro social, até que ponto, de que maneira, e segundo
especificar os diversos sentidos do termo integração e invalidar a tese que ordem de prioridade eles são partilhados. Louis Lavelle, Vladimir
excessivamente parcial do consenso através de casos que a contradizem. Jankélévitch e Jean Pucelle teriam tantas reflexões a propor sobre esses
Segundo Lukes, o papel integrador dos ritos políticos pode ser pontos quanto Talcott Parsons, que foi considerado como referência
entendido de quatro maneiras diferentes: 1 I o rito político é um indí- por toda uma corrente de sociólogos americanos. Os Pierre Ansart,
cio, uma comprovação de valores integrativos preexistentes, na medida Jean Baechler, Jean Gabei e Femand Dumont, em suas diversas obras
em que por uma espécie de ação religiosa comum, ele indica sua pro- sobre as ideologias, demonstraram como os valores aos quais os grupos
fundidade e solidez; 2 / ele é a expressão dessa integração, reafirmando se referiam eram freqüentemente mal definidos (o que não os torna me-
valores morais que constituem a sociedade como tal, acentuando o con- nos mobilizadores) e que, além disso, no seio de uma mesma nação coe-
senso social e não, como no primeiro caso, a coerência e o arraiga- xistem ideologias de classe, de partidos, de grupos propondo hierar-
mento das normas; 3 / é um mecanismo que visa insistir sobre essa in- quias de valores e de normas de comportamento bastante divergentes.
tegração, ou seja, motivar as pessoas e mobilizá-las para atingir metas Aquilo que as elites valorizam pode não ser apreciado da mes~
nacionais; 4 / ele atua por si mesmo e forja a integração através de reu- maneira e com a mesma intensidade pelas massas e inversamente. E
niões peri6dicas e da unificação simbólica de uma sociedade que se re- verdade que em todas as sociedades existe uma ideologia dominante a
presenta então como constitutiva de uma comunidade. partir da qual se efetua a socialização do povo, mas os níveis de adesão
A conceitualização da própria integração permanece bastante vul- aos valores diferem segundo os grupos e segundo os momentos. O pro-
nerável, como já se pode observar confrontando as abordagens de al- blema da intemalização real das normas pode também apresentar-se em
guns teóricos. Shils e Young falam de um acordo sobre os valores mo- função de um outro problema: o da subordinação dos grupos a uma or-
rais fundamentais como a generosidade, a caridade, lealdade, justiça, dem para a qual eles não podem construir outras alternativas. Nesse ca-
respeito pela autoridade... Mas não existem divergências importantes so, nada mais resta a fazer senão participar das atividades sociais,
em suas interpretações? Verba referindo-se ao problema da ordem fala adotar certos papéis, conformar-se com as normas nos ritos políticos
da regulação social como o fator de ligação entre elementos de uma so- sob pena de sentir-se estrangeiro ou isolado.
ciedade complexa e pluralista. Mas em que medida, até que ponto, de
que maneira reina a ordem? O autor omite excessivamente a considera- A integração grupal contra a integração global
ção das realidades.
Para uma análise mais pertinente, S. Lukes propõe considerar vá- Mas sem falar no corte entre sociedade civil e sociedade política,
rios elementos na integração: 1 I a participação contínua dos membros quantas divisões latentes senão manifestas existem no seio da socieda-
de uma sociedade em suas instituições e em suas práticas; 2 I sua con- de política! Não é certo que para muitas nações uma mesma plate-for-
formidade às normas; 3 / a partilha de seus valores através de uma me1 de valores, nem tampouco uma atividade comum sejam essencial-
consciência comum e de uma ação conjunta; 4 I a complementaridade mente constitutivas da integração. Em Ulster, o fato de protestantes e
ou a reciprocidade de suas atividades e de seus papéis; 5 Ia compati- católicos trabalharem juntos não representa, assim como suas referên-
bilidade de seus interesses; 6 I o grau de coerência dos segmentos ou cias comuns ao Evangelho de Cristo, uma integração significativa.

-172- -173-
Após algumas "primaveras", tanto na Tchecoslováquia quanto na Po-
s~tuação de conflito aberto. Quanto ao Orange day de Ulster, ele ree-
lônia, a força conseguiu criar a aparência de um consenso, mas apenas
a aparência. Daí a importância de diversificar os modos de análise e dita um conflito inicial: a oposição dos protestantes, há trés séculos
não selecionar apenas os exemplos que, nos rituais políticos, testemu- atrás, à dominação dos cat6licos.
nham um reforço da integração através de uma hegemonia política. Reconheceremos então que certos rituais, mesmo políticos, podem
Outros rituais, e algumas vezes os mesmos, expressam divergências de exacerbar os conflitos sociais dramatizando-os. Enquanto a ação da or-
atitudes e valores não oficializados. Não nos recordamos das atitudes dem pública (polícia, exército) pretende contê-los, a manifestação pú-
de protesto contra a guerra do Vietnam por ocasião das Memorial Day blica e a greve os ampliam através do efeito da teatralização, sem toda-
Parades? Não foram os desfiles parisienses de 1~ de Maio que expres- via conduzir à secessão, à guerra civil, à negação de todos os valores
saram a hostilidade dos trabalhadores para com uma política governa- comuns.
mental na França promovendo ao mesmo tempo sua consciência e sua Sob um ângulo diferente, aprendendo os níveis de linguagem do
solidariedade de classe? Quem ainda não constatou que a competição, ritual, perceberemos o equívoco funcionalista que consiste em privile-
nas fases finais de copa de futebol, de rugby ou de h6quei, degenera giar a interpretação oficial do consenso. Por que muitos congressos
algumas vezes em hostilidades violentas? Quantas ações diretas (gre- africanos ou reuniões de base não obtêm os efeitos esperados? Sim-
ves, manifestações, desfiles, negociações) que muitas vezes têm um as- plesmente porque a participação no ritual não significa adesão pessoal,
pecto ritualizado e simb6lico, proclamam a oposição aos valores domi- e porque gostos e interpretações veladas podem ali contradizer o dis-
nantes, ou melhor, aos valores dos dominantes! De fato é contra a or- curso oficial, pois a maior parte dos participantes não está iludida pelo
dem social existente que as efervescências coletivas corsas, bascas e "blablablá" dos responsáveis políticos cuja conduta pessoal discorda
bretãs promovem a integração de populações subordinadas a um Estado do tom de sua homilia. Por isso é preciso diferenciar a interpretação do
Nacional considerado por elas como sufocador de suas especificidades observador estranho ao grupo (jornalista ou soci6logo de passagem)
culturais e a quem dirigem reivindicações de autonomia. que ressalta a impressão de ordem e de integração fornecida por algu-
Tomemos como exemplo a festa de L' Hwnanitl em La Coumeuve mas visitas a fábricas, escolas, cooperativas ou participações em ceri-
reagrupando simpatizantes do Partido Comunista Francês, a reunião mônias oficiais, e a interpretação dos que habitualmente vivem no inte-
dos partidários do ensino livre na porta de Pantin, em 24 de abril de rior das instituições e regularmente participam dos meetings onde a
1982, ou as ordenações solenes realizadas por Monsenhor Lefebvre consciência das trapaças e as reticências são equivalentes à inflação do
cercado por milhares de integristas cat6licos. Cada um desses aconte- verbo ideológico do Estado, como observamos muitas vezes na Guiné e
cimentos liderados por grupos distintos constitui a experiência direta de no Benin. Com mais espírito crítico do que manifestam os visionários
uma oposição solidária, ou seja, a confirmação de um potencial de ação do consenso, iremos colocar as questões das relações entre ritual e so-
procurando minimalizar a impressão de um consenso em tomo dos va- ciedade e das desarticulações entre a expressão dos símbolos e a efeti-
lores dominantes. A demonstração de força dos presentes que buscam va realização do proclamado. Os momentos de efervescência social não
demonstrar uma comunhão de intenções e de destino pretende impres- fazem toda a Hist6ria.
sionar os ausentes e os que pensam diversamente. Os súnbolos rituais e Ao invés de considerar o ritual como sendo funcional para a inte-
as metáforas do discurso atuam em benefício dos participantes e não gração global de uma nação, seria melhor percebê-lo em seu papel
cognitivo, reforçando, recriando e organizando representações coleti-
em favor da ordem e do poder central.
Portanto, a manifestação política enquanto tal s6 integra fragmen- vas. Mas seus simbolismos antes pretendem representar modelos parti-
culares ou paradigmas de sociedade do que a maneira pela qual a so-
tariamente; ela muitas vezes testemunha com força uma carência de in-
tegração global. A marcha dos gaullistas em maio de 1968, afirmando a ciedade se relaciona verdadeiramente. Sua maneira de tornar o social
sustentação das forças de direita contra um movimento de desestabili- inteligível consiste sobretudo em organizar o saber das pessoas relativo
zação do poder pela extrema esquerda, pretendia fazer pressão numa ao passado e ao presente e propor um esquema de futuro. Desse modo,
especificando os significados particulares de uma sociedade global ou
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de um grupo, o rito político ajuda a definir como portadoras de autori- aos valores expressos), seja com força sobre a vontade (quando o rito
dade algumas maneiras de perceber uma sociedade. Ele concentra a provoca um envolvimento decisivo, uma prática constante, talvez até
atenção em certas formas de relações e de atividades valorizadas a ex- mesmo uma militância).
pensas de outras que ele implicitamente desvaloriza. .. Mas estamos tratando de efeitos psicológicos na maior parte do
Por isso é necessário ir além da idéia simplista de integração glo- tempo inconscientes. E a eficácia simbólica? É verdade que na África
bal expressa, produzida e constituída por valores comuns, pois existem tradicional os participantes dos rituais religiosos atribuem aos espfritos
em toda sociedade modelos pluralistas e conflituais. Não manifestando os seus eventuais resultados. Mas nos rituais seculares, não havendo
portanto o poder mas wn poder, e desse modo a diversidade dos pode- explicação doutrinal para a sua eficácia, é preciso sondar para além dos
res e das representações coletivas, a pesquisa metódica apurada com a objetivos declarados, no exame empfrico de casos, sem que exista pro-
finalidade de chegar a conclusões mais pertinentes do que as generali- cedimento científico de discernimento exaustivo dos significados cons-
zações apressadas do funcionalismo, deverá colocar metodicamente a cientes e inconscientes, das conseqüências imediatas e a longo prazo
propósito de cada rito secular as seguintes questões: Quem o pediu e mais ou menos intensas, além da ação sobre a emoção, a imaginação e
organizou? Que pensamentos e que súnbolos são expressos nele? Que a memória individuais. Resta saber quais são os súnbolos e como eles
significado ele traz no contexto histórico? Que grupo tem interesse nele são percebidos, sem nos prendermos demais às próprias formas do ri-
e sobre quais grupos ele atua? Que formas de relações sociais e de ati- tual. De fato, não importa qual o aspecto da vida social, do comporta-
vidades são valorizadas e desvalorizadas entre os participantes? Sob mento, da ideologia, que agregado a outros, segundo as convenções,
que condições permitem eles uma internalização dos modelos repre- pode prestar-se à ritualização, já que esta é uma espécie de fôrma des-
sentados? Quais são os ritos estrategicamente empregados (e como) pa- tinada a sublinhar o significado de um conteúdo, freqüentemente atra-
ra exercer ou buscar um poder social? Quem obtém o quê, quando e vés de uma grande diversidade de símbolos e até mesmo de paradoxos.
como? Para defender que poder, e contra que grupo? Com que simbo- Especialmente no Terceiro Mundo, inúmeras cerimônias pretendem
lismo ritual é possível provocar a criatividade e engendrar através de reforçar os laços muitas vezes tênues e frágeis entre grupos diferentes
forças antiestruturais novas formas políticas e culturais (como nos mes- (quem sabe até opostos, como nos mercados berberes entre Mahzen e
sianismos ou nas comunidades políticas liminares)? Siba) exagerando o aspecto de cooperação para um benefício comum,
Um tal conjunto de questões deveria permitir a apreciação dos im- de contribuição para um mesmo empreendimento nacional, e teatrali-
pactos dos rituais políticos e seculares. Mas a resposta a esses proble- zando o esforço coletivo numa justaposição de súnbolos para conferir
mas não é tão evidente quanto parece, por causa da variedade das rea- uma aparência de unidade a pessoas sem uma profunda interação entre
ções possíveis de acordo com o caso e sobretudo da dificuldade de elas. Por algum tempo são minimizados os conflitos, por meio de ab-
deciframento exato das reações pessoais e coletivas a curto e a longo reações, de fortalecimentos da vida social, de inversões de comporta-
prazo. mentos.
No entanto as disfunções permanecem subjacentes ao Carnaval
· Operacionalidade do rito brasileiro, que expressa o limite extremo da licença e do informal, en-
quanto o aniversário da independência brasileira situa-se nos limites do
Nos rituais que são atos mais expressivos do que instrumentais, os constrangimento e do formal. Comparando as linguagens reveladoras
elementos inconscientes são difíceis de interpretar e as conseqüências da estrutura social nesses dois tipos de cerimônias, Roberto da Matta
difíceis de medir em virtude de suas implicações psicológicas, ainda (in Moore, pp. 244-264) observa que, enquanto as festas da Indepen-
mais porque eles podem atuar de maneiras bastante diversas, seja muito dência falam do reforço das hierarquias, o Carnaval evoca a dissolução
transitoriamente sobre a afetividade (os não-crentes apreciam uma mis- temporária do sistema social e a inversão, mas limitadas e esquecidas
sa de meia-noite da mesma forma que apreciam uma ópera emocionan- em alguns dias com o retorno à ordem religiosa rígida da quaresma.
te), seja mais profundamente sobre o intelecto (suscitando uma adesão Enquanto as festas da independência atraem a atenção para os aspectos

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munidades enfrentam crises e dissensões internas, os ritos se multipli-
políticos principais da estrutura social, o Carnaval aparece como um
cam com o intuito de desculpabilizar o grupo e assegurar suas chances
tempo de trégua da moralidade (mas respeitando certos c6digos nas
de sobrevivência. Max Gluckman, Marc Augé, René Girard, Eric de
danças, cantos e adereços vestimentares). Enquanto as festas da Inde-
Rosny entre outros, demonstraram o quanto os atores de um sócio-dra-
pendência afirmam a existência de uma nação específica, o Carnaval
ma - padre, adivinho, participantes - esperam incon~cient~mente ch~­
afirma a universalidade humana de um povo e sua participação na eflo-
gar ao fim dos conflitos, transmutando-os seja pela v10lêncm do sacn-
rescência cósmica. Comparados a esses dois tipos de festividade, os
ffcio de vítimas inocentes que não podem ser vingadas, seja por uma
rituais de caráter propriamente religioso afirmam simultaneamente valo-
estratégia de inversão que permita, após uma caricatura de deso~dem,
res locais (festas de um santo padroeiro) e universais (próprios à reli-
de irreverência e de arbítrio, atribuir à ordem do poder um novo vigor.
gião). Por intermédio do culto parece que o povo e as autoridades se
Na mesma ordem de idéias, Eva Hunt, a propósito dos rituais se-
reconciliam e as posições sociais se neutralizam no reagrupamento de
culares, liga o ritualismo a certas situações de conflito, sem querer ge-
uma comunidade onde são vizinhos santos e pecadores, saudáveis e
neralizar sua teoria a qualquer preço. V amos resumir seu pensamento
doentes, ricos e pobn's, brancos e negros, tendo como mediador entre
em algumas proposições: . _
eles, e também entre Deus e os homens: o padre, com papel privilegia-
1 / O ritualismo, diz ela, tende a manifestar-se em s1tuaçoes de
do nesse gênero de cerimônias.
oposição, de antagonismo social ou de conflitos. ~otenciais entre. seg-
Mas tanto nos rituais políticos com fins integrativos e nos rituais mentos da sociedade que são estruturalmente deflllldos. Numa socieda-
civis com fins curativos, quanto nos rituais religiosos com intuito pro- de dual ou plural, como entre fudios e mestiços do México, no caso de
piciatório, os resultados não estão assegurados. Diante de uma ordem fortes clivagens de uma sociedade política hierarquizada, ou quando
guarnecida, os cidadãos modernos não são iludidos pela falsa assimila- grupos em guerra decidem fazer a paz realizando trocas matrimoniais,
ção do mundo vivido e do mundo imaginado. Eles sabem dos conflitos as regras do jogo, admitidas pelos parceiros, tendem a transformar o
reprimidos ainda efervescentes. Ficam então pendentes as questões da confronto entre as partes em complementaridade através do instrumento
operacionalidade do rito, da interpretação de seus elementos conscien- de um ritual.
tes e inconscientes, da medida de suas conseqüências imediatas e a 2 / O ritualismo tende a se manifestar quando ele não tem uma saí-
prazo, em virtude de suas próprias implicações emotivas e expressivas. da dinâmica inscrita nas estruturas sociais pela expressão aberta de um
Essa expressividade dos ritos leva, ainda que paradoxalmente, a conflito, ou seja, quando as relações sociais não podem ser reestrutura-
perceber que condutas rituais surgem mais freqüentemente em contex- das por uma revolução, uma rebelião ou uma luta Aa~rta. _
tos de conflitos latentes do que de consenso social; posto que a harmo- 3 / O ritualismo fornece uma saída de emergencm para a expressao
nia realizada e sentida tem menos necessidade de proclamar-se como de um conflito potencial, ao mesmo tempo que fornece um qu~dro o~de
tal. a anomia e a entropia permanecem sob controle, quando existe a Im-
possibilidade de romper de maneira permanente as relações entre d01s
Ritualismo nas situações de conflito grupos ou de contrabalançar o poder vigente. .
4 / O ritualismo age simultaneamente a I como mecarusmo de de-
fesa no sentido psicológico, reduzindo a ansiedade quanto aos resulta-
Através do exame das contradições e conflitos subjacentes às cir-
dos de um confronto entre os participantes; b I como um quadro com-
cunstâncias de desencadeamento de certos ritos religiosos tradicionais,
portamental neutro de controle social e de abandon~ das hostilidades,
somos levados a pensar a ntualização como um fenômeno de tranqüili-
eventualmente arremedando-as; e I como um mecamsmo de manuten-
zação, ou seja, como expressão liberadora das tensões através de uma
ção do statu quo, pois os rituais e cerimônias serve~ ~e modelos ~e
catharsis. Por isso nos períodos difíceis, de epidemias, de seca, de
comportamento normativo, de c6digos de conduta leg1trmada, de gma
doenças contagiosas, nos casos de migrações de grupos em busca de
nas estratégias de interação.
terras ou durante uma fuga frente ao inimigo, ou ainda quando as co-
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5 I A formalização dos comportamentos é mais provável quando as l I Legitimação. - Assim como os ritos religiosos tendem a sacra-
saídas de um confronto social são incertas e potencialmente perigosas. lizar um certo número de valores, a justificar a crença no sagrado e a
Nesse sentido, o ritualismo é um mecanismo de canalização das situa- reforçar os comportamentos aferentes, também os ritos seculares de ca-
ções de crise potencial.
ráter político têm uma função primordial, além do consenso procurado,
6 / A formalização dos comportamentos assume como quadro o de legitimação do poder, que se considera a si mesmo situado na zona
sistema de súnbolos multívocos e complexos, característicos de uma do sagrado moderno: a função do inquestionável, do indubitável, do
cultura. Esses sistemas de símbolos determinam o emprego do espaço, necessário à sobrevivência social. Se alguma ideologia preside à orga-
do tempo, do estilo de linguagem, da apresentação de si, dos movi- nização de um poder, ela pode também, como um mito no mundo reli-
mentos do corpo e da definição das relações entre atores numa situação gioso, ser repetida cerimonialmente, ampliada e corrigida por ocasião
dada.
de um rito político. Ela ao mesmo tempo legitima o poder e produz o
7 I Freqüentemente existe incongruência entre os elementos maio- encantamento de que ele se serve para realizar seu jogo. Reenunciada
res e os súnbolos do-.ninantes no interior de uma cultura em situações claramente, ou simples pólo de referência na organização do ritual, a
de competição. Daí a forte predicabilidade de certas condutas ritualiza- ideologia no rito e tanto o rito quanto a ideologia dominante servem
das e de modelos de súnbolos estilizados. para legitimar não todo o poder, mas um poder atual conduzindo tal ti-
8 I Os símbolos dos rituais seculares, assim como dos rituais reli- po de ação e tomando tal decisão. Eles demonstram que, na cena so-
giosos são multívocos, estruturados logicamente, transformáveis (ou cial, tudo vai bem, que as coisas estão como deveriam estar.
seja, sujeitos a substituições um pelo outro) e fundamentados em opo- É definitivamente o poder que propõe regras às quais, em última
sições dicotômicas (eco de Lévi-Strauss!). instância, ele fará respeitar através da força. Mas a utilização multipli-
9 I O ritualismo serve para preservar a ordem social que ele ex- cada da violência física através da intervenção do exército e da polícia
pressa através de metonúnia e metáfora. Instrumento de redução do toma mais visível o não-estabelecimento do consenso e pode colocar
drama de uma situação, ele não é apenas uma gramática expressiva mas em perigo a imagem de legitimidade do poder. Um poder castrador,
um processo vital, uma mensagem expressa através de um código de sanguinário ou encarcerador tende a minar o sentimento de legitimida-
ações simb6licas (in Moore, pp. 144-145). de de que era beneficiário, ainda que um poder posterior (ao de Amin
Mas essas conclusões originárias de um estudo de relações inter- Dada, por exemplo) possa usufruir mais facilmente de um crédito novo.
étnicas exigiriam muitas validações empfricas em diferentes contextos. É verdade que, na África, o limiar de tolerância da violência física pa-
rece socialmente bem mais elevado do que na Europa. Entretanto, se a
Funcionalidade propriamente política segurança coletiva está em questão, a combatividade dos membros da
coletividade aumenta e aumenta também a capacidade para defender
Uma tal percepção dos ritos como particularmente ligados a con- seus interesses primordiais.
textos conflituais, assim como a crítica da hipótese integrativa dos ritos De fato, para muitos, a adesão ao rito depende da força coercitiva
que realizamos anteriormente, pode fazer pensar que supervalorizamos do poder e do grau real de legitimidade que se lhe atribui. Um chefe de
o problema do efeito social de reagrupamento com relação a outros Estado pode na verdade ver variar a sua legitimidade de acordo com o
objetivos mais discretos, mais ocultos, porém não menos reais, da ação seu tipo de exercício do poder. Legalmente legítimo, ele perde pouco a
política. Agora, após ter mencionado isso através de alguns enfoques, pouco a sua legitimidade social se os valores que enuncia forem consi-
tentaremos esclarecer com mais sutileza as funções dos ritos seculares derados pouco consistentes pelo público (o marxismo no Benin), não
de caráter político insistindo sobre seus aspectos: l / de legitimação respeitados pelas autoridades (que vivem como burgueses) e se não
política; 2 I de afirmação de uma hierarquia de poderes, de valores e de suscitarem uma internalização profunda. Nos Estados africanos onde o
prioridades; 3 I de orientação moral; 4 Ide troca intensiva, ao mesmo poder foi adquirido através de golpe de Estado, a conf?rmidade f~~1al
tempo lúdica e mobilizadora. não induz necessariamente a uma colaboração entusiasta e positiva.

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EAsta é ~ ambivalência do rito, a de falar de uma legitimidade sem fa-
ze-la viver às vezes profundamente, ainda que o gosto africano pela rante estes últimos, o Presidente e seus assessores parecem menos os
festa pudesse favorecer uma reviravolta do povo em favor de um poder celebrantes de um rito (o de 28 de setembro na Guiné, data do voto
em processo de perda de crédito, mas hábil em manobrar o verbo e o pela independência) do que os recebedores das honras de um povo em
engodo. A promoção do consenso favorece a promoção do poder polí- regozijo, e mais ainda porque identificados com a continuidade mística
tico e a da ideologia. Mas o estudo da função do rito exige que se in- da Revolução, e porque a dominância de um partido como partido (ins-
terrogue a respeito do grupo que tem interesse em propagar ritualmente titucionalizado) da Revolução (no México, por exemplo), ou o próprio
uma ideologia, sobre quem lucra com isso na medida em que lhe é as- caráter único do Partido, como na maioria dos países africanos, contri-
segurado um suplemento de poder e permite uma exploração. Diferen- bui para a concentração das homenagens públicas numa imagem única
temente de muitos ritos cotidianos descritos por E.Goffman, será que abaixo da qual cada um se situa em um degrau da pirâmide partidária e
entre indivíduos de posição simétrica, o rito político não favorece as governamental. Quanto às campanhas do Partido, elas servem para re-
assimetrias desigualitárias? novar, num ritual de veneração, as relações do povo com o governo
centralizado, e ajudam a convencer o povo de que o homem certo foi
2 / Hierarquização. - Em correlação direta com sua função legiti- colocado no lugar exato.
madora, o rito político preenche uma função afirmativa das hierarquias Mas elas podem significar também que foi feita uma escolha cor-
de poderes, de valores e de prioridades. Assim como segundo Goffman reta dos valores e prioridades. Atualizar um pólo de ação permite po-
os ritos de interação produzem uma valorização da complementaridade tencializar outros valores considerados temporariamente secundários.
do outro, os ritos religiosos dirigem-se a potências sagradas distintas Sobre os objetivos prioritários, procura-se assumir o mfuimo de riscos
em seus estatutos e especializadas em suas supostas ações - como, por de fracasso, aumentando esses riscos se os objetivos foram classifica-
exemplo, Santo Antonio de Pádua, a Virgem Maria, o Espírito Santo, dos como menos urgentes. Por isso uma campanha para o abasteci-
Demeter ou Vishnu -, da mesma forma os ritos políticos, tanto pela mento de víveres, chamada no Togo de "Revolução Verde", ou para a
atribuição de papéis e dignidades aos participantes (animador, chefe de nacionalização das empresas mineradoras, reverte-se, dentro da or-
seção do Partido, secretário ou presidente de sessão) quanto pela refe- questração comandada pela mídia, de um caráter ritual de ação media-
rência à ordem hierarquizada do político, não deixam de reafirmar for- dora, favorecendo a realização de certos objetivos considerados decisi-
temente, como nos mitos analisados por G.Dumézil, a complementari- vos para o devir social e em cuja volta monta-se um cenário mais ou
dade e sobretudo a assimetria dos papéis e posições nas estruturações menos dramático de organização de uma solidariedade coletiva.
sociais plurais. Quando o poder define solenemente uma ordem de prioridades, ao
O próprio rito contribui para a valorização social das posições mesmo tempo que toma mais naturais as orientações predominantes, ele
permitindo aos personagens principais manifestarem-se sob o seu me- simultaneamente se toma cada vez mais indispensável e cada vez mais
lhor aspecto e muitas vezes numa atitude quase hierática, acentuando apto para aproveitar-se da situação, pois terá valorizado rituahnente o
assim o efeito de sacralização realizado pela mídia e pela difusão de sentido daquilo que tem chances de ser bem-sucedido. O potencializa-
sua efígie. O fato de atualmente o desenvolvimento dos ídolos políticos do toma-se atrativo. Os valores se reforçam na medida em que são re-
ser uma recorrência da função carismática só acentua a força imagina- conhecidos como legítimos, em que haJa envolvimento afetivo e inter-
tiva dessa ordem do poder. Quantos presidentes africanos são popular- nalização, de forma a traduzi-los num comportamento conseqüente.
mente percebido~ como figuras sagradas (Nkrumah, Nasser, Nyererê
durante algum tempo) de onde provém toda espécie de benefícios. A 3 /Moralização. -A referência freqüente a valores, sua hierarqui-
linguagem da prece e do sacrifício não difere de estilo, quer se dirija zação pelo poder, as sanções (críticas, censura, privação de vantagens,
aos deuses quer aos homens políticos. Oferendas são-lhes oferecidas regressão na escala dos papéis, encarceramento) referentes à sua trans-
em troca de serviços e favores, além dos grandes ritos nacionais. E du- gressão, levam a perguntar se os ritos políticos não revelam uma carga
de intenção que dirige uma moral do ato político, se é que não respon-
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de~ a uma necessidade funcional de orientação moral. Bellah e Verba da representação de uma ordem política hierarquizada onde o indivíduo
m~itas vezes sublinharam quanto a religião civil na América diz res- pode situar-se. Se esse indivíduo respeita os preceitos com que a moral
pei~o às que~tões morais e políticas mais urgentes da atualidade (daí o política se recobre, apagam-se nele progressivamente as alternativas de
e~candalo Nixon) e Christel Lane exibiu a evidência de que onde a no- conduta perigosa, através de uma valorização ética que tem efeitos de
çao de Deus e os credo fundadores do ato religioso sofreram uma crise velamento. Mas a segurança nem sempre deriva do fechamento, ela po-
a moral civil do racionalismo do século XlX ou a do comunismo po; de também ser encontrada no engajamento, na expressão das potencia-
exemplo, não menos rigorosa do que a moral burguesa, tomaram ~ seu lidades valorizadas pelo político.
lugar. Quant~ ao ritual, diferentemente de uma ética teórica que define Ora, o intuito do rito político é também o de responsabilizar os
as zonas de liberdade (o permitido e o proibido), tende antes a orientar participantes, aliás de maneiras bastante diversas. Assim sendo, na
p~a as_ hnha~ ~e envolvimento naquilo que ele compreende, do pres- África a responsabilidade individual muitas vezes se conforma sobre
~to (nto ~siuvo segundo Mauss) e do proscrito (rito negativo). Além um fundamento de responsabilidade coletiva. Mas talvez, ao inverso
~is~o ele se msere numa ética social e política na medida em que cons- das sociedades européias, as sociedades africanas não acentuem a mo-
lltui um elemento da moral cívica das sociedades modernas e contribui ral de responsabilidade a ponto de abandonar a moral de convicção,
para realizar seus objetivos de adesão efetiva e de legitimação social. tanto mais necessária e fácil de criar quanto o indivíduo esteja vivendo
Em suma, ele contribui para inculcar essa moral civil. uma mudança rápida num contexto de relativa incerteza.
No plano moral poderíamos reconhecer-lhe quatro subfunções im- Daí também provém o importante papel da ideologia e dos ritos na
portantes: de regulação, de tranqüilização, de responsabilidade e de mobilização coletiva: mobilização da sustentação popular com o intuito
mobilização. de atingir objetivos nacionais, mobilização das energias de jovens gui-
Fazendo prevalecer o estável, o recorrente, o fixado sobre o im- neanos que trabalham os campos de sua brigada enquanto as moças os
provisado, e produzindo uma espécie de sacralização da autoridade e incentivam com seus cantos e seus tam-tans, mobilização que às vezes
da ideologia, ele dá forma ao caos do cotidiano trivial e pouco regula- também é, desgraçadamente, uma delação dos não-conformistas ou dos
do. Ele mesmo determinado por uma ética, está associado à ordem as- opositores ao regime. Mas não existe mobilização eficaz sem uma certa
sim como a sua transgressão à desordem, apesar da ordem temporal não exaltação coletiva.
~r, como também nos ritos religiosos, a da repetição pura e da circula-
ndade. Entretanto, por sua carga de arquétipos e de estereótipos, nele 4 I Exaltação. - Esta por sua vez supõe dois fenômenos diferentes:
domina o repetitivo. Ora, sabemos que a repetição rítmica age como um um de troca e de comunicação, o outro de intensidade emocional. En-
encantamento, anulando as angústias de que o tempo é portador. Ela quanto meio gestual e verbal de expressão da ideologia, ou enquanto con-
luta contra a entropia mortífera situando o homem no não-tempo ou na fere à ação coletiva um suplemento de sentido político, moral e social,
longa duração através da projeção para uma sociedade ulterior mais fe- o rito secular aqui considerado toma-se uma espécie de metalinguagem
liz, mesmo que o vivido atual e pessoal permaneça pesado de angústia de grande validade comunicativa. Seus significados ultrapassam de
e_ de carências. Dispositivo apropriado para capturar o tempo, para dis- muito as mensagens que ele transmite. Algumas vezes o sentido está so-
simulá-lo, controlá-lo, o rito é uma forma de lutar contra o próprio des- bretudo na maneira como ele transmite. Basta pensar nos longos discur-
gaste do tempo. O efeito de regulação, através da projeção num vasto sos de Sékou Touré no estádio de Conakry que repetem, mas sem alcan-
tempo social, aparece especialmente nos rituais de reiteração que se re- çar o público e sem a vibração eficaz, os múltiplos tomos de L' action po-
f:re~ a um_ acontecimento primordial de instauração (o dia da indepen- ütique du Parti cMmocratique de Guinée. É verdade que Sékou Touré
dencia mexicana, por exemplo) e nos rituais de consolidação, como as utiliza ali a argumentação, mas uma argumentação de sofista, feita de as-
campanhas eleitorais que valorizam a era e os princípios da democra- serções não comprovadas, de exemplos evocadores, de provérbios retum-
cia. bantes, e de reprovações sem apelo, procurando vencer a convicção atra-
A tranqüilização ~ecorre ao mesmo tempo da rítmica temporal e vés da sedução. Mas o Ocidente nada deixa a desejar neste domínio.

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~ força do rito se mede pela emoção que suscita: uma emoção fa-
vorecida pela atenção que ele exige de quem faz parte das cerimônias dos por regras e seguem modelos tradicionais, diferem deles: 1 / já
do auditó~o, dos participantes engajados nesse tipo de comunicação: que o resultado dos primeiros é incerto, enquanto o dos ritos é sempre
mi:ia ~moçao. tocada ~la.s metáforas veiculadas pelo rito e que fazem o fixado com antecedência, altamente convencional e expressão simbóli-
ps1qwsmo Vlbrar mais ainda porque se referem a situações vitais. For- ca de um estatuto; 2 I já que os atores são muito individualizados por
~ecendo uma leitura coerente de um futuro balizado pelo .. plano", 0
seu caráter nos dramas e jogos enquanto no rito atuam segundo seu pa-
nto de lançamento de uma planificação nos novos Estados, com grande pel social; 3 I já que nos rituais a harmonia triunfa sobre os conflitos,
reforço de congressos, discursos, slogans, passeatas de bairro e de al- enquanto nos dramas e jogos de escolhas abertas o resultado inicial-
deia, procura provocar uma implicação afetiva equivalente à obra a ser mente incerto pode tomar-se fortemente conflitual e a situação final de-
realiza~a.!al:ez a exaltação ainda seja mais significativa entre os gru- sarmônica.
pos. mmontários defendendo-se contra uma política global que já os
motivou fortemente à reação. A carga emocional latente libera-se na Conclusão
cerimô~a do Fe~t No~, onde o bretão exalta seu direito à diferença, ou
nas açoes grupais de interrupção do trânsito por camioneiros ou cam- O fato de a funcionalidade dos ritos ter sido tratada durante muito
poneses enfurecidos. tempo do ponto de vista do reforço da integração deriva de uma preo-
Ao inverso dessas situações onde interesses vitais parecem em jo- cupação constante de muitos antropólogos desde Malinowski. A propó-
go para um ~po, são as situações de jogo (sem interesse vital) que sito da África, os especialistas em religiões, de qualquer corrente que
penetram no nto e pontuam a repetição banal através de momentos de fosse, atribufram sempre uma importância capital às questões de inte-
intenso júbilo, ainda que o júbilo pudesse ser o resultado como em gração das normas e de integração das pessoas. Enquanto o esforço de
certas danças africanas, da repetição dos mesmos motivos rí~cos mu- Marcel Griaule era aplicado na demonstração da coerência interna dos
. . . ' sistemas cosmológicos como modelo de comportamento na vida coti-
s1ca1s e _gestuais. Muitas vezes a exaltação coletiva se apóia no ludismo
(cf. Maio de 1968). Elemento fundamental da sociedade sob seu as- diana e esquema de unidade dos membros de um grupo étnico, dos ho-
pecto agonístico, de desafio ou de mimetismo, o jogo também se de- mens com os deuses e com o cosmos, a tendência de Placide Tempels
senvolve na área do sagrado religioso ou do sagrado moderno de tona- consistia em destacar a coerência das próprias crenças, a filosofia do
lidade política, ainda que sob um outro ângulo a dinânúca do jogo pos- sistema, supondo que a umão vital de cada banto com o seu grupo local
sa tornar-se uma forma de resistência à supremacia do poder assim co- e étnico, que a integração do grupo favorecido pela fecundidade e o
mo ao caráter titânico do sagrado. respeito desse valor essencial que é a vida, fossem a conseqüência, no
~e o jog~ esteja presente no rito, isto é compreensível pelo fato
nível da socialização e da enculturação, da integração das normas.
de o JOgo e o nto terem em comum situações de negociação com o Ou- Quanto aos britânicos, eles pretenderam sobretudo a integração da reli-
tro, e também porque se fundamentam em códigos aceitos exaltam a gião à sociedade e sua contribuição para o bom funcionamento desta.
sociedru:1e e permitem uma valorização dos jogadores como ~queles que Qualquer que seja a perspectiva, escorregamos facilmente da integra-
os caucionam. Se os próprios jogos modernos comportam, como entre ção cultural para a integração social, da concordância interna das nor-
os ~regos, uma parte de rito e de sacralização, é sobretudo na inaugu- mas para a conformidade das condutas às normas, da troca de signifi-
raçao e no final dos jogos que existe espaço para o ritual: ritos de cados simbólicos no rito para a integração comunicativa e para a parti-
abertura, de entrega de prêmios e de medalhas. A honra hierática inter- cipação ativa de todos em projetos comuns.
rompe um tempo de júbilo para melhor desencadeá-lo. Nas sociedades modernas, a ordem existente, ao mesmo tempo or-
denação e potência, tende a ser celebrada, declarada, legitimada, de-
~ntre~to, se os jogos, os dramas teatralizados, as competições
atléticas tem elementos comuns com os ritos, na medida em que com- monstrada mais ou menos da mesma maneira que nas sociedades tradi-
portam poderosos temas éticos, atam as relações sociais, são controla- cionais a ordem dos deuses, das forças da natureza, dos homens e das
coisas. O rito secular entra assim no quadro de um sistema de governo.
-186-
-187-
Entretanto, apresentando-se o Estado como um lugar de regulação mas Lukes, Stephen, Political Ritual and Social Integration, Sociology, IX, 2, 1975,
também de expressão dos conflitos, podemos nos interrogar sobre a pp. 289-308.
eficácia real do projeto regulador e unificador das cerimônias laicas nas McDowell, Jennifer, Soviet Civil Ceremonies, Journal for the Scientific Study of
sociedades liberais. Lançado por instigação das autoridades nacionais, Religion, XIII, 3, 1974, pp. 265-7.80.
o efeito pode não atingir o alvo por ser preciso algo mais do que uma Moore, Sally F. e Myerhoff Barbara C. (eds), Secular Ritual, Amsterdã, Van
parada, uma passeata, a colocação de flores num santuário, para impul- Gorcum, 1977.
sionar as forças em conflito a abandonar as ofensas mútuas. Mesmo na Shils, E. e Young, M., The Meaning of Coronation, Sociological Review, 1,
melhor das situações, nada mais sendo do que o objeto do consenso de 1953, pp. 63-81.
uma maioria, um poder precisa incessantemente prevenir a ação ou a Verba, Sidney, The Kennedy Assassination and the nature of political commit-
atitude, no próprio cerne do rito, de grupos que, talvez apenas pela via ment, in B.S.Greenberg e E.B.Parker (eds), The Kennedy Assassination and
de um silêncio reprovador, clamem pela oposição de um contrapoder. the American Public, Stanford University Press, 1965.
Conduzido pela iniciativa não do Estado mas de grupos particulares, Warner, Lloyd, American Life; Dream and Reality, Chicago, University of Chi-
um ritual secular pode desenvolver uma integração grupal contra a in- cago Press, 1962.
tegração global. Sua eficácia, diversa da simbólica, ou seja,psicológica,
sobre a afetividade e sobre a mobilização das vontades, mesmo não
permanecendo problemática, ainda assim depende de muitos fatores pa-
ra que se possa dela extrair conclusões válidas em todos os casos.
Assim, em lugar de atuar em favor do statu quo, o rito pode agir
contra ele e provocar mudanças sociais que irão repercutir por sua vez
sobre o próprio rito. Esta, não apenas se modifica com o tempo, mas
também sofre transformações em suas finalidades e em sua monologia,
em virtude das próprias transformações de situação política ou social,
ou ainda em virtude de um simples fenômeno de erosão das crenças
que lhe conferem sua carga simbólica. As inovações, empréstimos, fe-
nômenos aculturativos, efeitos de resistência e de recuo, devem ser
perpetuamente levados em consideração para uma apreensão exata da
dinâmica dos rituais seculares. Por isso é preciso evitar a ilusão de um
tratamento simplista do rito como invariavelmente unificador, repetitivo
e resistente às vicissitudes do tempo assim como às febres das socieda-
des em crise.

BIBUOGRAFIA

Bellah, Robert N., La religion civile en Amérique, Archives de Sciences sociales


dés Religions, 35, 1973, p. 17-22.
Durkheim, Emile, Les fonnes é/émentaires de la vie religieuse, Paris, Alcan,
1912.
Lane, Christel, The Rites of Rulers, Cambridge University Press, 1981.

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Todavia, mesmo que o vivido do rito leve a uma amnésia de sua
gênese, vale a pena tentar apreender certos rituais sob o ângulo diacrô-
CAPÍTULO VIII
nico, especialmente os rituais políticos mais facilmente situáveis na
história. Querer apreender a dinâmica dos ritos supõe também relacio-
DINÂMICA DAS LITURGIAS POLÍTICAS ná-los a uma temporalidade, ma'> esse procedimento é distinto de refe-
rir-se ao tempo de desenvolvimento de um rito apreendido pelo obser-
vador, distinto também de inscrever o rito na estrutura do tempo mítico
ou ideológico, e diverso enfim de marcar no calendário as datas repeti-
tivas da realização dos ritos. Entre a atualidade da realização e o ex-
Os aspectos de repetitividade e de padronização, pelos quais os ri- tremo da mudança social esperada pelas sociedades modernas, situa-se
tos são parcialmente definidos, levam a valorizar a idéia de sua estabili- o meio-termo onde o rito se repete evoluindo, ou ainda se transforma
dade através do tempo e a eludir, em proveito da descrição das ações e ao mesmo tempo que a sociedade reconstrói suas orientações históricas.
da interpretação dos símbolos, o problema de seu nascimento e de sua Para os países africanos, por exemplo, onde os ritos seculares fo-
transformação através da história. Entretanto os ritos nascem, desen- ram introduzidos em diferentes momentos da temporalidade social, será
volvem-se, glorificam-se, morrem, e reanimam-se sob outras formas. importante estabelecer o calendário de instauração das principais festas
Recusando como fantasista uma reconstrução pseudo-histórica à nacionais sublinhando o que têm de específico os períodos de sua cria-
maneira dos evolucionistas, e levantando exemplos e provas nas socie- ção (independência, mudança de regime ou de opção pol(tica) e as ra-
dades contemporâneas, é possível proceder a uma análise dinâmica dos zões pelas quais determinada festa em determinado momento tem maior
rituais, estudando os fatores de sua gênese, de sua evolução, de sua amplitude do que uma outra. Por que uma foi criada e a outra suprimi-
fragilidade. Está por discutir a criatividade nesse domínio e as condi- da? No Togo, por exemplo, país cristianizado em 35% mas islamizado
ções mais favoráveis para a promoção das liturgias políticas. Estão por (ao norte) em 8%, a redução da importância atribuída às festas cristãs
analisar os seus processos internos de transformação, assim como os pela supressão dos feriados da Ascensão, da Assunção, da segunda-fei-
empréstimos e as diferenças de impacto de acordo com os meios. Estão ra de Páscoa e de Pentecostes, acompanhou-se por uma concessão de
por distinguir as razões da estetjlização progressiva das práticas a que outros três dias feriados correspondentes às três principais festas mu-
se dedica essa pesquisa sobre a vida dos ritos. çulmanas. As festas nacionais como o 13 de Fevereiro, data de ascen-
são ao poder em 1967 do presidente Eyadema, ou o 2 de Fevereiro,
A / GÊNESE DOS RITOS
data da decisão de nacionalizar os fosfatos após o acidente de avião de
24 de janeiro em Sarakawa, do qual o presidente escapou ileso (mira-
A simples observação da diferenciação dos ritos entre as sociedades, culosamente, diz-se), assumem de agora em diante um esplendor in-
e no interior de uma sociedade através do tempo, inevitavelmente suscita comparável, provavelmente pelo tempo de sobrevivência de um regime.
a questão de sua gênese. Como são os ritos criados, introduzidos na vida Na verdade, muitas cerimônias civis, algumas vezes abandonadas
cívica, adaptados ou modificados? Esforço inútil o de querer encontrar, depois reintroduzidas, conservam um caráter frágil em virtude da su-
como tentaram Robertson Smith, Frazer, Durkheim, Freud, um rito fun- cessão dos poderes, da valorização temporária de um herói etnicamente
damental de que derivariam os outros. Que a violência seja fundadora, marcado e do esquecimento progressivo de fatos outrora marcantes. A
que o sacrifício represente o modelo inicial segundo o autor de Moisls e propósito de duas festas francesas, F. lsambert propõe as seguintes ex-
o Monotefsmo, que exista filiação desde a morte do animal totêmico até plicações: "Provavelmente se o 8 de Maio jamais alcançou a solenida-
a eucaristia, ninguém pode provar. Temos o direito de postular fora do de do 11 de Novembro, foi por um lado por que a guerra de 1914-1918
domínio biológico que a ontogênese repita a filogênese? Podemos afir- assumiu no culto nacional um lugar maior (nem que fosse apenas pelo
mar a origem absolutamente religiosa de todo cerimonial? É muito sagaz número de soldados mortos) do que a de 1939-1945; mas também por-
ou muito tolo quem pretende ler nos arcanos da "primitividade"!
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Exemplo escolhido: o estado crítico da Alemanha ap6s a primeira
que o 8 de Maio está "mal situado" por ser uma festa da lembrança, guerra mundial. De repente desmorona-se o desenvolvimento industrial
enquanto o Todos-os-Santos - 11 de Novembro assegura a essa última e urbano durante os vinte e cinco anos anteriores a 1914: ocupação do
data o caráter mortuário que por si s6 emerge do aniversário dos fins de Ruhr, pagamento de indenizações aos aliados, queda do marco, falên-
guerra" (lsambert, p. 167). cias provocadas pela quebra de 1929, desemprego, etc. P~liticament~, a
. Algumas vezes, cerimônias civis ou privadas transformam-se par- República de Weimar, mais ou menos imposta pelos aliados, é vista
cialmente ao mesmo tempo que as situações políticas, pela inserção do pelos alemães como um "ato de traição metafísica" e desperta a nostal-
político na cerimônia tradicional. Assim, a festa do Epe-Ekpe dos Gen gia do poder imperial tradicional. Sironneau lembra a vergonha da
(Togo), grande peregrinação das pessoas da etnia ao santuário de seus proletarização sentida pelas classes médias, a humilhação do exército, a
deuses, agora já comporta a presença de responsáveis políticos, discur- derrota dos intelectuais, o sentimento de decadência dos valores, o me-
sos, preces pelo presidente da República (que não é gen) e sobretudo a do da revolução bolchevique e finalmente a exaltação dos mitos tradi-
impossibilidade de descobrir e expor uma pedra sagrada que não seja cionais (natureza, terra, morte, instinto, raça, autoridade) no reino su-
branca (cor fasta), pois uma pedra negra anunciando catástrofes seria premo: o IIJ!? Reich, fundado por Hitler (Sironneau, PP· 491-495? ..
~te~retada coi:io um risco insuportável e desmoralizador para o país OutraS ilustrações, como a da Revolução francesa, a do socialismo
mte~o, e especialmente para o regime. Em muitas cerimônias privadas, francês da primeira revolução industrial (apesar das liturgias só terem
considera-se também como uma honra a presença e as dádivas de um tido um início de execução com Bazard e Enfantin), a da Revolução
membro politicamente influente da família e da região. russa, confirmariam a idéia de que um elemento social de insatisfação e
Mesmo pesquisando uma gênese "científica" ou popular para o de revolta favorece o desencadeamento de um movimento de caráter
rito secular, é conveniente abandonar a idéia de uma espécie de gera- político-religioso, por menos que um personagem excepcional corres-
ção espontânea dos ritos como expressão "natural" dos mitos ou da ponda com suas mensagens às esperanças fervorosas de uma "terra sem
ideologia, assim como também da idéia de que os ritos seriam impostos males" (como a dos tupi-guarani) para um povo em desordem.
aos grupos humanos pelos fabricantes de dogmas. Incitada ou orientada Ap6s delírios festivos, destruidores dos súnbolos do estado coleti-
~los_gov:mantes num Estado plani1icador e culturalmente regulador, a vo anterior, a nova sociedade se reconstrói pela ação de dirigentes ca-
ntualizaçao pode não ser organizada pelo centro, mas resultar mais de pazes de provocar o entusiasmo e de reencadear ritual e institucional-
iniciativas locais e tomadas de empréstimo, no interior de um terreno mente um processo de regras sancionadas. Nas sociedades p6s-colo-
favorável, do que por sua padronização institucional junto a uma ex- niais que precisam consolidar a mudança, pode acontecer a criação de
pectativa popular de liberação no imaginário. Por isso, na Igreja dos uma poderosa identidade política sem que a religião política seja tão
primeiros séculos, o culto dos santos foi suscitado por pressões locais e coerente, tão diferenciada e tão sistematizada quanto nos regimes tota-
pelo entusiasmo popular. litruios. O culto do chefe de Estado independente, a animação política
e as festas nacionais bastam para manter um pouco de fervor e para
Um terreno favorável captar os testemunhos de obediência. À semelhança de Robespierre,
que compreendeu o quanto a festa poderia ser um meio para obter a
O meio social interno condiciona em primeiro lugar a produção de lealdade das massas iletradas e impressionáveis, os chefes dos novos
ritos políticos. Para o nazismo e para o leninismo estalinista, J.-P. Si- Estados exaltam ao mesmo tempo as virtudes cívicas (aqui liberdade,
ronneau chega até mesmo a perceber uma situação de engendramento igualdade, fraternidade; ali trabalho, justiça, solidariedade), o _senti-
absolutamente análoga à dos messianismos: 1 I uma sociedade em de- mento patriótico contra os inimigos de fora, e o fundamento afetivo de
sequilíbrio, perturbada em seu funcionamento ou agredida pelo exte- ódio pelo Antigo Regime (aqui aristocrático e clerical, ali colonialista).
rior; 2 I frustrações muito fortes, geradoras de angústia; 3 I a existência
de uma estrutura mítica milenar comportando os temas da regeneração
e da salvação; 4 I a presença de um líder carismático.
-193-
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1
Modelos ideol6gicos
persuasão para a participação ritual na vida pública, da mesma forma
Quer seja de caráter ideológico ou laico o rit que nos regimes totalitários.
de referência. Inculcar' traduzir arremedar tr'an ~ur·requerdaum modelo Mas a ideologia como tal não é suficiente para dinamizar as litur-
d d · ' • srm ato sascama- gias políticas, é preciso que exista um fosso entre as aspirações ideoló-
as a s~ci~dade valores unitários especulando com a afetividade das
gicas e o atual estado de fato. De que maneira mobilizar sem que os
;assas, mc1tando-as ao esforço e ao sacrifício para construir um mun-
objetos sejam sentidos como exaltantes e a situação presente insatisfa-
o melhor, é o que pretende o desenvolvimento das religiões políti
~entand~ estabelecer tipos, apresentam-se três casos exemplares no~~~ t6ria? A insatisfação acentua a linha de fuga para um futuro resplande-
cente. "É realmente um fato notável, sublinha Marc Augé, que o dis-
1Z respeito aos corpus de valores a que se referem os ritos:
curso político tenda a afastar a realização das promessas, o tempo do
l . 1 I Nos países totalitários, o suporte ideológico aparece como re- vencimento, enquanto o discurso religioso profético coloca-se sob o
attvamente estruturado, compreensível, detalhado claramente arti l
. ~u a-
signo da inlinência - tudo ocorrendo em suma como se fosse ao mili-
do. A coerência dialética do marxismo só sed' .
Q t à ·d · · uzrn aos soviéttcos tante que se pedisse a fé, a coragem de relativizar a importância de sua
_uan o i eolog1a hitlerista, podemos duvidar do seu rigor lógico ~ própria vida, à custa de dominar sua impaciência e seus desejos" (Au-
~~o ~~~amos .negar que aos olhos dos fiéis ela aparecia com~ um gé, p. 301). Entretanto conhecemos as predições da inlinência da der-
oco sd o, reurando do tronco do poder a imagem de sua unicidade rocada do capitalismo ou da catástrofe nuclear. Acrescentainos tainbém
apesar os e~ertos pan-germanistas, racistas, socialistas, elitistas so- que, para os participantes de um rito político e para os militantes de um
bre a arvorezmha naturista à maneira de Holzapfel Aind regime, arrisca-se a embotar a energia se as esperanças de melhora
tensa d m· · · a que a pre-
~u na nacional-socialista. . . não forme um todo afirma H
econômica e social não conhecerem um início de realização.
El éem La.· rtvolution du nihilisme• "ela é a base d'a propagan-.
dRauschning Mas é importante que essa realização seja apenas iniciada, pois o
a. . . a um mstrumento de dominação Ela d
união colocando em evidência o mito da co~unh· - deve promover a
entusiasmo se reduz à medida em que se toma menos visível o fosso
d d · . ao o povo, do san- entre o vivido e o futuro ideologizado. O resfriamento das tensões fi-
gue, ~ estmo. A ideologia deve oferecer aos chefes da propaganda nalizadas e a impressão dominante de bem-estar presente dessacralizam
º~. ~ottvos capazes de afastar a massa da política, de distraí-la tran- e secularizam. O individualismo apresenta-se então como a sabedoria
qüilizá-la, mas também de superexcitá-la" (Rauschning, p. 70). ' do rico, ainda que no Ocidente, apesar de nível elevado de sucesso
. 2 I .Onde º.s rituai~ são pouco elaborados como nas democracias material, o declínio das religiões eclesiais tenha deixado os indivíduos
0:identais, as ideologias nacionais, democráticas, capitalistas fre- afetivamente frustrados e perigosamente anômicos. A esperança reani-
quentemente
das permanecem vagas ' mal articuladas, pobremente construí-
No c ·tal· ' ma-se incessantemente pelo deslocamento de seu objeto, por exemplo,
. api ismo, por exemplo, que muitas vezes só é enunciado do religioso para o político, mas também ritualização estimulada atra-
co~ vergonha, a bolsa de valores mercantis controla nã vés da aculturação escolal" (culto de Lenin ou veneração de Lincoln e
objetos prod ·d o apenas os
- UZl ~s, mas também a produção e o consumo das ex lica- de Washington).
çoes, representaçoes e teorias possíveis para explicar o mundo. p Já que o passado anterior às revoluções oferece a imagem de con-
. 3 I. Nos casos intermediários, o dos novos Estados, r exem 1 flitos, não é muito desejável, para o desenvolvimento dos rituais, que a
ideolo~a está em vias de elaboração com a mistura d[°tradi - p ºcia imagem atual da sociedade seja a de fortes diferenciações sociais. Caso
modernidade. Conseqüentemente os rituais fazem sur . çao e e contrário a população se mobiliza para provocar a expressão e a reso-
um 1 d . ' gir aspectos por
~ o retro~pecttvos e comemorativos (ex: imolação solene de um lução real dos conflitos ao invés de investir no rito onde ela já percebe
carneiro para maugur~ um edifício público), e por outro lado ro·eti- a parte de simulacro. Por isso o capitalismo funciona mais pela remune-
vos, atr~vés da enw1c1ação das escolhas fundamentais para o ~ut~o ração diferenciada do que pela satisfação sublimada. Pelo contrário,
No Berun e no Congo a coerção é pelo menos tão empregada quanto ~ o terreno privilegiado das liturgias fortes é o de uma fraca diferencia-
ção social (ou pelo menos assim percebida sob o efeito da propaganda)
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mesmo. que al.guns grupos se oponham por suas palavras ou r seus
~to~ àd1deolog1a donunante. Nesses casos, seu "deviacionismo!!°ou sua
' vos cenários ou a adaptação de antigos redefinidos e sancionados ofi-
cialmente, da introdução e da propagação desses ritos na vida social.
atitu e co~tra~revolucio~ária" é explorada para sublinhar a potência
Observa-se claramente uma diferenciação dos papéis, ditada pela
~o bloc~ ~tário dos fi:is pu~os e sinceros. Se o rito estabelece uma elite no poder. Na URSS, um grupo de ideólogos politicamente in-
erarquizaçao dos papéis no mterior de uma organização ele J·am.,;
fluentes e instigadores, recrutados entre a intelligentsia, define as no-
dexalta uma des1g
· uald. a de de oporturudades
. ' socieda-
no interior de uma ....s
ções ideológicas a serem passadas no ritual. Outras pessoas, provedo-
e, mesmo que contnbua para produzi-la.
res do ritual ou mestres de cerimônia, consomem essas noções. Suas
funções políticas relativamente poderosas permitem-lhes atribuir forma
Recursos em poder e em h.omens ao rito e dirigir sua execução. Esses animadores-organizadores locais
pertencem ao Komsomol, aos sindicatos, ao soviete local, e recebem
_ Além d.essc:_s modelos ideológicos e do terreno social de insatisfa- diretrizes das altas instâncias do Partido. No entanto, eles freqüente-
çao, de. asprraçao e ~e ~ecessidade que definimos, a aparição e 0 de- mente confessam-se incapazes de mobilizar com eficácia os composito-
senvolvunento ~os .ntuais políticos tem como condição o controle das res, artistas, poetas, trabalhadores da cultura, no sentido de conceber
massas pelas nunonas _Políticas que tentam estabelecer um consenso em uma liturgia nova e atraente. Quanto aos executantes, em sua maioria
tomo de valores defirudos como prioritários no plano ideoló · E são jovens e trabalhadores manuais. Mas se existe um dia do mineiro
os suport · · · · gico. ntre ou do metalúrgico, para os intelectuais não existe o dia do poeta ou do
es msutuc10nais e organizacionais mais important ·
·al artid ú · es, em espe-
c1 .º P o mco par~ce favorecer a dominação sobre as massas, na físico nuclear. Os que concebem e os que criticam nem pertencem ao
mech~a e~ que pod~ on_entar e estimular a ação de um grupo ligado à grupo dos executantes nem ao grupo dos carneiros! Na África a divisão
org~~çao Ae à realizaçao dos ritos. A contrario, as democracias pluri- é a mesma: os intelectuais explicam os dogmas. Os animadores do
partid~as tem poucos rituais. E quando o Estado se toma 0 núcleo de Protocolo, da Cultura ou da Educação nacional fabricam os cantos, os
an~gorusmo~, q~ando as elites desunidas desenvolvem conflitos ideo- movimentos de conjunto, os passos de dança e regulam as seqüências
lógicos, os ntuais tende~ a desaparecer ao mesmo tempo em que fene- cerimoniais. Quanto aos jovens e aos trabalhadores de empresas nacio-
cem as cre~ç~. Um ~mento de fragilidade para a manutenção do sis- nalizadas, eles perdem com prazer horas de trabalho preparando a ce-
te~ de .rehg1ao política é o da transferência de autoridade de um líder rimônia e apressam-se em comparecer no dia convencionado para reali-
cansmático ~o seu suces~or. A luta entre pretendentes e poderes rivais zar uma participação lódica ou fazer efeito de massa.
~ode conduzrr a uma arbitragem pela força militar, como revela a histó- Aos recursos humanos para a realização dos ritos devemos acres-
na de numerosos golpes de Estado. centar os recursos culturais, políticos e simbólicos, mas também os re-
cursos financeiros estatais para o material utilizado: bandeirinhas, flâ-
~orno quer. que sej~, e em. todos os casos, a criação de liturgias
mulas, sonorização, pa.gnes, ª uniformes, veículos para o deslocamento
~líticas e sua mtroduçao na vida cívica exigem necessariamente um
tnplo trabalho ~e concepção, localização e execução dos ritos, confia- dos animadores, decoração da área ritual, etc.
Nos sistemas de mobilização definidos por D. Apter, o desenvol-
do a a~entes dive~sos, dos quais importa saber que relações mantêm
entre s1. Só _poderiam assumir a leaitimidade de uma m·0 vaçao
- aque1es vimento das cerimônias laicas reflete os objetivos imediatos dos diri-
cr
gentes: reforçar sua autoridade, assegurar um laço entre o indivíduo e o
~ue, p~a nao ~rem ultrapassados, dominem o uni verso das relações
sistema político, servir à socialização política incorporando normas mo-
:~~licas no sei~ das quais eles mesmo introduzem a mudança, 0 que
rais num sistema de significados simbólicos. Algumas vezes são reali-
. i:oe um certo mvel cultural com a aprendizagem do manejo das mul-
zadas conferências nacionais para decidir sobre a instauração de novas
tid~s e dos .có~1gos. A ~plitude conferida à ritualização em certos
festas, às vezes depois de discussões nos comitês de base, sobre a me-
regi~s to~~ários necessita da identificação, por especialistas, das
lhor maneira de formar o homem do futuro. Assim na URSS foi possí-
relaçoes sociais susceptíveis de serem ritualizadas, da invenção de no-
vel decidir sobre a celebração de um dia das Forças r--.nnadas e de um
-196-
-197-
1

fosse ratificado pelo Comitê central do Partido em 1964, após sessão,


dia da juventude revolucionária. No Togo, a festa de plantação de uma em novembro de 1963, de uma comissão ideológica sobre a educação
árvore por habitante no início da estação das chuvas correspondeu a
atéia.
uma constatação político-econômica de desertificação. Na França, co-
nhecemos a pressão das sujfragettes para fazer de 8 de março o dia das A organização sistemática desses novos rituais por cons~lhos e
mulheres. comitês de coordenação encarregados de estabelecer os cenários em
detalhe só se produziu após 1964, sob a instigação do Soviete Supremo
Mas se a decisão depende do político, o impulso no entanto pode e do Departamento da Propaganda, secundados pela Liga das Juventu-
vir de outra parte e mais especialmente da juventude. A tendência dos des Comunistas, pelos sindicatos e pelos institutos culturais e Casas da
novos ritos, após 1968, surgirem entre os jovens, deve ser correlacio- Criatividade Popular. Cada cidade, região, distrito, aldeia, empresa, fa-
nada a uma mudança de posição da própria juventude com respeito às zenda coletiva, sob a presidência de um membro do Partido, estava en-
outras idades da vida. Até mesmo a África procura sair de uma cultura carregado de sua realização.
gerontocrática, considerando a juventude como uma idade privilegiada
Em 1977, um Congresso do Komsomol propôs a introdução de no-
de forte valor criativo, sobretudo no terreno da animação cultural. Em
vos rituais para a juventude, após solicitação a músicos e poetas com-
parte, em todos os lugares do mundo, é da juventude que provêm as
petentes para decidir o nome da festa, sua data, seu cerimonial, após
condenações de uma civilização obsolescente, acompanhadas por rei-
experimentação e críticas corretivas por parte dos cenógrafos e_ dos
vindicações de autonomia de pensamento, e efervescentes elaborações
participantes. Evidentemente os cenógrafos não trabalharam a p~ ~e
de uma cultura que tende a transformar-se em religião: a do show (tea-
um vazio cultural, mas de "tradições" soviéticas, de elementos nturus,
tro, dança, moda), a do sexo, sustentada por uma ideologia de liberação
artísticos e simbólicos preexistentes, revivificados e adaptados, e ~ue
dos tabus, ou a dos grupos carismáticos, reformistas, revolucionários.
em seguida seriam popularizados através de uma vasta campanha de m-
Um certo fervor político e místico leva ao reencantamento da realidade
formação na imprensa e na televisão. Livres para acres~entar alg~mas
misturando por exemplo marxismo e mensagem evangélica.
modificações durante seminários consagrados à melhona dessas litur-
A documentação considerada por C. Lane a propósito da URSS gias, alguns jornais lamentaram-se, por exemplo, de certos mesu:s de
(Lane, pp. 46 a 53) merece ser mencionada como ilustração de nossos cerimônias estarem mal preparados para uma tarefa que requena um
propósitos sobre a gênese dos ritos. O autor demonstra como nos anos alto túvel de maturidade política, tato nas relações interpessoais e um
60, após o desgaste da imagem de Stalin, a ritualização tornou-se um certo senso artístico. Certos grupos esquivavam-se também alegando
instrumento seletivo de orientação e de direção cultural, ou seja, de ex- não dispor de recursos humanos e de suporte material n~ssário -:-- mú-
pressão e de indicação dos valores normativos do sistema, de estrutura- sicos, oradores, salão de festas, convites impressos, certificados,_ lllSíg-
ção e de fortalecimento das relações de poder. nias, flores, velas... Por isso eles solicitavam uma ajuda fmanceira pa-
A primeira iniciativa para o desenvolvimento dos novos rituais so- ra essas liturgias que, segundo eles, inscreviam-se no quadro do traba-
cialistas foi tomada nas repúblicas bálticas da Letônia e da Estônia e na lho ideológico. O Izvestiya de 22 de setembro de 1973 lamentava-se até
cidade de Leningrado no final dos anos 50. Após 1963, muitas outras mesmo da falta de interesse de muitos responsáveis culturais por essas
capitais regionais de repúblicas socialistas e algumas regiões da Ucrâ- questões de ritos.
nia seguiram o exemplo. Os instigadores foram a Liga das Juventudes
Comunistas, a Sociedade do Saber e, em menor grau, o Partido Comu-
nista. "No itúcio eram sobretudo os ritos seculares do casamento, de- B / DESENVOLVIMENTOS E TRANSFORMAÇÕES DAS LITURGIAS
pois foram introduzidos os que marcam o nascimento cívico do recém-
nascido, tendo como suporte institucional as autoridades políticas lo- Após a criação dos ritos intervêm as transmissões formais, desen-
cais. Algumas conferências foram realizadas a esse respeito no nível das volvimentos festivos e transformações de sentido referentes ao número
repúblicas ou das regiões entre 1962 e 1964" (Lane, p. 46) até que isso
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das ce~~as, ao f~us~o ritual, à participação de massa. Mais do que pretexto d_? repetitório anual (quinzena cultural em Conakry, partida da
~la aval1açao q~anutau~a dos participantes, é pelas variações qualita- Copa da Africa, entrega de condecorações durante uma festa nacional,
t.J.vas de sua adesao aos ntos que se poderia medir uma dinãnúca. Congresso do partido) apenas mascara uma manipulação das massas
Diferentemente de uma dinãnúca dos ritos religiosos, observável pelo poder que se aproveita da ocasião do rito para reorganizar e di-
s~bre~udo a l~mgo termo, a dinãnúca dos ritos políticos, ligada a varia- fundir a informação referente à instituição, ao seu funcionamento e ao
çoes ideológicas e a estratégias lábeis, é perceptível através de fases seu produto, para declarar os valores morais ou as linhas a serem ado-
históricas relativamente curtas. A festa da Revolução de Outubro se tadas de agora em diante, para obter um crédito nacional e internacio-
colore de. ~cordo com as conjunturas históricas na URSS. 1918-20: nal que tenha repercussão sobre as mentalidades e sobre o desenvolvi-
festas militares tendo o Exército Vermelho como protagonista; mento da instituição. Para esta, a cerimônia oficial é indicativa de uma
~922-1928: ~elebração das vitórias técnicas e ataques contra o capita- transformação de sua situação, do seu estatuto ou de seu ritmo de cres-
lism? mundial~ 1928-1940: padronização que acompanha a coerção cimento.
surgi~a _das cn~es ~o Partido e das dificuldades de industrialização, Por isso as cerimônias do décimo aniversário da Universidade do
ampliaçao dos ntuais esportivos; 1940-1945: grande guerra patriótica e Benin em Lomé, que celebraram a unidade de um corporate group
retomo aos val~res do passado; ap6s 1945: modelo mais projetivo do através de recepções, conferências, discursos, entrega de condecora-
q~e comemorauvo, demonstração de avanço tecnológico para a preven- ções, visitas organizadas, tudo isso marcando a conjunção de estudan-
çao de uma guerra e para a conquista do espaço. O conteúdo da men- tes, professores, administradores, empregados, autoridades em uma
sa~em e a adesão interna aos ritos seguem a flutuação dos projetos po- instituição, não só tiveram efeitos comemorativos como também pro-
lít.J.cos e dos sucessos econômicos. clamaram os valores culturais que norteiam a instituição, chamaram a
Entre~to, na sua essência, o rito se mantém inicialmente porque
atenção para o estatuto de certas pessoas importantes administrativa ou
~stá orgaruzado de maneira coercitiva, mas também porque, apesar de politicamente, deram de público testemunhos de amizade e de gratidão,
rmpos~o~ ele sempre produz um excedente festivo. Ele rompe com a vi-
e obtiveram para a Universidade um crédito ao mesmo tempo intelec-
da cot.J.d1ana e toma-se ocasião de descanso. No Haiti, a leadership do tual e financeiro junto ao governo e ao estrangeiro.
"Papa Doe" extinguiu-se rapidamente, mas em 1985 continuava-se a Isto significa que esse tipo de ritos representacionais não inibe a
festejar a dinastia Duvalier, porque uma festa sempre vem a calhar. mudança social mesmo que reforce as obediências. Pode até mesmo su-
Q~anto à estabilidade dos rituais de coroamento ou de funerais nacio- ceder que a celebração de uma festa comemorativa de uma mudança
nais na ~glaterra, do Trooping the Colour, explica-se pela tradição institucional, como a tomada da Bastilha ou o início da Revolução rus-
sa, ofereça a ocasião para uma reorientação política. A mesma coisa
monru:q~1ca é verdade, mas também pelo esforço mútuo do político e
do religioso em um país onde o monarca é simultaneamente 0 chefe da para rituais seculares ou religiosos que, em sua essência, apresentam-se
;orno estímulo de revolução radical. A atmosfera festiva de maio de
Igreja Anglicana.
1968 na França pôde parecer durante um momento como o prelúdio da
greve geral e de uma mudança fundamental de estrutura. No Zaire, a
Projeto de mudança rebelião foi ritualizada como demonstram os trabalhos de Benoit Ve-
rhaegen a propósito dos guerreiros simba. No Zimbabwe, os spirits of
Mas a estabilidade das grandes linhas do cenário ritual pode incluir protest procuram ampliar os sentimentos revolucionários.
sob outro ângulo um projeto absolutamente dinãnúco. A finalidade da
dinamização social atua de fato sobre a própria dinãnúca do rito. Antiestrutura e dinâmica interna
Nossa experiência africana nos demonstrou que os ritos políticos,
lo~g~ de serem a repetição cíclica de um fato marcante, podem ser No caso precedente trata-se exatamente de uma dinãnúca procura-
cnat.J.vos e eventualmente indicadores de uma mudança de direção. O da, impulsionada do interior de uma cultura. Mas pode acontecer que,

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Essas dissonâncias em geral atuam primeiro sobre a amplitude do
mesmo sem intencionalidade de mudança, o rito se transforme em vir- rito: seu tempo de desenvolvimento, a dimensão da assistência, a n:du-
tude de sua própria fragilidade estrutural. Uma zona deveras apaixo- ção ou a ampliação de um elemento seqüenci~ da _aç~o. Para emp~ide­
nante e pouco explorada é a da antiestrutura não delimitável por defini- cer esses riscos de destruição, o poder polfuco dispoe do_ domfuio ~e
ção: inúmeros meios de expansão da ritualização em to1:1~ do nto, ~ª-~i­
1 I Uma antiestrutura evolutiva: O não-tolerado uma vez pode in- da em que ele controla a núdia, a economia de penuna e a sociahzaçao
corporar-se uma outra vez à estrutura do mesmo rito por ter-lhe sido pela escola. . .
atribuído um outro significado...O espfrito do tempo" passa através Na África contemporânea, por exemplo, a núdia veicula durante
das .. visões do mundo" e o vivido irrompe no ideal através de hábitos vários dias seguidos a notícia do acontecimento ~tual, antes C: após a
e súnbolos inicialmente considerados parasitas ou incongruentes, que a sua realização, e os comentários produzem um efeito alimde seduçao sobre
liturgia digere, assim como a liturgia católica tolerou em seus lugares os não participantes. As lembranças da cerimônia ~ntam as conver-
de culto os tambores e clarins do 11 de novembro, e agora já aceita o sas da vida cotidiana durante várias semanas. As cançoes e~_lou-:.or ao
acompanhamento dos cantos pelas guitarras, e até mesmo os aplausos chefe de estado ou ainda ao Partido, aprendidas para a ocasiao, ~ao re-
tanto tempo proibidos. petidas no rádio, na televisão e cantaroladas diariam~nte ~las cnanç~.
os súnbolos levados durante o ritual (badge, pagne, unifo~: · .) sao
2 I Uma antiestrutura variável, feita de elementos improvisados
que expressam a criatividade do social através do incontrolável (tran- reutilizados na vida cotidiana. A referência aos s~bolos _ntuais (cores
da bandeira, slogans fetichizados, esquemas de atitude ~s como a po-
ses, visões nos messianismos), nascido de uma hiperconcentração.
Quando a improvisação consegue penetrar, ela às vezes arrisca pertur- sição de sentido ou a saudação militar...) apar~e. fre~uente~nte nas
brincadeiras infantis e assim contribui para a socializaçao política (pen-
bar o sentido do rito. A ocorrência inopinada de wn acontecimento po-
de ter efeitos análogos à intervenção do emocional excessivo no formal semos no ..punho" de Noah, nas cores da bandeira do Camerum). Em
e racional. suma, produz-se uma expansão da informação em to~o de u_m fato da-
tado, uma expansão em tomo do rito, de sua s~bóhca, sei:mdo como
3 I Uma antiestrutura derrapante, porque todo cerimonial só clama chave de deciframento de sentido, uma expansao dos papéis para fora
a potência da ordem porque os contrapoderes sempre em alerta apre- do cerimonial, seja pela lembrança, seja pela repetição do papel no co-
sentam o risco de ameaçá-la modificando incessantemente o sentido e o
peso dos valores admitidos, ou criticando-a pelo uso ambíguo das lin- tidiano. · - 1
Contra essa dinâmica de expansão atuam forças ~e opos~çao arva-
guagens da festa. Daí a importância que deve ser atribuída às condi- manifestadas através das resistências e das cóticas: dificuldades
ções de execução de um rito. Através da ação de elementos descontro- res, A d ú .as em
para reunir os participantes ou para manter o seu to~us, en_ nci
lados, quebradores de vitrinas ao longo do percurso de um desfile (li- surdina das interpretações dadas pelo Partido, críticas acirrad~ d~
turgia concorrente da "quebra"), o ritual é minado em seu impacto na oponentes indignados com as despesas suntuárias e com o fasto m~til
medida em que as exações reprovadas pela opinião pública são atribuí- de uma liturgia como a sagração de Bokassa. Da~ algumas vezes ~ rm-
das aos participantes. Qualquer transgressão ostensiva de interditos, possibilidade temporária, para o regime consecutivo ao de Ro~spierre
qualquer "heresia" ou revolta incita ou a wn aumento da repressão, ou ou de Bokassa, em desenvolver da mesma maneira o mesmo genero de
à organização de cerimônias de expiação, ou em certas condições a
liturgia.
uma revisão do ritual.
Em suma, a antiesuutura provém de desequilíbrios entre tendência Empréstimos e Sincretismos
racional e tendência emocional, de dissonâncias entre o mentalmente
legitimado e a atitude concreta, entre a aspiração ao estar-melhor e a A iniciativa das minorias políticas ditas esclarecidas· - g~ve~an-
realidade, entre a regra conhecida e a regra que se deseja cumprir com tes, homens de Partl.do , militantes · · · - só poderia ter continuidade
satisfação.
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suscitando uma adesão popular recorrente e não conjuntural. Para con-
no monumento aos mortos em lugar de lançá-las ao rio como outrora,
seguir isso a festa política é obrigada a tomar de empréstimo os traços não muda em nada o significado da festa eslava de Ivan Kupa/.a no solstí-
mais pr6ximos das religiões populares: lugares sagrados, condutas de
cio de verão, na Ucrânia.
respeito, ritmo anual ou sazonal, grande reunião, discursos de exorta-
2 / Adoção das antigas festas mas com a atribuição de novos co~­
ção, espetáculo emocionante, despesas consumat6rias, regozijo geral.
Assim fazendo ela explora ao mesmo tempo o conservadorismo litúrgi- teúdos às principais ações simb61icas. De festa de mudança de estaçao
co e a necessidade popular de ritualidade. e de mudança de atividade agrária, a Maleni.tsa russa tomou-se festa do
trabalho agrícola coletivista.
Mesmo quando tentamos romper com um passado religioso ou tza-
3 / Criação de novos ritos com a inserção de alguns ele~entos
rista, para afirmar a supremacia dos novos valores opostos aos antigos,
simb6licos destacados de seu antigo contexto: elementos pagaos so-
s6 poderíamos fazer o novo com o antigo, respeitando suas raízes cul-
turais e reutilizando seus símbolos, apesar de redefinir o seu sentido. .. brevivendo nas festas cristãs, elementos cristãos sobrevivend? nas
festas laicas. E os velhos súnbolos do trabalho tanto melhor se mcor-
Recusando o sistema das ordens privilegiadas, a festa revolucionária
poram ao novos ritos quanto mais a re~dade _laboriosa_ ~os séculos
valoriza uma outra ordem igualitária, mas no seu fundamento, na sua
pré-industriais seja congruente com a ideologia produtivista da era
forma e nos seus símbolos recupera muitos elementos de liturgias polí-
ticas anteriores (auto-da-fé de efígies, plantação de árvores, construção prometeana. .
de monumentos, estatuária clássica, paradas militares, demonstrações 4 / Recusa das antigas festas com a aceitação do ciclo do registro
de massa, danças e cantos patri6ticos), revestindo-se com uma nova civil. A tática de substituição assume um significado de renovação ~ de
filosofia de vida. oposição às práticas antigas, mas para ter s~cesso supõe que o~ rmt~s
vivificadores dos ritos antigos estejam esvaziados de seu valor snnb6h-
Combinados a novos súnbolos revolucionários (estátua da Liber-
co e da adesão dos crentes. Mais do que a uma substituição, assistimos
dade, Declaração dos Direitos do Homem, bandeira Republicana, bar-
muitas vezes a uma dupla adesão e a uma dupla efetuação: casamento
rete vermelho), a arte monumental dos arcos de triunfo, dos altares da
civil mais casamento religioso, prece diante do ícone durante a celebra-
pátria, dos panteões e a pompa do neoclassicismo, durante a Primeira
ção dos ritos comunistas.
República francesa, derivam da Antiguidade greco-romana. Por sua
vez, os ritos soviéticos se embebem tanto na Revolução francesa o sincretismo pode inclusive fracassar no seu projeto de renova_ção
quanto na trágica história da Comuna: a tribuna da Praça Vermelha dos ritos e de sua generalização para populações diversas, por valonzar
lembra o anfiteatro do Campo-de-Março. O monumento ao soldado mais a uma cultura do que a outra: a russa com relação à muçulmana na
desconhecido com a flama diante do muro do Kremlin evoca o altar da Ásia central, como sublinha H. Carrere d'Encausse.
pátria. O vermelho da bandeira iguala o vermelho do barrete. Desgra-
çadamente, a liberdade carece de estátua e de estatuto! Na capital ita- Diferenças e dissidências
liana, o Monumento da Unidade mascara o antigo poder capitolino,
mas ao lado dele. A essas fomla5 de sincretismo, convém acrescentar uma dinâmica
Os sincretismos que misturam empréstimos e novidades nas litur- dos ritos originada na necessidade de as camadas ascendentes d~ ~
gias políticas poderiam ser percebidos segundo as gradações de dosa- regime imprimirem neles a sua marca. A criação. de elementos nt~rus
gens do antigo e do novo, como é sugerido por C. Lane (p. 234), de novos ou 0 zelo na adjunção de elementos glonficadores do regnne
quem reproduzimos as distinções capitais: servem algumas vezes como trampolim político para os que são capazes
não apenas de bem gerir os ritos, mas também ~e se destacar provocan-
1 I Retomada das antigas festas e dos antigos ritos com uns poucos
do a autodiferenciação ritual das camadas cultivadas. Algu~ vezes a
elementos novos enxertados. Mas acrescentar a bandeira vem1elha e os
diferença se transforma em dissidência quando traz em si ~~a nova
modernos cantos de paz aos elementos folclóricos, e depor guirlandas
maneira não regulamentar de realizar uma liturgia, quando utiliza uma
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1
ambi~üid~e simbólica para afinnar uma distância significativa com
preensão e na realização do rito pelos participantes, com as avaliações
relaçao '.18 mterpretações estabelecidas. Essa dissidência tão dissimula-
que dele fazem os especialistas e turiferários em geral muito otimistas
~ª consiste numa vulgarização dos quadros, dos instrumentos ou da
quanto à aceitação de sua produção litúrgica. Os animadores soviéticos
linguagem do ritual.
quando precisam constatar o insucesso de um rito, raramente o atri-
. .Que .dess:_ modo as diferenças culturais, sociais, geográficas, e as
buem às causas mais pertinentes e invocam um equívoco de lugar, de
d~ssidências dao conta das assincronias de mudança no nível das litur-
sustentação pela intelligentsia, de recursos para financiar a simbólica
gias: ~e no próprio interior de uma nação, sobretudo quando ela é
material, quando deveriam levar em consideração: a uniformidade e o
~lunétruca, as transformações de ritos não se produzem nem no mesmo
formalismo excessivos, a sobrecarga de discursos, a pobreza em sún-
ntmo, nem com a mesma profundidade, a análise seguinte pretende
bolos e em criações artísticas, a pressa e o amadorismo dos criadores e
comprovar. i
-. dos realizadores, etc. Muitas vezes trata-se portanto de problemas de
estrutura e de organização.
C I IMPACTO DIFERENCIAL DOS RITOS
No exame dos rituais soviéticos, C. Lane se interessa por muitas
variáveis que judiciosamente orientarão pesquisas de maior amplitude
P~a .testar metodicamente o impacto dos ritos, podeóamos tomar
sobre outros núcleos geopolíticos.
como mdicador o número dos participantes em momentos diferentes e
1 J Diferenças segundo o embasamento religioso.- As principais
em lugares dif~rentes. É verdade que essa medida bastante grosseira do
liturgias revolucionárias, observa o autor, já estão agora generalizadas
sucesso só tena valor sob a reserva de participação voluntária. Ora,
geograficamente e transformadas em traços permanentes da vida social.
faltam-nos índices para avaliar o grau de imposição real e dissimulada
do político nos totalitarismos ou nas épocas revolucionárias. Mas os O florescimento aparece sobretudo nas regiões mais desenvolvidas: as
rituais soci~stas do século XIX, pelo contrário, poderiam ser julgados Repúblicas da Letônia e da Estônia onde o luteranismo está em posição
com ela pois eram fundamentados sobre a liberdade de adesão. Mas de fraqueza, a cidade de Leningrado marcada pela mobilidade urbana,
entre os 40.000 adeptos do movimento de Bazard e de Enfantin, quan- e até mesmo a Ucrânia onde a religiosidade ortodoxa é no entanto bas-
tos foram, fora da comunidade modelo de Ménilmontand, os que ver- tante elevada. O problema pendente continua sendo então o da ampli-
tude, da força e da rapidez da secularização que devem ser apreendidos
d~deiramente participaram dos ritos? Faltam estatísticas. A opinião pú-
blica sabe também que não poderia avaliar a força de um movimento através da história e da sociologia. Nos núcleos de religião muito orga-
como os dos partidários da escola privada pelo número dos presentes nizada: Lituânia católica, Armênia, Georgia e nas regiões islamizadas,
em seus meetings, comparados às reuniões do Comitê Nacional de o sucesso parece muito mais tênue. O leitor francês conhece as conclu-
Ação Laica. sões de L' Empire éclaté. É verdade que o toque cristão, sem dúvida
Uma prova mais patente consistiria em investigar os efeitos dos incon~-;iente mas real, próprio da antiga Rússia e incorporado a certos
rit~s sobre as opções, valores e condutas dos participantes, permitindo
ritos de passagem socialistas não agrada aos meios muçulmanos. O re-
as~lffi. afirmar em que medida o rito preenche as funções que se lhe
gistro solene do recém-nascido um mês após o nascimento contraria o
atnbw, saber como foi percebido o seu sentido e em que ele afeta as hábito dos quarenta dias de reclusão impostos à mãe e à criança. O ca-
relações sociais. Problema delicado raramente resolvido pelas investi- samento com troca de anéis e o ato de beber na mesma taça não tem
gações ~e tip? en~evista, numerosas e confiáveis, mas onde os objeti- equivalente islâmico. Nem tampouco o pinheiro de Natal!
vos da mvestigaçao, a pertença do investigador, o modo de questiona-
mento afeta consideravelmente as respostas em função das expectati- 2 I Diferenças segundo os tipos de festa.- Três festas políticas de
vas. massa adquiriram uma importância primordial, apesar de grupos reli-
Seria porém interessante comparar as ev~ntuais distorções na com- giosos atuarem pregando a rejeição à ordem soviética. O Dia da Vitó-
ria, afirmando uma tradição patriótica e militar, tem um caráter espon-
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tâneo apesar de menos espetacular que o aniversário da Revolução de vir de degrau para uma ascensão sociopolítica. E ainda é preciso evitar
Outubro e o 12 de Maio, que reúnem de maneira impressionante os na criatividade dessas caniadas médias a utilização demasiado evidente
quadros e os animadores do Partido e dos sindicatos. das formas artísticas ocidentais "pequeno-burguesas".
Em muitos lugares, os ritos de iniciação política e profissional,
como a entrada para o exército ou para a empresa, permanecem insufi- 4 / Diferenças segwuw o setor de atividade.- Mesmo que sejam
cientemente regulados e insuficientemente estáveis para conseguirem todos "proletários", os executantes se definem geográfica e profissio-
generalizar-se, ao contrário da entrada para os pioneiros estabelecida nalmente. Também os modos de vida, a dispersão geográfica, os hábi-
de longa data e formalizada à semelhança do escotismo. tos e imposição do ofício, a dificuldade para controlar o campesinato,
Compreendemos que as cerimônias privadas laicizadas marcando sua oposição latente, explicam a razão de os ritos agrários serem menos
os seus tempos da vida familiar tenham ainda menos sucesso pois colo- desenvolvidos do que as festas das empresas industriais.
cam em conflito as tradições religiosas e as manifestações de obediên-
cia política. Cerimônia laicizada e coletivizada, como por exemplo o 5 / Diferenças segundo fatores individuais e temporais. - À ques-
batismo, comportando: discurso de um responsável político aos pais de tão do impacto sobre as atitudes mentais pessoais, só poderíamos res-
várias crianças nascidas no mesmo mês na cidade, registro de nasci- ponder de maneira ambígua: emoção forte para determinado pioneiro
mento, atribuição oficial de um nome, audição do hino nacional, oferta que vai colocar flores diante da "iconoestase" de Lenin; aumento da
à criança de uma medalha comemorativa, congratulações aos pais, às consciência política e profissional para os novos trabalhadores que in-
vezes cantos dos pioneiros e plantação de. uma árvore numa avenida gressam, apresentados pelos antigos, numa fábrica de Dniepropetro~sk;
para comemorar o acontecimento. ocasião agradável de contatos sociais para muitos; possível decréscrmo
O desenvolvimento desses ritos de passagem, alternativa para os dos comportamentos anti-sociais para alguns; sentimento de enfado e
ritos religiosos desgastados, mas meio de expressão emocional e de desencantamento para outros.
formalização das obrigações sociais, certamente indica uma seculariza- Se é exagerado proclamar, a propósito das religiões políticas mo-
ção das mentalidades, sobretudo entre a juventude instruída na ideolo- dernas, o rápido desinvestimento com relação aos dogmas, seria tam-
gia marxista que, de 70 a 95% conforme as regiões da URSS, casa-se bém exagerado só perceber na dinâmica dos ritos processos de engaja-
exclusivamente segundo as normas civis. Por outro lado, muitas pes- mento e de remobilização afetiva.
soas idosas rejeitam as cerimônias fúnebres soviéticas que não com-
portam a promessa de vida eterna. Por isso constatamos 25% de fune-
rais religiosos em 1967 numa Letônia no entanto já fortemente laiciza- D / MECANISMOS DE DECLÍNIO
da há algumas décadas. E na velha Rússia observa-se um retorno às
práticas religiosas tradicionais, tanto mais que a religião soube adotar Da complexidade e da lentidão das desdogmatizações e dos desen-
um modus vivendi com o regime. Portanto, em certo sentido, este se- ganjamentos, o filósofo Théodore Jouffroy, num artigo do Globe (24
gundo critério do tipo da festa recorta o primeiro critério religioso. de maio de 1825), havia proposto uma explicação seqüencial dizendo
"Comment les dogmes finissent". Reapresentada recentemente por
3 / Diferenças segundo as camadas sociais.- O critério da adesão Pierre Ansart em Une anthropologie des turbulences (Ansart, PP· 143-
formal à ideologia não necessariamente recorta o da realização dos ri- 150) a análise de Jouffroy poderia esclarecer por transposição as fases
tos. Na URSS, as elites participam dos ritos sobretudo quando são re- do d~clínio dos ritos na medida em que a atitude com relação às litur-
quisitadas. Elas freqüentemente consideram as liturgias como assunto gias se ordena no engajamento atribuído à instituição (nesse caso polí-
dos trabalhadores 01anuais e dos colarinhos brancos, considerados com tica) que os instaura e vivifica. Segundo Jouffroy, sucedem-se dez eta-
uma certa condescendência senão com desprezo. Entre os militantes de pas da seguinte maneira: 1 / entusiasmo fundador; 2 / açambarcamento
base, tanto na URSS quanto na África, a anilllação dos ritos pode ser- dos signos comovedores pelos poderosos; 3 I rotinização e adesão sem

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parece ter sofrido com isso, nem tampouc~ os ritos v~dus. Além disso
questionamento; 4 I espfrito crítico das minorias conscientes das quais nos lembramos da carga de ironia que as elites do Be~m empr~gav.~ a
desconfiam os poderosos; 5 I indignação criada pelos céticos transfor- qualquer "até logo", então padronizado na expressao subsututa. A
mados em profetas; 6 / ceticismo generalizado acompanhado de indife-
luta continua!" .
rença; 7 / perda de confiança das autoridades em seus valores, coalizão A mesma resistência religiosa é encontrada na Europa Launa, q~e
cínica dos interesses dominantes, resistência popular e repressão; 8 / no entanto é pouco misonefsta, onde talvez a posiç~o forte do c~t~~1-
clima de insatisfação e formação entre os dominados de facções de luta . mo tenha impedido à ideologia de esquerda traduzrr-se numa rehg1ao
propondo soluções contradit6rias; 9 I desmoralização do povo e novas c1s . . . . ai E tod arte
lítica apesar de existrrem nturus de caráter nac1on . m a P .
violências; 10 I aparecimento de um novo entusiasmo fundador e de ~o é d~ bom tom que homens de Estado, indiferentes a qualquer rel~-
uma nova liturgia, em parte oposta à antiga. Mas esse esquema exces-
sivamente racional, apesar de sua perspicácia, não dá conta com exati- gl.osidade criem uma liturgia dando a impressão de falta de pr~fu~d1-
dade e de' comunicação real. Na URSS, foram rap1·damente supnmidos
dão de todos os comportamentos de massa.
os sucedâneos do Natal e da Páscoa inventados pelo Kornsomol: carna-
Ainda que uma tal análise seqüencial não se aplique a todas as si- vais e desfiles chocaram a população que ouvia blasfemarem o nome de
tuações, vale pelo m~~nos à maneira de um tipo ideal e como esquema
Deus e ridicularizarem a religião. .
dos declfuios. Através dessa análise a ciência política moderna faz Mesmo nos ritos políticos, a deferência dos sujeitos, CUJa presença
convergir, enquanto enuncia a tendência à petrificação de um regime é obrigat6ria, pode aparecer como fachada através dos slogans e aplau-
na medida em que ele se afasta da efervescência de sua gênese, a sos regulamentares, camuflando a não adesão profunda.. ~ode aco.ntecer
acentuação da dicotomização entre elite e massa, sociedade política e
também que contrapoderes insidiosos algumas vezes utih~m a lm~ua-
sociedade civil, a manipulação das massas pela elite, única habilitada a em hiperb6lica de adulação do líder para solapar um regune, susc1tan-
gerir os conflitos em benefício de seu pr6prio poder, e a insatisfação
crescente pela não realização do ideal proposto.
~o 0 enfado com a hiperveneração de um chefe cujos resu.lt~d.o~ da po-
lítica econômica e social não correspondem às esperanças 101c1rus. Nu~
O declfuio dos ritos políticos freqüentemente se anuncia pelo ab-
painel da avenida circular de uma cidade ~ricana, leu-se dur'.'1°te seis
senteísmo, pelos silêncios, pelas séries de resistências passivas e indi-
anos: "Nossos campos de milho, de mandioca, de arroz, de ·~:unes,
retas, difusas e anônimas, algumas vezes sorrateiras, que põem em che- contam louvores ati, 6 X ... (chefe do Estado), nossa e~perança . AI-
que os projetos de eficácia e de mudança. O rito durante algum tempo . tarde , as ovações pela passagem do presidente soavam
guns anos mais
se protege através do simulacro e da conformidade vazia dos partici-
tão vazias quanto as caixas do Estado. .
pantes. Começa-se então a utilizar a astúcia contra a imposição litúrgi-
ca através da energia do silêncio (frieza dos aplausos quando é pronun-
o entusiasmo entoado com um vocabulário de Magrufica~ e~gotou­
se na seqüência das tribulações de um sub~e~~volvimento cr?ruco res-
ciado o nome do líder outrora adulado), através da crítica corrosiva
sentido por cada um dos cidadãos. Isso significa que a análise de ~
pela ironia e pelo humor (gracejos poloneses contra o regime), através
declfuio não poderia se limitar ao duelo b~al en~e mudança e res1s:
do jogo duplo que implica disjunção da prática com relação aos valores
dominantes. tência social. É preciso ainda levar em cons1deraçao o volume dos. re
cursos de alimentação do sistema. Enquanto Sékou Touré, na Gwné,
Na África, o declínio dos substitutos laicos de antigos rituais, or- - de dlE>z·cu',.,-"-s econômicas
denados pelo governo e alguns deles competindo com a religião tradi- so b a pressao ~ • uuuu:: . : sai
. em gue1ra
. contra o luxo,
as frivolidades e o desperdício das cenmoruas exc~ss1v~nte fa~stuo-
cional, é proveniente sobretudo da inércia das massas, da resistência
sas e proíbe 0 toque dos tambores de~ois ~a me1a-n~1te, ?nassmgbé
dos camponeses em participar deles e rejeitar os antigos comporta-
Eyadéma do Togo reduz as manifestaçoes ditas de arumaçao cult~al,
mentos inculcados desde a infância. Será que no Benin chegamos real-
porque a manutenção dos militantes custa caro e por~ue a ~mpresa tex-
mente a constatar a solidez dos ritos revolucionários desde que Mathieu
til de Dadja que se encontra em dificuldades financeu:._as nao pode for-
Kérekou, mais de um ano depois de ter tomado o poder, declarou o
necer os pagnes dos uniformes que o governo ou nao paga ou paga
marxismo-leninismo como ideologia do Estado? O cristianismo não
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com mui~o a~aso. P~is fa~ta cada vez mais aos países do Terceiro afetivo. Congelado em gestos e fórmulas, o rito não alimenta mais a fé
Mundo ~inheiro para mv:stir no fausto ritual, nas roupas, nas flâmulas, mesmo quando o exterior das práticas se conserva.
nos hotéis, para a recepçao dos estrangeiros. No interior do país mui- Usado de determinada maneira, um rito pode se folclorizar, mas
tos deplor~ o desperdício do tempo dos estudantes que perdem ~árias esse processo atinge sobretudo os ritos populares tradicionais e muito
horas por dia para apr~nder um movimento de conjunto, para aplaudir a pouco os ritos políticos. Pelo contrário, nos regimes autoritários que
pass~gem_ de um cortejo de autoridades. Lamentam também que muitos desvitalizam o sentido religioso para fazer do rito antigo o instrumento
funci~nário~ sej~ requisitados fora de seu horário de trabalho para fi- de expressão da diversidade nacional e de sua riqueza cultural, o polí-
guraçao cenmomal quando da chegada da menor delegação estrangeira tico pode recuperar a desvalorização do trivial e a exotização do po-
~ excesso de formalismo provoca o mesmo declínio de um rituaÍ pular. Na África, em toda parte nasceram assim os dias ou as semanas
em v1rtude de sua pompa fria e da ausência de majestas quanto a folclóricas de uso interno ou turístico, utilizados pelo poder como ma-
sua derr~pagem para o info~ ou para o laisser-aller. As liturgias neira de legitimação através da afirmação de uma autenticidade cultu-
d~m~ráticas sofreram demais pela ausência de rigor, de precisão, de ral. Teatralizando-se num cenário nacional, são exaltados como valo-
~ucia dos gestos e das palavras, assim como pela ausência de popu- res: a correção das convicções ligadas aos mitos étnicos, a riqueza das
landa~e ~ ~ervor que daí decorre. Nada em comum entre, por um lado, imaginações ingênuas, a intensidade das emoções rudes.
as cenmoruas ~ arrumadas da Revolução francesa e da Illa. Repúbli- Através desse fenômeno de folclorização, percebemos uma outra
ca ou dos co~ejos ingênuos dos 12 de Maio democráticos e, por outro via de declínio de certos ritos tanto religiosos quanto políticos: a via de
lado, a sagraç~o _de Napoleão III, as demiurgias de Nuremberg sob Hi- substituição. Assim como o abade Aubry pôde ser considerado por F.-A.
tler, e a fort~rz com a grandiosa austeridade dos ofícios religiosos Isambert como o inventor da peregrinação a Saint-Rouin em 1866, com
nos ~onastéi:ios de Beuron ou de Solesmes. Quanto laisser-aller e intuito de se opor a uma festa tradicional mais profana do que religiosa
fantasia n~s l~turgias nacionais, e até mesmo nas partituras e tempos de (refeição com muita bebida e dança após o ofício), na segunda-feira de
La Marsezllazse que teve uma comissão encarregada de fixar sua músi- Pentecostes, uma festa de caráter político também pode ser organizada
ca e seu text? oficial! Sinal dos tempos: a paródia desta Marsellaise por um partido laico para contestar um poder religioso, ou para demons-
por Serge Gamsboug ... que teria sido sacrílega no tempo de Paul Dé- trar uma potência maior do político com relação ao religioso. Um rito
roulede ! destrói o outro. Uma substituição de poder provoca uma substituição de
A falta da minúcia do detalhe pode ter efeitos semelhantes ao da rito quando existe mudança de opção, de valor e às vezes de regime,
n_iu~an~a ~or ~emais freqüente do cerimonial, que manifesta a incon- mesmo quando permanecem algumas remanescências. M. Vovelle em
sistencia ~stónca do rito, e as incertezas dos príncipes. A liturgia se Les métamorplwses de la fête en Provence de 1750 à 1820 percebeu
mantém, am~a que permaneça sujeita ao desgaste: os profetas se esgo- muito bem as relações dialéticas entre os modelos de três festas: a po-
~· os. engajados se cansam. A criatividade sofre a erosão do tempo, a pular (dita primitiva), a aristocrática, e a periódica. Isto não significa
ideolo~a~ o esgotamento de sua vitalidade. Para se protegerem da ob- absolutamente que todo declínio de uma liturgia provoque a sua substi-
solescenci~, alguns tenderão para o esoterismo ou para a pseudofiloso- tuição por uma outra. David Apter nota a propósito dos países novos
f~a à maneira_ de Sékou Touré. Na tentativa de renovação, outros cede- que "na medida em que o desenvolvimento é bem conduzido, toma-se
rao_ às t~n~açoes do improviso e da espontaneidade (como em certos ri- então possível observar o declínio da religião política e o estabeleci-
tuais cnstaos atuais). O povo se cansará de relatórios triunfais diante mento de uma ordem constitucional em seu lugar" (in Geertz, p. 81).
de uma realid~~e me~os rósea. Até quando e em que medida a promes- Impulsionado pela transformação de um estado social, o declínio
sa de ~ma fehcid~~e mcessantemente adiada consegue motivar pessoas dos ritos pode finalmente derivar da renovação das gerações e dos
envolvidas n~ dif~culdad~s cotidianas da sobrevivência? Degradado ideais iniciais que se tornam cada vez mais longínquos. As novas
em _Logos, o ~to nao é mais fecundo. Espartilhado no catecismo ideo- gerações que entram num sistema consolidado chegam a esquecer os
lógico, o sentido do súnbolo toma-se insípido e perde seu conteúdo combates iniciais do regime e os ardores revolucionários de seus pais.

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Até mesmo certos heróis se folclorizam entre as novas gerações que
não compartilham dos estúnulos históricos de seus antecessores. comunismo soviético ou chinês compõem-se de elementos adquiridos
Conviria então dizer que o nosso mundo tende para o fim das li- das liturgias socialistas do século XIX, das pompas nacionais e repu-
turgias, assim como se afirma que ele tende para a racionalização ou blicanas, e dos cultos da Roma pompeiana. Neles até mesmo observa-
para a secularização? Seria correto dizer como M. Block no seu Dic- mos o transplante de sacramentos eclesiásticos (batismos e casamentos
tionnaire politique de 1863 que "o livro matt•U a cerimônia"? Não nos vermelhos) pertencentes à tradição cristã do Ocidente e de ritos de pas-
atreveríamos a afmná-lo. Na verdade, o lento do desenvolvimento das sagem da franco-maçonaria. O socialismo argelino de Ben Bellah
nações pobres logo toma acentos de doloroso, enquanto aguarda um construiu uma ritualidade da juventude inspirando-se principalmente no
novo mito que lhe permite atacar um scherzo de esperança... ou uma modelo do escotismo. Nos socialismos de diversos séculos, os mesmos
marcha fúnebre. Mas nunca as exéquias de um regime terminam sem o ritos parecem sofrer ciclos de eclipse e de retomo.
presto sinfônico de uma nação que, surda à área das sereias, sente no
entanto a necessidade de entoar seu Hino à alegria, a fim de recriar, 3 / A transferência de sentido: Quando uma liturgia, por efeito do
através da linguagem dos símbolos, uma integração que a amplitude de tempo e da rotina, perde inspiração a ponto de esvaziar-se progressi-
múltiplas frustrações negligenciou por algum tempo. E o mito então re- vamente de sua carga emocional e simbólica, quando ela se reduz con-
nasce na própria situação conflitual para transcendê-la através da afir- forme os termos de Romano Guardini a "cadáveres de gestos" e a
mação de uma sobrevivência social. "fantasmas de palavras", pode acontecer que o seu formalismo vazio,
brusca ou progressivamente, torne a se preencher com sentidos diver-
sos daqueles que a inspiraram, como no caso do 12 de Maio. Perdido o
E I CONCLUSÃO
primeiro significado, o rito subsiste se agarrando a novas representa-
Para apagar a idéia de um declínio irremediável do rito (um se ções. Por isso o coroamento dos reis da Inglaterra transformou-se em
desgasta e outro o substitui), convém insistir na vitalidade dos ritos se- símbolo de uma vasta comunidade internacional (Commonwealth) e em
culares e políticos, tentando destacar algumas regularidades tendenciais sedutora relíquia de um poder monárquico e familiar que perdura atra-
através de sua historicidade. vés da transitividade dos partidos e das coalizões.

1 1 A sobrevivência através da força adquirida: Quando desapare- 4 / A muàa11{,·a de forma com conservação de sentido: No Império
cem as crenças que sustentavam os ritos, estes podem permanecer en- romano, por exemplo, a celebração das vitórias passa do polemológico
quanto hábitos comportamentais fora de qualquer acompanhamento ao agonístico, dentro de um espaço codificado. O sangue lúdico (com-
ideológico, isso porque tornaram-se de uso coletivo, testemunhando um bate de gladiadores, venationes, 9 corridas de carros, batalhas navais)
estatuto ou correspondendo aos códigos de conveniência social, como tornam-se simulacro do sangue guerreiro, mas conservando a função de
o uso mundano de um casamento na igreja para a maior parte dos não- expurgo da violência potencial. "Quando o Império romano chegou ao
praticantes. Quanto às festas particulares de Bruges ou de Siena, por apogeu de seu poderio e esgotou as oportunidades de conquistas contí-
exemplo, a tradição cerimonial se mantém fora do contexto político, nuas, a própria vitória passou ao estado de instituição... Eram realiza-
econômico e cultural do nascimento dos ritos na Idade Média ou no dos combates na arena sob as vistas do povo reunido; politicamente is-
Renascimento. so não tinha importância, mas o sentido era manter sempre desperto o
sentimento da vitória".
2 I A continuidade por contribuições: O estudo anterior das litur- "Os espectadores romanos não lutavam, mas decidiam em massa
gias revolucionárias, especialmente de 1793, atesta que nunca o rito quem era o vencedor e o aclamavam como se fosse pelo passado. Tudo
é totalmente improvisado, mas prende-se a uma tradição e fundamenta- o que contava era esse sentimento de vitória. As próprias guerras, que
se em valores, ideologias e mitos já expressados. Os próprios ritos do já não pareciam mais tão necessárias, perdiam paralelamente a sua im-
portância" (Canetti, p. 150). A festa se transforma menos pela in-
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versão de seu paradigma do que pela evolução do papel respectivo de racionalização e de espiritualização, fazendo o homem passar do en-
atribuído aos seus diversos fatores. cantamento à adoração, do gesto mágico ao ato ritual e à atitude espi-
ritual, as religiões seculares não têm por vocação separ~ o homem de
5 I A multiplicidade dos significados: Em tomo de um ritual, novas sua ganga de terra, de paixão e de medo, não se engajando portanto
representações acrescentam-se às antigas para formar uma espécie de nessa via. A evolução antes caminha de um simbolismo elementar e es-
halo polissêmico. Numa festa nacional podem agregar-se referências a pontâneo, para um ritual cada vez mais massificante. Mas talvez não
súnbolos de diversas origens: militar (desfile das tropas em uniforme e devêssemos generalizar a partir de casos contemporâneos.
apresentação de armas), religiosa (bênção da bandeira, dos carros, par- Como quer que seja, parece não haver dúvida de que o conjunto da
ticipação dos dignitários eclesiásticos, Te Dewn triunfal ou Da Pa- dinâmica sociopolítica atue sobre a transformação das liturgias sobre-
cem), cívica (flâmulas exaltando alguns valores· do civismo, baile no tudo nas populações em rápida mutação de ideologia, de técnicas, de
palácio da cidade), política (discurso do chefe de Estado, representação responsabilidades. Mas, inversamente, o rito infl1:1en:ia muito a ~inâmi­
das autoridades governamentais, dos embaixadores estrangeiros, dos ca social na medida em que representa uma med1açao que permite rea-
partidos...). Além da exaltação dos vivos com papéis e status valori- lizar certos objetivos. Ele visa fortalecer a adesão afetiva aos ideais em
zados, os ancestrais gloriosos recebem uma homenagem através da de- que as sociedade" projetam a totalização de seu devir.
posição de flores no altar, súnbolo de suas proezas (monumento aos
mortos, ao soldado desconhecido, aos resistentes do monte Valeriano,
aos mártires do "colonialismo"). Idades, sexos e classes misturados vi- BIBUOGRAFIA
bram ao apelo pela união dos cidadãos, de quem é celebrada a missão
exemplar de portadores dos direitos do homem, da tocha da democra- Ansart, Pierre, Jouffroy et le désamour politique, in Michel Maffesoli e Claude
cia, ou a quem é lembrada a missão de caráter universalista, civilizató- Riviere (eds.), Une anthropologie des turbulences, Paris, Berg, 1985.
rio ou revolucionário. Apter, David, The politics of Modernization, The University of Chicago Press,
1965.
6 / A criação cont{nua e a ampliação do sentido: Para dissimular a Augé, Marc, Génie du paganisme, Paris, Gallimard, 1982.
esclerose inevitável ou o envelhecimento dos ritos e mitos, os ofician- Canetti, Elias, Masse et puissance, Paris, Gallimard, 1966.
tes religiosos ou políticos devem repetir incessantemente o significado Carrere D'Encausse, Hélene, L' Empire éclaté. La revolte des nations en V RSS,
dos gestos e palavras litúrgicas, aprofundá-los para ressuscitar a ade- Paris, Aammarion, 1973.
são,· em função dos movimentos conjunturais da opinião pública. Si- Geertz, Clifford (ed.), Old societies and new states, Glencoe, Free Press, 1963.
tuando-se numa mesma linha, alguns transmutaram seu fervor nacional Isambert, François-André, Le sens du sacré, Paris, Miniut, 1982.
em grandes movimentos europeus, onde estariam melhor asseguradas as Lane Christel, The rites of rulers, Cambridge, Can1bridge University Press, 1981.
liberdades e satisfeitos em mais ampla escala os seus apetites de justiça Rauschning, Hermano, La révolution du nihilisme, Paris, Gallimard, 1?79.
e de fraternidade, na medida em que sua proteção individual e coletiva Sironneau, Jean-Pierre, Sécularisation et religions politiques, Pans, Mouton,
lhes parecia corroborada por um quadro integrativo amplo. Extensão de 1982.
horizontes, mudança de signos, mais identidade de objetivos e até Vovelle, Michel, Les métamorphose de la fête en Provence de 1750 à 1820, Paris,
mesmo de técnicas litúrgicas! Aubier-Aammarion, 1976.

7 I Do ideológico para o massificante: A regra da espiritualidade


progressiva da liturgia enunciada por J. Paulhan, pelo Pe. de la Boula-
ye, e aplicada por eles às religiões reveladas não parece válida para as
religiões políticas e civis. Se as religiões clássicas seguem um processo

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CAPÍTULO IX
Etimologicamente, o nome symbolon se refere ao signo de reco-
nhecimento de duas pessoas possuindo cada uma um dos dois pedaços
UMA SIMBÓLICA REDUNDANTE de um objeto quebrado, servindo de meio de identificação e de encon-
tro. Concebemos que, para ser reconhecido como tal, o símbolo deve
apresentar uma certa fixidez como elemento de sua importância. Uma
aceleração do tempo, em valsa por exemplo, do God save the Queen,
Se o rito aparece, sob o ângulo comportamental, como um sistema teria um sentido ultrajante de par6dia. À semelhança dos signos lin-
de ações seqüenciais correspondendo a normas, ele também representa güísticos, o símbolo é da ordem da comunicação, na medida em que
uma soma orgânica de símbolos elementares que são eles mesmos os constitui um procedimento para uma codificação geral da expressão e
duplos do objeto abstrato que velam e desvelam ao mesmo tempo. Sim- ao mesmo tempo é um elemento que favorece a abstração (pátria repre-
b6lico pelas referências que implica e que aciona, o rito, seja religioso sentada pela bandeira, liberdade, pelo rompimento das barras da prisão,
fraternidade, pelas mãos entrelaçadas).
ou político, depende de um sistema de pensamento, expresso em geral
na linguagem do mito ou da ideologia. Seu sentido não se encerra nele Forma de lingltagem, o símbolo social pode também ser entendido
mesmo, mas faz apelo a discursos, gestos, sentimentos, não-ditos, com como atividad1.~ substituta ou de compensação, como meio de troca de
os quais se articula num procedimento existencial. valores, como sistema de relação de aliança entre indivíduos que, atri-
De forma alguma limitado ao religioso ou ao político, o domfuio buindo um mesmo sentido às mesmas coisas, constituem-se em comu-
do símbolo contém o cultural inteiro na medida em que todo grupo so- nidade. É o caso dos punhos cerrados nas manifestações sul-america-
cial s6 é assim existente através da troca de valores e de signos codifi- nas, ou da saudação militar nas cerimônias européias. O polonês, que
cados, cuja legibilidade depende do que foi colocado nele pelo emis- faz um "V .. levantando os braços ou afastando o indicador e o dedo
sor, e das chaves de deciframento de que dispõe o receptor. No setor médio, identifica-se com as massas populares do sindicato "Solidarie-
das liturgias políticas, além das chaves formalmente dadas pela ideolo- dade .. , clamando por sua vit6ria contra o partido opressor. As mãos
gia, existe um conteúdo latente e uma base fornecida pelos hábitos juntas do vassalo colocadas nas mãos do suserano que afirma sua pro-
culturais não definidos pela ideologia, o que pode explicar por exemplo teção amical através de um beijo na boca simbolizam uma obediência,
a multiplicidade dos socialismos, dos fascismos e dos comunismos. Ca- um vinculo político. Mas o símbolo faz mais do que anunciar uma rela-
da uma das mitologias e das ritologias se colore com referências à lín- ção, ele a proclama, ele a toma calorosa, ele a faz vibrar no espaço e
gua, à psicologia, à cultura, à hist6ria religiosa da sociedade que vive no tempo.
cerimonialmente as suas crenças.
Através da imaginação simb6lica, o espírito se emancipa do real e
Por simb6lica dos ritos entendemos o conjunto dos símbolos em-
confere às coisas e acontecimentos um segundo sentido figurado de in-
pregados, suas relações entre si, as inteipretações que lhe cabem reve-
suspeitada profundidade. Nem fantasista nem gratuita, a sobrecarga
ladas pelos participantes, assim como pelos exegetas de tendência filo-
simb6lica, que respeita um c6digo semântico e sintático de origem so-
s6fica, etnol6gica ou psicanalítica e o acento colocado sobre o simboli-
zante ou sobre o simbolizado. cial, ecoa profundamente no psiquismo, na medida em que aciona o
imaginário. O Hei! Hitler valoriza a imagem do chefe carismático. Ele
Carga semântica do símbolo indica a mesma obediência dos dois nazistas que se saúdam. O vigor do
gesto sacode o corpo inteiro e manifesta a determinação da vontade pa-
Pela palavra símbolo designamos um objeto ou um signo a que se ra defender uma causa. E mesmo que algumas vezes pareçam menos
atribui um valor e cuja evocação remete a uma representação orientan- sugestivos (como trazer um chapéu de abas largas nas reuniões socia-
do a ação dos indivíduos que lhe atribuem um significado relevante. listas dos anos 30), os símbolos nem por isso deixam de ter as três di-
mensões: o cognitivo, porque dirigem seletivamente a atenção para
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certos significados (não necessariamente racionais); o afetivo, porque 1972, a nova moeda foi denominada sily, sugerindo assim a força do
suscitam sentimentos, e o conotativo, porque incitam à ação. poder e a pseudoprosperidade de um país fora da zona franca.
Ultrapassando a medida da pura razão, o símbolo quebra os qua- O mesmo símbolo portanto se colore diferentemente conforme os
dros lógicos e encerra contrários numa mesma visão. Os anéis da alian- povos, conforme as circunstâncias históricas e conforme a atmosfera do
ça enunciam simultaneamente a ligação livremente aceita e as cadeias momento. Basta pensar no fascio r.a Itália, na cruz gamada na Alema-
institucionais que limitam as liberdades individuais. Este signo de laço nha, há cinqüenta anos e hoje. Cons:derando as multivocidades e os
indissolúvel também tem valor de potência mágica tanto nos Nibelun- deslizamentos de carga afetiva em torno de um mesmo súnbolo através
gen, em Pelléas et Mflisande, quanto no dedo do rei Salomão, segundo do tempo e do espaço, não poderíamos classificar as interpretações de
os autores árabes. O súnbolo tanto resiste a uma análise que o dissolve- um mesmo símbolo segundo um eixo central e universal, tão diversas
ria ao fragmentá-lo, quanto se deixa apreender por uma instituição to- são as culturas e tão mais explosivo do que redutor é o pensamento
talizante e por uma compreensão simpática que captam as correspon- simbólico. Esta variabilidade é sublinhada por F.-A. Isambert em Le
dências, jogam com as analogias e unem o cósmico, o apreendido pela sens du sacré: "Não existe símbolo absolutamente transparente, de ~
consciência e o afetivo. Se a razão científica desconfia dele, a imagina- modo que qualquer participação numa ação simbólica supõe uma he-
ção e a sensibilidade o percebem como diferente da analogia ou da rança cultural (mesmo se esta parecer reduzida a uma simbólica 'natu-
metáfora, deixando a realidade diluir-se na imagem, e mais do que um ral' como a água e o fogo que purificam) ou uma aprendizagem. Inver-
signo que marca uma relação em primeiro grau com um referente ou um samente, qualquer mudança de símbolo supõe reimplantação, em outra
objeto real. Mas seria equivocado opor arbitrariamente o real e o sim- parte do espaço cultural, ou reaprendizagem" (lsambert, p. 107).
bólico, pois muitas de nossas ações são simultaneamente reais, visíveis,
presentes e simbólicas. Elas remetem a intenções, hábitos, fantasmas O político como domínio do símbolo
herdados do passado, a códigos e orientações que produzimos para o
futuro. . Entr~ os setores da cultura, o setor do político representa um lugar
Do domfuio do aberto, do heterogêneo, do equívoco, o símbolo de mvestlffiento privilegiado do imaginário. A existência de uma ordem
é também pluridimensional através de eventuais polaridades contrárias, ~o universo, com homologia de estrutura entre ordem parcial (do polí-
e como um núcleo de sentido em torno do qual se agregam representa- Uco por exemplo) e ordem total do sociocultural, constitui um dos
ções variáveis de acordo com as culturas e as circunstâncias. Entre nós ~st~ados fundamentais da simbólica. Sendo a política o domfuio pri-
o elefante é gordo, grosseiro, desajeitado, "gigantesco" 1º. Na Índia, é vilegiado de concepção e de manutenção de uma ordem social, com-
a montaria do rei celeste lndra, símbolo da estabilidade própria ao ele- preende-se que ela faça grande uso de símbolos, mesmo que estes pare-
mento terra. No mundo africano, as crenças o associam à potência, à çam bem menos numerosos do que na política ou na literatura.
prosperidade, à longevidade, à inteligência (frente ao caçador). Por is- De fato, o político se inscreve numa sociedade e desse modo recu-
so ele representou com naturalidade para os povos da Costa do Marfim, pera arquétipos ligados a imagens culturalmente diferenciadas. Se ele
da Guiné, da Nigéria... , o partido que nos anos 50 apresentou-seco- cria talvez mais emblemas (figuras convencionais) ou alegorias (repre-
mo o mais poderoso, o mais promissor e o mais tenaz em seu projeto de sentações do geral pelo particular) do que súnbolos puros, no sentido
liberação da África: o RDA (União Democrática Africana). E permitiu d~ esquema estruturado e dinâmico da imaginação, nem por isso fun-
que as mulheres da Guiné identificassem o chefe da RDA local, Sékou c10na menos de acordo com a lógica da analogia do que com a lógica
Touré, com Sily, o elefante. Erigindo uma estátua de elefante jovem na da demonstração. E quaisquer que sejam as querelas de vocabulário,
praça de Forécariah, e tecendo loas a Sily nas liturgias políticas da não poderíamos eliminar totalmente do campo do simbolismo a metáfo-
Guiné, era ao mesmo tempo o chefe de Estado, o partido único e a vida ra, o atributo, o emblema ou o apólogo. Gilbert Durand, mesmo dife-
da criança que os habitantes da Guiné celebram com louvores e ternu- renciando esses termos, afirma a fragilidade das pseudofronteiras ter-
ra. E quando foi suprimido o franco da Guiné em 2 de outubro de minológicas. Em La. science des symboles, René Alleau consagra um

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pobres para ceifar e esmagar a classe burguesa. O menor elemento im-
longo parágrafo ao significado simb6lico das insígnias sagradas, e um porta na análise simbólica. Por isso nossa compreensão dos súnbolos
capítulo à divisa e ao emblema. Raymond Firth intitula os capítulos 7 a no quadro das liturgias políticas deve necessariamente considerar inú-
11 de seu Symbols, Private and Public: "Food symbolism in a Pre-In- meras indicações como a figura do súnbolo (bandeira retangular ou
dustrial Society"; "Hair as Private Asset and Public Symbol"; "Bodily flâmula triangular), seu movimento (hasteamento, agitação), seu meio
Symbols of Greeting and Parting"; "Symbolism of Flags; Symbolism cultural de inserção (significado atribdd0 às cores e aos signos: cres-
in Giving and Getting". Hugh Duncan em Symbols in Society demons- cente islâmico, estrela), seu papel particular no quadro de um ritual
tra claramente o funcionamento do político a partir dos símbolos. A preciso (signo de reunião, pano de fundo decorativo, pólo do discur-
fortiori no domínio do ritual político, e não apenas na po/ltica-ficção, so... ).
encontraremos o símbolo atuando. Todos elementos significativos para o iniciado. A este, o súnbolo
Por isso, mesmo com o risco de desagradar aos especialistas da sim- revela aquilo que designa; ao estrangeiro, ele oculta. Essa sugestão-
b6lica c6smica, incluiremos o emblema, como figura adotada conven- ocultação aproxima o súnbolo do mistério e evidencia o aspecto hiero-
cionalmente à maneira de um ideograma, para representar uma idéia ou fânico do poder nas liturgias políticas. O poder se manifesta como po-
um ser social, na categoria dos súnbolos. O fato do significante e do der através do seu domínio legítimo da violência e através de sua pos-
significado ( o vermelho e o marxismo) serem estranhos um ao outro sibilidade de criar e fazer adotar símbolos pelos grupos que ele dirige.
não impede que a imaginação termine por reuni-los em uma mesma re- Se muitas vezes as sociedades se percebem como tais através dos sún-
presentação. Os signos rituais são menos carregados de abstrações do bolos rituais de relação, de estatutos, de papéis, de muitos valores,
que pesados de aspirações concretas e de emoções que os distinguem normas, regras e conceitos abstratos como honra, ju,stiça, prestígio, s6
do co-seno de x ou das curvas assint6ticas. são legíveis através deles mediante um consenso sobre as chaves de
Com relação aos súnbolos religiosos ou literários particularmente deciframento, do lado emissor da mensagem e do lado receptor. Prestí-
ricos, os símbolos políticos se diferenciam por alguns traços principais: gio e posição, por exemplo, se percebem pelo corte da roupa, pelo que-
1 / eles são relativamente pouco numerosos mas aumentam com os sig- pe, pelas dragonas, pela condecoração da Legião de Honra. O que é um
nificados precisos conferidos a súnbolos tradicionais ou religiosos (bar- general de calção?.•. Central na interpretação de fenômenos sociocul-
rete frígio, monumentos aos mortos, altar da pátria); 2 / seu campo de turais, o simb6lico nos fala de maneira oblíqua alguma coisa a prop6sito
referência carece de unidade mas as convergências temáticas da ideo- da cultura e dos valores. Ele postula o caráter figurativo dos seres
logia os unificam; 3 / eles são muito pouco multívocos, mas sua con- e permite pensar o não-dito. Daí as suas capacidades hierofânicas.
gruência em torno de temas centrais e seu freqüente reaparecimento re- Que a simb6lica política tenda a negar as categorias estruturais
forçam o monolitismo sociopolítico. Aliás, a sua integração numa te- através de que se constituía o religioso tradicional, que exista subde-
mática central, o seu arranjo dentro de um sistema e de uma sintaxe senvolvimento do simbolismo nos ritos políticos com relação aos ritos
políticos importam muito mais do que o seu significado intrínseco. O religiosos, isso não significa que súnbolos menos numerosos, menos ri-
que existe de comum entre o svastika budista figurando a roda da lei cos e mais unívocos, tenham necessariamente um impacto menor, posto
(Dhannachokra) girando em torno de um centro imutável, o svastika que muitas vezes as liturgias fazem referências à ordem c6smica, utili-
dos mundos celta, etrusco e mesopotâmico inspirado nas posições car- zam símbolos religiosos anteriores assimilados à cultura de um povo, e
deais e num movimento girat6rio, e o sentido de fratura com a tradição produzem uma espécie de sacralização do poder e de seus altos mestres
cristã atribuída à cruz gamada hitlerista? de cerimônia. Os principais atores da Revolução francesa gravitam em
Mesmo que um elemento esteja embebido na simb6lica tradicional torno de um palladium sagrado, e a simb6lica dos reformadores do sé-
do campo da natureza, uma outra parte sua remete às escolhas hist6ri- culo XIX é apenas uma recorrência da simbólica religiosa (cf. os sa-
cas e aos fatos precisos de uma história nacional ou internacional, mi- cramentos de Comte). Nos messianismos revolucionários do Terceiro
litar ou civil. A foice cruzada com o martelo designa menos a associa- Mundo, existem áreas do discurso comuns às reivindicações sociopo-
ção dos trabalhos agrícolas e industriais do que a aliança das classes
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líticas e religiosas. E nos países como os Estados Unidos ou a Grã-
Bretanha, o religioso muitas vezes serve para legitimar coisas exterio- m~smo tempo, penhor da lembrança, e fruto da lembrança. Não
res ao seu campo. "O papel do símbolo", diz F. Isambert, "não é por- existe melhor exemplo nesse plano do que a reanimação da pira do
tanto simplesmente o de significar o objeto, o acontecimento, mas cele- Soldado Desconhecido;
brá-lo (dando a esse termo o significado mais amplo, tanto profano - "de cristalizar, sem explicá-las, as ideologias, as crenças, as emo-
quanto religioso), utilizar todos os meios de expressão para fazer apa- ções, as paixões, os medos, as esperanças, as cóleras da coletividade·
recer o valor que se atribui a esse objeto" (lsambert, p. 158). "de confirn1ar os laços orgânicos com a comunidade, com o passad~,
com a tradição;
Funcionalidade dos símbolos - "d~ ho~ogeneizar (no espaço) e de unificar (no tempo) os valores,
os ideais, as condutas, os atos coletivos, para dar uma impressão fí-
Essa reflexão sobre o papel do símbolo leva-nos a um questiona- sica de unidade e, portanto, de força tranqüilizadora;
mento mais amplo da funcionalidade dos símbolos no interior dos ritos, - "de ordenar, ou seja, de criar uma ordem, religiosa, civil, militar,
diferente da funcionalidade dos pr6prios ritos de que já falamos. De partidária;
início, convém também distinguir entre as funções simb6licas e as for- - "de orientar: de fato, por mais simplificador e orientador que ele se-
mas simb6licas, sendo uma mesma função assumida de múltiplas for- ja, e até mesmo se os processos de que se utiliza façam, no mais das
mas simb6licas em uma sociedade dada, uma mesma forma simb6lica vezes, apelo ao inconsciente, o símbolo não deixa de ser um "antí-
preenchendo funções diversas em sociedades diferentes, e uma homo- doto para a anarquia da sensibilidade", para o subjetivismo improvi-
logia de funções perpetuando-se apesar da mudança de área de inves- sador, para os delírios coletivos, para as explosões de carismas des-
timento do simb6lico. controlados;
Em Les socialisations, Léo Moulin apresenta de forma condensada "de alimentar a sensibilidade coletiva. 'A vida social s6 é possível
o papel social do símbolo que é o: graças a . uma vasto simbolismo', escreve Durkheim. Sem símbolo, a
- "de reswnír: a opinião pública (ou partidária) só pode reter breves .
vida social fenece e morre - ou desencadeia-se de maneira selvagem,
abstracts. A bandeira nacional resume portanto - à sua maneira - a por 'falta', desloca-se, dissolve-se em busca de outras clivagens e,
história, gloriosa e dolorosa, da pátria (por exemplo); portanto, de outros símbolos" (Moulin, pp. 130-131).
1
i
- "de simplificar: a opinião pública só se lembra do essencial, o que
ela acredita ser o essencial, o que lhe disseram ser o essencial: a luta Para uma abordagem de caráter psicossociol6gico, psicanalítico e 1
entre a bandeira de flores de lis e a bandeira tricolor francesa simbo- filos6fico, outros aspectos diretamente ligados ao processo de sociali-
liza, simplificando-o, o conflito que no início do século XIX opôs o
Antigo Regime à Revolução;
zação poderiam ser sublinhados. i
Enquanto esquema motor, o símbolo favorece a integração do ego 1
"de encarnar: o psiquismo coletivo é incapaz de abstrair, 'nomra através da harmonização das pulsões pessoais e das pressões do meio. A
intellectualis obumbrata', diz São Tomás de Aquino; são então ne- sublimação das pulsões sexuais realiza-se através do reinvestimento nas i
cessárias imagens portadoras de emoções que, na partida do sensível, simb6licas, quer sejam femininas: terra mãe, aliança... , quer sejam
permita-lhe chegar a um certo conhecimento das verdades espirituais masculinas: bastão de comando, mastro de bandeira, cfrio, etc. Mas no
i
ou socioculturais que a experiência cotidiana s6 manifesta fraca, ou político, a posição dominante e os símbolos de força levam vantagem
indiretamente;
- "de esclarecer: o símbolo 'explica' à sua maneira o significado de tal
sobre a simbólica da copulação e da nutrição, o que permite ao superego
integrar-se ao ego através de toda uma estratégia ritual de aceitação das
i 1

gesto, ou de tal grito ou, mais exatamente, o gesto, o grito são expli- !
imposições recitando slogans, prestando juramento, participando dos :
cados, interpretados pelo símbolo e refletidos por eles; movimentos de grupo. • . O símbolo, nesse caso, tem função de subs-
"de lembrar: a opinião, as massas esquecem rápido. O símbolo é, ao !
tituto, na medida em que procura, de maneira figurativa e através da
identificação pessoal ao grupo, a satisfação de um desejo de potência.
-224-
-225-
: 1

~ í
Nas liturgias políticas domina o que Gilbert Durand chama de re- tantes pelos seus conhecidos, que ela vê na televisão, a criança passa
gime diurno (tecnologia das armas, soberania do mago e do guerreiro, progressivamente de uma concepção da autoridade personalizada à
ritos de elevação e de purificação) com relação ao regime noturno (ali-· concepção do sistema das autoridades políticas. O estudo da história, a
mentar, agrário, astrobiológico). O uraniano é mais legível do que o instrução cfvica contribuem para propor símbolos que a criança traduz
ctoniano. O luminoso se afirma contra o tenebroso, exceção feita ao na sua brincadeira de imitação dos rituais: "Eu sou de Gaulle (ou Na-
nazismo que manifestava exatamente o seu gosto pelas trevas. . poleão)". Cabeça levantada, postura digna, a criança, identificando-se
É verdade que o sentido do real pode se atrofiar através da intoxi- com o chefe, exige a posição de sentido e a saudação militar de seus
cação ideológica; no entanto sob um outro ângulo, ele se desenvolve camaradas enfileirados. Desenha bandeiras azul-branco-vermelhas, co-
através da inserção do homem num meio social, podendo o gregarismo leciona selos de Marianne, acaricia a mascote do regimento de seu pai.
facilitar a comunicação, assim como a vibração faz com os mesmos O símbolo aparece portanto como estimulante de energia psíquica.
símbolos. Catalisador do rito, o símbolo une em uma mesma comunida- No decorrer da existência, através do simbólico é que se condensa-
de espiritual indivíduos que o compreendem. Mas sua dinâmica vibra- rá a experiência total do homem, inconsciente e consciente, polftica,
tória, sua potência evocadora e liberadora dependem da relação entre o econômica, religiosa. É o símbolo que torna possível, segundo Mircea
indivíduo e sua comunidade de pertencimento, de seu nível de adesão à Eliade, uma circulação através dos níveis do real. Entre elementos se-
ideologia e de suas experiências anteriores de relação emotiva com o parados real ou ficticiamente, ele é o mediador. Liga o objeto material
simbolizado através do simbolizante. à cultura que socializou o homem, o real cotidiano ao sonho de uma
O simbolizado remete por um lado aos componentes das ordens sociedade melhor, a consciência de uma pertença ao inconsciente de
sociais e morais, e por outro lado ao mundo natural ou psicológico. As nossas ml1ltiplas determinações.
interações entre esses dois p6los fazem com que as normas e valores
sociais se reforcem através de uma espécie de saturação emocional e os F orma.s e lingua.gens dos s(mbolos rituais de caráter poUtico
significantes sensíveis (centros, flâmulas, tochas .•. ) são de certa forma
enobrecidos por sua evocação de valores sociais. Porém muito fre- Misturado a toda experiência humana, o simbólico social tem uma
qüentemente o emocional deriva menos da relação dos símbolos com o existência própria, independente do político ou do religioso, apesar da
mundo circundante ou fisiológico do que de suas relações com os fatos tendência a investir-se numa forma ou noutra de expressão, o risco de
históricos que deixaram na memória coletiva uma lembrança de triunfo
ou de traumatismo com forte carga afetiva. Portanto não é certo que
empobrecimento como signo convencional residindo na monopolização i
dessa simbólica por uma l1nica forma de expressão. O leão Peugeot,
nas sociedades industriais menos próximas da natureza do que as "pri- o losango Renault fazem o homem ocidental moderno esquecer a rique-
. mitivas", os símbolos percam realmente a sua potência. Eles talvez za evocadora do leão poderoso, sábio e justo, as religiões indo-euro-
apenas mudem de referentes: o passado histórico compartilhado em péias e os brasões medievais, ou a representação africana da fecundi-
comum por vastas populações se substitui à relação comum de uma dade através do losango que esquematiza iconograficamente a rã.
mesma natureza em pequenos grupos heterogêneos. A solidariedade Sem pretender construir um dicionário dos símbolos polfticos, de
orgânica nas sociedades modernas manifesta-se neles, mas através das caráter necessariamente tipológico e identificador, e mesmo sabendo
distinções de papéis segundo pares oposicionais: chefe-sujeito, militar- que as tipologias não explicam nada mas apenas constituem limites de
civil, mestre de cerimônias-participante, cada um especificado através •('
classificação, tentaremos abordar alguns dos símbolos importantes que
de símbolos vestimentares, gestuais, através do direito à ocupação de aparecem na primeira parte da obra. Aqui os símbolos serão destacados
certos espaços e do direito à palavra em determinadas circunstâncias. de seu contexto e agrupados de acordo com sua forma com a finalidade
No quadro da socialização política, o símbolo tem também valor de analisar suas propriedades particulares e os significados que veicu-
pedagógico. Sensibilizada para o dom.úúo político através dos aconte- lam, enquanto na primeira parte eles eram apreendidos sob o ângulo de
cimentos dos quais ouve falar ou dos personagens considerados impor- sua inserção em certas liturgias políticas em certos momentos da hist6-

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'
ainda que possa tremular cotidianamente em alguns edíffcios pl1blicos
como signo da permanência e da autoridade de um serviço nacional, ela
ria. Evidentemente não iremos tratar de símbolos ou signos científicos: é signo de reconhecimento l1til para a diferenciação de um grupo. Sím-
figuras matemáticas ou f6rmulas químicas, nem dos símbolos da fé co- bolo da unidade, realiza sobre as multidões, que a identificam como
mo por exemplo o crucifixo ou o credo de Nicéia, mas apenas dos sím- sua, um trabalho de integração no presente, mas também através da
bolos sociais: monumentos, braçadeiras, datas do registro civil, salvas história, na medida em que se refere aos que a defenderam e glorifica-
de canhão, Livrinho Vermelho, termos de tratamento: cidadão, camara- ram: os ancestrais, daí a evocação de uma aliança de tipo sagrado entre
da... os vivos, e as grandes figuras do passado e do futuro.
A classificação da simbólica política por Léo Moulin se elabora a Antes de tudo, as suas cores estão carregadas de significados. Já
partir de elementos que fazem apelo aos diversos sentidos: foi dito que a bandeira vermelha estava associada à idéia revolucioná-
- "a audiçã.o: os hinos nacionais, as marchas militares, os cantos par- ria durante a sublevação da Comuna de Paris, ao sangue derramado nas
tidários, a batida ritmada dos aplausos e das marchas, a palavra, a batalhas pela defesa de causas políticas, e ao esforço penoso dos tra-
ml1sica, os gritos, os slogans, as vaias, etc.; balhadores nos países comunistas. Em muitos países africanos (Sene-
"a visã.o: as luzes, as condecorações, as bandeiras, os cartazes, as gal, Mali, Guiné, Gana, Etiópia, Camarões, Ruanda, Congo, Togo,
flores, os cortejos, sua boa ordem, as massas reunidas, os signos (as Zaire) figuram as três cores: verde, amarelo, vermelho, que Marcus
três flechas, o svastika, a cruz de Lorena), os personagens e animais Garvey, o profeta jamaicano do rastafarismo, declarou em 1920 serem
simbólicos (John Bull, Marianne, Till Eulenspiegel, as 'águias' e os as cores oficiais da raça negra. O verde simboliza a fertilidade, a vida,
'leões'), os monumentos históricos ou comemorativos, etc; o crescimento; o amarelo-ouro, a riqueza e o calor solar; o vermelho, o
"o olfato: o incenso, as flores, a 'pólvora', o cheiro da multidão, a sangue derramado pela liberdade e pela dignidade dos filhos da África.
terra recém-revolvida dos cemitérios, etc.; Essa três cores são freqüentemente utilizadas nas roupas, nas pinturas e
- "o paladar: utilizado sobretudo nos ritos de convivilidade alimentar, nas decorações.
jantares e banquetes; Assim como a cor, o arranjo dos signos e das faixas também assu-
- "o tato: os contatos, os empurrões, o corpo-a-corpo, as brigas de me um sentido precioso. No Congo, a bandeira é um sfmbolo particu-
rua, a presença da multidão - toda a diferença que existe entre um larmente comprometido com as elites políticas. Evocando a luta pela
concerto ao vivo e um concerto pelo rádio. Ou ainda entre as batidas independência e o combate contra o imperialismo, ela também repre-
do coração e as batidas do metrônomo. senta a integração de indivíduos de etnias variadas numa história re-
cente comum, e se identifica com a bandeira do Partido Congolês do
"Não nos esqueçamos dos elementos motores, desta vez não mais Trabalho (PCT), partido l1nico. Sobre um retângulo vermelho (opção
vistos e entendidos, mas vividos e, portanto, sentidos: os desfiles, as marxista) estão impressas no canto superior esquerdo duas palmas ver-
saudações fascista, socialista ou comunista, os aplausos, os lie-in, as des envolvendo um martelo e uma enxada, de cor amarelada, entrecru-
danças coletivas que não são apanágio apenas das organizações tribais, zados, tendo acima uma estrela amarela. As palmas verdes significam a
as 'técnicas do corpo' e os ritmos que 'socializam' " (Moulin, p. 134). paz e a prosperidade, o martelo e a enxada, a união das classes operária
Evidentemente muitas atividades políticas e liturgias fazem uso de e camponesa para realizar a construção do novo Congo, a estrela é
vários tipos de sfmbolos ao mesmo tempo. Concentraremos nossas glo- símbolo de esperança, enquanto o fundo vermelho lembra a luta pela
sas em alguns domínios capitais: visuais, auditivos, gestuais, e depois independência nacional. E assim ela sintetiza o essencial dos ideais
no valor simbólico dos grandes heróis e das pequenas estrelas. Elas proclamados pelo regime.
tentarão decifrar as linguagens dos símbolos segundo o seu contexto de A bandeira também se insere nos rituais. Daí a importância de con-
apresentação. siderar seu significado de acordo com seu uso, seu lugar e o gestual
que lhe está associado.
Símbolos visuais: bandeira. - Não é de surpreender o tratamento
prioritário conferido à bandeira. Arvorada nas ocasiões solenes, -229-

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Conservadas no museu do exército, as bandeiras napoleônicas tes- do de purificação e de regeneração, de iluminação e de amor espiritual.
temunham glórias passadas. Fincada na Lua pelo astronauta Armstrong, O fogo da vida se alimenta da "luz eterna". Desde a Antiguidade grega
a bandeira americana é ao mesmo tempo demarcação simbólica do es- onde a tocha incendiada expressa a orientação humanista da cultura,
paço e memorial de uma primeira e espantosa conquista técnica. No até a filosofia das Luzes, a flama remete ao conhecimento e à Sabedo-
célebre quadro de Delacroix, A liberdade guiando o povo, durante as ria ao Verdadeiro e ao Bem: o iniciado maçom recebe a "Grande
jornadas de julho de 1830, a bandeira republicana é arvorada num Lu~". No final do século XVIII ela é associada de forma considerável
gesto com valor de mobilização. A bandeira a meio pau marca um luto ao ardor revolucionário. Não é o fogo a força elementar e criativa que
nacional. Nas festas do 14 de julho, as bandeirinhas múltiplas e deco- a revolução técnica e industrial, e depois o marxismo irão glorificar
rativas dão um ar festivo à cidade. As bandeiras de diversas nacionali- através de Prometeu e de Lúcifer, ambos portadores de luz? No nazis-
dades justapostas durante um congresso ou tremulando diante de um mo, o fogo é a herança heróica dos Germanos. Provocando uma fusão,
hotel de turismo internacional indicam a confraternização dos povos. o fogo detém também uma propriedade dinâmica, o que é evocado pela
Num pátio de quartel, o hasteamento ou o recolhimento da bandeira da tocha do partido único do Zaire, ao mesmo tempo ponto luminoso de
pátria, enquanto a assistência mantém a posição de sentido, dá conta do união e instrumento da fusão das etnias.
respeito devido à nação inteira que o militar tem como finalidade de- Nos grande rituais de massa, realizados à noite, as guirlandas de
fender. Não há melhor gesto de zombaria ou de escárnio que plantar lâmpadas elétricas nas estradas, os projetores, nos estádios superlota-
uma bandeira sobre um monte de lixo! E a colocação de uma bandeira dos, têm uma finalidade não apenas funcional mas também decorativa e
negra no alto de uma construção da Sorbonne durante a revolta de maio festiva. Assim como as representações teatrais se realizam sob as luzes
de 1968 significou a oposição anárquica ao governo instituído. Em ca- da ribalta, da mesma forma as aparições do chefe do Estado, numa sala
so de conflito armado, a violência se expressa simbolicamente através de Congresso, exigem a máxima claridade para valorizar o personagem
da tomada ou da queima da bandeira do inimigo. Crivada de balas, a e fazer cintilar uma decoração colorida onde se destacam os emblemas
bandeira proclama os ardores guerreiros. Desbotada e irreconhecCvel do poder e da nação. Lembremo-nos, como já foi sublinhado por Si-
ela fala da antiguidade ou da negligência. Solenemente paramentada ronneau, do efeito produzido pelas catedrais de luzes de Nuremberg.
com símbolos adjacentes, realçada por exemplo com uma franja doura- Festa e alegria, é o fogo nas marchas à luz de tochas, nos isqueiros
da, um galão, com várias condecorações, o mastro encimado por uma acesos dos movimentos esquerdistas e ecologistas, nos fogos de artifí-
lança enfeitada com fitas, ela enuncia a glória e a adesão. Sustentada cio e nos fogos de bengala que encerram as noites de festa nacional.
por duas mãos à frente de um desfile, coloca sob sua proteção a pessoa Mas suas conotações diferem de acordo com as culturas. Destinado a
que a porta e o grupo de que é a insígnia. Colocada em 1945 sobre as espantar os maus espíritos nas sociedades arcaicas, identificado com
ruínas de Berlim, a bandeira soviética simbolizava a preeminência da a luz de Cristo nos ofícios cristãos, o fogo aceso pode significar, nos
URSS. Como signo de identificação ou de pertença, o equivalente co- ritos políticos, o começo de uma vida nova. Símbolos de vida ascen-
car, sobre o barrete frígio dos revolucionários franceses, por exemplo, dente, as velas de aniversário manifestam a persistência de um sopro de
ou ainda o lenço dos membros do Komsomol, repete a simbólica da vida.
bandeira de modo mais individual. Quanto aos símbolos astrais (sol, estrela, lua crescente) freqüente-
mente representados nas bandeiras, eles enunciam da mesma forma luz,
Luz, fogo, calor. - Também deveriam ser classificados como for- calor e potência. Por isso estão na aura que os quadrinhos e o imaginá-
mas simbólicas redundantes as que se referem ao fogo, à luz e ao calor. rio político fazem luzir em torno da cabeça do chefe de Estado africa-
Em muitas ritos de passagem, na fase de reagregação, reencontra-se o no. Queimando em memória dos heróis mortos, a flama eterna, ritual-
simbolismo da saída das trevas. Que a luz inicial (Et lux fuit) seja refe- mente reanimada, simboliza o respeito dirigido aos que se sacrificam
rida a uma divindade solar primordial, é bastante plausível, mas em pela pátria, mas significa também, como a lâmpada do santuário, a pre-
muitas religiões, a flama e o fogo se acrescem também de um significa- sença de um poder sagrado invisível e transcendente.

-230- -231-
!
!

Sob um outro ângulo, o fogo não dominado se apresenta como de- blicos: monumentos aos mortos, casa do Povo na China, museus da
vastador: facho da discórdia, facho da inveja, queima destruidora de Revolução em Moscou, Memorial de Sarakawa•.. , estão associados a
fetiches ordenada por Sékou Touré em 1961, auto-da-fé de efígies do acontecimentos históricos, como aliás certos espaços pdblicos: cemité-
xá do Irã pelos partidários de Khomeiny no poder. rios militares, campos de bataih'.l, cidade natal do presidente Hou-
phouet-Boigny, onde se desenrolaram acontecimentos importantes de
Árvore e anel. - Os mesmos significados: vitalidade e poder, a que ordem política ou militar. Nesses lugares venerados, de tempos em
remete o significado flama, podem ser simbolizados de maneira recor- tempos se desenrolam liturgias de forte significado emocional. Douau-
rente pela árvore (de vida) familiar a im1meras culturas. Plantada pelo mont, Auschwitz, Oradour-sur-Glane falam de uma história saturada de
nascimento de uma criança na África, a jovem árvore também é o ritual emoções. O complexo de Magnitoborsk é visto como o triunfo da in-
e obrigatoriamente a cada ano em Lomé, pelo infcio da estação das dustrialização da URSS e simboliza o valor-trabalho.
chuvas, para comprovar a participação de todos no plano polftico e Enquanto certos locais adquirem sua qualidade simbólica apenas
econômico de reflorestamento numa região de savana. Os vasos cheios durante o rito (cf. a peregrinação de Mitterrand a Solutré no domingo
de palmas sobre um podiwn presidencial, os ramos de palma ou de co- de Pentecostes), outros estão perpetuamente santuarizadós como o
queiros presos verticalmente a um vaso são também indfcios de alegria mausoléu de Maomé V em Rabat ou o rochedo de Massada em Israel.
festiva e cerimonial. Um trajeto de honra se baliza com vegetais, flâ- Eles despertam permanentemente sentimentos de veneração, de ação de
mulas e arcos de triunfo. Um homem de honra é glorificado pela im- graça, são fonte de reflexão e de inspiração.
portância de sua árvore genealógica: ramo de Jessé, ramo dos grandes A santuarização parece mais intensa em certos períodos (eleições,
Keita do Mandinga. festa comemorativa) quando a comunidade renova o apego e o fervor
Assim como o tronco viril, o cetro é signo de poder: cetro mantido que ela devota ao espfrito de sacrifício de seus mártires ou quando ela
numa das mãos pelo soberano da Inglaterra durante o seu coroamento. se redoe para expressar intensamente a sua consciência de ser uma co-
Sustentado rela outra mão, o globo terrestre tendo no alto uma cruz munidade. Neste dltimo caso, um elemento visual importante realça o
cristã afirma até onde se estende o poder e de quem ele é recebido: ter- rito: o cartaz que liga o visual ao audível. Amplamente utilizado pelo
ra e divindade. Assim como o marechal tem o seu bastão de comando, poder como mídia eficaz para impor idéias-força para valorizar o chefe
o mágico a sua varinha, o bispo o seu báculo, o chefe africano segura e testemunhar sua onipresença ao longo das estradas, nas encruzilha-
seu bastão cerimonial, seu récade ou sua lança. Transmitido numa cor- das, nos lugares pdblicos, o cartaz (painel ou faixa) pretende, através
rida de revezamento, o bastão é um duplo da tocha, da tocha levada por de "mensagens-flashes'', gravar um conteddo no inconsciente coletivo.
exemplo há alguns anos de Olfmpia até Los Angeles. Durante a festa nacional de 13 de janeiro de 1978 no Togo, líamos ao
Não era o anel (real, episcopal. .. ) que permitia, através da rique- longo do bulevar circular de Lomé: "Eyadéma, um õnico objetivo: a
za de suas pedras, ou de seu uso medieval como selo, indicar onde es- felicidade do povo togolês; Eyadéma: estabilidade política e econômi-
tava o poder? Pois isola o portador permanecendo ambivalentemente o ca; Eyadéma, a nação togolesa será reconhecida a ti para sempre; Eya-
signo de uma aliança ou de um destino associado (anel entrelaçado dos déma, símbolo de paz; Eyadéma, apóstolo do desenvolvimento social;
Jogos OHmpicos). Na África, mas também na Europa, o anel de metal Glória a ti, construtor da nação togolesa; Eyadéma, o invencfvel, o To-
amarelo e vermelho entrelaçado é objeto de proteção mágica. No rito go conta contigo... "
do casamento, a troca de anéis demonstra que cada um é ao mesmo
tempo senhor e escravo do outro. Súnbolos auditivos. - O visual tem sua tradução oral, ela própria
redundante. Os símbolos auditivos podem ser verbais (discursos, decla-
Santuários. - A essas amostras bastante fragmentárias de sfmbolos rações, slogans, poemas, citações), puramente musicais (fanfarras,
rituais de caráter visual, conviria acrescentar muitas outras expressões marchas militares, mõsica clássica em caso de luto nacional: cf. Stalin e
materiais perceptíveis na santuarização do espaço. Certos edifícios pd- J.-S. Bach), ou podem ainda misturar palavra e mdsica (hinos nacionais,

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transfigurados pela arte de Rameau ou de Donizetti. Músicas popula-
cantos partidários). Se é relativamente fácil criar símbolos verbais, em
res, orquestras de variedades, conjuntos de marimbas, de konnis e de
que medida realizam eles efetivamente o seu intuito de firmar a crença coras ou bandas militares também servem para ampliar a solenidade de
e levar à ação aqueles que os escutam ou os repetem, mesmo quando ' marcando-o com um prelúdio, um poslúdio ou mterlúdios.
um rito, . Es-
expressam normas poderosas e valores simbólicos? Desaparecidos Hi- sa organização pretende fazer vibrar o sentimento nacional e ~ven~~al­
tler ou Sékou Touré, muda-se rapidamente de música. No entanto os mente transferir através de um ritmo marcial os modos de açao ffilhtar
ritos verbais impressionam pela perfonnance, pelo tom, pelo vigor, para um contexto civil.
pelo gestual tanto em Jaur~s quanto em Goebbels. Na África, muitas Assim como a bandeira, o hino nacional, ouvido ou cantado de pé
vezes o nível do discurso permanece abstrato demais para ter um im- ou em posição de sentido em Moscou, Paris ou Cotonou pretende sus-
pacto real sobre as massas, a menos que se refiram a acontecimentos tentar o sentido de pertencimento à nação, desenvolvendo ao mesmo
concretos sobre os quais se possa formular opiniões. tempo entre os seus membros uma solidariedade aumentada e mflaman-
Os slogans impressionam em primeuo lugar pela repetição e pelo do-os para a ação
ritmo: "Lenin viveu, Lenin vive, Lenin viverá'', grita-se na URSS. "O
imperialismo. Abaixo! O colonialismo. Abaixo! O neocolonialismo. Ações simbólicas. - Mais importantes ainda, os símbolos gestuais
Abaixo! Tudo para o povo, nada senão para o povo! Viva a revolu- e posturais formam o núcleo de todo ritual. ~les podem ser de natu~eza
ção", exclama-se no Benin no início de qualquer cerimônia política. mista: simbólica, certamente, mas também mstrumental e expressiva.
O slogan é objeto de ampla utilização (como cartaz) na medida em que Entretanto nas liturgias políticas em geral a expressividade leva vanta-
concentra em uma idéia-força a vontade política do governo. Memori- gem sobre uma instrumentalidade mais perceptível nos ritos do trabalho
zados graças às palavras-chave que chamam a atenção, repetidas pela manual, da vida militar ou escolar.
mídia, inscritos ou afixados em diversos lugares, os slogans provocam Nos ritos de passagem da URSS, podem coexistir simbólicas di-
uma adesão, mais inconsciente do que voluntária, aos objetivos políti- versas: lançamento de três punhados de terra no túmulo (gesto tradicio-
cos do governo. Contribuem também, como uma mensagem visual, para nal) e discurso conferindo uma interpretação laica ao sentido da vida.
a exa!tação da personalidade do chefe: ' Grande Dirigente Nacional", O instrumental pode ser simulta11eamente expressivo e simbólico
"Rc:sponsável supremo pela revolução", "Vida longa ao nosso Pai quando um responsável político coloca a pedra inaugural de um ed1ff-
bem-amado"! cio, abre o primeiro sulco de um campo coletivo, inaugura um monu-
No ritual escolar é bom, a cada manhã, copiar uma citação percu- mento cortando o laço simbólico, planta uma árvore para provocar
ciente para despertar a fidelidade política. De J. Y ombi-Opango: "De ações semelhantes entre a população.
pé, camaradas militantes onde estiverem! De pé valente povo congolês, Por outro lado, uma atividade puramente expressiva como uma pe-
para continuar o combate e esmagar todos os inimigos ao termo de uma ça de teatro adquire uma dimensão simbólica quando insere_ sua ação
luta vitoriosa" (Etwnba, n!! 502 de 5 de dezembro de 1978). Do cida- num campo de significado histórico, seJa como comemor~çao de um
dão Engulu no Zaire: "Mobutu veio em nome dos ancestrais e enviado aconteeimento primordial (resistência de um autóctone à açao colom~l,
por eles, ele trouxe a mensagem da paz, da aliança e da fraternidade" independência do país, criação do pa.rtido únic?), ~eja co~o traduçao
(Agência da Imprensa do Zaire - AZAP - 6 de dezembro de 1974). imaginária de um tem1: central fornecido pela direçao polfu:a :1'ªra va-
Nos Estados Unidos, todos os alunos assistem a cada manhã ao lorizar, no presente, tal decisão, tal fato cultural ou econoffilCO (luta
hasteamento da bandeira. Na URSS, a recitação e a audição de poemas contra a poligamia, campanha agrícola).
de Maiakovski ou Gorki integram-se a certos ritos. Na África, os poe- O simbolismo dos movimentos corporais reúne em seu significado
mas dirigidos por escolares ou docentes em louvor de um responsável o significado das ações simbólicas através do fenômeno agre_g~tivo, na
do Partido para celebrar ou o responsável ou o Partido têm pouquíssi- medida em que as grandes reuniões de massas, os desfiles militares, os
mos méritos artísticos, mas transformados em canções podem enrique- movimentos conjuntos de ginástica, acompanhados ou não por slogans,
cer-se com o efeito musical, assim como os maus libretos de óperas são cantos, coros falados (nos anos 30), têm os mesmos intuitos de aguça-

-235-
--234-

I.
;

,J
mento de um sentimento de vínculo e de coesão, de reanimação dos
entusiasmos, de propagação de uma ideologia e de reafirmação do laço
estreito entre sociedade civil e sociedade política. O Presidente da Re- Personagens simbólicas. - Nesses ntuais de encontro, as organi-
pública pode ter vindo de uma classe média, mas quando se toma pre- zações públicas têm seus representantes que manifestam os diferentes
sidente, sua aparência assume um caráter solene e majestoso, especial- lugares e instâncias do poder. Sua cooperação litúrgica deseja servir
mente na televisão. Ele simboliza um povo e, ao mesmo tempo, a su- como testemunha de uma ação polftica executada fora do nto. Seu lu-
posta perfeição dos princípios da democracia. Deve portanto convencer gar e seu papel no rito podem até mesmo significar, como nas tribunas
seu auditório, não apenas que representa, mas que organiza uma comu- da Praça Vermelha, a respectiva posição dos indivfduos na partilha dos
nidade encarnada nele. poderes de direção do Estado num momento dado.
"Quanto mais a situação social exerce pressão sobre as pessoas
Mais facilmente do que outros, os regimes totalitários criam-se he-
nela implicadas, mais a demanda social de conformidade tende a ex-
róis que personificam os valores pregados pelo regime. Aliás, a te~­
pressar-se através de uma demanda de controle físico", afirma Mary
dência à proliferação dos heróis pode ser considerada tanto, senao
Douglas (Douglas, p. 93). Por isso estão excluídas dos rituais políticos
mais, como um traço da cultura popular quanto do regime polftico. No
certas perdas de controle que podem aparecer em ritos para religiosos:
Senegal, a "hagiografia" de Lat Dior acrescenta-se à de Amadou Bam-
transes, movimentos estáticos ou selvagens, aparências não convencio-
ba. Na Guiné, as "gestas" de Soundiata Keita, de Kankou Moussa, de
nais. As marchas ritmadas (ou as marchas de apoio), os desfiles, sauda-
lbrahima Sori Mawdo, de El Hadji Omar, são substituídas pelas de Sa-
ções, porte de bandeiras, juramentos, entrega de condecorações, cons-
miri Touré, Alfa, Yaya, Dinah Salifou, lbrahima N'Dama e do Wali de
tituem os ingredientes de muitas liturgias políticas. Em muitos dos no-
Goumba: personagens que emergiram na instabilidade das lutas anti-
vos Estados, e não apenas em suas milícias, o prestígio do militar de-
coloniais, que foram ritualmente estatuificados, ritualmente cantados
termina os ritos fundamentais da saudação, da posição de sentido, do
pelos feiticeiros do Partido, e cuja vida resumida tem sido ritualmente
passo cadenciado, do alinhamento perfeito, do canto marcial a uma só
voz ou em coro de muitas vozes, e através disso o povo consegue na recitada pelos alunos do liceu nos cursos de história, até que eles seJam
sua imaginação se identificar com os combatentes e defensores da pá- ritualmente destituídos.
tria, com a ação severamente controlada e coordenada. Tanto as tradições políticas quanto as religiosas tiveram muitas ve-
As festas esportivas, minuciosamente preparadas, realizadas dentro zes a necessidade de incorporar-se num personagem simbólico: herói
da ordem e do rigor reforçam o espírito de responsabilidade, de autodis- fundador, profeta, messias que marca, asslffi como o ancestral na Áfri-
ciplina e de amizade entre os participantes. Na África, o resultado espor- ca, a continuidade do phylwn social e confere a seus admiradores o
tivo está a tal ponto ligado à honra nacional que após ter fracassado na sentimento de um arraigamento histórico. Surgindo geralmente em pe-
final da Copa da África contra a Argélia, o time da Guiné foi dissolvido ríodos de instabilidade e de rápida mudança sociocultural, mais morto
pelo chefe de Estado e o ministro dos Esportes demitido de suas funções. do que vivo, o herói (algumas vezes em dueto, como M~rx _e Engels,
Eixo de nossa inserção no mundo, o corpo dirige habitualmente em trio: com Stalin, em quarteto: com Mao) a quem se atnbu1 as quali-
aos outros atores sociais um repertório de gestos codificados, especial- dades extraordinárias do líder carismático modelo, aparece como a le-
mente no esporte, mas ele é também o suporte de identificação does- gitimação de um sistema de crenças e de práticas. Ele dá forma con-
tatuto social. Não mais o cavalo imperial, mas uma viatura blindada e creta à ideologia, na medida em que representa alguns valores e ?ormas
conversível, onde o chefe, em cortejo, manifesta a glória do poder vito- fundamentais do sistema, e na medida em que sua presença considerada
rioso. Apertos de mão e abraços em soberanos, banhos de povo, dizem constante ("Lenin está sempre entre nós") assegura o mesmo tipo de
mais do que hospitalidade: a amizade dos povos, que também comun- vigilância das condutas que seria feito por um ser espiritual no quadro
gam pelo banquete, e por procuração lendo o menu dos príncipes, de de uma religião, apesar do seu culto continuar sofrendo fases de am-
quem fizeram heróis. pliação, de eclipse, de ressurgência de acordo com as conjunturas polí-
ticas (cf. Nkrumah).
-236- Força física e força militar (Hinderburg), saber e superioridade

-237-
j

d~utrln_al (Lenin), eleição pela Providência (Hitler), encarnação das sistemas, quem sabe aos dois de acordo com as conjunturas e os mte-
~itas virtudes de um. povo ~Churc?ill, de Gaulle) ou das virtudes mé- resses em questão.
as (Doumergue, Pmay) sao os mgredientes da fabricação do her6i Os dois registros são empregados consecutivamente. Por isso o
que pode pertencer aos tipos libertador, vingador ou márf o ·d ' culto dos ancestrais é transposto para a esfera polftica moderna: "I-
saído do povo (M r ·) rr. u ru.n a,
usso iru ' ter guebrado importantes barreiras sociais e mortalizemos para sempre o camarada Marien Ngouabi, fundador do
t~r-se tomado célebre através de sua personalidade excepcional exem- nosso partido, o Partido Congolês do Trabalho, através do esclareci-
~ ar tanto em sua força quanto em suas fraquezas que o tornam humano mento ideol6gico e da unidade no seio do partido", diz o coronel Denis
semelhança. de Labdacos (o coxo), Laios (o canhoto), Édipo (o pé in- Sassou Nguesso em seu discurso de abertura do Ili Congresso extraor-
chado) ~o ~to grego. Ou ainda ter contribuído através de uma obra dinário do Partido em 26 de março de 1979.
extraordmária
. , para
. o. bem comum, muitas · vezes ao preço de um sacrifí- E a Revue du Centen.aire, 6rgão do comitê de organização do
cio ~o:.soal que Justifique a sua elevação ao pedestal como Lincol centenário de Brazzaville (setembro de 1980), enuncia a relação privi-
Washington · A posteriori,
· · considera-se
· que ele abriu' caminh0 n ou legiada de todo congolês com o ancestral mártir, já agora objeto de um
gresso da sociedade. ao pro- culto, que retorna em seu sucessor no poder, o "coronel Sassou Ngues-
so, continuador da obra do Imortal", segundo um slogan radiofônico.
Imo~alizado pelo imaginário político (cartazes, selos, monumentos
"Se Manen Ngouabi foi fisicamente assassinado, ele está vivo em nos-
aos glonosos filhos do país), o her6i é associado à criação da socieda-
sos corações, em nossas consciências e em nossa prática cotidiana. Vi-
de, ao .seu combate pela sobrevivência e ao seu triunfo contra todas as
vo no Partido Congolês do Trabalho, ele alcançou uma forma superior
a~v~rs~dades. N_a U~SS, o heroísmo se refere principalmente a três tra-
de vida, a forma imaterial e intemporal. Ele alcançou a imortalidade".
d1çoes. revolucionária (Lenin), patri6tica (Alexandre Newsky) e tra-
E o juramento para solenizar a ligação a um esquema político. "Pres-
b~had?rª. (Stakhanov). Enquanto o her6i celebrado nos anos 20 é 0 he-
r61 solitário , partidár. tando o Juramento de fidelidade à mem6ria do camarada Marien
. . 10 est6.1co, senhor de seus sentimentos para fazer a
Ngouabi, nosso povo assumiu o compromisso solene de fazer triunfar
ca~sa revoluc1~nária, quando se instala o stalinismo, ao lado da perso-
os nobres ideais pelos quais o seu guia derramou seu sangue. Aí está
n~1dade do Pru. dos povos se desenvolve o culto do trabalhador encar-
um grande desafio lançado ao imperialismo... A missão hist6rica que
ruçado que pro~uz uma obra qualitativa e quantitativamente fora do
nos compete é continuar a obra de Marien Ngouabi" (discurso pronun-
~omum: ~ míd~a . contribui bastante para a fabricação dos her6is da
ciado em 28 de março de 1979). Imortalidade, forma de vida intempo-
com~tiçao socialista na empresa ou no esporte, mas sua popularidade
ral, nobres ideais; eis uma linguagem bem religiosa para sacralizar o
se extmgue com a mesma rapidez que surgiu.
her6i!
.º. desa~adável é q~e eles estão vivos, que seus comportamentos O culto se acrescenta ao mito e assume diversas formas: a de uma
postenore~ n~o necessanamente corurrmam a estatura excepcional que representação figurada durante os principais ritos e nas telas a da pere-
: ~esl atn~bw. no momento do apogeu, que eles mesmos estão sujeitos grinação ao seu tl1mulo ou à sua estátua erigida numa praça central, a
º. so escencia. I?~and, o homem mais condecorado da França, foi atribuição de seu nome a uma ordem de mérito nacional, a lugares põ-
fuzdado ~r ter dm~1do os serviços de manutenção da ordem em Vi- blicos, a uma promoção de categoria, a da organização de conferências
chy: Os qwnhentos her6is do Trabalho socialista" entre os 1.400 000 e círculos de estudo referentes à sua vida e à sua obra, a da apresenta-
habitantes do. Dagestão (Lane, p. 209) não parecem mais honrado~ do ção em obras pedag6gicas, de sua conduta como modelo a ser imitado
que os cavalerros da Ordem do Mérito na França. pelas gerações jovens, a da comemoração de seu nascimento e de sua
~a Áfric~ sã? uti1:izados dois registros simbólicos para legitimar 0 morte, etc. Na Bélgica; por exemplo, determinado burgomestre, deter-
~~íuco: r~ferencia o~ à tradiç~, ou à ação revolucionária. Muitas ve- minado escabino, ainda vivo, apresssa-se a dar seu nome a uma rua,
~s os antigos p~oced1~ntos ntuais se mantêm, permitindo a possibili- uma escola, uma creche, uma piscina de natação...
uade de conduzir um JOgo duplo referindo-se a um ou a outro desses

-238- -239-
"Se a adnúnistração militar fosse bem feita, dizia divertidamente
Louis Jouvet, não existiria soldado desconhecido". Mas como ele
Constelações de sfmbol.os
existe, tomemos esse exemplo do herói anônimo em Paris, para esclare-
cer o acúmulo dos símbolos sacralizados da honra nacional.
Mais fecunda do que a simbólica dos objetos, a simbólica dos he-
Alguns ossos guardados, relíquias de vida, piedosamente conser-
róis se inscreve na maior parte dos rituais poHticos. Aliás, entre os
vadas no seio da terra mãe, de um macho tombado "no campo da hon-
símbolos observa-se um forte grau de congruência que permite conside-
ra", testemunham ao mesmo tempo o valor militar, uma glória do pas-
rá-los como constelações de onde alguns ressaltam como símbolos-cha-
sado e o gesto mais heróico: a morte em defesa da pátria. Terra mãe e
ve. Para distingui-los, S.B. Ortner propõe vários critérios num estudo
campo da honra são repetidos através da sacralização do solo no lugar
onde identifica como tais: os que suscitam maior interesse cultural, ou
do túmulo. O monumento ao nível do solo ocupa um lugar central na
seja, aqueles que os autóctones consideram como os mais importantes;
os que parecem mais excitantes positiva ou negativamente; os que apa- encruzilhada da Etoile, praça circular valorizada por um arco de triunfo
cuja curva dos arcos repete a plenitude do sagrado (curvilíneo nos mi-
recem no mais das vezes em contextos e domínios diferentes; os que
tos), enquanto a massa vertical significa a potência do militar e dopo-
são particularmente elaborados com relação a outros fenômenos cultu-
lítico tanto no centro da nação quanto no coração da capital. Esse es-
rais; aqueles onde o .lbuso e o mau uso é mais cercado por interditos
(Ortner, pp. 1338-1346). paço é um lugar ordenado que define operações de contato, mas tam-
bém onde se alternam o profano da circulação e o sagrado dos ritos de
. . Apenas um. exame empírico pode defini-los caso por caso, e espe-
c1f1car as combinações originadas de circunstâncias históricas, ecológi-
1.
1
deposição de ramos e da flama reavivada. O ramo, símbolo vegetal, re-
pete a vida e a "glória imortal de nossos antepassados". Sendo em
cas, culturais. Onde são raros os símbolos artísticos (pintura, escultura,
dança, música), outras formas simbólicas podem substituí-los, podendo azul-branco-vermelho, ele repete a noção de pátria e as cores da ban-
deira que tremula sob o arco do monumento. A flama, símbolo de vida
a mesma função ser preenchida por uma grande variedade de formas
e de imortalidade, testemunha com redundância a vitalidade de um pas-
simbólicas. Assim sendo, poderemos revelar por exemplo como sím-
sado cuja memória é guardada pela sociedade. Quando ali se reúnem
bolos de identidade de um grupo, tanto os emblemas, marcas faciais
mitos de origem quanto os sl.ogans, títulos, hinos patrióticos, segundo ~
autoridades, representando um poder na nação segundo um protocolo
rigoroso, tanto no mundo religioso quanto no militar, elas mantêm as
caso. Mas um maior interesse reside especialmente no fato de apreen-
distâncias convencionadas, indicando a sacralidade do solo e o respeito
der como os símbolos se incorporam nas relações de poder e como o
sistema simbólico unifica o político e o humano, o paternal e o religio- devido aos cerimoniais representativos. Sobre roupas de passeio ouso-
so, na medida em que são sistematizados entre si, no quadro das ideo- bre uniformes, condecorações e insígnias especificam o valor, militar e
logias e dos ritos, aos mesmo tempo os símbolos de ordem política e os civil, dos portadores. Passos medidos, tempo medido, colocação dos
protagonistas, cordão de representantes da força nacional para conter a
símbolos dos problemas existenciais: vida e morte, bem e mal, sucesso
multidão, bandeiras tremulando, têm o mesmo significado de respeito
e insucesso ...
por uma ordem social que transcende o indfviduo. Esse lugar de per-
Uma parte bastante interessante das pesquisas de J.-P. Sironneau
cepção de uma soberania sacraliza-se ainda mais através dos símbolos
consiste então, nas dltimas páginas, em: "1 I delimitar as constelações
fônicos convencionados: por um lado de caráter militar: rufar de tam-
simbólicas essenciais subjacentes às ideologias analisadas; 2 / estabele-
bor, soar de clarim... por outro lado de caráter religioso: núnuto de
cer correspondências entre essas constelações e as constelações simbó-
licas (ou estruturas míticas) das religiões tradicionais; 3 / demonstrar silêncio, ersatz de prece...
Dotado com o peso simbólico de uma centralidade ao mesmo tem-
de que maneira tudo isso se traduz no discurso secularizado da ideolo-
po transparente (o monumento) e oculta (o enterrado), o santuário se
gia" (Sironneau, p. 534). O que ele tentou a propósito do nazismo e do
apresenta como um lugar de exceção: lugar de ordenação rigorosa, lu-
comunismo, poderíamos transpor para qualquer religião política de-
gar de observância de um gestual ritualizado, lugar de compensação no
monstrando, não mais no nível do mitos, mas no nível dos ritos, como
nelas se agregam os símbolos.
-241-
-240-
imaginário daquilo que a frágil poética do cotidiano recusa, lugar da zantes nas sociedades arcaicas, as sociedades industriais acentuam o
difusão de uma força e ponto de apoio da ordem estabelecida repetida uso das palavras, dos sons, das representações gráficas. A arte e os mí-
através de símbolos redundantes. Lugar enfim dos tabus de uma ruptura dia têm de fato um vasto impacto sobre as populações, até mesmo as
da ordem: não se poderia acender sem sacrilégio o cachimbo no tõmulo populações dispersas. Além disso, a técnica serve, por um lado, como
do soldado desconhecido. suporte para o desenvolvimento desses mídia, e por outro lado, como
Os mesmos símbolos percebidos nos casos precedentes certamente mito dos tempos modernos. Assim como o ensino utiliza novas técnicas
reaparecem em outros contextos rituais, combinados com outros sím- de aprendizagem, o político domina, através dos mídia, os principais
bolos de uma grande variedade léxica. Em constelações, têm como ca- canais de fabricação e de imposição de símbolos. Os próprios mídia
racteres sua repetição, sua possibilidade de permuta ou seu valor subs- pretendem representar de maneira acentuada, senão solene, e freqüen-
titutivo. De acordo com o rito eles de fato podem variar sua semântica temente através da visualização de cerimônias, protocolos e liturgias, o
e sua sintaxe. Para que haja rito, não basta um estoque de símbolos (i- vivido nacional como sendo fundamentalmente o vivido da sociedade
magens, gestos, palavras, lugares, tempos), é preciso também significa- política. Um vivido teatralizado como fundamento de integração social!
dos fortes e códigos, ou seja, regras de emprego e de composição mi- A simbólica ritual do político faz alusão assim a um saber referente
nuciosa, assim como regras de deciframento que preexistam ao próprio a uma história, um lugar geográfico, a acontecimentos e pessoas repre-
rito. Esses códigos, na verdade, não existem manifestamente, exceto sentativas de uma comunidade. Mas se ela estoca informações, faz
nos protocolos e nas ideologias políticas, eles se elaboram inconscien- também referência aos valores decisivos dessa comunidade, de que o
temente a partir do fundamento cultural onde se superpõe a cultura po- poder aparece como guardião, após tê-los ordenado no seio de uma es-
lítica. É à substância do espírito humano que pertence a dimensão sim- trutura ideológica. E através dessa simbólica se realiza um laço entre o
bólica. E nesse tesouro, os mitos e os ritos, as ideologias e as liturgias indivíduo, o grupo que adere aos mesmos valores e as autoridades que
se embebem incansavelmente.
representam o povo. Esse laço está codificado numa estrutura dramáti-
ca onde os atores estão liturgicamente definidos, sendo o homem na
Conclusão
ação ritual o símbolo de seu papel e não o irrelevante da vida cotidia-
na.
Não há dõvida de que, no mundo contemporâneo, existe uma reor-
ganização da simbólica social, através do desinvestimento de gestos
percebidos e vividos como religiosos, para investir outros em funções
Bibliografia
homólogas. Se as transformações elaboradas numa perspectiva socio-
política marcam rupturas com simbólicas e formas religiosas tradicio-
nalmente recebidas, a profanação dos vividos simbólicos parece cami-
Agulhon, Maurice, Marianne au combat, 1789-1886, Paris, Aammarion, 1979.
nhar ao lado de uma correspondente sacralização dos compromissos
Alleau, René, La science des symboles, Paris, Aammarion, 1958.
profanos. Mas a simbólica política, relativamente unívoca, não possui a
Douglas, Mary, Natural symbols. Explorations in cosnwlogy, Londres, 1970.
luxõria afetiva de que são portadoras as religiões populares. Com rela-
Duncan, Hugh, Symbols in society, Oxford University Press, 1968.
ção a estas, as liturgias políticas marcam uma redução temática dos
Durand, Gilbert, L'imagination symbolique, Paris, PUF, 1964.
símbolos. Com algumas exceções, elas têm pouca profundidade históri-
Firth, Raymond, Symbols, Private and Public, lthaca, Cornell University Press,
ca e poucos modelos a copiar. Nelas, as camadas de significado sedi-
1973.
mentam-se menos rapidamente do que nos rituais religiosos, e com fre-
Isambert, François-André, Le sens du sacré, Paris, Minuit, 1982.
qüência os novos rituais carecem de profundidade emocional ou de Lane, Christel, The rites of rulers, Cambridge University Press, 1981.
substrato ideológico.
Moulin, Léo, Les socialisations, Gembloux, Duculot, 1975.
Em lugar do imediato e do concreto que dominam como simboli-
Nora, Pierre, Les lieux de ménwire, Paris, Gallimard, 1984.
-242-
-243-
~rtner, S.B., On k:y symbols, American Anthropologist, 75 (5), 1975.
Sironneau,
• Jean-Pierre, Stcularisation et religions p o 1 1ques, pans,
l't' · M outon,
1982
EPÍLOGO

Esse percurso através de fatos e idéias é suficiente para nos con-


vencer de que o ritológico está longe de se esgotar com as explicações
da nústica eclesial, da antropologia religiosa ou de uma psicanálise la-
caniana à maneira de Maertens. De agora em diante o campo do políti-
co lhe está aberto, o que reclama exegeses circunstanciadas, ainda que
ele possa situar-se na continuidade da formalização ritual do religioso.
Assim como a liturgia cristã rebatiza antigos santuários pagãos,
adota velhas tradições cerimoniais e declara santas personagens herói-
cas ou núticas (como os arcanjos), assim também as liturgias políticas
de 1789 ou do socialismo procuram profetas, glorificam ancestrais-pre-
cursores, honram grandes figuras com iconografia de apoio, recuperan-
;~:
do assim alguns traços principais dos ritos religiosos. A ordem republi-
cana tem suas festas comemorativas, seu catecismo, e sacrifica aos no-
vos avatares do divino: o Trabalho, o Estado, a Ciência, o Progresso. f:
~:
Os chefes políticos são vistos como figuras carismáticas. Durante as (1
·1
eleições nacionais, por algum tempo seu espetáculo suplanta o dos
·~,,
ídolos de variedades. As boas representações teatrais e os restos de
1

bravura, endereçados ao registro passional, recebem ou não a recom-


pensa do voto, assim como a obediência e o respeito aos rituais de
corte atraíam outrora os favores do rei-pai.
Desde a época de nossos reis, os filhos de Marx e da Coca-Cola
denunciaram como arbitrários certos ingredientes da cultura humana,
como os mitos, os ritos e os interditos, mas criaram outros igualmente
arbitrários. J.-P. Dupuy em L' enfer des choses (Seuil, 1979) sugere que
na sociedade moderna a economia represente, em certo sentido, o papel
que o sagrado representaria nas cidades tradicionais, produto da indife-
renciação e não da diferenciação.
Mas a economia não apagou realmente o religioso. "Sob certos as-

-245-
-244-
pectos, poderíamos dizer que no homem das sociedades dessacralizadas pais de enculturação. Do augusto ao santo, bastam algumas liturgias
a religião tomou-se inconsciente; ela jaz sepultada nas camadas mais para superar a distância. Que o além seja mais tênue num caso do que
profundas do seu ser, mas isso não significa que não continue preen- em outro, não se pode negar. Mas no fim das contas, será a idéia de um
chendo uma função essencial na economia da psique" (M. Eliade, Ini- além parte integrante da sacralidade? Em caso afinnativo, como conce-
tiations, rites, socMtfs secretes, Gallimard, 1976, p. 270). "As festivi- ber esse além? Além da vida terrestre, objeto de esperança? Além do
dades e os divertimentos de uma sociedade a-religiosa, ou pretensa- mundo humano, objeto de ficção? Além dos poderes individuais com
mente tal, as cerimônias públicas, os espetáculos, as competições es- relação a uma força superior e oculta? De que desejamos falar? Do
1 portivas, a organização da juventude, a propaganda através das ima- atraente e do terrificante? Do fascúúo daquilq que o indivíduo conside-
li
gens e dos slogans, a literatura de grande consumo popular, tudo isso ra superior a ele e do medo da coerção em caso de tentativa de trans-
ainda guarda a estrutura dos súnbolos, dos ritos e dos mitos, ainda que gressão ou de ultrapassagem do manifestado para sondar o dissimula-
desprovidos de conteúdo religioso" (ibid., p. 269). do? Assim sendo, estarão realmente o político e o social fora da esfera
Se as dessacralizações apareceram como necessidades concomi- daquilo que poderíamos chamar de sagrado moderno?
tantes à mudança social, ao desenvolvimento e à revolução, as sacrali- De fato nossa obra se esforçou para demonstrar que a modernidade
zações projetivas, ap6s a fase de profanação da ordem anterior, também não se constitui em oposição à lógica do sagrado. A diversidade das
parecem inevitáveis em política. Ao mesmo tempo que a racionalização liturgias expostas na primeira parte não exclui uma metodologia inter-
e a desmistificação continuaram sua progressão desde o advento do pretativa que se possa aplicar, com certas modulações, ao conjunto dos
humanismo até o Renascimento, criou-se um estado de carência no ho- rituais. Por isso passamos dos casos históricos particulares à explicação
mem, privado da razão de ser que ele busca fora de si. A religiosidade das recorrências nas liturgias políticas sem omitir as relações com a
em esporádica ressurgência investiu-se aqui nos cultos do campeão, de análise dos rituais religiosos.
Miss Universo, das divas, dos ídolos do show-biz; ali nas medicinas pa- Percebemos que através do problema específico das liturgias polí-
ralelas, nas seitas ou nos terrores milenaristas. E nossa época enuncia ticas subjazem dois outros problemas: a ideologia que as motiva e a so-
sem dúvida menos, o que quer se tenha dito, o fim do político ou o fim cialização política que pretendem realizar. Sem abordá-los plenamente,
das ideologias, do que anuncia o retorno proteiforme de um sentimento o que exigiria outros estudos, é possível no entanto sugerir um debate
do sagrado. Será que a pretensa perda do sentido do misterioso e do sobre esses temas. Devemos conceber a ideologia, e nesse caso qual
esotérico acompanha realmente o advento da técnica, no momento em dentre as ideologias atuais, como o referente conceitua! e ético do rito
que a substituição do homem pela técnica engendra nele o temor de que seria sua tradução gestual e verbal? Na verdade, se tradução existe,
perder o seu emprego, o medo de não mais dominar de fato as suas ela permanece fragmentária. Se o rito incorpora elementos da ideolo-
produções e tornar-se sua vítima alienada, e até mesmo o pavor de per- gia, ele o faz de maneira seletiva e sublinhando alguns componentes.
der sua vida numa catástrofe nuclear? Os elementos escolhidos ou omitidos servem como indicadores da in-
Tais sentimentos evidentemente favorecem o desenvolvimento terpretação atual e oficial proposta pelos poderosos. De fato, numa
anárquico da religiosidade. Eles podem também favorecer a sacraliza- ideologia existe uma diferença entre o programa a longo prazo e o pro-
ção dos poderes. Sob um certo ângulo, o político é o trabalho da razão grama que é pertinente no real, entre o estabelecimento no abstrato e o
social, assim como a religião é o trabalho da razão teológica, sobre a não codificado, o negociável, o concretamente modificável. A linha sa-
dinâmica infra-racional da religiosidade. Instituições religiosas e insti- cralizada, enunciada como imutável, na realidade sofre mudanças em
tuições políticas são isomorfas enquanto estruturas reguladoras das virtude de sua inscrição numa temporalidade dada. Seria então interes-
condutas enquanto feixes de simbolismo. Ainda que particulares a gru- sante saber por exemplo porque a liturgia se torna tão importante em de-
pos, o religioso e o político pretendem a universalidade e designam-se tenninada fase do desenvolvimento de uma sociedade, e de que maneira
como instituições de função normativa. Eles remetem a ideais e a valo- seus sucessos e seus fracassos por sua vez influenciam não apenas a im-
res situados no ápice de uma hierarquia de sentido e são lugares princi- posição ideológica, mas a reorientação e o enriquecimento da ideologia.

-246- -247-
Sublinhamos o caráter teatral de toda liturgia, mas podemos per-
guntar se o decoro, o aspecto festivo não contribuem para deformar de outros indícios além daquele muito aleatório da participação volun-
a ideologia traduzindo-a em símbolos sensíveis mais atraentes do que a tária ou imposta. Nós dissemos quais poderiam ser os impactos do rito
idéia que eles expressam. Depois de Marx, a ideologia foi freqüente- e as causas do desamor. Mas todo desamor é apenas transitório e a
mente definida como falsa consciência, como velamento, como deslo- história não pára de nos revelar ressurgências: ressurgência do religio-
camento do lugar da explicação. Mas será verdade que ela 'oblitera so no político, ressurgência da ritualidade através de suas diversas for-
sempre as relações de poder e de exploração? As liturgias dos reforma- mas, ressurgências da fé nas religiões seculares (da ciência, do lazer,
dores do século XIX ou dos ecologistas atuais não têm os mesmos sig- da autoridade ...) depois que o Ocidente se libertou do primado da
nificados das liturgias no nazismo ou do comunismo. Entretanto, o mo- instituição eclesiástica. O político é apenas um dos domínios onde se
vimento de protesto social pode também sossobrar pouco a pouco na investe a religiosidade. Possa o nosso procedimento exploratório levar
cegueira que ele denuncia tentando estabelecer uma espécie de bem a uma compreensão melhor dos jogos de cena políticos, e possam al-
válido universalmente. Por outro lado, será que julgando a força de gumas de nossas maneiras de percepção fecundar por extensão uma
uma ideologia pela sua potência de mobilização no rito, não estaremos análise daquilo que recentemente foi chamado de religião da vida coti-
arriscados a nos enganar sobre o seu arraigamento, sobre a sua força e diana.
sobre a sua potência de mobilização na vida? Um novo regime faz ra-
pidamente varrer o antigo, seus ideais e seu teatro.
No entanto, a liturgia política é mesmo o instrumento de uma or-
ganização cultural, mesmo quando leva a um certo conservadorismo,
como foi percebido a propósito das liturgias nacionais. Se a diversida-
de das religiões e dos partidos na mesma nação pode levar a particula-
rismos, a religião política pode parecer mais unificadora, estando a
cultura secular (assim como a cultura clerical de uma certa época) na
raiz de formas de sentimentos muito comunitários. Evidentemente, a
organização .cultural é mais pronunciada nas sociedades de partido óni-
co, com uma elite orientada por intuitos claramente enunciados tais
como a modernização rápida, industrialização, reconstrução econômica
e social após uma derrota militar, uma dominação colonial ou uma de-
sordem interna. Em contrapartida, a organização cultural é menos pro-
nunciada nas sociedades pluralistas e nas liturgias nacionais (diferentes
das nacionalistas). Entre uma revolução cultural e uma organização
cultural, a diferença é mais de grau do que de meios utilizados. Esses
meios, especialmente rituais, são o instrumento de um normatividade
maior: normatividade do saber e da ideologia expressa através dos sím-
bolos estereotipados, normatividade afetiva através da canalização das
emoções individuais para uma estética coletiva, normatividade da ação
em torno de assuntos prioritários impulsionada pelo rito.
O intuito de toda liturgia política é exatamente o de fortalecer a
adesão às idéias que ela pretende absolutizar. E consegue? Parcial e
transitoriamente, sem dóvida, mas para decidir sobre isso precisaríamos

-248-
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NOTAS DA TRADUÇÃO

1. Catherine, catin ou catiche, mulher de má vida, de maus costumes.


2. lrorua que confunde basses-cours, terrenos anexos às propriedades rurais
onde era criado o gado miúdo, com as (baixas) Cortes alemãs.
3. te chêne = o carvalho, venerado pelos gauleses; te peuptier = o choupo,
mesma raiz de povo, lat. poputus.
4. "Às armas salsicheiros. Tomai vossos aventais. Picai, picai todos os curas.
Nós deles faremos patês".
5. affoutement.
6. surptombant é o que está fora do prumo, o que pende para dentro ou para
fora em relação ao prumo.
7. Plataforma, prestando-se em francês a um jogo intraduzível: ptate = chata,
lisa + f onne = forma.
8. pagnes, tipo de vestimenta africana.
9. venationes, lat. caçadas de animais selvagens.
10. "étéphantesque" em francês.

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,.
, ..
consiste numa saborosa descrição das
festas ptlblicas na França. Assim co-
mo numa viva descrição das liturgias
(a palavra liturgia é aqui empregada
no sentido etimológico, de trabalho ou
ação de ou para todo o povo) dos to-
talitarismos de esquerda ou de direita
(Hitler, o grande mestre de cerimô-
nia); das democracias ocidentais e, fi-
nalmente, dos jovens países africanos,
autocráticos ou mesmo democráticos,
terminando pela coroação do Impera-
32
R62 dor Jean Bedel Bokassa, num ritual
Ri~ bastante parecido com o da sagração
As de Napoleão.
Segue a segunda parte que trata
das "Interpretações Sociológicas", em
quatro capítulos.
A questão que perpassa pela obra
de Riviêre é, evidentemente, a do de-
sencantamento da própria sociedade.
Trata-se na base, em linguagem meio
de Weber e meio de Durkheim, do
problema da legitimação e da coesão
sociais.

Claude Riviêre, professor da Univer-


sidade de Paris V, foi durante oito
anos diretor de Faculdade na Guiné e
Chefe de Departamento na Universi-
Composto e impresso nas oficinas gráficas da dade do Togo.
IMAGO EDITORA
Rua Santos Rodrigues, 201-A
Rio de Janeiro - RJ

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