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Ricardo Vasconcelos. Uma Carta Inedita D
Ricardo Vasconcelos. Uma Carta Inedita D
* Universidade Estadual de San Diego (Califórnia), Departamento de Espanhol e Português.
Vasconcelos Uma Carta Inédita
É célebre a narrativa segundo a qual, após o suicídio de Mário de Sá-‐‑Carneiro em
Paris, a 26 de Abril de 1916, os seus pertences, incluindo os manuscritos — de
prosa, poesia e correspondência — terão sido guardados numa mala, como
garantia de ulterior pagamento das despesas do escritor. Segundo a mesma versão,
entretanto cristalizada, em parte pela grande influência de João Gaspar Simões,
que a divulgou, as tentativas de Fernando Pessoa para que Carlos Ferreira
conseguisse aceder aos conteúdos da mala em causa, materializadas numa carta
enviada ao Gerente do Grand Hôtel de Nice, a 26 de setembro de 1918, terão sido
infrutíferas, tendo mais tarde Carlos Augusto de Sá-‐‑Carneiro, pai do poeta,
resgatado essa mala, sem que no seu interior estivessem já quaisquer papéis.
Esta leitura era respaldada por correspondência de Carlos Ferreira e José
Araújo1, as duas pessoas que mais de perto cuidaram dos trâmites relacionados
com a morte e o funeral do escritor. Refiro-‐‑me à correspondência enviada de Paris
a Fernando Pessoa, entre 27 de abril e 10 de maio de 1916, cartas estas que
integram o espólio pessoano na Biblioteca Nacional de Portugal (vd. SÁ-‐‑CARNEIRO,
2015: 531-‐‑535). Aí se vê Carlos Ferreira, por exemplo, expressar alguma frustação
com a situação em causa e em particular com José Araújo, indiciando, contudo, que
a problemática dos manuscritos não estava ainda definida nos termos que depois
se veio a conhecer:
Peço-‐‑te que falles já com o avô e que lhe digas para telegraphar ao Consul mandando-‐‑o
entregar-‐‑me todo o espolio do Mario. Ha papeis importantes de literatura que desejo
adquirir para comtigo publicar esse livro de ineditos. O José Araujo, pelo facto de ter uma
carta do Mario para tratar de varios assumptos julgou-‐‑se no direito de guardar tudo em seu
poder. É um illetrado, não comprehende estas coisas. Faze isto, pelo bom nome do Mario e
o avô que me escreva dizendo o destino que devo dar ás coisas d’elle ou se quer que as
guarde [até] nova ordem. Portanto telegraphar ao Consul para que este diga ao Sr. Araujo,
por ordem da familia, de me entregar tudo. Trata já e telegraphem já.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2015: 531)
Em contrapartida, já a 10 de maio, José Araújo escreverá a Pessoa,
indicando-‐‑lhe que os manuscritos de Sá-‐‑Carneiro estariam, em geral, guardados:
Todos os papeis que encontrei e cartas, tudo está fechado n’uma mala, o mesmo tambem
com fatos, roupa branca, chapeus, escovas, tudo, inclusivè os mais insignificantes objectos.
Sobre o que o meu amigo pede os papeis não os posso mandar já pela seguinte razão. Sá-‐‑
Carneiro devia no hotel uma conta, de 200 e tal francos, de maneira que como eu não posso
pagar essa quantia espero que qualquer parente me envie essa importancia, mesmo porque
eu não disponho aqui de muito dinheiro.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2015: 532)
1 Uso José Araújo, sem o “de” do seu nome, já que era assim que o mesmo assinava.
Até abril de 2017, sabia-‐‑se apenas que, desde essa carta, passariam mais de
dois anos até que, a 26 de setembro de 1918, Pessoa escrevesse e possivelmente
enviasse a já mencionada carta ao Gerente do Grand Hôtel, solicitando-‐‑lhe que
permitisse a Carlos Ferreira aceder ao conteúdo da mala — carta esta que adiante
se transcreve. Ora, na edição da Poesia Completa de Mário de Sá-‐‑Carneiro publicada
em abril de 2017, apresenta-‐‑se um núcleo até aí inédito de correspondência de
Carlos Ferreira e José Araújo a Fernando Pessoa, que está também presente na
Coleção de Fernando Távora. Trata-‐‑se de correspondência que, não esclarecendo o
que aconteceu aos manuscritos de Sá-‐‑Carneiro, apresenta novidades importantes.2
A correspondência até então desconhecida sucede imediatamente, em
termos cronológicos, aquela até aí divulgada. Por outro lado, essas cartas revisitam
vários dos mesmos temas — desde as críticas à mulher com quem Sá-‐‑Carneiro
mantivera uma relação nas últimas semanas da sua vida, à impossibilidade de se
mexer na mala, entretanto selada (SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 37 a 47).
Contudo, numa carta de Carlos Ferreira logo de 2 de maio de 1916, portanto
ainda anterior àquela de José Araújo, que já se conhecia, em que este indicava que
todos os papéis estavam na mala, Ferreira apresenta novos elementos quanto aos
manuscritos. No que diz respeito à prosa, e possivelmente a “Mundo Interior”,
manuscrito que Fernando Pessoa conhecera e pelo qual indagava, Carlos Ferreira
indica que “Acerca da nouvella o Mario só escreveu um pedaço muito pequeno
por signal. Está na mala” (SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 40).3 Outro elemento novo que esta
correspondência traz, contudo, é a correção da ideia de que todos os manuscritos
teriam entrado na mala. Isto porque, seis dias depois da morte do escritor, nessa
mesma missiva de 2 de maio de 1916, Ferreira anuncia a Pessoa:
Confidencial
Procedi á embalagem dos haveres do Mario em companhia do José Araujo, de quem já te
falei e que devias conhecer pelas cartas do autor da Confissão de Lucio. Consegui uma coisa,
para nós, importantissima sem que ninguem desse por ella: guardar os melhores ineditos
quasi todos. Desprezei apenas as notas ligeiras. Ninguem viu. Ora é preciso que me digas
os titulos de tudo quanto ahi tens, porque elle mandava-‐‑te copias, a fim de que eu possa
fornecer-‐‑te o que desconheces.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 559)
Segue-‐‑se a esta passagem uma lista de poemas, em que se reconhecem
vários títulos, embora não todos, com consequências importantes para o
entendimento e inclusivamente para a fixação da poesia de Sá-‐‑Carneiro, como
explico na introdução dessa edição. A última carta desse núcleo é de José Araújo,
2 Fernando Távora designa esta correspondência de ”lote 4”, como se lê na contribuição de
VIZCAÍNO (2017) para este volume da Pessoa Plural, em que se descreve o meta-‐‑arquivo na coleção.
3 Como expliquei já, não é de excluir que “Carlos Ferreira se referisse a um esboço da ‘Novela
Romântica’, que Sá-‐‑Carneiro mencionou por várias vezes a Pessoa ao longo dos seus últimos meses
de vida” (in SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 40).
de 18 de dezembro de 1916, e nela o amigo do escritor expressa frustração com a
situação em que se via, criticando os familiares de Mário de Sá-‐‑Carneiro,
reiterando que os pertences do escritor estariam ainda no hotel, e curiosamente
falando de malas, no plural, ainda que não se referindo especificamente a quaisquer
papéis:
Sobre o Sá Carneiro nunca mais recebi nada, creia que me causa bastante desgosto o
procedimento d’elle pois já 8 meses são passados e nem ao menos uma carta em resposta ás
minhas. As malas e outros objectos ainda estão no hotel em que Mario morreu pois como
elle tinha lá uma divida de 254 francos e eu também não posso dispor d’esta importancia, e
como de Lisboa a familia tão pouco caso tem feito.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 570)
Ora é esta, portanto, a informação mais próxima no tempo da única carta de
Fernando Pessoa ao Grand Hôtel de Nice que se conhecia até aqui, datada de 26 de
setembro de 1916, carta esta que consta no arquivo de Fernando Pessoa, com a cota
BNP/E3, 1142-‐‑46.
partndo 14'1,
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Figs. 1 e 2. Carta ao Gerente do Grand Hôtel de Nice (BNP/E3, 1142-‐‑46).
Transcreve-‐‑se em seguida o original, em francês, e a sua tradução, a partir
do volume Em Ouro e Alma – Correspondência com Fernando Pessoa (SÁ-‐‑CARNEIRO,
2015: 536-‐‑538).
[Transcrição]
Apartado 147,4
Lisbonne, le 26 septembre 1918.
Monsieur le gérant du “Grand Hôtel5 de Nice”,
29, rue Victor Massé, Paris.
Monsieur:
Dans la dernière lettre qu’il m’a écrite, Monsieur Mario de Sá-‐‑Carneiro, décédé le
26 avril 1916 à votre hôtel6, et qui était, comme sans doute vous le savez, un écrivain
distingué, m’a chargé de publier ses manuscrits7 inédits. J’en ai presque tous, mais il y en a
quelques uns — un surtout — qui sans doute sont restés8 dans la malle gardée par vous.
Comme il s’agit de manuscrits9 d’une importance strictement et exclusivement
littéraire, je vous serais bien reconnaissant si vous pouviez autoriser que mon ami, M.
Carlos Ferreira, qui vous est connu, les retire de la malle, pour m’en faire envoi, lors de son
prochain retour à Paris. Je pourrai, si vous le voulez, vous renvoyer ces documents aussitôt
que je les aurai copiés. En tout cas, M. Carlos Ferreira vous donnera tous les
renseignements et toutes les guaranties écrites que vous jugerez convenables. II est porteur
d’une letter de moi en confirmation de la présente.
Je sais bien que tout ceci ne devrait se faire que moyennant autorisation de M. le
major du génie Carlos de Sá Carneiro, père de M. Mario de Sá-‐‑Carneiro; vu, cependant,
qu’il n’est pas a Lisbonne, mais dans l’Afrique Orientale Portugaise (où il se trouvait déjà
lors du décès de son fils), et que je suis assez pressé pour la publication des manuscrits en
question, je me suis décidé à vous adresser sur ce point, en espérant de votre amabilité que
vous me concédiez ce que je vous demande.
Pour votre gouverne, je puis vous dire que le manuscrit10 auquel je m’intéresse le
plus, se compose de quelques pages (huit ou dix, tout au plus) avec le titre portugais
”mundo interior” 11 . Avec mes remerciements 12 , je vous prie d’agréer, Monsieur, mes
sentiments bien distingués.
4 Cita-‐‑se do aparato crítico: “Uma folha de papel, de 21,4 x 19,7 cm, com um timbre no canto inferior
direito ‘F. A. PESSOA | Rua do Ouro, 87, 2.o | Lisboa’, e marca-‐‑d’água ‘BRITISH BANKPOST’. O texto
encontra-‐‑se dactilografado a tinta azul. A firma F. A. Pessoa foi criada em meados de 1917 e, em
Dezembro do mesmo ano, mudou-‐‑se para a Rua do Ouro, 87, 2.o; inicialmente, esteve sediada na
Rua de S. Julião, 52, 1.o” (SÁ-‐‑CARNEIRO, 2015: 658).
5 Hotel ] no original.
8 <est>/sont\ resté[s]
[Tradução]
Apartado 147,
Lisboa, 26 de Setembro de 1918.
Senhor Gerente do “Grand Hôtel de Nice”,
29, rue Victor Massé, Paris.
Ex.mo Senhor:
Na última carta que me escreveu, o Sr. Mário de Sá-‐‑Carneiro, falecido a 26 de Abril
de 1916 no seu hotel, e que era, como sem dúvida sabe, um escritor distinto, encarregou-‐‑me
de publicar os seus manuscritos inéditos. Tenho-‐‑os quase todos, mas há alguns — um em
particular — que sem dúvida ficaram na mala que o senhor guardou.
Como se trata de manuscritos de uma importância estritamente e exclusivamente
literária, ficar-‐‑lhe-‐‑ia muito agradecido se autorizasse que o meu amigo Sr. Carlos Ferreira,
seu conhecido, os retirasse da mala, para mos enviar, quando regressar proximamente a
Paris. Eu poderei, se o Sr. assim desejar, devolver-‐‑lhe estes documentos logo que os tiver
copiado. Em todo o caso, o Sr. Carlos Ferreira dar-‐‑lhe-‐‑á todas as informações e todas as
garantias escritas que o Sr. julgar convenientes. Ele é portador de uma carta minha que
confirma a presente.
Sei bem que tudo isto deveria ser feito apenas com a autorização do Sr. Major de
Engenharia Carlos de Sá Carneiro, pai do Sr. Mário de Sá-‐‑Carneiro; visto, contudo, que ele
não está em Lisboa, mas na África Oriental Portuguesa (onde se encontrava já aquando da
morte do filho), e que eu tenho bastante pressa na publicação dos manuscritos em questão,
decidi contactá-‐‑lo a este respeito, esperando que, pela sua amabilidade, me conceda aquilo
que lhe peço.
Para seu governo, posso dizer-‐‑lhe que o manuscrito que mais me interessa é
composto de algumas páginas (oito ou dez, no máximo) com o título português “mundo
interior”.
Com os meus agradecimentos, peço-‐‑lhe que aceite, Ex.mo Senhor, os meus melhores
cumprimentos.
Deste mesmo documento existe uma cópia na Coleção Fernando Távora,
cuja origem é explicada pelo arquiteto, numa anotação: “O original desta carta
pertence ao espólio de F[ernando] Pessoa e foi cedido para figurar na Exposição
Biblo-‐‑Iconográfica realizada quando do I Congresso Internacional de Estudos
Pessoanos (Porto, Abril, 1978). <Figurou> (É o n.o 82 do respectivo Catálogo)”.
Lembre-‐‑se que é o próprio Fernando Távora quem procede à montagem desta
mostra, pelo que terá sido com naturalidade que conservou uma cópia do
documento.
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Fig. 3. Anotação de Fernando Távora acerca da cópia do documento
BNP/E3, 1142-‐‑46 na sua coleção.
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Fig. 4. Cópia de BNP/E3, 1142-‐‑46, na Coleção Fernando Távora.
Trata-‐‑se de uma carta em que Fernando Pessoa assinala, acima de tudo, a
sua autoridade para solicitar o envio dos manuscritos de Sá-‐‑Carneiro,
apresentando-‐‑se como o executor literário do seu amigo. Por outro lado, a carta
evidencia alguma pressa na obtenção dos materiais, que se poderia dever a um
projeto iminente de publicação dos textos de Sá-‐‑Carneiro, ou simplesmente ao
desejo de que a situação não se arrastasse, com maiores riscos de perda desses
materiais. Não terá sido alheio a esta pressa o facto de, aparentemente, Carlos
Ferreira estar nesse momento em Lisboa e prestes a regressar a Paris, como se
depreende da carta. Talvez fosse apenas essa oportunidade a conferir a
determinação a Pessoa para que assim procedesse.
Fig. 5. Descrição do lote 31.8 no meta-‐‑arquivo de Fernando Távora.
31.8 – duas folhas dactilografadas; a primeira<, original, contem> [↑ contem]
uma declaração do avô de M[ári]o de Sá Carneiro, datada de
21/Set[embro]/1918, a favor de Carlos Ferreira; a segunda, timbrada de
F.A. Pessoa, é cópia de uma carta <de F.P.> [↓ do poeta] dirigida ao
gerente do Grand Hotel de Nice e refere-‐‑se à celebre mala do Mário
(datada de 26/Set./1918).15
Esta segunda carta é dactilografada também a tinta azul numa folha da
companhia “F. A. PESSOA | Rua do Ouro, 87, 2.o | Lisboa”, como a primeira, que se
encontra na BNP. No verso, pode ler-‐‑se a inscrição a lápis “Lote 31.8”, pela mão de
Fernando Távora. Nela Fernando Pessoa reitera, essencialmente, as ideias
principais que já eram indicadas na primeira carta, a qual, apesar da sequência
indicada, terá evidentemente sido escrita ao mesmo tempo ou quase.
Apresenta-‐‑se em seguida o fac-‐‑símile desta segunda carta de Fernando
Pessoa ao gerente do Grand Hôtel de Nice, e a sua transcrição e tradução.
13 Veja-‐‑se, a este respeito, VASCONCELOS (2015).
14 Veja-‐‑se, sobre todo o lote 31.8, PIZARRO (2017).
15 Fecham-‐‑se os parênteses e acrescenta-‐‑se ponto final.
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Fig. 6. Original da segunda carta de Fernando Pessoa ao Gerente do Grand Hôtel de Nice,
na Coleção Fernando Távora (recto).
Fig. 7. Original da segunda carta de Fernando Pessoa ao Gerente do Grand Hôtel de Nice,
na Coleção Fernando Távora (verso); com a inscrição “Lote 31.8”.
[Transcrição]
Apartado 147,
Lisbonne, le 26 septembre 1918.
Monsieur le gérant du “Grand Hôtel16 de Nice”,
29, rue Victor Massé,
Paris.
Monsieur:
Comme suite à ma lettre d’aujourd’hui, que je viens de vous envoyer par la poste,
j’en écris la confirmation par la présente, laquelle vous sera présentée par mon ami, M.
Carlos Ferreira, dont il est déjà question dans la lettre antérieure.
Il vous donnera tous les renseignements nécessaires, et toutes les garanties écrites
que vous voudrez, afin que vous donniez votre autorisation pour que17 les manuscrits
purement 18 littéraires de feu M. Mario de Sá-‐‑Carneiro soient retirés, pour vous être
renvoyés si vous voulez, de la malle qui était à lui et que vous gardée.
En vous remerciant d’avance, je vous prie d’agréer, Monsieur, mes salutations les
plus distinguées.
[Tradução]
Apartado 147,
Lisboa, 26 de setembro de 1918.
Sr. Gerente do “Grand Hotel de Nice”,
29, rue Victor Massé,
Paris.
Ex. Senhor:
mo
Na sequência da minha carta de hoje, que acabo de enviar-‐‑lhe por correio, escrevo a
confirmação pela presente, que lhe será apresentada pelo meu amigo, o senhor Carlos
Ferreira, já mencionado na carta anterior.
Ele lhe dar-‐‑lhe-‐‑á todas as informações necessárias e quaisquer garantias escritas que
desejar, de modo a que dê a sua autorização para que os manuscritos puramente literários
do falecido Sr. Mario de Sá-‐‑Carneiro sejam retirados, e lhe sejam enviados de volta, se
desejar, da mala que era dele e o senhor guardou.
Agradecendo antecipadamente, peço-‐‑lhe que aceite, caro Senhor, os meus mais
distintos cumprimentos.
No mesmo lote 31.8, encontra-‐‑se ainda uma declaração, igualmente
dactilografada a azul, aparentemente preparada por Fernando Pessoa e cinco dias
antes das cartas ao Gerente do Grand Hôtel de Nice. Trata-‐‑se de um documento
preparado para que o avô de Sá-‐‑Carneiro assinasse, de modo a autorizar o acesso
16 Hotel ] no original.
17 pourque ] no original.
18 purements ] no original.
de Carlos Ferreira aos manuscritos em Paris. Recorde-‐‑se que o pai de Mário de Sá-‐‑
Carneiro se encontrava, por esta ocasião, em Moçambique, não podendo com
facilidade ser parte neste diálogo, como aliás Fernando Pessoa indica na primeira
carta.
De facto, a hipótese de contactar o avô, no sentido de desbloquear o
impasse, é mencionada desde cedo, e sobretudo por Carlos Ferreira, que pretendia
que José Araújo lhe facultasse o acesso aos documentos de Sá-‐‑Carneiro. Logo a 28
de Abril, já o indica a Pessoa:
[...] o avô que me escreva dizendo o destino que devo dar ás coisas d’elle [Mário] ou se quer
que as guarde [até] nova ordem. Portanto telegraphar ao Consul para que este diga ao Sr.
Araujo, por ordem da familia, de me entregar tudo.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2015: 531)
Na carta de 6 de maio de 1916, Ferreira volta a sugerir a Pessoa:
Entendo que devias fallar já com o avô para que elle telegrafe ao Consul ou antes ao
proprietario do hotel para que este me autorise a tomar conta de toda a papelada; creio que
elle será o primeiro a reconhecer a importancia do facto e é lamentavel que o seu pae ahi
não esteja. Portanto faze ahi tudo quanto deve ser feito n’este sentido.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 562-‐‑563)
E a 20 de maio, novamente expressa o mesmo desejo:
Não se pode tocar na mala do Mario sem que venha ordem da familia. Ora ninguem
melhor do que tu o poderá conseguir. Como vês trata-‐‑se d’uma questão de escrupulo e o
Avô com uma penada pode resolver o problema.
(SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 567)
A questão, contudo, não se resumia apenas à expressão da vontade do avô,
convém lembrar; era também uma questão de pagamento, evidentemente.
Também José Araújo, na sua carta de 18/12/1916, expressa alguma esperança de
que “talvez se possa arranjar alguma coisa com o avô” (SÁ-‐‑CARNEIRO, 2017: 571),
neste caso aludindo ao seu desejo de ser reembolsado pelas despesas em que
entretanto incorrera — despesas estas não relacionadas com a dívida ao hotel, mas
com o próprio funeral.
Não surpreende, por isso, a existência deste documento hoje na Coleção
Fernando Távora, que aqui se revela, já que Ferreira em particular sempre
reconhecera no avô de Sá-‐‑Carneiro a hipótese mais óbvia para a resolução do
problema. Quanto ao papel de patriarca da família Sá-‐‑Carneiro ocupado por José
Paulino, basta lembrar a forma como Mário de Sá-‐‑Carneiro se lhe referia com
particular respeito, na correspondência com Pessoa, ou o cuidado e o carinho que
lhe tinha e que se demonstra na correspondência que lhe enviou diretamente,
(apresentada neste número especial da Pessoa Plural; vd. VASCONCELOS 2017). José
Paulino acabou por exercer esse papel de patriarca também ao enviar a seu filho,
Carlos — o pai de Mário de Sá-‐‑Carneiro –, um telegrama com a indicação de que
escritor morrera, apenas com o texto “Mario suicide Paris | José Paulino” (DIAS,
1988: 215). Como é evidente, competia-‐‑lhe a ele mais diretamente a
responsabilidade pela família, a começar pelas más notícias.
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1 -
Fig. 8 e 9. Declaração em nome do avô de Mário de Sá-‐‑Carneiro (não assinada), aparentemente preparada
por Fernando Pessoa; com a inscrição “Lote 31.8”. Coleção Fernando Távora.
[Transcrição]
Je soussigné, grand-‐‑père de Monsieur MARIO DE SA CARNEIRO, décédé à Paris le 26
avril 1916, à l’hôtel 29, rue Victor Massé, déclare par ce moyen autoriser Monsieur CARLOS
FERREIRA à prendre quelques documents d’importance seulement littéraire se trouvant
dans une malle gardée par le propriétaire du dit hôtel.
Fait à Lisbonne le 21 septembre 1918.
[Tradução]
Eu, abaixo-‐‑assinado, avô do senhor MARIO DE SA CARNEIRO, morto em Paris a 26 de
abril de 1916, no hotel sito na rue Victor Massé, 29, declaro por este meio que autorizo o Sr.
CARLOS FERREIRA a levantar alguns documentos de importância estritamente literária
que se encontram numa mala19 guardada pelo proprietário do referido hotel.
Feito em Lisboa a 21 de setembro de 1918.
Não há, evidentemente, qualquer garantia de que cópias destas cartas
tenham partido para Paris, embora se aceite facilmente que tal tenha acontecido.
De igual modo, não é possível saber se o avô de Sá-‐‑Carneiro terá visto esta
declaração, se a terá assinado, se a mesma terá sido usada por Ferreira — e nesse
caso, se mesma teria sido aceite ou recusada pelo Gerente do Hôtel de Paris. Em
todo o caso, estes documentos saídos da Coleção Fernando Távora são antes de
mais uma evidência do fascínio do colecionador com o destino de Mário de Sá-‐‑
Carneiro e da sua obra. Ao mesmo tempo, são os elementos mais recentes a
contribuírem para a compreensão daquele que é provavelmente o enigma maior
do modernismo português, um mistério que pode, ou não, vir um dia a ter
resolução.
Note-‐‑se, no original, “malle”, que se traduziria hoje comummente por baú. É de supor que fosse
19
deste tipo a famosa mala de viagem de Mário de Sá-‐‑Carneiro, considerando a classe alta do escritor.
Traduz-‐‑se aqui por “mala”, já que é este o termo português usado por todos os interlocutores
diretos, à época, para se lhe referir.
Bibliografia
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PESSOA, Fernando (2014). Obra Completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro e Antonio
Cardiello; colaboração de Jorge Uribe e Filipa de Freitas. Lisboa: Tinta-‐‑da-‐‑china.
PIZARRO, Jerónimo (2017). “Poemas e Documentos Inéditos: O Lote 31 e a Colecção Fernando
Távora”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 12, Outono, pp. 333-‐‑456.
SÁ-‐‑CARNEIRO, Mário de (2017). Poesia Completa. Edição crítica de Ricardo Vasconcelos. Lisboa:
Tinta-‐‑da-‐‑china.
_____ (2015). Em Ouro e Alma – Correspondência com Fernando Pessoa. Edição crítica de Ricardo
Vasconcelos e Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-‐‑da-‐‑china.
VASCONCELOS, Ricardo (2017). “‘Porque é que não escreve Cartas?’ Correspondência Inédita de
Mário de Sá-‐‑Carneiro ao seu Avô”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º
12, Outono, pp. 562-‐‑595.
_____ (2015). “‘Se te queres matar’ and ‘Distante melodia’ in English: Jennings translates Sá-‐‑
Carneiro”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 8, Outono, pp. 310-‐‑326.
VIZCAÍNO, Fernanda (2017). “O Meta-‐‑arquivo da Colecção Fernando Távora”, in Pessoa Plural – A
Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 12, Outono, pp. 18-‐‑81.