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RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar os princípios formativos presentes no
Relatório Jacques Delors e nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio
para a Educação Física e o reflexo da concepção de formação escolar presente nesses
documentos para a organização do ensino da Educação Física. As análises sugerem
princípios formativos comuns aos dois documentos, bem como limites ao ensino da
Educação Física com base nessa perspectiva, pois o que está em jogo é o atendimento
às necessidades do atual modelo produtivo e não a apropriação dos conhecimentos re-
lacionados à cultura corporal.
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Graduação em Educação Física pela Faculdade Integrada de Fátima do Sul - MS (1999), especialização em
Interdisciplinaridade na Educação Básica pelo IBPEX (2002) e mestrado em Educação pela Universidade Estadual de
Maringá (2013). E-mail: eduardoborbagilioli@hotmail.com
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Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (1996); Doutorado em Educação: História, Política,
Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004); Estágio Pós-Doutoral, pelo Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (2013). Docente do PPGE da Universidade Estadual de Maringá. e-mail: galuch@brturbo.com.br
ABSTRACT
The formation principles in the Jacques Delors Report and in the Brazilian Curricular Pa-
rameters for the high school for Physical Education are analyzed. The impact of school for-
mation in the above documents for the organization of the teaching of Physical Education
is further investigated. Above analyses suggest formation principles in the two documents
and the limits to the teaching of Physical Education based on this perspective. The com-
pliance to the requirements of current production model is actually relevant and not the
appropriation of knowledge related to body culture.
rização do trabalho, é intrínseco ao desen- vales e gargantas do silício, para não falar
da vasta profusão de atividades dos países
volvimento e aplicação de novas tecnolo- recém-industrializados) (HARVEY, 2010, p.
gias à produção capitalista: “[...] o rápido 140, destaques nossos).
da totalidade dos alunos e não só dos mais alunos, sem levar em conta os condicio-
habilidosos” (BRASIL, 1999, p. 65). Essa nantes de ordem social.
afirmação se alinha ao terceiro princípio Os PCNs-EM tratam a Educação Fí-
destacado na Lei de Diretrizes e Bases da sica de forma marginal em relação às ou-
Educação Nacional (LDB), qual seja o da tras disciplinas pelo fato de o professor não
exigência de se basear o ensino no “[...] inovar em suas aulas, como expresso no
pluralismo de idéias e de concepções peda- trecho a seguir:
gógicas” (BRASIL, 1996, p.1).
Enquanto as demais áreas de estudo dedi-
De acordo com os PCNs-EM, a Edu-
cam-se a aprofundar os conhecimentos dos
cação Física encontra-se desprestigiada, o alunos, através de metodologias diversifica-
das, estudos do meio, exposição de vídeos,
que pode ser observado pela evasão dos
apreciação de obras de diversos autores, lei-
alunos das aulas e pela procura por expe- turas de textos, solução de problemas, discus-
são de assuntos atuais e concretos, as aulas
riências corporais extraescolares que lhes
do ‘mais atraente’ dos componentes limita-se
trazem satisfação. Todavia, não há referên- aos já conhecidos fundamentos do esporte e
jogo (BRASIL, 1999, p.67, grifos nossos).
cias a pesquisas que atestem a vinculação
entre a evasão dos alunos das aulas e a prá-
tica de atividade física em outros locais por Segundo os PCNs-EM, ao contrário
esses mesmos alunos, mesmo porque, em da Educação Física, as demais disciplinas
certo ponto do texto, contraditoriamente, se preocupam em aprofundar os conheci-
afirma-se que a Educação Física “[...] tem mentos dos alunos, o que é explicado, em
fabricado espectadores e não praticantes de grande medida, pela quantidade de recur-
atividade física” (BRASIL, 1999, p. 69). sos utilizados pelo professor em aula.
O descrédito da Educação Física é Inferimos que a compreensão de conhe-
justificado em grande medida pelos PC- cimento contida nos PCNs-EM esteja atrela-
Ns-EM pelo fato de as aulas terem como da à diversidade de vivências que ocorrem no
conteúdo principal, quando não exclusivo, limite da experiência imediata. Dessa forma,
o esporte com a ênfase na repetição de ges- cabe ao professor elaborar um planejamento
tos e aprofundamento tático, o que propor- envolvente que venha “[...] ao encontro do in-
ciona a exclusão dos alunos menos habili- teresse e necessidade dos alunos” (BRASIL,
dosos pela insatisfação em não alcançarem 1999, p.70), pois “[...] o professor ao se man-
a performance esperada. Essa crítica não é ter rígido em atividades desinteressantes aos
nova na Educação Física; já em meados de alunos, termina por afastá-los da disciplina”
1980 havia autores que combatiam o ensi- (BRASIL, 1999, p.80).
no tecnicista da área e o objetivo de formar Valorizar o interesse e a necessidade
atletas e desenvolver a aptidão física dos dos alunos como ponto de partida do pro-
de seus corpos sensíveis, repletos de vontade e de sentando-o como aquele que constrói seu pró-
intencionalidade” (BRASIL, 1999, p.77). prio saber39.
A formação da subjetividade tra- Em decorrência dessa concepção de
tada nos PCNs-EM limita-se às relações aprendizagem, a função atribuída ao professor
interpessoais pautadas nas emoções e nos é de desafiar os alunos e provocar desequilí-
sentimentos. Neles não se discute a impor- brios “[...] que precisam ser resolvidos e é
tância da apropriação dos conceitos siste- nessa necessidade de voltar ao equilíbrio que
matizados para a formação das faculdades ocorre a construção40 de pensamento” (BRA-
psíquicas superiores e para a elevação dos SIL, 1999, p.79).
níveis de generalização e de abstração da Enfatiza-se nos PCNs-EM que não
realidade, até porque esse não é o objeti- basta a busca pela saúde individual neces-
vo da formação requerida. Nesse contex- sária à criação, à produção e ao bem-estar
to, a Educação Física assume os mesmos de cada sujeito: é indispensável também
contornos demandados para a educação de formar as competências sociais necessárias
forma geral. ao cidadão contemporâneo. Com efeito,
A formação da sensibilidade e das para esse fim, “A Educação Física, arti-
emoções, características propriamente culada pelos jogos construídos no social
humanas, não ocorre separadamente da com esquemas corporais próprios para fins
aquisição das demais funções psíquicas de convivência harmoniosa, amplia o co-
(PALANGANA; GALUCH; GOULART, nhecimento do corpo e a possibilidade de
2006). compreensão das regras sociais” (BRA-
Sendo assim, toda a “[...] constitui- SIL, 1999, p. 126).
ção do indivíduo em ser humano decor-
re da internalização dos signos sociais”
(BRASIL, 1999, p.77). Nesse sentido “[...]
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[...] no Brasil, na elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, foi necessário o diálogo com
processos cerebrais sofrerão mudanças; ór- as pedagogias críticas que buscaram orientar a prática
educativa na década de 1980, como a Pedagogia Crítico-
gãos funcionais serão criados no cérebro Social dos Conteúdos e a Pedagogia Histórico-Crítica.
em correspondência a essas mudanças; e a Essas pedagogias que se fundamentam em pressupostos
do materialismo histórico estavam fortemente presentes
conduta motora será profundamente altera- nos cursos de formação de professores e nos debates
acadêmicos desse período. Assim, alguns termos
da” (BRASIL, 1999, p. 77). dessas teorias foram apropriados pelos Parâmetros
Ao tratar da formação da sensibilidade Curriculares Nacionais, mas os seus significados foram
reconfigurados, adaptando-se às políticas internacionais.
e da emotividade, os PCNs-EM acentuam o Isso gera dificuldade para a compreensão da perspectiva
de formação presente (GALUCH; SFORNI, 2011, p. 61).
aspecto coletivo e interpessoal e, ao tratar do 40
A utilização do conceito de ‛construção’ do
processo de apropriação de conhecimentos, conhecimento como sinônimo de aprendizagem remete
a concepções de desenvolvimento humano radicadas em
enfatizam a autoformação do indivíduo, apre- métodos avessos ao materialismo histórico-dialético.
Percebemos que, na vertente da ap- por sua saúde, bem como se comprometer
tidão física e da saúde defendida nos PCN com a resolução tanto de seus problemas
-EM, a ideia é que as funções do professor pessoais como dos problemas sociais, se-
de Educação Física são desenvolver proje- cundarizando os conhecimentos específi-
tos de atividades físicas especiais, mediar cos da dança, do esporte, da ginástica, dos
o relacionamento entre os alunos durante jogos e das lutas, o que implica a limitação
a execução dos projetos e demais ativida- da apropriação pelo gênero humano da cul-
des escolares, além de coordenar debates. tura corporal elaborada historicamente pe-
Dessa forma, a especificidade dos conteú- los homens.
dos da cultura corporal é diluída pela cen-
tralidade da educação para a saúde e nas CONSIDERAÇÕES FINAIS
atividades de socialização. Constatamos a sintonia entre os PC-
O quadro de competências e habili- Ns-EM e o Relatório Delors no que concer-
dades a serem desenvolvidas nos alunos do ne às exigências formativas do atual con-
Ensino Médio pelas aulas de Educação Fí- texto social. Nesse sentido, a criatividade
sica pode ser sintetizado da seguinte forma: e a flexibilidade se tornam palavras de or-
dem da sociabilidade demandada pela rees-
1- Autogerenciar as atividades corpo- truturação produtiva. Concomitantemente,
rais com vistas à aquisição ou ma- o aumento da interdependência planetária
nutenção da saúde; coloca em riscos a ordem mundial e a pró-
2- Compreender as diferentes ma- pria sobrevivência da humanidade, requi-
nifestações da cultura corporal, sitando o desenvolvimento da tolerância, o
respeitando e valorizando toda e respeito e a valorização da diversidade cul-
qualquer diferença corporal; tural que, no limite, corresponde à admi-
3- Conviver em grupo contribuindo nistração da pobreza para a coesão social.
para o alcance dos objetivos co- No que se refere às influências das no-
letivos, respeitando os diferentes vas necessidades educacionais da atualidade
pontos de vistas postos em debate; para o ensino da Educação Física, percebe-
4- Ter autonomia para elaborar e mos nos PCNs-EM ruptura e continuidade
modificar regras de diversas ati- com as orientações oficiais anteriores.
vidades corporais A subordinação da Educação Física à
instituição esportiva é combatida pelos PC-
Em suma, a proposição dos PCNs Ns-EM, em oposição às orientações do pe-
-EM destaca a contribuição da área para ríodo ditatorial, como indica a Lei n. 6.251
que o aluno seja o principal responsável de 08 de outubro de 1975, que instituiu as
normas gerais sobre os desportos:
Entende-se a educação física escolar como vimos, a legislação anterior também assu-
causa e o desporto de alto nível como
efeito, tendo o desporto de massa como mia essa perspectiva.
intermediário. Nestas circunstân- cias, o Levantamos a hipótese de que os PC-
ideal de relacionamento entre os três
elementos é o de possibilitar o cres- Ns-EM necessitam ‘retomar’ a perspectiva
cimento progressivo da escala e da qua- da aptidão física e saúde para se contrapor
lidade das atividades físicas, organizadas de
acordo com as potencialidades do país à produção acadêmica da década de 1980 e
(BRASIL, 1976, p.53). 1990, que propunha a superação do para-
digma da aptidão física pela reflexão sobre
Os PCNs-EM criticam a organização a cultura corporal, uma vez que entendiam
das aulas nesse modelo: repetição de movi- que a primeira vertente estava atrelada aos
mentos; exigência técnica dos gestos; ex- interesses da classe dominante, porque in-
cesso de competição. Segundo o documen- tentava melhorar a saúde dos indivíduos
to, essa condução tem contribuído para a basicamente pela alteração dos hábitos e
evasão dos alunos das aulas, pois a maioria comportamentos (SOARES et al., 2005).
não consegue obter a performance espera- O processo de elaboração da atual
da, o que contribui para o desprestígio da LDB revela que houve conflito entre os
área. Por suposto, a ruptura ocorre com re- legisladores e os representantes da área
lação ao predomínio do esporte nas aulas. para que o texto final da Lei mencionas-
A continuidade acontece devido ao se a Educação Física como componente
fato de os PCNs-EM assumirem que a Edu- curricular (CASTELLANI FILHO, 1999),
cação Física pode encontrar “[...] no traba- e, em 2001, incluísse a obrigatoriedade
lho com a Aptidão Física e Saúde uma al- da disciplina na Educação Básica41 (NO-
ternativa viável e educacional para as suas ZAKI, 2004).
aulas” (BRASIL, 1999, p.68), assim como Nozaki (2004) defende a tese de que
prevê o Decreto-Lei n. 69.450 de 1º de no- a dificuldade sofrida pelos grupos repre-
vembro de 1971: “A aptidão física consti- sentantes da Educação Física em mantê-la
tui a referência fundamental para orientar como componente curricular obrigatório
o planejamento, controle e avaliação da da Educação Básica na atual LDB expressa
educação física, desportiva e recreativa, a incapacidade de a Educação Física aten-
no nível dos estabelecimentos de ensino” der diretamente aos novos requisitos de
(BRASIL, 1972, p.59). formação dominantes, tendo em vista
Os PCNs-EM argumentam que é ne- 41
Castellani Filho afirma que a redação final da LDB
cessário ‘retomar’ a referência da aptidão retira “[...] a camisa de força que a aprisionava aos
limites próprios do famigerado eixo paradigmático da
física e saúde. Essa ‘retomada’, à primeira aptidão física [...]” (CASTELLANI FILHO, 1999, p. 114),
porém, nas orientações dos PCNs-EM o paradigma da
vista, revela-se contraditória, pois, como saúde permanece.
[...] que, historicamente, ela era ligada, sob de raciocinar logicamente e de criar. To-
o ponto de vista dominante, a uma forma-
ção de um corpo disciplinado para obedecer davia, de acordo com a lógica do capital,
subordinadamente, adestrado a repetições o conhecimento mais elaborado, pressu-
de exercícios e visando à aptidão física, fun-
cional ao fordismo, percebemos que esta posto da abstração, da crítica e da criativi-
caracterização não é mais central para a de- dade, não é apropriado pela maior parcela
manda de formação do trabalhador de novo
tipo para o capital, já que este precisa de um dos trabalhadores.
conteúdo no campo cognitivo e interacio- Entendemos que o discurso da for-
nal, a fim de trabalhar com a capacidade de
abstração, raciocínio lógico, crítica, interati- mação crítica e criativa, principalmente o
vidade, decisão, trabalho em equipe, com- propalado pelos documentos oficiais, faz
petitividade, comunicabilidade, criatividade,
entre outros42 (NOZAKI, 2004, p. 143-144, parte da investida ideológica dos grupos
grifos nossos). dirigentes para apresentar uma sociedade
compromissada com o desenvolvimento
Não resta dúvida de que o modelo humano de todos.
produtivo atual difere substancialmente Ainda que a repetição de movimentos,
do padrão de acumulação fordista. Tam- característica da produção em massa, seja
bém é ponto comum, em algumas pesqui- menos requisitada pelo padrão de acumula-
sas, que essa alteração resulta em novas ção flexível, a conduta da maioria dos tra-
exigências formativas, tal como indicam balhadores, como não poderia ser diferente,
galuch e Palangana (2008) e galuch e continua circunscrita aos limites da empiria.
Sforni (2011). Nesse caso, a defesa de No- Apesar de se falar em valorização da subje-
zaki (2004) sobre a falta de capacidade da tividade, esta se apresenta destituída de co-
Educação Física, sob o ponto de vista do- nhecimento teórico, mas valorizada no que
minante, em não atender imediatamente tange ao relacionamento interpessoal.
aos novos requisitos formativos, parece- Pelo exposto, inferimos que a crítica
nos válida. No entanto, a forma de o autor efetuada pelos PCNs-EM analisados, em
expressar as características requeridas do relação à forma como a Educação Física
trabalhador atual, destacadas na passagem vem sendo realizada na maioria das esco-
citada, pode levar ao entendimento de que las, reflete a necessidade de “[...] transfor-
a organização atual do trabalho pressupõe mar a Educação Física em uma disciplina
o desenvolvimento humano, pois ele se necessária” (MELLO, 2009, p.264). Para
refere à capacidade de abstrair, de criticar, isso, é preciso superar o modelo de aula
pautado na racionalidade técnica e no ex-
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Nozaki (2004) deixa claro que a Educação Física
pode atuar para formar as referidas competências, cesso de competição (MELLO, 2009).
mas, historicamente, de acordo com o projeto social Em suma, mantém-se o paradigma da
dominante, essa disciplina sempre esteve atrelada à
repetição de movimentos. saúde e combatem-se os excessos do esporte.