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Resenha - Sobre a fabricação contextual de pessoas e coisas: as técnicas jurídicas e o

estatuto do ser humano após a morte, Ciméa Barbato Bevilaqua

O artigo intitulado Sobre a fabricação contextual de pessoas e coisas: as técnicas


jurídicas e o estatuto do ser humano após a morte da autoria de Ciméa Barbato Bevilaqua
versa sobre a distinção entre coisas e pessoas, efetuada pelo âmbito jurídico, do ser humano
após a morte. Para tal empreendimento, autora analisa uma série de processos judiciais de
tribunais brasileiros. Assim, com o objetivo de investigar como formas de construção e
diferenciação de duas categorias – pessoa e coisa – se dão em um âmbito específico, a autora
mostra-nos a instabilidade com a qual essas categorias são atribuídas de acordo com o
contexto, ou melhor, mostra-nos como elas vão variar de acordo com uma análise particular.
Essa atribuição não vai se restringir a aspectos apenas do âmbito jurídico, mas também de
elementos constituintes do próprio social, que são apropriados aos moldes do direito.
Desse modo, a autora inicia a apresentação dos resultados de sua investigação sobre 22
acórdãos, dando ênfase em dois elementos particulares, sendo o primeiro a maneira como são
construídos o objeto da disputa, os argumentos do processo e a decisão final e o segundo
sobre a forma como essas práticas jurídicas tanto distinguem como constroem pessoas e
coisas.
Dadas as considerações, Belivaqua dá inicio ao primeiro caso. Trata-se de um caso de
exumação e desaparecimento de restos mortais da mãe do autor da ação, movida conta a
Prefeitura. Os julgamentos de primeiro e segundo grau concederam decisão favorável ao autor
da ação. Na produção do resultado nesses casos, explica-nos a autora, haveria uma vinculação
da materialidade – restos mortais indicando um vinculo naturalizado – e a interioridade
daquele que moveu a ação, como alguém que sofreu os efeitos de uma atitude, de modo que
essa associação torna-se uma evidência o dano provocado pela prefeitura. Emerge, então,
uma primeira construção da pessoa: nesse caso, o âmbito jurídico, constrói uma modalidade
de pessoa a partir da separação e re-articulação de duas dimensões, materialidade e
interioridade, de seres humanos distintos. A materialidade (restos mortais) seriam, desse
modo, partes constituintes daquele sujeito, parte de sua substância moral.
Entende-se assim por que não se requer nenhuma expressão concreta da
ligação afetiva entre o autor da ação e o parente morto para se admitir o dano
e a indenização: o sofrimento moral é decorrência imediata dessa forma
específica de fabricação da pessoa. (BELIVAQUA, 2010, p. 11)

Em outro exemplo citado pela autora, em que os restos mortais são levados e
dispostos em um aterro sanitário, há sua equivalência a lixo e, por conseguinte, sua
desindividualização e desumanização. O mais relevante, nesse caso, seria não a equiparação
dos restos mortais a coisas, mas a sua transformação em substância viva não humana, já que
foram depositados em um local em que animais vão em busca de alimento. O argumento
utilizado foi, então, buscado em uma dimensão mitológica, fundamentado na ideia de
existência de uma natureza humana – sepultar os mortos – que deveria ser assegurada pelo
direito positivo.
Nesses casos, o que está sendo analisado não é o dano daquele que moveu a ação,
mas tendo como foco o calculo da indenização, volta-se para a intensidade do dano. Os
fatores para se calcular centram-se na proximidade do autor e do morto e no tempo decorrido
entre o dano e a demanda. Tendo em vista esse ultimo critério, a autora mostra um exemplo
em que o tribunal diminuiu a indenização, por ter se passado 18 meses entre o dano e a ação.
Mas, não foi fornecida à família a cópia contratual nem qualquer informação sobre
procedimentos relacionados.
Nesse mesmo caso é possível perceber uma nova construção de pessoa efetuada pelo
âmbito jurídico. Aqui, o dano não é visto pela relação do ente próximo com os restos mortais,
mas é caracterizado pela relação consumidor-prestador do serviço. Assim como nos casos
anteriores, o foco está no autor da ação, mas nesse momento a pessoa caracteriza-se pela sua
interioridade subjetiva e sua capacidade material de agir no mundo exterior, isso porque o
caso é agora analisado com base do Código do Consumidor. Considera-se, portanto, que a
pessoa que moveu a ação foi afetada a partir da manifestação de sua agencia no mundo.
Em seguida, a autora segue sua análise sobre crimes que dizem respeito a violação de
sepulturas por terceiros e outros crimes que caracterizariam-se como “crimes contra o respeito
aos mortos”. Essas ações caracterizam-se pela ação sobre a materialidade de restos mortais de
um ser humano individualizado, mas, para ser visto como vilipêndio, a ação por si não é
suficiente. Isso ocorre, pois, é feita uma vinculação entre a ação e a intenção que levou o
sujeito a fazê-la, ou seja, o que é levado em conta é a intenção subjetiva do sujeito. O foco
está, portanto, no agente da ação e na associação entre sua ação no mundo e sua condição
interior. Vê-se nesse momento a criação de uma pessoa formada por uma junção entre externo
e interno (intencionalidade e agência no mundo), como algo que não pode ser separado.
Consequentemente, nesse contexto, o cadáver aparece reificado, transformado em coisa por
ser objeto da ação de um outro sujeito, ausente de vontade e intencionalidade diante daquele
que agiu e que, contrariamente a ele, possui esses atributos.
Vê-se que o foco se concentra inteiramente no polo do agente do crime:
trata-se de estabelecer a posteriori suas intenções antes e durante a ação (um
passo concebido como não problemático no âmbito processual), o que
significa que a técnica jurídica constitui o réu como pessoa dotada de uma
intencionalidade que se manifesta concretamente em sua agência no mundo.
Mas o acento recai decididamente no plano interior: é a vontade que, antes e
sobretudo, define a pessoa. Correlativamente, reifica-se o objeto da ação,
isto é, o cadáver desprovido de vontade e agência. ( BELIVAQUA, 2010,
p. 18)

Nos casos de violação de sepultura ou furto de partes do corpo do cadáver com fins
de comercialização há uma acentuação da reificação. Nos dois casos do tipo analisados pela
autora, a defesa obtém sucesso ao tentar retirar o status de furto das ações, por considerarem
não ser possível o morto ser objeto do roubo. Aqui, portanto, é atribuído ao cadáver a
categorização de coisa que, nesse caso, apesar de apresentar-se como tal, não pode ser
comercializada e nem ser propriedade de alguém, sendo, portanto, um tipo particular de coisa.
Mas existem contextos em que partes do cadáver podem se consideradas propriedade e objeto
de furto. A autora cita o exemplo dos achados arqueológicos, ou ainda, quando o cadáver
pertence a institutos de pesquisa ou museus. Nota-se que, a noção de propriedade é de suma
relevância nesses casos, já que através dela, “a técnica jurídica estabelece diferentes graus de
reificação da substância humana”. (p. 20)
A autora cita ainda momentos em que o morto é visto como dotado de interioridade,
vontade e honra, como em acórdãos com relatos de suas vontades, como testamentos, cuja
redação foi feita ainda em vida. O autor afirma que, o reconhecimento dessas menções faz
com haja a extinção da personalidade, ou seja, ao reconhecer um desejo de alguém após sua
morte, reconhece-se também a vontade como um atributo constituinte da pessoa, mas se
reconhece, nas palavras do autor, “de uma vez e de uma vez por todas”.
No que concerne aos chamados direitos de personalidade, várias possibilidades
mostram-se presentes. Dentre as formas de se pensar esses direitos em relação aos mortos, a
autora aponta duas perspectivas que decorrem em modos distintos de construção da pessoa. A
primeira perspectiva aponta que a personalidade do sujeito termina no momento de sua morte
e que esse não pode expressar sua vontade. A pessoa, nessa ótica, é composta pela não
separação entre interioridade – subjetividade – e agência – material.
Desse modo, a personalidade jurídica só pode corresponder à pessoa humana
viva, dotada de uma interioridade a ser protegida juridicamente, mas também
da condição de exercer concretamente os direitos que emanam dessa
interioridade. (BELIVAQUA, 2010, p. 21)

No segundo caso, é reconhecida a existência da personalidade após a morte. O morto


não pode recorrer a sua proteção jurídica, ele não tem agencia; mas isso não o impede de tê-la
assegurada, já que tem nos familiares seus representantes. Aqui a pessoa define-se para além
de seu corpo – materialidade. Nos casos ligados a personalidade, mais espeficificamente, de
bens de personalidade, a forma como a categoria coisa é concebida também se altera, pois
esses bens tornam-se parte da pessoa, seu núcleo inalienável e indisponível.
É evidente a variabilidade e caráter contextual presente nas atribuições de pessoa
e/ou coisa ao morto operada pelo direito. Como já mencionada, as categorizações vão
depender das particularidades de caso, sendo identificáveis diferentes níveis de pessoa ou
coisa. Em suma, o direito é um âmbito que constrói um mundo ao tratar e referir-se ao mesmo
de acordo com seus moldes.

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