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A partir de então, temos uma segunda derivação, em que a própria arte – tomada de maneira
genérica – deixa de assumir uma posição tão privilegiada quando defrontada com a ciência.
Isto é, mesmo no cerne das artes, poderíamos identificar aquelas que ainda se mostram
atreladas a algum tipo de função, necessidade ou utilidade prática, e aquelas que não
possuem qualquer finalidade exterior a si mesmas. Ou seja, uma arte que possua um intuito
heterônomo e outra que se mostre como absolutamente autônoma em seu fazer. No primeito
caso, estaria situada a medicina, por exemplo, enquanto, no segundo caso, a filosofia. Desse
modo, apenas esta última seria capaz de viabilizar a liberdade verdadeira, por nos levar ao
saber – “sapiência” – de determinados princípios e causas, pois: “chamamos de livre o
homem que é fim para si mesmo e não está submetido a outros, assim só esta ciência, dentre
todas as outras, é chamada livre, pois só ela é fim para si mesma” (982b25-27). O universal,
portanto, está relacionado à liberdade. Tal conclusão assemelha-se à que Aristóteles nos
conduz em sua “Poética”, uma vez que:
Se Platão havia assumido a herança de Heráclito de que as coisas seriam fluxo contínuo e
eterna mudança, Sócrates, por sua vez, teria se debruçado, sobretudo, com questões de
cunho ético, em detrimento das mais sensíveis – a “natureza em sua totalidade” – exercendo
outra importante influência sobre Aristóteles. A partir dessas chaves de análise, Aristóteles
viria a dialogar com Platão sobre o conceito de universal:
A partir dessas questões, Aristóteles coloca-se a seguinte proposta: analisar o ser enquanto
ser, e não apenas uma parte dele, tal como uma ciência parcelar – como seriam os casos da
física e da matemática. Tal tarefa ficaria a cargo de uma filosofia primeira e superior, referente
ao universal e não ao particular; “enquanto primeira, ela será universal e a ela caberá a tarefa
de estudar o ser enquanto ser, vale dizer, que é o ser e os atributos que lhe pertencem
enquanto ser” (1026a30-32). Isso não poderia implicar analisar cada indivíduo em particular,
mas algo que, de alguma maneira, fosse comum a todos eles. Entretanto, tal ciência almejada
por Aristóteles deveria ser capaz de solucionar algumas questões que se mostravam latentes:
por exemplo, conseguir ir além da simples enunciação de tautologias, problema parmenidiano
– “o ser é”, “o não ser não é”, “o branco é branco” –, dado que estas não implicariam a
construção do conhecimento de fato, além de ser capaz de lidar com os contrários – sem
incidir sobre a então oposição entre o “ser” e o “não ser”, colocados de maneira excludente
ou contraditória. Para tanto, com base nos passos já demarcados pelo Teeteto de Platão,
buscam-se caminhos em que se possam dizer muitos a respeito de um, partindo da seguinte
premissa: é impossível que a mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo, segundo o
mesmo aspecto.
A pergunta que então passa a nos guiar consiste em: como seria possível pensar, atribuir
significado às coisas? Primeiramente, “significar determinada coisa” não seria o mesmo que
“significar o atributo de determinada coisa”. Neste caso, exemplifica, “músico”, “homem” e
“branco” remeter-se-iam a uma mesma coisa e, no limite, tudo remontaria a um único e
exclusivo significado. A questão que preocupa o filósofo não se resume, tampouco, a
problemas e possíveis equívocos de nomenclatura, decorrentes de diferenças entre
linguagens e até mesmo culturas. Por exemplo, que “túnica” e “veste” não implicassem,
necessariamente, a mesma coisa e definição por particularidades da linguagem. Assim, dado
que as coisas possuem significados definidos e finitos, não seria possível aceitar que “ser” e
“não ser” estivessem coincidentes numa mesma e única coisa – por exemplo, ser homem e
não ser homem –, pois isto seria uma contradição, além de acarretar uma indeterminação
absoluta, uma falta de significado e, no limite, a impossibilidade do próprio pensamento.
Dados estes pressupostos, o que preocupará Aristóteles no quarto livro da Metafísica
consiste, justamente, em compreender a essência da coisa em si propriamente dita.
Diante de tal empreitada, o filósofo assume, primeiramente, que embora as coisas não devam
ter apenas um e somente um significado, o seu oposto também não poderia ser possível, ou
seja, assumir que todas as coisas poderiam ter significados infinitos, pois, de tal forma, não
poderíamos atribuir significado real e factível a nada. Tendo isso em vista, Aristóteles
acrescenta uma seguinte questão: a existência dos acidentes, que se diferenciam da
substância – esta, sim, relacionada ao significado e à natureza intrínsecas à essência da
coisa em si. Neste caso, na afirmação “homem é branco”, “branco” seria um acidente a ser
atribuído a “homem”. Não obstante, do mesmo modo que não poderíamos constatar que
haveria inúmeros signficados às coisas, mesmo que admitíssemos que houvesse diversos,
tampouco poderíamos pressupor que haveria infinitos acidentes possíveis numa espécie de
“série infinita de predicados” (10007b8). Afinal, advoga Aristóteles, deve haver um sujeito a
esses inúmeros acidentes – que não poderíam, por conseguinte, ser apenas acidentes auto-
referentes entre si. A origem e base a todos eles: essa seria a essência que se busca.
Já em seu sexto livro “E”, Aristóteles buscará ater-se ao “ser” e seus diversos significados,
de maneira a nos acercarmos do conceito de universal presente no filósofo. Em primeiro
lugar, seria impossível estudar o ser enquanto acidente – por exemplo, o “homem ser branco”
ou o “homem ser músico” seriam acidentes, pois essa não é uma regra que se verifica nem
na maioria das vezes; porém, o homem ser definido como um animal não seria acidental. Tal
é o ponto de partida em Aristóteles: compreender em que medida se pode considerar
determinados atributos do ser como acidentais ou não, pois a ciência deve destinar-se a
entender o que é sempre ou na maioria das vezes. Além disso, considerar o “ser” deveria
envolver, igualmente, abandonar juízos enquanto verdadeiro ou falso, pois estes não se
encontram nas coisas em si, mas em nosso pensamento.
O que, então, faria parte do ser enquanto coisa em si, independente de juízos de valor? Tal
é a pergunta que ficará a critério do livro “Z” sétimo. Após o processo “higienizador” inicial do
livro, isto é, em que o filósofo realiza um esclarecimento sobre os diversos sentidos dos
termos, ao mesmo tempo em que refuta determinadas assunções anteriores e consideradas
não suficientes, Aristóteles chega, por fim, às suas próprias definições. Embora tome como
ponto de partida que o “ser” possa se referir tanto à substância quanto aos seus predicados,
o filósofo admite que a substânca deve possuir primazia e anterioridade em relação aos
predicados quantitativos e qualitativos. A partir disso, Aristóteles elabora sua formulação de
substância, conforme quatro significados fundamentais: a essência – “tô ti ên eînai” –, o
universal – “tô kathólon” –, o gênero – “génos” – e o substrato – “tô hypokeímenon” –, sendo
este último o mais importante para a definição de substância, visto que é “aquilo de que são
predicadas todas as outras coisas, enquanto ele não é precisado de nenhuma outra”
(1028b36-37). Substrato, por sua vez, seria formado por três partes: a matéria – “hyle” –, a
forma – “morphé/ eîdos” – e o composto (sínolo) resultante da união destes – “tô ek toúton
synolon”. Vale destacar, entretanto, que essas definições acabam por se imiscuir, em alguns
momentos da descrição do filósofo, como quando, mais à frente, retoma o conceito de
substância com o significado de: “substrato, “essência”, o “conjunto de ambos” e “universal”
(1038b1-3). Neste caso, a ideia de essência parece assentar-se sobre o conceito de forma
da primeira definição.
Em todo o caso, como esclarecido pelo próprio filósofo, ao tomar por exemplo uma estátua
de bronze: o bronze seria sua base material, a estrutura seria a sua conformação formal,
enquanto a estátua propriamente dita seria o composto de ambos. De sorte que tratar da
substância envolve necessariamente a matéria, embora ela não lhe seja o bastante, dado
que a matéria, por si só, “não é nem algo determinado, nem uma quantidade nem qualquer
outra das determinações do ser” (1029a20-22). Isto significa reconhecer que a substância
envolve determinação de algo – “tódeti” – enquanto a matéria ainda reside no âmbito do
indeterminado; o que nos conduz a outra conclusão: apenas a substância enquanto composto
“é”, ao passo que a matéria apenas “pode ser”, em termos de potencial – conclusão que
Aristóteles assumirá com maior veemência apenas no Livro oitavo.
Diante de todas essas definições, uma questão crucial que emerge do conceito de substância
é sua articulação com a ideia de produção ou de geração – seja de maneira artificial, seja
espontânea –, que, por sua vez, implica o movimento. De sorte que aquilo que é gerado –
por exemplo, uma esfera de bronze – deva ser sempre divisível, de alguma maneira, em
forma – esfera – e em matéria – o bronze – os quais preexistem o objeto gerado (sínolo).
Nessa relação, a forma não se gera, mas apenas a sua combinação com a matéria, a saber,
o sínolo (composto entre forma e matéria). Note-se, nesse sentido, que a substância não
consiste numa plena abstração, mas, sim, em algo que une, em determinadas instâncias, o
particular e o universal.
A partir do que dissemos fica claro que, em certo sentido, tudo o que é
produzido pela arte é produzido por outra coisa que tem o mesmo nome,
assim como são produzidas as coiass que se geram por natureza: ou por
uma parte dessa coisa que tem o mesmo nome (por exemplo, a casa provém
da casa que está na mente do artífice: de fato, a arte de construir é a forma),
ou de alguma coisa que contém uma parte dela (a não ser que se trate de
geração por acidente). De fato, a causa da produção é parte primeira e
essencial. (ARISTÓTELES, 1034a20-25).
Ora, temos então, no âmago da substância, que a forma coloca-se tanto como causa eficiente
quando como causa final, ou seja, ela se comporta como a origem do movimento, orientando-
o, mas também como sua finalidade última. Esta lógica opera tanto em obras artificiais – uma
casa produzida por um construtor – quanto em obras naturais – uma semente que se
transforma em uma planta – contanto que se opere o sentido de potência mencionado
anteriormente, ou seja, como “o princípio de mudança em outra coisa ou na própria coisa
enquanto outra” (1020a4-6).
Sem dúvida, o próprio filósofo admite, no livro oitavo, que essa variedade de significados e
acepções poderíam levar a uma confusão ou, ainda pior, uma dificuldade de se estabelecer
um escopo claro em termos de ciência. Por isso, o imperativo de se retornar ao ponto mínimo
e indivisível, aquilo que não se corrompe e não se gera: a forma, e com isso voltamos a
considerá-la essência e voltamos às causas primeiras. Por conseguinte, afecções ou
alterações de cunho qualitativo ou quantitativo – o devir das coisas – somente podem ter
lugar na medida em que a matéria faz-se presente. Com efeito, o eterno, no sentido de
imutável, estaria relacionado à forma, enquanto a possibilidade de movimento – geração e
corrupção, tal como descrito acima – apenas opera sobre a matéria.
Apesar dessas considerações, o filósofo nos alerta do perigo eminente de se incorrer ao erro
de confundir essa espécie de sistematização do pensamento com a efetiva divisão em
categorias independentes que se interrelacionassem em determinadas instâncias – seja em
termos de participação ou comunhão, como suposto por outros filósofos. Isto porque, para
Aristóteles, “a matéria próxima e a forma são a mesma realidade; uma é a coisa em potência
e a outra é a coisa em ato”, ou seja, ambas referem-se a um e mesmo ser, de sorte que
“buscar a causa de sua unidade é o mesmo que buscar a causa pelo qual o que é um é um:
de fato, cada ser é unidade, e o que é em potência e o que é em ato, sob certo aspecto, é
uma unidade” (1045b15-21). Potência, como esclarece o filósofo em seu livro novo, indica,
assim, tanto a iminência do ato quanto a sua efetiva possibilidade de realização; pois “o ato
está para a potência como, por exemplo, quem constrói está para quem pode construir, quem
está desperto para quem está dormindo, quem vê para quem está de olhos fechados mas
tem a visão” (1048a38-b2). E o que mobiliza a potência ao ato, como já tratamos acima,
remonta tanto à causa eficiente quanto à causa final, ambas tocantes, em última análise, à
própria forma, a saber, ao ser propriamente dito.
Bibliografia
ARISTÓTELES. Metafísica vols. I, II, III, 2ª edição. Ensaio introdutório, tradução do texto
grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. Tradução portuguesa Marcelo Perine. São
Paulo. Edições Loyola. 2002.