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História da Filosofia Antiga

Tema: comentar a passagem da “Metafísica” de Aristóteles:


Há, depois, uma questão afim a esta, que é a mais difícil de todas e cujo
exame é o mais necessário. Dela devemos agora falar. Se, com efeito, não
existe nada além das coisas individuais, e se as coisas individuais são
infinitas, como é possível adquirir ciência dessa multiplicidade infinita? De
fato, nós só conhecemos todas as coisas na medida em que existe algo uno,
idêntico e universal. (ARISTÓTELES, Metafísica, 999a24-29).
No excerto retirado do livro “B” terceiro, em que Aristóteles elenca uma série de aporias e
questões não solucionadas pelas teorias predecessoras, o filósofo aduz um tema
fundamental que norteará seu exaustivo trabalho ao longo da Metafísica: a relação entre o
particular e o universal, e destas com a construção do conhecimento. Para uma compreensão
aprofundada sobre essas questões, realizaremos um breve excurso pela tragetória
aristotélica.

Primeiramente, logo no início do primeiro livro “A” da Metafísica, Aristóteles inaugura a


discussão ao diferenciar a atividade prática da atividade teórica. Este primeiro passo é o que
nos proporcionará uma distinção entre aquilo que deriva da experiência – o conhecimento
dos particulares – e a arte – que implicaria o conhecimento dos universais. Daí decorre a
clássica divisão aristotélica entre o trabalho manual – relacionado à experiência, àqueles que
agem por hábito e pelo saber prático, a praxis – e o trabalho mental – baseado no saber
conceitual, presente na arte enquanto ciência, a poiesis. Apenas esta última possibilitaria o
verdadeiro ensinar, pois tem acesso ao conhecimento das coisas, enquanto, na primeira, o
aprendizado ocorre apenas por imitação. Com efeito, embora não prescinda da experiência,
“a arte se produz quando, de muitas observações da experiência, forma-se um juízo geral e
único passível de ser referido a todos os casos semelhantes” (981a5-7), de modo que “os
empíricos conhecem o puro dado de fato, mas não o seu porquê; ao contrário os outros [os
que possuem a arte] conhecem o porquê e a causa” (981a29-30). O conhecimento sensível
está relacionado ao particular, enquanto que o conhecimento dos princípios e das causas, ao
relacionar-se, de algum modo, com o suprassensível, leva-nos a alçar o universal.

A partir de então, temos uma segunda derivação, em que a própria arte – tomada de maneira
genérica – deixa de assumir uma posição tão privilegiada quando defrontada com a ciência.
Isto é, mesmo no cerne das artes, poderíamos identificar aquelas que ainda se mostram
atreladas a algum tipo de função, necessidade ou utilidade prática, e aquelas que não
possuem qualquer finalidade exterior a si mesmas. Ou seja, uma arte que possua um intuito
heterônomo e outra que se mostre como absolutamente autônoma em seu fazer. No primeito
caso, estaria situada a medicina, por exemplo, enquanto, no segundo caso, a filosofia. Desse
modo, apenas esta última seria capaz de viabilizar a liberdade verdadeira, por nos levar ao
saber – “sapiência” – de determinados princípios e causas, pois: “chamamos de livre o
homem que é fim para si mesmo e não está submetido a outros, assim só esta ciência, dentre
todas as outras, é chamada livre, pois só ela é fim para si mesma” (982b25-27). O universal,
portanto, está relacionado à liberdade. Tal conclusão assemelha-se à que Aristóteles nos
conduz em sua “Poética”, uma vez que:

Não é ofíco de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que


poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e
a necessidade (...). Por isso, a poesia é algo de mais filosófico e mais sério
do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o
particular. (ARISTÓTELES, Poética, 1451a36-b11).
Não obstante, antes de nos explicar de maneira pormenorizada o significado dessas causas
primeiras relativas ao universal, Aristóteles nos guiará por um breve percurso por entre as
abordagens anteriormente empreendidas por outros filósofos, cujas discussões apresentam-
se como ponto de partida para o propósito aristotélico, seja de maneira a confirmar algumas
de suas premissas, seja, especialmente, para refutá-las. Ora, tal estratégia define o próprio
método dialético aristotélico, que consiste, basicamente, em apresentar os argumentos
vigentes – dos presumidos interlocutores – para, então, apresentar sua contraposição e
refutação. Aristóteles demonstra, então, o princípio de não contradição através da refutação.
Isso implica, primeiramente, assumir a existência de um interlocutor, com o qual se dialoga.
Parte-se, assim, não da demonstração a partir de uma assunção inicial tomada pelo próprio
autor, o que acabaria por nos levar a uma petição de princípio. Parte-se, sim, de uma
assunção tomada pelo interlocutor com o qual se dialoga, para, então, refutá-la. Assim, a
argumentação, em Aristóteles, só pode ocorrer “desde que o adversário diga algo” (1006a12-
15), que deve ter “significado para ele e para os outros” (1006a20-21).

Nesse sentido, vale demarcar certo deslocamento, em termos ontológicos, presente na


Metafísica de Aristóteles e que se faz valer das considerações sobre as origens do
conhecimento humano já presentes no Teeteto de Platão. Isto porque o que se encontrava
manifesto em filósofos como Parmênides era uma compreensão do ser enquanto uma
unidade de certo modo imutável e fixa, em detrimento da noção de movimento e mudança,
que viria a ser concebida, de maneira pioneira, por Platão, ao tomá-la como matriz
fundamental para a possibilidade do conhecimento. Alinhando-se a essa abordagem, em
Aristóteles, movimento e repouso passariam a se coadunar, de sorte que o movimento não
apenas faria parte, mas se tornaria componente imprescindível para o conhecimento e,
portanto, para a noção de intelecto – partindo do pressuposto de que o pensar propriamente
dito implica um ato – por isso, movimento –, o de dar significado às palavras e às coisas.

Se Platão havia assumido a herança de Heráclito de que as coisas seriam fluxo contínuo e
eterna mudança, Sócrates, por sua vez, teria se debruçado, sobretudo, com questões de
cunho ético, em detrimento das mais sensíveis – a “natureza em sua totalidade” – exercendo
outra importante influência sobre Aristóteles. A partir dessas chaves de análise, Aristóteles
viria a dialogar com Platão sobre o conceito de universal:

De fato, ele considerava impossível que a definição de universal se referisse


a algum dos objetos sensíveis, por estarem sujeitos a contínua mudança.
Então, ele chamou essas outras realidades Ideias, afirmando que os
sensíveis existem ao lado delas e delas recebem seus nomes. Com efeito, a
pluralidade das coisas sensíveis que têm o mesmo nome das Formas existe
por “participação” nas Formas. O que se refere à “participação”, a única
inovação de Platão foi o nome. De fato, os pitagóricos dizem que os seres
subsistem por “imitação” dos números; Platão, ao invés, diz por
“participação”, mudando apenas o nome. De todo modo, tanto uns como o
outro descuidaram igualmente de indicar o que significa “participação e
“imitação”. (ARISTÓTELES, 987b5-13).
Buscando compreender e realizar a crítica da teoria das formas platônicas – especialmente
no que diz respeito ao seu entendomento de ser, de participação e de alteridade –, o percurso
aristotélico sobre a abordagem dos pensadores precedentes viria, de alguma forma, a
legitimar e corroborar a existência das quatro causas primeiras apontadas pela “Física” do
próprio Aristóteles, e retomadas em seu sétimo livro da Metafísica, a saber: a forma (causa
formal), a matéria (causa material), o princípio do movimento (causa eficiente), e o fim e o
bem do movimento (causa final). Porém, advoga o filósofo, embora já se apresentassem
manifestas, implícita ou explicitamente, em teorias precursoras, essas causas estariam ainda
muito confusas, de sorte que seria seu papel o de esclarecê-las.

A partir dessas questões, Aristóteles coloca-se a seguinte proposta: analisar o ser enquanto
ser, e não apenas uma parte dele, tal como uma ciência parcelar – como seriam os casos da
física e da matemática. Tal tarefa ficaria a cargo de uma filosofia primeira e superior, referente
ao universal e não ao particular; “enquanto primeira, ela será universal e a ela caberá a tarefa
de estudar o ser enquanto ser, vale dizer, que é o ser e os atributos que lhe pertencem
enquanto ser” (1026a30-32). Isso não poderia implicar analisar cada indivíduo em particular,
mas algo que, de alguma maneira, fosse comum a todos eles. Entretanto, tal ciência almejada
por Aristóteles deveria ser capaz de solucionar algumas questões que se mostravam latentes:
por exemplo, conseguir ir além da simples enunciação de tautologias, problema parmenidiano
– “o ser é”, “o não ser não é”, “o branco é branco” –, dado que estas não implicariam a
construção do conhecimento de fato, além de ser capaz de lidar com os contrários – sem
incidir sobre a então oposição entre o “ser” e o “não ser”, colocados de maneira excludente
ou contraditória. Para tanto, com base nos passos já demarcados pelo Teeteto de Platão,
buscam-se caminhos em que se possam dizer muitos a respeito de um, partindo da seguinte
premissa: é impossível que a mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo, segundo o
mesmo aspecto.

A pergunta que então passa a nos guiar consiste em: como seria possível pensar, atribuir
significado às coisas? Primeiramente, “significar determinada coisa” não seria o mesmo que
“significar o atributo de determinada coisa”. Neste caso, exemplifica, “músico”, “homem” e
“branco” remeter-se-iam a uma mesma coisa e, no limite, tudo remontaria a um único e
exclusivo significado. A questão que preocupa o filósofo não se resume, tampouco, a
problemas e possíveis equívocos de nomenclatura, decorrentes de diferenças entre
linguagens e até mesmo culturas. Por exemplo, que “túnica” e “veste” não implicassem,
necessariamente, a mesma coisa e definição por particularidades da linguagem. Assim, dado
que as coisas possuem significados definidos e finitos, não seria possível aceitar que “ser” e
“não ser” estivessem coincidentes numa mesma e única coisa – por exemplo, ser homem e
não ser homem –, pois isto seria uma contradição, além de acarretar uma indeterminação
absoluta, uma falta de significado e, no limite, a impossibilidade do próprio pensamento.
Dados estes pressupostos, o que preocupará Aristóteles no quarto livro da Metafísica
consiste, justamente, em compreender a essência da coisa em si propriamente dita.

Diante de tal empreitada, o filósofo assume, primeiramente, que embora as coisas não devam
ter apenas um e somente um significado, o seu oposto também não poderia ser possível, ou
seja, assumir que todas as coisas poderiam ter significados infinitos, pois, de tal forma, não
poderíamos atribuir significado real e factível a nada. Tendo isso em vista, Aristóteles
acrescenta uma seguinte questão: a existência dos acidentes, que se diferenciam da
substância – esta, sim, relacionada ao significado e à natureza intrínsecas à essência da
coisa em si. Neste caso, na afirmação “homem é branco”, “branco” seria um acidente a ser
atribuído a “homem”. Não obstante, do mesmo modo que não poderíamos constatar que
haveria inúmeros signficados às coisas, mesmo que admitíssemos que houvesse diversos,
tampouco poderíamos pressupor que haveria infinitos acidentes possíveis numa espécie de
“série infinita de predicados” (10007b8). Afinal, advoga Aristóteles, deve haver um sujeito a
esses inúmeros acidentes – que não poderíam, por conseguinte, ser apenas acidentes auto-
referentes entre si. A origem e base a todos eles: essa seria a essência que se busca.

Após a refutação de filósofos como Protágoras e Parmênides, no livro A quinto, Aristóteles


mobiliza os múltiplos significados dos diversos termos associados, de uma maneira ou outra,
ao ser. Em primeiro lugar, os significados de princípio, dentre os quais estariam a causa
primeira da mudança e do movimento. Princípio coloca-se como o primeiro termo a partir do
qual algo é gerado, ou seja, como algo não imanente da criação, podendo estar na coisa ou
externamente a ela. Em seguida, a causa, que, se por um lado assemelha-se ao princípio,
por outro, divide-se em algumas possibilidades: material, formal, princípio e finalidade – tais
como expostas acima. Todas essas causas não se aplicam de maneira independente, mas
combinada e, inclusive, de maneira recíproca. Além disso, podem ocorrer em potência ou em
ato, ou inclusive de maneira acidental. Outros conceitos esclarecidos seriam, de maneira
bastante resumida: o elemento, como um e pequeno, que seja indivisível de alguma maneira
– daí se tira que, quanto mais elementar, mais universal se possa ser; a natureza, como a
substância das coisas que possuem o princípio do movimento em si mesmas, ou seja, em
que o princípio do movimento lhes é imanente, em potência ou em ato; o necessário,
denotanto aquilo que não pode ser diferente do que é, ou que tem natureza obrigatória, ou
aquilo que não se pode evitar ou concluir o contrário, ou ainda aquilo sem o qual não se pode
ficar sem; o Um, em que o substrato não é diferente e variável quanto ao número, ao gênero,
à espécie ou por analogia; o Ser, o qual, assim como o um, pode ser por acidente – p. ex. o
músico ser homem – ou por si mesmo, podendo ser em ato ou em potência. Após essa
sucessão exaustiva de definições acionadas pelo filósofo, chegamos, enfim, ao conceito
aristotélico de substância, fundamental para alicerçar seu pensamento, implicando tanto sua
materialidade quanto algo que lhe é imanente, suprassensorial. Outros conceitos ainda
esclarecidos seriam: diferente, idêntico, semelhante, oposto, anterior e posterior, quantidade
e qualidade, possível e impossível, potência, relativo e relação, perfeito, limite, parte e todo,
dentre outros.

Já em seu sexto livro “E”, Aristóteles buscará ater-se ao “ser” e seus diversos significados,
de maneira a nos acercarmos do conceito de universal presente no filósofo. Em primeiro
lugar, seria impossível estudar o ser enquanto acidente – por exemplo, o “homem ser branco”
ou o “homem ser músico” seriam acidentes, pois essa não é uma regra que se verifica nem
na maioria das vezes; porém, o homem ser definido como um animal não seria acidental. Tal
é o ponto de partida em Aristóteles: compreender em que medida se pode considerar
determinados atributos do ser como acidentais ou não, pois a ciência deve destinar-se a
entender o que é sempre ou na maioria das vezes. Além disso, considerar o “ser” deveria
envolver, igualmente, abandonar juízos enquanto verdadeiro ou falso, pois estes não se
encontram nas coisas em si, mas em nosso pensamento.

O que, então, faria parte do ser enquanto coisa em si, independente de juízos de valor? Tal
é a pergunta que ficará a critério do livro “Z” sétimo. Após o processo “higienizador” inicial do
livro, isto é, em que o filósofo realiza um esclarecimento sobre os diversos sentidos dos
termos, ao mesmo tempo em que refuta determinadas assunções anteriores e consideradas
não suficientes, Aristóteles chega, por fim, às suas próprias definições. Embora tome como
ponto de partida que o “ser” possa se referir tanto à substância quanto aos seus predicados,
o filósofo admite que a substânca deve possuir primazia e anterioridade em relação aos
predicados quantitativos e qualitativos. A partir disso, Aristóteles elabora sua formulação de
substância, conforme quatro significados fundamentais: a essência – “tô ti ên eînai” –, o
universal – “tô kathólon” –, o gênero – “génos” – e o substrato – “tô hypokeímenon” –, sendo
este último o mais importante para a definição de substância, visto que é “aquilo de que são
predicadas todas as outras coisas, enquanto ele não é precisado de nenhuma outra”
(1028b36-37). Substrato, por sua vez, seria formado por três partes: a matéria – “hyle” –, a
forma – “morphé/ eîdos” – e o composto (sínolo) resultante da união destes – “tô ek toúton
synolon”. Vale destacar, entretanto, que essas definições acabam por se imiscuir, em alguns
momentos da descrição do filósofo, como quando, mais à frente, retoma o conceito de
substância com o significado de: “substrato, “essência”, o “conjunto de ambos” e “universal”
(1038b1-3). Neste caso, a ideia de essência parece assentar-se sobre o conceito de forma
da primeira definição.

Em todo o caso, como esclarecido pelo próprio filósofo, ao tomar por exemplo uma estátua
de bronze: o bronze seria sua base material, a estrutura seria a sua conformação formal,
enquanto a estátua propriamente dita seria o composto de ambos. De sorte que tratar da
substância envolve necessariamente a matéria, embora ela não lhe seja o bastante, dado
que a matéria, por si só, “não é nem algo determinado, nem uma quantidade nem qualquer
outra das determinações do ser” (1029a20-22). Isto significa reconhecer que a substância
envolve determinação de algo – “tódeti” – enquanto a matéria ainda reside no âmbito do
indeterminado; o que nos conduz a outra conclusão: apenas a substância enquanto composto
“é”, ao passo que a matéria apenas “pode ser”, em termos de potencial – conclusão que
Aristóteles assumirá com maior veemência apenas no Livro oitavo.

Diante de todas essas definições, uma questão crucial que emerge do conceito de substância
é sua articulação com a ideia de produção ou de geração – seja de maneira artificial, seja
espontânea –, que, por sua vez, implica o movimento. De sorte que aquilo que é gerado –
por exemplo, uma esfera de bronze – deva ser sempre divisível, de alguma maneira, em
forma – esfera – e em matéria – o bronze – os quais preexistem o objeto gerado (sínolo).
Nessa relação, a forma não se gera, mas apenas a sua combinação com a matéria, a saber,
o sínolo (composto entre forma e matéria). Note-se, nesse sentido, que a substância não
consiste numa plena abstração, mas, sim, em algo que une, em determinadas instâncias, o
particular e o universal.

A partir do que dissemos fica claro que, em certo sentido, tudo o que é
produzido pela arte é produzido por outra coisa que tem o mesmo nome,
assim como são produzidas as coiass que se geram por natureza: ou por
uma parte dessa coisa que tem o mesmo nome (por exemplo, a casa provém
da casa que está na mente do artífice: de fato, a arte de construir é a forma),
ou de alguma coisa que contém uma parte dela (a não ser que se trate de
geração por acidente). De fato, a causa da produção é parte primeira e
essencial. (ARISTÓTELES, 1034a20-25).
Ora, temos então, no âmago da substância, que a forma coloca-se tanto como causa eficiente
quando como causa final, ou seja, ela se comporta como a origem do movimento, orientando-
o, mas também como sua finalidade última. Esta lógica opera tanto em obras artificiais – uma
casa produzida por um construtor – quanto em obras naturais – uma semente que se
transforma em uma planta – contanto que se opere o sentido de potência mencionado
anteriormente, ou seja, como “o princípio de mudança em outra coisa ou na própria coisa
enquanto outra” (1020a4-6).

Entretanto, as definições de substância em Aristóteles possui ainda outras nuances não


menos complexas. Como o filósofo esclarecerá mais à frente, nos demais capítulos do livro
sétimo, quando se desdobra a compreender a relação entre as partes e o todo e as
interrelações entre a forma e a matéria, a substância ora parece adquirir uma anterioridade
enquanto forma, subjazendo as demais definições, ora implica a relação imprescindível entre
a forma e a matéria, ou seja, o sínolo. No primeiro caso, o filósofo aduz o conceito de
substância primeira, à exemplo da noção de homem, que pode remontar, primeiramente, à
sua alma – antes mesmo de sua corporeirade. Assim, temos que:

a substância é a forma imanente, cuja união com a matéria constitui a


substância-sínolo (pensemos, por exemplo, na concavidade: da união desta
com o nariz deriva o nariz achatado e o achatado); na substância entendida
no sentido do sínolo (como, por exemplo, no nariz achatado e em Cálias)
está presente também a matéria. (ARISTÓTELES, 1037a29-35).
Tal ponto aparece corroborado e elucidado por outra importante passagem posterior:

o sínolo e a forma são dois diferentes significados da substância: o sínolo é


a substância constituída da união da forma com a matéria, a outra é a
substância o sentido da forma enquanto tal. Todas as substâncias
entendidas no primeiro significado estão sujeitas à corrupção, bem como à
geração. Mas a forma não está sujeita à corrupção nem à geração: não se
gera a essência de casa, mas só o ser desta casa concreta; as formas
existem ou não existem sem que delas exista processo de geração e
corrupção: ninguém as gera ou as produz” (1039b20-28).
Assim, a substância, enquanto essência – forma –, envolve aquilo que é “por si e, em geral,
para todas as coisas” (1037a20-21). Essência, portanto, é o que a coisa é por si mesma, sem
incluí-la em sua própria definição, e prescindindo de ser predicada por outros em termos de
participação, de acidente ou por afecção. E é nesse ponto que Aristóteles trava seu debate
com o universal:

Na realidade, parece impossível que algumas das coisas predicadas no


universal sejam substâncias. Com efeito, a substância primeira de cada
indivíduo é a própria de cada um e não pertence a outros; o universal, ao
contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza,
pertence a uma multiplicidade de coisas. De que, portanto, o universal será
substância? (1038b8-13).
Como vemos, a substância tomada enquanto sínolo, algo definido e determinado, não poderia
ser universal; não obstante – e neste momento que Aristóteles parece dialogar com os
conceitos platônicos de Ideia e de participação – quando tomada em sua acepção de forma
(essência), é que a substância adquire um sentido universal. O universal – abstrato – mostra-
se presente, de algum modo, nos múltiplos e plurais, e permite a demonstração, pois implica
o necessário – presente em todos os particulares – tal como exposto por Aristóteles. As
substâncias sensíveis particulares, pelo contrário, não admite demonstrações, pois se
relaciona ao individual e, portanto, não necessário a todos. Ora, é justamente nesse sentido
que a ciência, o conhecimento – diferindo da mera opinião – debruça-se sobre o universal,
aquele passível de ser demonstrado e definido.
A conclusão derradeira realizada por Aristóteles implica, em última análise, que a Forma
comporta-se como o principal elemento da substância, entando presente seja na substância
tomada como essência, seja na substância enquanto sínolo – sensíveis e, portanto,
corruptíveis. Daí decorre outra questão: ser em ato ou em potência. A substância consiste na
causa primeira do ser; no entanto, em sua acepção como matéria, trata-se de substância em
potência; já como forma, substância em ato. Como exemplifica o filósofo, ao acionarmos o
conceito de “casa”, poderíamos pensá-la como uma construção composta de tijolos, pedras
e telhas – matéria – o que indicaria uma substância em potência, ou seja, depende de algum
movimento – neste caso a ação do construtor – para que possa se efetivar. Por outro lado,
ao pensarmos na “casa” enquanto refúgio, local acolhedor e de proteção, aí estaríamos nos
referindo à sua forma, a substância em ato. Disso se segue que, ao pensarmos no composto
(sínolo), estaríamos considerando ambos os casos.

Sem dúvida, o próprio filósofo admite, no livro oitavo, que essa variedade de significados e
acepções poderíam levar a uma confusão ou, ainda pior, uma dificuldade de se estabelecer
um escopo claro em termos de ciência. Por isso, o imperativo de se retornar ao ponto mínimo
e indivisível, aquilo que não se corrompe e não se gera: a forma, e com isso voltamos a
considerá-la essência e voltamos às causas primeiras. Por conseguinte, afecções ou
alterações de cunho qualitativo ou quantitativo – o devir das coisas – somente podem ter
lugar na medida em que a matéria faz-se presente. Com efeito, o eterno, no sentido de
imutável, estaria relacionado à forma, enquanto a possibilidade de movimento – geração e
corrupção, tal como descrito acima – apenas opera sobre a matéria.

Apesar dessas considerações, o filósofo nos alerta do perigo eminente de se incorrer ao erro
de confundir essa espécie de sistematização do pensamento com a efetiva divisão em
categorias independentes que se interrelacionassem em determinadas instâncias – seja em
termos de participação ou comunhão, como suposto por outros filósofos. Isto porque, para
Aristóteles, “a matéria próxima e a forma são a mesma realidade; uma é a coisa em potência
e a outra é a coisa em ato”, ou seja, ambas referem-se a um e mesmo ser, de sorte que
“buscar a causa de sua unidade é o mesmo que buscar a causa pelo qual o que é um é um:
de fato, cada ser é unidade, e o que é em potência e o que é em ato, sob certo aspecto, é
uma unidade” (1045b15-21). Potência, como esclarece o filósofo em seu livro novo, indica,
assim, tanto a iminência do ato quanto a sua efetiva possibilidade de realização; pois “o ato
está para a potência como, por exemplo, quem constrói está para quem pode construir, quem
está desperto para quem está dormindo, quem vê para quem está de olhos fechados mas
tem a visão” (1048a38-b2). E o que mobiliza a potência ao ato, como já tratamos acima,
remonta tanto à causa eficiente quanto à causa final, ambas tocantes, em última análise, à
própria forma, a saber, ao ser propriamente dito.
Bibliografia

ARISTÓTELES. Metafísica vols. I, II, III, 2ª edição. Ensaio introdutório, tradução do texto
grego, sumário e comentários de Giovanni Reale. Tradução portuguesa Marcelo Perine. São
Paulo. Edições Loyola. 2002.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Sousa. 2. ed. Imprensa Nacional – Casa da


Moeda. 1990. Série Universitária. Clássicos de Filosofia.

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