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ELABORAÇÃO INDIVIDUAL: RAPHAEL PEREIRA MARQUES

Tratar das convulsões da contemporaneidade e, em particular, dessas no


contexto latino-americano, definitivamente, não é uma tarefa fácil. A
complexidade e variedade de fatores que estão em jogo, além da trivial
dificuldade em se analisar o tempo presente, ou seja, experiências ainda muito
recentes e, por vezes, em curso e inacabadas, dão uma pitada especial de
suspense sobre o que poderia ser ilustrado como um caminhar sobre a névoa,
como aquelas que encontramos nos meses de inverno em trechos da Serra do
Mar. Contudo, é fardo daqueles que se propõem a refletir sobre os eventos que
colocam em xeque as estruturas (inclusive, do conhecimento) do mundo tal
qual estamos habituados, aventurando-se pelo desconhecido e também pelo
conhecido, mas, talvez, desfigurado. O tema “América Latina em causa”, tal
como proposto no trabalho final da disciplina Paisagens Contemporâneas:
Territorialidades e Tensões Culturais, que buscou experimentalmente neste
segundo semestre de 2019 refletir sobre a temática através do mote “2020
(2045 – 25) ¾ de século de vertigem, insanidade e ilusão”, incita indagações
humanas e sociais opondo civilidade e cidadania à barbárie no mundo
contemporâneo (SANDEVILLE JR; BASSANI, 2019). Sem dúvida, são conflitos
instigantes, porém, por vezes, trágicos e reveladores da miséria humana.
Comecemos esta reflexão acerca dos acontecimentos que têm tomado a
Argentina, país vizinho ao Brasil e, como um bom vizinho, semelhante em
alguns terrenos, porém, com usos e desusos diferentes. Em 2015 a Argentina
viu o debate (e seus confrontos) acerca da questão feminina se intensificar,
catapultada a discussão por feminicídios brutais que, embora não sejam fatos
verdadeiramente recentes, chocaram a sociedade argentina em meio a
circulação desvairada de informações através das redes sociais na internet. Em
julho de 2015, após o assassinato da adolescente Chiara Paéz em Rufino,
Santa Fé, por seu companheiro, também adolescente, implicou em um ativismo
digital por meio da hashtag “Ni una a menos”. Esse lema se desdobraria em
intensos protestos pelo país, o primeiro marcadamente no dia 03 de Junho de
2015, e que se repetiriam nos anos seguintes, com maior ou menor
intensidade. Não se procura aqui analisar apenas a conflitualidade entorno da
violência contra a mulher, embora seja tema de extrema relevância, porém, de
expor as tensões que se rompem na sociedade argentina e que foram, de certa
forma, evidenciadas nas manifestações impulsionadas pelo “Ni una a menos”.
Foram várias as fraturas expostas e que se acumularam desde 2015 até aqui,
trazendo questões anteriores, enraizadas, ou até mesmo novas,
desencadeando efeitos políticos inesperados para alguns, ao menos para
aqueles que acreditavam (e pregavam) um certo consenso entorno do contexto
político institucional argentino.
Ainda em 2015, as métricas do feminicídio na Argentina representavam a
ocorrência de uma mulher assassinada por motivos da violência de um homem
a cada 33 horas. Esta cifra vem se reduzindo, aparentemente, no sentido de
um maior registro de casos enquanto feminicídio uma vez que foi dado
destaque ao problema. O que poderia ser taxado como ruim (uma ampliação
dos indicadores de feminicídio) revela, pois, a desconsideração pela qual o
tema era levado, sobretudo, pelos órgãos oficiais responsáveis em casos como
esses. Outros feminicídios como o de Lucía Perez, em que o acusado restou
absolvido, o de Liliana González, imigrante pobre e moradora da Villa 31 em
Buenos Aires serviram de querosene para o candelabro do “Ni una a menos”
que solidariamente se indigna, exigindo a proteção das mulheres pelo Estado e
pela sociedade, mantendo-as vivas. “Basta de nossas semelhantes serem
mortas” eram as falas de muitas manifestantes que participavam das primeiras
manifestações do “Ni una a menos” e das seguintes. Definitivamente, uma
oposição à bárbarie da cultura patriarcal que submete mulheres à condição de
vidas descartáveis.
De lá para cá o desenvolvimento do discurso e das manifestações
entorno do “Ni una a menos”, reuniu pautas para além da questão do
feminicídio. O “Ni una trabajadora a menos”, movimento que se iniciou após
uma demissão em massa de trabalhadores (particularmente, trabalhadoras,
pois, representavam 70% da mão de obra) na fábrica da PepsiCo na zona
norte de Buenos Aires, expandiu o debate para a questão do trabalho,
mantendo ainda a questão do gênero. Os confrontos acerca da educação
sexual nas escolas, perseguida pelo representante da presidência argentina e
governos provinciais alinhados, foi também enfrentado pelo movimento. A
questão da violência contra povos tradicionais, particularmente, pela morte de
mulheres indígenas em suas terras por forças da Gendarmería. As filhas e
filhos de genocidas da ditadura argentina em defesa de suas mães que
acompanharam estes soldados pela imposição destes, somou-se as
manifestações. A luta entorno da legalização do aborto que envolveu milhares
de mulheres e pessoas no ano de 2018 na Argentina, reconhecidamente pelo
uso de lenços verdes como símbolo do movimento, chegando até mesmo
extrapolar o movimento “Ni una a menos”, porém, mantendo a raíz de seu
discurso ao se solidarizar com as perdas das vidas das mulheres em
procedimentos ilegais de aborto desumanos, além de serem criminalizadas por
esses. O “Ni una jubilada a menos”, após a tentativa do governo Macri em
declarar a moratória de pensões de idosos e idosas, também direcionou a
atenção para o mínimo de sobrevivência dessas pessoas, então em risco. São
apenas alguns exemplos das extensões que tomaram as manifestações
inicialmente entorno da violência contra a mulher na Argentina sob o mote “Ni
una a menos”.
Apenas uma observação necessária. É interessante destacar como
nenhuma iniciativa penal teve sucesso (embora, tenham sido tentadas) em
agravar ainda mais sanções ao feminicídio, ainda que as manifestações
tenham se iniciado por fatos como esses. Legisladores, em geral, tendem a
simplificar questões complexas em respostas penais que na maior parte das
vezes se mostram ineficazes e não atendem de fato as causas do problema,
como ressaltaram em diversos momentos mulheres que assinavam como
integrantes do movimento “Ni una a menos”. Podemos tomar inúmeros
exemplos até mesmo do Brasil, quando propostas penalizadoras foram
utilizadas em momentos de alta repercussão nacional (principalmente, na
mídia), tal como fora a Lei de Crimes Hediondos (após o assassinato de
Daniella Perez, atriz e filha da diretora de novelas, Glória Perez), Lei Maria da
Penha, Lei Carolina Dieckmann, que mostraram-se no mínimo insuficientes
para o trato da questão. Essas mesmas mulheres fizeram questão de
evidenciar que antes de tudo estavam em busca de políticas públicas para
proteção e atendimento de mulheres vítimas de violências como tal. As vias
tradicionais já são compreendidas como insuficientes diante da complexidade
de nossos problemas contemporâneos, embora não estejam, nem de perto,
descartadas.
Todas essas tensões que giram entorno da aparentemente infindável
mercadorização de toda vida social, assim como conflitos culturais que tiveram
fortes embates com entidades de grande representatividade na Argentina como
é o caso da Igreja Católica, estão nos exemplos acima trazidos. Fato é que a
economia argentina em números definhou após a implementação de um
choque neoliberal em meio a presidência de Maurício Macri, com uma forte
desvalorização de sua moeda, porém, isto seria insuficiente para explicar o alto
acúmulo de pautas que se somara ao movimento “Ni una a menos”. Sem
dúvida, as tragédias sociais decorrentes do fracasso econômico podem ter
catalisado todo o processo, porém, seria somente esta a explicação para
tamanhos embates travados na Argentina contemporânea?
Seguindo essa linha de discussão da questão, digamos, de cunho tanto
objetivo quanto subjetivo, recorreremos aos recentes fatos em curso na Bolívia.
Seria apenas o fato da centralização de um presidente em sua própria figura
enquanto quadro político em um país suficiente para explicar conflitos tão
violentos e sangrentos como vem acontecendo naquele país, ou devemos levar
em conta outros fatores que influenciam as diversas escalas da paisagem e,
particularmente, no caso do tecido social boliviano? Um presidente que sofreu
um chamado do chefe do Estado-Maior a renunciar e, ainda que tendo
renunciado e convocado novas eleições, se vê obrigado a sair do país e se
refugiar. Forças policiais disparando munição letal contra manifestantes. Uma
perseguição que levou à prisão de líderes políticos e obrigou muitos a
passarem para a clandestinidade. Veículos de comunicação fechados,
jornalistas encarcerados, parlamentares impedidos de ter acesso à Assembleia
Nacional. Indígenas e evangélicos em oposição encenando episódios de pura
manifestação de ódio e violência. Um opositor penetrou no palácio presidencial,
onde posou, cercado de militares e policiais, com uma Bíblia colocada sobre a
bandeira do país. Por fim, uma senadora que se autoproclama presidenta em
uma fotografia, em amplo sorriso, recebendo a ajuda de um soldado para vestir
a faixa presidencial. Talvez sejam estas imagens fundamentais para a
representação de como alguns dos conflitos e tensões culturais (em alguns
casos, verdadeiras batalhas) tem se configurado na América Latina.
Por outro lado, a própria dimensão objetiva das relações socioeconômicas
parece ser catalisadora de processos como esses. Podemos utilizar como
referência nesse momento os recentes acontecimentos no Chile como espelho
de consequências drásticas de uma vida altamente mercadorizada, onde o
discurso e a prática do neoliberalismo tomou proporções de um verdadeiro
experimento sobre toda a vida de um povo. Uma convulsão após o aumento da
passagem dos transportes públicos em diversas cidades teve um saldo até o
momento de vinte mortos, centenas de mutilados (mais de 200 tiveram perdas
de globos oculares por balas de borracha), milhares de feridos, um número
ainda não mensurado de presos, torturas, agressões sexuais e inúmeras
atrocidades cometidas pela polícia e pelas Forças Armadas. Foram respostas
de um Estado marcado pelo autoritarismo contra pessoas que reivindicavam
direitos básicos, como o direito a um salário justo, a aposentadorias dignas, a
uma educação pública (gratuita) e de qualidade, a um sistema de saúde
público e digno. No Chile, até mesmo a água pertence a algumas
multinacionais. Toda a água. A dos rios, dos lagos, das geleiras.
Seguindo com os exemplos latino-americanos. Em 2019, a sociedade
equatoriana também apresentou uma inquietação que, aparentemente por uma
questão econômica, desdobrou-se em uma grande revolta. Após anos de um
governo posicionado ao lado de uma certa esquerda latino-americana, Lenín
Moreno que saira desta coalizão parecia ter guinado para o outro lado, após
assinar um acordo no início do ano com o FMI. O combinado colocava uma
série de condições e de reformas em troca da transferência para o Equador
nos próximos anos e como parte de seus compromissos, o presidente
equatoriano adotou medidas econômicas que liberou o preço dos combustíveis,
que tem muita representatividade para a população em um país que centra sua
produção no petróleo. Estas políticas econômicas desencadearam
manifestações, talvez, das mais importantes da história contemporânea do
país. Em um país fortemente marcado pela presença indígena em sua
composição étnica e que teve em seus tempos recente uma iniciativa de
reconhecimento da dimensão de suas culturas, observou as etnias indígenas
assumirem frente a manifestações de massa. O presidente decretou estado de
emergência, suspendendo várias garantias constitucionais e autorizando as
Forças Armadas a reprimir as mobilizações. Acusações de que as
manifestações eram na verdade manipulações do governo anterior (do qual o
atual incialmente tinha uma aliança) a fim de derrubá-lo, não pareciam
suficiente para justificar o que estava acontecendo no Equador, embora tenha
sido a justificativa maior do governo enquanto duraram. Finalmente, a imagem
da Confederação das Nações Indígenas do Equador (Conaie), líder das
manifestações, anunciando um acordo com o governo para revogação do
decreto sobre os preços de combustíveis foi simbólica para representação
dessas tensões.
Dessa forma, o que podemos apreender dessas ebulições que vêm
tomando o cenário latino-americano e de modos diferentes e semelhantes
outros lugares do mundo que aqui não tratamos? Em especial no contexto da
América Latina, me parece que o acúmulo de tensões históricas relacionadas
ao autoritarismo de Estado, que fortemente marcou o século XX, as
transformações religiosas que tomaram uma guinada conservadora fortemente
marcada pelos movimentos neopentecostais, as relações com os povos
originários marcada pela violência de Estado e pela discriminação social, o
afastamento que provocam medidas neoliberais das pessoas de seu direito à
cidade, marcadamente marcado pelas manifestações iniciadas por questões de
mobilidade e a alta militarização da vida, como vista nas respostas às
manifestações, quase sempre violentas, truculentas e bárbaras, que já não são
mais observadas de forma inerte pela população, ou suficientes para a
“finalização” desses processos, senão acabam agindo pelo lado oposto,
potencializando ainda mais esses movimentos, são sinais de uma
contemporaneidade marcada por alta tensões e conflitos truncados,
incompletos e que opõem civilidade cidadania e barbárie em um contexto de
confrontos intensos.

REFERÊNCIAS:
SANDEVILLE JR., Euler, BASSANI, Jorge. “Paisagens Contemporâneas:
Contracultura e Resistência, AUP5883/2019”. A Natureza e o Tempo (o
Mundo), on line, São Paulo, 2019 . Disponível em http://biosphera21.net.br/4-
ENSINO-PAISAGEMCONTEMPORANEA-2019.html, acesso em 14/12/2019.

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