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Resumo
Este trabalho tem o objetivo de estabelecer similitudes e discrepâncias entre os
discursos sobre o próprio bem-estar, produzido por dois grupos de idosas
viúvas de origem rural, em asilo e em convívio com a família na cidade de
Caratinga, Minas Gerais. Foram entrevistadas oito idosas, sendo quatro
institucionalizadas e quatro da comunidade. Foram comparadas as idéias cen-
trais e as ancoragens contidas nos discursos. Os resultados mostram que as
institucionalizadas atribuem ao trabalho o sentido da vida, as interações soci-
ais estão ausentes em seus discursos, a doença recebe outra conotação, o cuida-
do à saúde não ocorre de forma autônoma e a presença das questões culturais, Palavras-chave:
como a religiosidade, é marcante entre elas. Concluímos que a institucionalização envelhecimento;
imprime nas idosas uma representação diferenciada em relação a seu próprio viuvez; mulheres;
bem-estar. As questões que caracterizam o envelhecimento como uma fase de instituição de longa
perdas, solidão e dependência estão presentes com maior intensidade entre as permanência para
idosas que vivem na instituição asilar. idosos; felicidade
Abstract
This paper aims to establish similarities and discrepancies between the speech
on their own well-being, in two groups of elderly widows of rural origin, in
asylum and living with their family in the city of Caratinga, state of Minas
Gerais. Eight women were interviewed, four institutionalized and four in the
community. The central ideas in their speeches were compared. Results showed
Correspondência / Correspondence
Adalgisa Peixoto Ribeiro
R. Cosme Velho, 98 – Cosme Velho
22241-090 – Rio de Janeiro, RJ, Brasil
E-mail: adalpeixoto@yahoo.com.br
that the elderly institutionalized widows consider work the meaning of their
lives; the social interchange is absent from their speech; illness acquires another
connotation; healthcare is not autonomous; and the presence of cultural issues,
such as religiosity, is strong among them. We concluded that institutionalization Key words: aging;
gives those elderly women a different representation in relation to their own widowhood; women;
welfare. The issues that characterize ageing as a phase of losses, solitude and homes for aged;
dependency are more intense among the elderly women who live in asylums. happiness
As entrevistas foram realizadas mediante dades diárias, coloca o idoso num segundo
um consentimento livre e esclarecido. A apro- plano quanto à vida social.9
vação do Comitê de Ética em Pesquisa da
Escola Nacional de Saúde Pública foi obtida As participantes representam sua situação
para a realização do trabalho. atual como a perda do papel social de traba-
lhadoras e cuidadoras do lar. A noção da per-
da da capacidade de trabalho apresenta-se
RESULTADOS E DISCUSSÃO também sob a forma de comparação com o
tempo da juventude.
Analisando os discursos das idosas, pude-
As idosas se sentem inúteis e lamentam
mos encontrar alguns aspectos que caracteri-
não mais poder trabalhar. Isto se torna cla-
zam os dois grupos e, principalmente, o gru-
ro quando analisamos alguns trechos como
po das institucionalizadas e sua vivência no
o seguinte:
ambiente asilar. Foram identificados pontos
de grande relevância nas falas das idosas en- “Eu agora num tô fazendo bem dizer nada.
trevistadas e que serão apresentados a seguir, Eu num tô valendo nada... Mas eu fazia, quan-
juntamente com alguns trechos dos discursos do eu tava mais nova, com mais saúde. Fazia
que os exemplificam. serviço de casa, lavava roupinha minha e fazia
as coisas. E quando eu tava mais nova eu tra-
A primeira questão diz respeito ao traba-
balhava na roça, plantava as coisas, ajudava
lho e como as idosas institucionalizadas per-
meu pai colher, né. É desse jeito a vida, né.”
cebem sua ausência ou incapacidade para re-
(Idosa institucionalizada, 88 anos).
alizá-lo. Ocorre uma desvalorização pessoal,
por não realizarem atividades produtivas. A ausência do trabalho coloca as idosas
numa situação de falta do que fazer e, a partir
Alguns autores afirmam que, entre os ido- de então, não conseguem encontrar outras
sos, o sentimento de ser útil é essencial para a atividades que possam preencher o vazio dei-
visão positiva de si mesmo,8 é um meio de xado pela ruptura existente entre o passado
realização e valorização pessoal e social do produtivo e o presente situado na ociosidade
indivíduo. Alguns valores como o trabalho, a de uma instituição.
autonomia e a independência são extrema-
mente importantes para as pessoas idosas e Para Herédia,10 o indivíduo idoso que passa
ajudam a moldar a identidade e a história de pela última fase do ciclo vital sem perspecti-
vida.3 O valor socialmente reconhecido do vas de futuro e de vida, sente ainda mais agra-
trabalho garante a ele um lugar de destaque vado seu estado, por não saber o que fazer
na vida do ser humano. Ele aparece como de seus dias, por estar sempre entre o aborre-
aquilo que foi uma das principais habilidades cido e o melancólico, o que o leva muitas ve-
que, pela diminuição das capacidades físicas e zes à dependência e ao alheamento. Esta ocio-
conseqüente lentidão na execução das ativi- sidade leva as idosas a uma posição passiva
diante da vida, que transcorre como se fosse visitas de familiares e ocasionalmente de pes-
algo externo e alheio à sua existência. soas estranhas que vão à instituição para visi-
tas coletivas.
“Nada, nada. Eu só vivo sentada, só senta-
da aqui penando. Dia inteiro eu fico de casti- Em contrapartida, as idosas que vivem na
go. Só almoço, janto, deito e amolo os outros.” comunidade apresentam, em suas falas, a pre-
(Idosa institucionalizada, 71 anos). sença de interações com outras pessoas. As
relações sociais aqui parecem existir com gran-
Entre as pessoas acima de 60 anos, as per-
de intensidade, como podemos identificar nas
cepções das perdas, das incapacidades e das
falas destacadas a seguir:
doenças são aspectos salientes das represen-
tações da velhice. 9 “Faço visita ali no Josino mais a Figena, levo
o tempo conversando com eles lá. Distraindo
É importante ressaltar que, em sua maio-
eles também, né. (Idosa da comunidade,
ria, as idosas institucionalizadas apresentaram
70 anos)”.
dependência para a locomoção, o que restringe
em parte suas possibilidades de realização de “Trabalho na minha casa, lavo roupa, ar-
algum trabalho doméstico na instituição. Os ranjo casa, olhar menino pirracento, quebro o
trabalhos manuais e as atividades religiosas galho dos vizinhos, é isso mesmo... Assisto te-
realizam a função de evitar a inatividade total. levisão, fico à toa. A hora que num tiver à
toa vou pra casa dos vizinhos, faço minha
“Eu faço esses trabalhos de bordar e rezar comidinha e esses dia to levando almoço pro
terço.” (Idosa institucionalizada, 71 meu neto. E cuido de uma senhora doente.”
anos). “Eu faço esse tapete aqui, faço mais (Idosa da comunidade, 66 anos).
nada, como é que eu posso fazer, num tem
jeito, coitada de mim...” (Idosa institucio- Em alguns trabalhos, como o de Dorf-
nalizada, 76 anos). man et al.,3 com idosos de comunidades rurais,
foi encontrado um vínculo entre os habitantes
As idosas institucionalizadas somente con- do local, através das memórias de idosos que
seguem ver as atividades produtivas, tais como participaram integralmente da vida da comu-
as tarefas domésticas e as que são realizadas nidade, não somente nas igrejas, mas também
na roça, como as únicas possíveis. As possibi- nas atividades de suporte social. As pessoas que
lidades de outras ocupações parecem não mantêm relações sociais favorecem seu bem-
existir e as atividades sociais estão ausentes em estar físico, psicológico e social. 11,12,13
seus discursos.
A presença das interações com o outro
Aqui podemos apontar uma segunda ques- parecem contribuir para um melhor enfren-
tão, que está relacionada à solidão e à falta do tamento das situações adversas que podem
outro entre as idosas que residem na institui- surgir no cotidiano das pessoas. O apoio so-
ção. As idosas asilares relatam não receberem cial é um fator que contribui na manutenção
da saúde em momentos de estresse,14 ajudan- “Eu num gosto é de ficar aqui, fico porque eu
do na superação de acontecimentos como sô obrigada num tem onde ir.” (Idosa insti-
a morte de alguém da família, a perda da tucionalizada, 71 anos).
capacidade de trabalho ou mesmo a insti-
Outro ponto significativo no discurso das
tucionalização.
idosas está ligado às questões relativas à saúde
As idosas institucionalizadas de nosso es- e a doença. As idosas representam a doença
tudo não apresentam essa possibilidade de como aquilo que as impede de trabalhar. Mais
ajuda para a vivência de situações conflituo- uma vez, o trabalho aparece como algo que dá
sas que provavelmente são constantes quan- significado à existência humana. Sua importân-
do se vive em ambiente asilar. As trocas afeti- cia na vida das idosas entrevistadas é muito clara
vas que possibilitam a partilha de sofrimen- em suas respostas. Neste sentido, só pode rea-
tos, tristezas, preocupações e alegrias não es- lizar algum trabalho quem tem saúde.
tão presentes em suas falas.
“... coitada de mim eu já fiz muito, minha
A idéia de abandono é mais marcante que filha, mas se eu tivesse boa da minhas perna,
a importância atual ou passada da idosa para ah minha fia, eu fazia de tudo, igual eu fa-
a família. O abandono, no caso das idosas de zia.” (Idosa institucionalizada, 76 anos).
nosso estudo, não é enunciado como tal, mas “Tô com disposição pra mim andar, pra mim
é perceptível através dos discursos apresenta- passear, num é. Mais disposição pra traba-
dos por elas. Isto acontece sobretudo quan- lhar eu tenho.” (Idosa da comunidade,
do a pessoa perde parcialmente sua família, 77 anos).
como nos casos de institucionalização.9
Através da fala das idosas, podemos iden-
A situação de estar sozinha, ou seja, sem a tificar que o conceito de saúde da Organiza-
companhia de algum familiar e principalmen- ção Mundial da Saúde se aplica de forma
te a perda do marido, traz à tona o sentimen- muito clara a essas idosas institucionalizadas.
to de solidão. Com a morte do cônjuge, a Quando perguntadas a respeito da presença
família primária da idosa se desfaz, o que qua- de alguma doença, as respostas foram, na
lifica essa fase da vida como solitária e triste.9 maioria das vezes, negativas, mas logo após a
descrição de alguma seqüela ou alguma enti-
Quando o idoso não vive mais no seio da
dade patológica vinha à tona. Neste sentido,
família, ocorre um rompimento do equilíbrio
as doenças como diabetes e pressão alta pa-
das funções familiares de oferecer pertenci-
recem ter outra conotação e nem parecem
mento e favorecer a individualidade, provo-
doenças:
cando sentimentos de tristeza, desamparo,
desprezo, solidão e abandono.10 O trecho a “Num tô (doente). Parkison. Só isso que ele
seguir retrata de forma clara a presença do (o médico) falou que eu tenho.” (Idosa da
sentimento de abandono: comunidade, 79 anos).
“Não... que eu tenho é pressão alta, né. Faço “Eles me dão remédio de manhã e de noite.
tratamento da pressão alta.” (Idosa da co- Eu num guardo na cabeça o nome dos remé-
munidade, 77 anos). dios não. Sei que é por causa de pressão. Eu
tem problema de pressão alta.” (Idosa ins-
“Eu não. Só eu sinto dor nos meus nervos.
titucionalizada, 71 anos).
Onde tem nervo em mim dói. Onde tem nervo
dói. Tudo enquanto é lugar dói.” (Idosa ins- Finalmente, uma questão muito significa-
titucionalizada, 71 anos). tiva levantada nos discursos produzidos pelas
mulheres idosas abordadas foram as questões
O envelhecimento é marcado por aspec-
culturais. Constatamos que as falas estavam
tos positivos de sabedoria, consciência da fi-
impregnadas de valores e experiências adqui-
nitude, esperança e também por perdas que
ridas ao longo da vida de cada uma e que
podem gerar sentimentos de solidão, desva-
marcam profundamente a maneira de enten-
lorização pessoal e profissional, e podem até
der e perceber as coisas.
levar à dependência e à falta de autonomia.10
Segundo Rodrigues et al.15 para se enten-
Entre as idosas institucionalizadas, não
der o “estado de envelhecimento de cada um”, deve-
aparece um discurso autônomo em relação
se levar em conta os valores, as atitudes e as
ao cuidado com a saúde, o que é delegado
crenças dos idosos. Diante da “pluralidade de ex-
à instituição onde residem. Esta pode ser
periências individuais”, o pesquisador que estuda o
interpretada como uma atitude passiva fren-
envelhecimento tem a “possibilidade de confrontar as
te ao cuidado da própria saúde ou, por
diferentes experiências de envelhecimento uma com as ou-
outro lado, pode revelar uma estratégia da
tras, e a tentativa de identificar as constantes”.16
instituição para atender aos idosos e garan-
tir que eles tomem seus medicamentos em Questões culturais como a religiosidade
horários previstos e, principalmente, não in- estão presentes nos discursos das idosas que
terrompam o tratamento. Esta situação de se colocam de forma passiva e conformista
controle dos medicamentos por parte da diante da saúde e da doença, que são dados
instituição também foi encontrada no estu- por Deus sem nenhuma influência delas.
do de Herédia et al..10
Fatores sociais e culturais desempenham
É evidente que, além de variáveis como função importante nas percepções e expecta-
idade e sexo, a situação civil das idosas e mo- tivas das pessoas e de como elas vêem sua
radia atual influenciam os papéis sociais, reali- saúde e qualidade de vida.17
zação de atividades consideradas importantes
pelas idosas, no cuidado com a saúde e nas A religiosidade parece desempenhar pa-
interações sociais, por definirem condições de pel importante no enfrentamento das situa-
vida que limitam o desenvolvimento de tais ções de conflito vividas na velhice, facilitando
atividades. a aceitação das perdas, o enfrentamento de
situações estressantes e as dificuldades da vida. “O que Deus dá nós tem que está satis-
Apresenta um significado social e certa eficá- feita, né.” (Idosa institucionalizada, 71
cia diante dos problemas e dificuldades en- anos).
frentadas diariamente.18
A fé oferece um sentido à vida e consolo
A espiritualidade depende de compo- ante as situações de angústia e incerteza, ofe-
nentes como a necessidade de encontrar rece esperanças e ajuda a enfrentar as experi-
significado, razão e preenchimento na vida; ências mais dramáticas do cotidiano, possibi-
a necessidade de esperança e vontade para litando uma adaptação à situação vivenciada
viver; a necessidade de ter fé em si mes- no momento presente.21 As explicações reli-
mo, nos outros ou em Deus.19 O significa- giosas sobre saúde/doença se apresentam de
do é uma necessidade considerada essen- diferentes formas e têm raízes históricas pro-
cial à vida e, quando uma pessoa se sente fundas, mantendo-se nas representações so-
incapaz de encontrá-lo, sofre em função ciais dos indivíduos e ocupando lugar de des-
da presença de sentimentos como vazio e taque em seus discursos.22
desespero.
Durante as entrevistas observamos, atra-
Para Elkins, citado por Freire Jr, “a espi- 20 vés das respostas, que o envelhecimento e o
ritualidade é a habilidade de enxergar o sagrado nos próprio sentido de saúde e satisfação estão
fatos comuns, tendo a consciência de uma dimensão intimamente relacionados com a experiência
transcendente, que leva em consideração o próprio ser, e a história de vida de cada uma. A satisfação
os outros, a natureza e a vida”. com a saúde que hoje apresentam depende
daquilo que conseguem realizar:
As idosas institucionalizadas, como tam-
bém as residentes na comunidade, se referem “Eles tudo fala comigo, que eu devo tá satis-
à saúde como algo transcendente, ou seja, ela feita, por que tô andando, tô conversando, num
é estabelecida por Deus e, desta forma, está tô mal de cama.” (Idosa institucionaliza-
fora de seu controle: da, 88 anos).
“Deus pois assim né, que fazer, né. Deus quer “Dia que resolvo eu saio, ando pra toda ban-
assim o que vai fazer, né.” (Idosa instituci- da, vou e volto, graças a Deus.” (Idosa da
onalizada, 71 anos). comunidade, 70 anos).
“Tô com disposição pra mim andar, pra mim
“Deus ainda tá me dando esse muncadinho
passear. Mais disposição pra trabalhar eu
(de saúde).” (Idosa institucionalizada, 76
anos). tenho” (Idosa da comunidade, 77 anos).
“Num posso clamar porque Deus sabe o que Tão importante quanto as perdas dos la-
ços familiares são as perdas físicas, especial-
faz pra gente...” (Idosa institucionaliza-
mente a beleza, e sua conseqüência para a iden-
da, 88 anos).