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Preciso

A filosofia
e seu ensino
Caminhos e sentidos

jWfc
Edições Loyola
COLEÇÃO FILOSOFAR É PRECISO
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Antonio Edmilson Paschoal (PUC-PR)
João Carlos Salles Pires da Silva (UFBA)
.Marcelo Perine (PUC-SP)
Sílvio Gallo (UNICAMP)
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ISBN 978-85.-15-03673-8
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário

Apresentação......... .............................................................................. 9
Renê José Trentin Silveira e Roberto Goto
1. Desafios atuais do ensino da Filosofia ............................... .......... 17
Antônio Joaquim Severino
2. O ensino de Filosofia na educação escolar brasileira:
conquistas e novos desafios ........................................................... 35
Dalton José Alves
3. Filosofia e segurança nacional: o afastamento da Filosofia
do currículo do ensino médio no contexto do
regime civil-militar pós-1964 ........................................................... 53
Renê José Trentin Silveira
4. O filósofo e o professor de Filosofia:
práticas em comparação ................................................................ 79
Lidia Maria Rodrigo
5. Um diálogo e um simpósio intermináveis ...................................... 95
Roberto Goto
Apresentação

os dias 3 e 4 de dezembro de 2007, o Grupo de Pesquisas


Paideia, que reúne pesquisadores dedicados a estudos em
filosofia e educação, realizou seu I Simposio sobre Ensino de Fi-
losofia (I Simphilo) nas dependências da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O mote do
evento foi: “O que significa dizer sim para o ensino de Filosofia?”
Esta questão foi desdobrada e explorada em mesas-redondas que
trataram de quatro temas específicos:

1) O ensino de Filosofia: história e atualidade

N
2) A filosofia e seu ensino: o(s) sentido(s) do filosofar e do ensinar
Filosofia

3) O filósofo e o professor de Filosofia: práticas em comparação


4) Professores de Filosofia, seus colegas e alunos: aspectos éticos e
políticos

9
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Na presente coletânea, o leitor encontra textos que contem-


plam os três primeiros temas, que dizem respeito mais direta -
mente às questões e razões históricas e metodológicas do ensino
e da aprendizagem da Filosofia como disciplina escolar, bem
como aos fundamentos ontológicos e antropológicos do filosofar
em suas relações com as finalidades do ensinar filosofia. No
entanto, embora a definição de temas aponte para uma demarca -
ção de campos, não se pode esperar que esta seja rígida e precisa.
Os aspectos acima aludidos acabam intercambiados nos artigos,
como aliás se costuma esperar de abordagens de caráter filosófico:
elas tendem, por exigências intrínsecas — para não dizer por
vocação —, a abarcar e relacionar os diferentes aspectos, as várias
facetas de cada questão em benefício de uma análise de conjunto
e de uma compreensão tanto crítica quanto mais abrangente
da(s) realidade(s) referida(s) no problema que alguém, um gru -
po, uma época ou uma tradição trouxe à baila para ser pensado
c debatido.
Este parece ser bem o caso de "Desafios atuais do ensino
da Filosofia”, texto em que Antônio Joaquim Severino oferece
já uma espécie de síntese do debate, ao mesmo tempo abrindo e
delimitando caminhos para o trabalho do professor de Filosofia.
Ao conceber o processo de ensino e aprendizagem de tal disci -
plina como o meio e a oportunidade de que os alunos (sobretudo
— mas não só — os adolescentes) dispõem para buscar e promo-
ver sua inserção na história para aí descobrirem seus próprios
sentidos de existência histórica, o autor põe em estreita conexão
os fatores e elementos que constituem, de maneira essencial,
aquele processo: a historicidade, a condição humana, a subjeti-
vidadé, as relações entre a pólis e a paideia. A esses fundamentos
ou questões de fundo subordina o encaminhamento dos proble-

10
apresentação

mas metodológicos, pedagógicos e institucionais, entendendo a


Filosofia como um componente curricular que por si só não pode
ser encarregado de salvar a educação, uma vez que a própria
educação escolar como um todo não pode nem deve carregar
a responsabilidade de “resolver todos os problemas da sociedade
brasileira, nem mesmo o da formação das pessoas”. Tais limites,
que merecem ser lembrados “até para retirar dos ombros dos
professores de Filosofia aquela ansiedade que os escraviza”, não
os eximem contudo do “sério compromisso e da possibilidade de
contribuir, significativamente, para a formação dos adolescentes”
— formação que não se deve dar na qualidade de “uma erudição
acadêmica’', mas numa “forma de apreensão e vivência da própria
condição humana”, como “amadurecimento de uma experiência
à altura da dignidade dessa condição, experiência a partir da
qual as pessoas possam conduzir sua existência histórica”.
Já o trabalho de Dalton José Alves, “O ensino de Filosofia
na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios”, reme-
te mais diretamente ao processo histórico que culminou recente -
mente na reintrodução da Filosofia, ao lado da Sociologia, como
disciplina obrigatória do currículo do ensino médio. O autor con-
sidera, entretanto, que tal marco histórico, representado pela lei
n° 11.683, de 2 de junho de 2008, não deve ser tomado como um
ponto de chegada dos esforços para consolidar a presença da
disciplina na educação básica, mas como “ponto de partida para
novos e necessários avanços”. A seu ver, a instituição da obrigato-
riedade, no caso, “é uma conquista histórica, é o resultado de
aproximadamente trinta anos de luta por uma educação de quali-
dade e acessível a todos os brasileiros(as), luta para a qual vêm
contribuindo muitos educadores, estudantes, filósofos, sociólogos”
— portanto, “não se pode classificá-la como um gesto espontâneo

11
1

a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

e generoso dos gestores governamentais, mas sim como reconhe-


cimento e atendimento de uma reivindicação histórica”. Lem -
brando que há o risco de retrocesso, uma “vez que se pode acordar
um dia e a Filosofia já estar novamente fora do elenco de conhe-
cimentos fundamentais e básicos necessários à formação de todo
cidadão”, propõe que o momento atual é “oportuno para se vojtar
a discutir a criação de uma associação nacional de ensino de
Filosofia que reúna e dê mais força política às demandas da área,
tais como: o debate pela inclusão da Filosofia no vestibular; [...]
a metodologia e a didática do ensino de F ilosofia em sala de aula;
[...] a formação de professores de Filosofia”.
Adotando igualmente uma perspectiva histórica, Renê José
Trentin Silveira discute as razões do afastamento da Filosofia do
ensino médio no período da ditadura civil-militar instalada no
Brasil em 1964. Inicia seu texto pondo em dúvida a opinião bas-
tante difundida de que isso teria se dado em virtude da suposta
“natureza crítica, contestadora ou mesmo subversiva” da discipli-
na. A seu ver, o referido afastamento foi produto de um processo
mais complexo, cuja compreensão “passa pela análise da influên -
cia da Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento
(DSND), principal suporte ideológico” daquele regime, nas mu-
danças por ele implementadas na educação. Esta é a tarefa que
ele se propõe, “ainda que em caráter preliminar”, em “Filosofia
e segurança nacional: o afastamento da Filosofia do currículo
do ensino médio no contexto do regime civil-militar pós-1964”.
Após caracterizar brevemente essa doutrina, procura explicitar o
impacto que ela teve em algumas das medidas educacionais
adotadas pelo governo, com destaque para “os acordos MEC -
USA1D” e a “reforma do ensino de I o e 2 o graus (Lei 5.692/71)”.
Argumenta que “tais medidas visavam, em última instância, a

12
apresentação

transformar o sistema de ensino em instrumento de promoção da


segurança e do desenvolvimento do país”, papel que a Filosofía,
bem como outras disciplinas humanísticas, não parecia disposta
a desempenhar. Assim, “independentemente de ter ou não o
ensino.de Filosofia uma natureza crítica ou subversiva”, era
preciso eliminá-lo a fim de abrir espaço no currículo para matérias
marcadamente doutrinárias, como Educação Moral e Cívica e
Organização Social e Política do Brasil, plenamente identifica -
das com os objetivos do Estado de Segurança Nacional.
A preocupação com a didática do ensino de Filosofia cons-
titui o leitmotiv do texto de Lidia Maria Rodrigo, “O filósofo e o
professor de Filosofia: práticas em comparação”. Essas práticas,
a primeira consistindo no artesanato próprio do pensador, a
outra constituindo o trabalho de apropriação, reformulação e
socialização das teses e dos argumentos produzidos por aquele,
são objeto por parte da autora de uma reflexão conceituai que
se debruça sobre as relações de distinção e articulação entre o
discurso filosófico original, de um lado, e o discurso didático, de
outro. Na passagem do discurso primeiro elaborado pelo filósofo
para o discurso segundo tecido pelo professor de Filosofia, ocorre
uma inevitável simplificação, que “deve ser aceita, mas apenas
sob a condição de não se negar como mediação ou etapa transi-
tória”. O discurso segundo é um discurso mediador no duplo
sentido de que constitui “simultaneamente uma etapa de tran-
sição, como passagem de uma condição a outra, e também um
momento transitório, passageiro, que tem certa duração temporal
e, por isso, deve existir sob o regime daquilo que é provisório”.
O desafio que se oferece ao professor de Filosofia está em traba -
lhar de tal modo que o discurso didático cumpra efetivamente
sua função mediadora e jamais seja entendido “como fim último

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a filosofía e seu ensino — caminhos e sentidos

ou exclusivo da aprendizagem”. A autora assinala que o “discurso


mediador, quando exercitado como tal, tem a missão de construir,
em seu próprio interior, os instrumentos de sua superação, ou
seja, os instrumentos capazes de conduzir à autonomia intelectual
do aluno”; no caso, “trata-se de direcionar o trabalho no sentido
de promover a passagem da simplificação para a complexidade”,
sendo “o contato direto corn os textos filosóficos” o “instrumento
apropriado para essa transição”.
Finalmente, Roberto Goto procura o sentido do ensinar
Filosofia na exploração do sentido do filosofar: toma a filosofia
como sujeito de “seu” ensino, indagando o que, neste casó, ela
ensina 011 pode ensinar, na condição de mestra ou professora
— questões que (re)conduzém para os temas da morte e do nas-
cimento da filosofia. Se filosofar é buscar a verdade do real, dizendo
o que ele é mesmo, a filosofía está morta, reduzida a uma coleção
infindável de discursos a respeito dos quais não é possível decidir
em termos, justamente, do verdadeiro e do falso. Mas pela mes-
ma razão a filosofia teria nascido morta, pois a pretensão de dizer
o real mostra-se desde o início louca, impossível de ser satisfeita,
considerando-se que 0 real é o absolutamente outro do logos que
ambiciona dizê-lo. O autor faz a distinção, nesse passo, entre um
espanto púmeiro, que revela o real como absurdo, isto é, feericamen-
te infenso e inacessível ao logos, e um espanto segundo, o qual
se constituiria já por meio de um ardil ou artimanha do logos,
que então inventa conceitos (como o do ser parmenidiano) para
dar a si mesmo 0 artifício de realizar aquela pretensão de dizer
o real. Em tal insistência, que conflita com a caracterização da
filosofia como apenas um acervo de discursos, o articulista vê
tanto loucura quanto lógica: perseguir a verdade mesma do real
constitui 0 ceme do filosofar, o qual no entanto lança tal projeto no

14
apresentação

infinito. Assim, na (des)medida em que o fim — a finalidade —


dessa busca se projeta no infinito, o(s) sentido(s) do filosofar e do
ensinar Filosofia move(m)-se na direção e na presença de “um
diálogo e um simpósio intermináveis”, nos quais os discursos são
produzidos, postos e/ou jogados, mas sempre apontando para o
real, que os atravessa como a luz que passa e desaparece pelo
buraco negro.
Com o presente livro, o Grupo de Pesquisas Paideia — neste
caso representado por seus integrantes vinculados à linha de pes -
quisa Ensino de Filosofia — procura ampliar o acesso do público
às discussões desenvolvidas durante o I Simphilo, oferecendo
novos subsídios para a reflexão sobre o ensino de Filosofia e sua
prática em sala de aula — o que, espera, pode contribuir para
sua consolidação e sua disseminação, agora como disciplina
obrigatória do currículo de nível médio.

Renê José Trentin Silveira


e Robeño Goto

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Desafios atuais
do ensino da Filosofia

Antônio joaquim Severino1

Introdução

A filosofia justifica-se plenamente na formação do adoles-


cente, e sua presença faz-se absolutamente imprescindível no
currículo do ensino que lhe é destinado. Essa presença justifica -
se em decorrência da própria condição da existência humana,
condição que se constitui através de suas mediações históricas,
através do trabalho, através da participação social e através do
desenvolvimento cultural das pessoas. E a educação é a grande
mediadora dessas mediações concretas de nossa existência. Dada
essa historicidade radical de nosso existir, nosso modo de ser

1. Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo


(uspy.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

não é uma realidade pronta, mas um contínuo devir, um pro -


cesso de construção, impondo-se a necessidade da formação.
Mas é preciso, preliminarmente, superar uma visão ideali-
zada do poder e do papel da filosofia, da educação e da escola.
Temos a indevida propensão a esperar da educação escolar mais
do que ela pode propiciar. E preciso descartar a concepção
salvacionista da educação e, no âmbito da educação, o messia-
nismo filosófico. A educação é simplesmente uma aposta...
Não cabe à educação escolar resolver todos os problemas da
sociedade brasileira, nem mesmo o da formação das pessoas. O que
ela pode efetivamente fazer é contribuir, fazer um esforço para
investir o máximo possível para essa formação, sem ter de responder
por sua integralidade. E no âmbito da escola não cabc a uma única
disciplina o encargo da formação integral dos educandos: NenHu-
mai disciplina pode fazer isso sozinha, o investimento formativo é
responsabilidade de todas as disciplinas, do ciirrículo em seu sen-
tido mais amplo, do contexto c das pessoas envolvidas.
É importante ressaltar isso de forma incisiva, até para retirar
dos ombros dos professores de Filosofia aquela ansiedade que os
escraviza, dada a elevada expectativa em relação ao poder forma -
tivo da filosofia. Mas a Filosofia no ensino médio tem um papel
e uma responsabilidade, 110 que concerne à formação, análogos
aos de todas as outras disciplinas c depende, tanto quanto as de-
mais, do contexto cultural da cscola e da sociedade.
Isso colocado, não deixa a filosofia de ter um sério compro-
misso e a possibilidade de contribuir significativamente para a
formação dos adolescentes. Essa formação,'enquanto responsa-
bilidade parcial da educação, não se resume, obviamente, no
domínio de um acervo de conteúdos informativos e de deterrhi-
nadas habilidades. Não é uma erudição acadêmica, é uma

18
desafios atuais do ensino da filosofia

forma de apreensão e vivência da própria condição humana, é


o amadurecimento de uma experiência à altura da dignidade
dessa condição, experiência a partir da qual as pessoas possam
conduzir sua existência histórica.

Quando se fala de conhecimento e de filosofia, o que está


ein pauta é formação...

Para educar as novas gerações c preciso que cias se insiram·


nesse processo todo de formação, de desenvolvimento, obra que
é construída coletivamente. E preciso levar em conta a histori-
cidadc e a solidariedade do processo que instaura a humanida-
de no tempo. Não há, pois, como inserir as novas gerações no
mundo do trabalho, no mundo da participação social, no mundo
da cultura, de maneira ingênua, de. maneira automática, de
maneira mecânica ou de maneira dogmática. Por isso, a função
da educação é exatamente explorar esta que é nossa única fer-
ramenta: o conhecimento. Para que a educação, os currículos,
o ensino possam se tornar fecundos e significativos em qualquer
dos níveis da formação humana, em qualquer.de suas modali-
dades, obviamente é preciso que, ao lidar com eles, estejamos
lidando adequadamente com o conhecimento.
Isso quer dizer que não há processo de ensino, não há pro -
cesso de aprendizagem se não há processo de produção e cons-
trução do conhecimento. Então aí é que entra a importância da
abordagem filosófica, da postura filosófica, que interessam não a
uma determinada função em particular, mas a todas as pessoas
que estão passando por um processo de inserção no mundo da
cultura contemporânea. Trata-se, pois, de uma exigência univer-
sa
l· E quando chegamos, por exemplo, ao caso do ensino médio

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a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

pouco importa se o adolescente vai ter a terminalidade de seus


estudos nesse nível, inserindo-se já no mundo do trabalho, ou
se ele vai para a universidade: sua formação filosófica é absoluta-
mente necessária pára que ele, adolescente, possa se dar conta
do significado de sua existência histórica, do significado da inser -
ção dele, seja onde for — 110 mundo do trabalho, no mundo da
profissão, no mundo da cultura.
Bem entendido, a formação do jovem não é exclusividade da
Filosofia. As perspectivas de todas as ciências humanas são igual -
mente importantes, mas não cabe a elas responder por todas as
exigências de se lidar com 0 conhecimento na formação humana.
Por isso, a ideia de que a formação filosófica se dará na transver-
sajidade é mais um equívoco das apressadas mudanças setoriais
que se vêm fazendo na educação em nosso país.
Assim, tendo bem presente que estruturas curriculares não
constituem panaceias automáticas, que o currículo em si é uma
mediação, é preciso ficar também bastante claro que não se pode
formar bem o adolescente se não se cria a oportunidade-para que
ele possa desenvolver-se intelectualmente, para que ele possa
lidar com 0 conhecimento de maneira adequada para que se
promova como sujeito pessoal, para que ele se realize como ser
humano, como membro de uma sociedade e como cidadão.
De qualquer maneira, é preciso priorizar aquilo que é mais
fundamental: a formação filosófica — entendendo-se a filosofia
com esta postura, com esta atitude do espírito humano em rela -
ção às.coordenadas de sua própria existência histórica, social e
cultural — é o que existe de mais fundamental. Por isso, ela se
faz necessária em todos os níveis de ensino.
E óbvio que 0 papel da filosofia na tarefa da emancipação
do homem é fundamental, se se tem como meta a construção

20
desafios atuais do ensino da filosofia

de um sujeito humano autônomo, se se tem em vista a emanci -


pação do homem.
Falar, pois, da prática e do ensino de Filosofia remete-nos
ao exercício da subjetividade, o que nos faz lembrar que toda
atividade intelectual humana, todo conhecimento como expressão
dessa subjetividade já emergem 110 plano histórico e antropoló-
gico da espécie, intimamente articulado com o todo da prática
existencial do homem. O conhecimento surge como uma estra-
tégia da existência. Não constitui uma esfera isolada das demais
coordenadas da vidâ, em que pese sua força centrífuga rumo à
pretensa autonomia de funcionamento. Com esta consideração
não estou assumindo nenhuma teoria pragmatista, utilitarista
ou existencialista, apenas afirmando a íntima vincülação do
pensar ao existir concreto do homem.
Se isso já é válido para qualquer manifestação da subjetivi-
dade, o é muito mais ainda para 0 caso do conhecimento filo-
sófico, apesar de ser ele a modalidade quê mais se expressa com
autonomia em face dessas coordenadas objetivas. Mas esta é
uma força cntrópica que leva à ilusão, à alienação. Cabe sim
reconhecer uma pragmaticídade básica para a filosofia que se
traduz como função intencionalizadora de nossa existência. E o
esforço de busca de sentido deste existir, cabendo-lhe explicitar
referências para a condução dessa existência, como inténcionali-
zação das práticas reais que a constituem.

A filosofia é sempre paideia, pois está intrínsecamente com-


prometida com a formação política de todos os homens...

Isto quer dizer que o pensar filosófico, em sua substantivi-


dade, desdobra-se numa dupla dimensão: uma dimensão política

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a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

e uma dimensão pedagógica, ou seja, a busca do sentido não é


única e exclusivamente um problema do sujeito individual, não
é só epistêmica e ética, ela é sempre ligada à esfera do sujeito
coletivo, histórico e social.
A humanidade, como sujeito coletivo pensante, busca
explicitar e construir sentidos que tenham a ver com o direcio-
namento do agir histórico de seu conjunto. E sempre prenhe
de universalidade, por mais que seja um exercício individual.
Ora, isso transforma toda atividade intelectual, c de modo
direto e explícito a filosofia, numa explícita pedagogia política.
A filosofia torna-se uma paideia na medida em que, neces-
sariamente, se destina a formar a coletividade humana. Por
isso mesmo, e na exacerbação, todo filósofo é um educador da
cidade. Não sem razão, impõe-se insistir em que o compro-
misso fundamental do conhecimento é com a construção da
cidadania, entendida esta como uma forma adequada de exis-
tência no âmbito da pólis, adequada porque realizando uma
necessária qualidade de vida, que o próprio conhecimento,
ferramenta privilegiada da espécie, lhe permite configurar
historicamente.
Assim, discutir o ensino da Filosofia, em meu entender,
pressupõe que tenhamos sempre presente esse modo intrínseco
de ser do pensar filosófico. A tarefa pedagógica relacionada com
o filosofar parcce-me direcionada por estes dois vetores. O pri-
meiro vetor é o alcance geral da reflexão filosófica. Com efeito,
o refletir filosófico assim concebido precisa atingir toda a comu -
nidade humana, ou seja, por hipótese todos os homens deveriam
estar pensando com vistas à intencionalização de suas existên-
cias. É claro que a efetiva realização dessa necessidade é algo
historicamente precário, dada a carência das mediações huma -

22
desafios atuais do ensino da filosofia

nas disponíveis. Mas tem-se isso por horizonte quando insistimos,


ainda que molecularmente, em levar pedagógicamente a filoso-
fia às crianças da escola fundamental, aos adolescentes da escola
média e aos jovens dó ensino superior, quaisquer que sejam suas
opções vocacionais 011 profissionais. A filosofia dirige-se então
ao todo da população, e sua finalidade é formativa do humano.
Não se pode ser plenamente huinanizado sem a prática do pen-
sar reflexivo, sem o seu efetivo exercício.
Mas o outro vetor é o do ensino especializado, destinado à
preparação de verdadeiros “especialistas” em filosofia. Na verda-
de, este aspecto da tarefa pedagógica da filosofia não se desv in-
cula do primeiro, uma vez que a preparação destes especialistas
tem sua razão de ser no desempenho daquela primeira tarefa,
ou seja, não se formam filósofos num mero processo de autor-
reprodução. Eles são formados para educar filosoficamente todos
os sujeitos educandos como futuros integrantes da pólis. O
curso de F ilosofia não pode voltar-se para a reprodução de uma
categoria técnica de alta especialidade, que girasse em tornõ de
si mesma, ou para a sustentação de setores igualmente especiali-
zados da sociedade. E por isso mesmo que a formação filosófica
deveria perpassar, impregnar capilarmente, todo o organismo
universitário e societário. Trata-se de um tipo de formação que
diz respeito a todo mundo. ,
Talvez essas afirmações, em tese, sejam até consensuais
entre nós, mas 0 problema é sua concretização. Sem dúvida,
isso não está ocorrendo na prática. E impõe-se-nos explorar ao
máximo as poucas e precárias mediações que ate então consegui-
rnos, historicamente, implementar. É hora então de nos referirmos
as práticas concretas que estamos desenvolvendo nos últimos tem -
pos em nossos meios educacionais.

23
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

A formação filosófica é uma exigência universal, ou seja, ela é


necessária na formação e na atuação de todos os profissionais

Uma primeira consideração é reiterar a pertinência dos es-


forços que vêm sendo desenvolvidos com o intuito de educar fi-
losoficamente todos os educandos em todos os momentos de seu
tempo escolar. E de se reconhecer então a procedência da expe-
riência pedagógica do exercício filosófico pleno desde o ensino
fundamental. Sem prejuízo de todas as cautelas è das eventuais
limitações das experiências realizadas ou dos modelos paradigmá -
ticos adotados, parece acertado historicamente levar as crianças
à experiência de um diálogo filosófico, munindo-as de estratégias
adequadas para que nelas se inicie, na verdade se ative a capaci-
dade de pensar sistematicamente que é própria da filosofia.
Igualmente válidas são a continuidade e a expansão da for-
mação filosófica dos adolescentes no ensino médio. Indiscutível
sua relevância nessa fase tão significativa na formação da identi-
dade do ser humano. Os investimentos na formação filosófica de
crianças e adolescentes parecem-me procedentes, uma vez que
essa formação contribui mesmo para o amadurecimento de opções,
por parte de jovens, pelo campo da prática filosófica. Para tudo
precisamos de uma sensibilização, como bem o mostra o caso da
sensibilidade estética.
No caso então do ensino superior, a formação filosófica tor-
na-se uma exigência ainda mais abrangente c completa, já que
agora a educação envolve-se diretamente com a própria produ-
ção do conhecimento, com a responsabilidade não só pela pre-
paração profissional para a atuação direta nos destinos da pólis,
mas também pela sustentação do próprio processo de produção
da ciência. "·

24
desafios atuais do ensino da filosofia

Até pela relevância e pela imprescindibil idade do exercício


da reflexão filosófica no seio da cultura, o ensino da Filosofia
merece um cuidado muito especial, na medida em que é o locus
principal de desencadeamento de todo o processo da busca de
sentido. Não se trata apenas de se instruir numa determinada
habilidade nem de se apropriar de um acervo de conhecimentos.
Trata-se, ao contrário, de se instaurar, de se desenvolver e de
amadurecer um estilo de reflexão, um modo de pensar, um jeito
especial de fazer atuar a subjetividade. Obviamente, isto tem de
ser conquistado através de mediações pedagógicas, fazendo -se
assim absolutamente imprescindível o ensino. E aqui é o momen -
to de me posicionar criticamente contra a ideia de que esse refletir
surge na transversalidade do aprendizado geral das demais dis-
ciplinas de um currículo. Certo, não cabe mesmo fetiehizar o
currículo, mas mediações específicas precisam estar atuantes
para que aprendamos a filosofar.

No resgate das contribuições dos filósofos clássicos, impõe-se


levar em conta a historicidade do processo do conhecimento

Quando se fala de estratégias que possam tornar operativas


essas mediações, logo vem à tona o recurso à história da filosofia.
Qual é o lugar da história do pensamento 110 processo de ensino/
aprendizagem da Filosofia? O convívio com os filósofos parece
um caminho óbvio. Mas é preciso ter muita sensibilidade c luci-
dez para trilhá-lo. Ao recorrer à história da filosofia no processo dc
ensino/aprendizagem da Filosofia, deve-se levar em conta a afir-
mação da historicidade do conhecimento e não uma convicção
historicismo. Com efeito, impõe-se o resgate do pensar filo-

25
a filosofía e seu ensino — caminhos e sentidos

sófico do passado, daquilo pelo que ele se tornou clássico, por-


que o filosofar, como toda modalidade de conhecimento huma-
no, se faz também pela prática histórico-social de um sujeito
coletivo. Em que pese a inarredável mediação dos sujeitos indivi-
duais, os grandes filósofos, o pensamento humano constituiu-se
por múltiplas contribuições que se articulam na temporalidadc
histórica e na espacialidade social. O filosofar é, sem dúvida,
uma grande experiencia coletiva, como, de resto, o é toda a cul-
tura humana. Mas resgatar as etapas que foram se sucedendo e
se superando ao longo dessa trajetória não é fazer um puro ras-
treamento arqueológico. Esse processo do passado só se legitima
na exata medida em que nos subsidia na compreensão das arti-
culações de nossa experiência atual. Nossa experiencia contem-
porânea só ganha significado se relacionada a esse devir, o mes-
mo que nos lança rumo ao futuro, ou seja, instaurar o sentido
hoje só se legitima enquanto esclarecimento para o direcionar
dc nossa existência futura, como investimento na continuidade da
construção do futuro da espécie.
Por tudo isto, o exercício do filosofar implica um diálogo
especial com os pensadores do passado e mesmo com os pensa-
dores contemporâneos. Num caso como no outro, não estamos
diante de um produto sui generis do qual nos apropriaríamos
para uma espécie de fruição egocêntrica, más de um processo
de pensamento, de reflexão, de indagação que busca esclarecer
o sentido de todos os objetos de nossa experiencia, mesmo quando
já significados pelo senso comum ou pelas ciências.
E se, com relação aos pensadores do passado, não cabe exi-
bi-los num museu de ideias antigas, com relação aos pensadores
atuais não cabe expô-los no museu das ideias contemporâneas.
Entendam-me bem: a mediação pedagógica exige a retomada

26
desafios atuais do ensino da filosofia

e a exposição destas ideias, não como uma peça de anatomia


0u de museu, mas como uma dinâmica energética do pensar
que problematiza nossa própria atualidade.
Trata-se, antes, no processo de ensino/aprendizagem da Filo -
sofia, de articular bem o produto e o processo. Incorpora-se o
processo pelo resgate reconstrutivo do produto, revivendo o pro-
cesso que foi como que objetivado no produto. Praticar o proces-
so puro, a partir dc um debate supostamente originário, é desco-
nhecer a historicidade do próprio processo. Só possq aprender
a pensar pensando, mas, para nós, pensar implica retomar aquilo
que é resultante do já pensado. Eis a justificativa e a significação
mais profunda do diálogo com os pensadores que nos antecede-
ram no tempo c com aqueles que convivem conosco num mes-
mo espaço social, na contcmporaneidade.
Só assim a prática da filosofia se torna paideia, ou seja, se
faz pedagogia para formar o cidadão. Por isso, ela precisa expor
também ao real, ou melhor, se expor a ele, ao real, que se con -
fronta com as ideias. Formar a juventude e formar os formadores
da juventude, os educadores em geral e o filósofo-educador, em
particular, é habilitá-los ao exercício dc uma forma dc pensa-
mento que seja competente, criativa e crítica com relação à
realidade do existir.
O filosofar contemporâneo não pode deixar de considerar
que é também tarefa sua decodificar a atualidade do mundo,
investir na explicitação dc seu sentido na contingcncialidade de
seu produzir histórico. Por isso, ele é uma investigação sobre o
sentido do presente, com tudo que isto tem de arriscado. Torna -se
necessário para o filósofo estar atento às manifestações do real
histórico do momento; daí a decorrente exigência dc diálogo com
todas as demais expressões do conhécimento, pois afinal a filo-

27
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

sofia não dará conta, sozinha, de toda essa hermenêutica do real,


da vida e da história.
Mas é bom lembrar ainda que essa atualidade é extrema -
mente sedutora, eis que ela se estrutura sobre toda uma pode-
rosa tecnologia midiática, reforçada por uma hegemônica ideo -
logia, extremamente persuasiva, de um pretenso neoliberalismo.
E a cultura midiática que impregna todo o atual universo hu-
mano. Por isso, muitos pensadores deixam-se envolver pelo
mavioso canto da sereia, supostamente pós-moderna. Sereia que
c também esfinge, pelo caráter enigmático que esta cultura atual
também assume, pronta a nos devorar se não a decifrarmos.

Na leitura dos filósofos, é preciso igualmente superar uma


abordagem puramente filológica de seus textos...

Por outro lado, o rigor metodológico que se faz necessário


para o resgate do pensamento dos filósofos nunca deve reduzir-
se à pura exegese estruturalista de seus textos. Não se pode
perder de vista que o texto, a linguagem foram apenas a media-
ção sígnica, imprescindível para que o filósofo pudesse registrar,
com um mínimo de objetividade, seu pensamento e, sobretudo,
para que pudesse alocá-lo 110 accrvo da produção cultural da
humanidade, deixando-o à nossa disposição. Tanto o historieis-
mo quanto 0 textualismo parecem-me insuficientes e reducio-
nistas pedagógicamente, e acabam por dificultar em vez de fa-
cilitar 0 aprendizado amadurecido e formativo da Filosofia.
Por isso, na leitura, na reelaboração dos textos, o estudante
deve ter bem presente o carátcr processual do texto filosófico
— ele não se esgota em si mesmo. E nosso diálogo com os
textos é também, e fundamentalmente, um diálogo com o con-

28
desafios atuais do ensino da filosofia

texto, este entendido como a realidade multifacetada do existir


que envolve o pensador.
Que os textos clássicos da filosofia constituem base para a
reflexão e o debate filosóficos é uma conclusão incontestável, sobre -
tudo na fase da formação. O texto tem uma inquestionável dimen-
são pedagógica. A familiarização coma abordagem sistemática dos
textos com o intuito de uma leitura consistente é mediação valiosa
no processo formativo. O contato e o convívio com textos de boa
qualidade nos permitem evitar cairmos no mero opiniónismo do
senso comum ou na litcratice de consumo. O trabalho do conceito
é um esforço necessário para qué não predomine no espírito dos
iniciantes um ccrfo sentimentalismo, tendência sempre presente
quando se pretende debater questões que têm a ver com as condi-
ções da existência dos seres humanos. Não se trata de ser tolerante
com opiniões idiossincráticas. Mas nada disso autoriza a que se
tome um texto como uma peça autônoma, áutossuficiente, como
se ele não fosse o veículo da discussão de uma problemática obje -
tiva, que vai além da trama textual. A abordagem do filósofo até
pode apoiar-se na abordagem do filólogo ou do linguista, mas ela
é diferente. O objetivo da formação filosófica, bem como da atua-
ção do filósofo, é sempre a prática da reflexão filosófica, reflexão
que precisa ter como conteúdo os temas/problemas gerais relativos
ao todo da existência humana, mediados pelos temas específicos
da experiência vivenciada nos diversos âmbitos de nosso existir.

Conclusão
Não se pode perder de vista que o que está, pois, em pauta
é a formação, 011 seja, uma vontade utópica, à qual não cabe jamais
renunciar: explicitar pedagógicamente ao adolescente 0 sentido

29
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

de sua existência, subsidiando-o na compreensão do lugar que ele


ocupa na realidade histórica de seu mundo. Subsidiar o jovem
aprendiz a ler o seu mundo para se ler nele.
Esta a grande tarefa pedagógica da filosofia e seu grande
desafio em sua especificidade curricular. Ao contrário do que
deve ocorrer na graduação de Filosofia, aqui não se tem em
pauta o preparo de especialistas no conhecimento filosófico, no
qual a informação, o domínio das categorias teóricas e das refe -
rências históricas da filosofia têm um lugar proeminente no
desenvolvimento da atividade didática. Aqui está em pauta um
exercício de reflexão, uma experiência dc subjetividade.
Isso exige de nossa parte uma inflexão na prática do ensi -
no de Filosofia, de modo que se possa levar o aluno do ensino
médio ao exercício desse pensamento, à apreensão do sentido
de sua existência, o que deve ser feito mediante um processo
interativo do adolescente com o mundo de sua experiência
existencial.
Trata-se de ativar um diálogo do adolescente com o mundo
de sua cultura e cóm a cultura de seu mundo histórico, levando
em conta sua relação com a natureza, com a sociedade e com
o universo simbólico em que vive subjetivamente, ainda que
mediada pela conceituação.
Esse diálogo supõe mediações, entre as quais se destacam aque -
las exercidas pelo professor, pelo currículo e pelos conteúdos das
disciplinas. É que esse processo interativo de formação não ocorre
só no âmbito da F ilosofia, mas no âmbito de todas as disciplinas.
Embora essa mediação formativa se enfatize no caso da
Filosofia porque esta se coloca uma finalidade explícita, direta
e imediata, tendo assim uma especificidade como intenção dc
formação na medida em que procura subsidiar o sujeito edu-

30
desafios atuais do ensino da filosofia

cando a ressignificar sua experiência do mundo, ela faz isso com


a ajuda do conhecimento...
Daí a necessidade, no plano da atividade didática, de abor-
dar de forma interdisciplinar a multidisciplinaridade das ciências
e de todas as demais formas de saber e de sentir.
Por isso, as estratégias do ensino de Filosofía no curso mé-
dio precisam envolver necessariamente uma permanente inter-
relação com as demais disciplinas e/ou áreas que constituem o
conjunto formativo nesse nível. Não só por pura estratégia di -
dática, mas porque elas traduzem efetivamente vias de aborda-
gem do real, elas são mediadoras da experiência que o adoles-
cente está tendo do mundo.
Esta experiência é viabilizada pelas múltiplas dimensões da
sensibilidade do educando:

• a sensibilidade histórica: vivendo a historicidade da vida humana

• a sensibilidade política: vivendo as relações dc poder entre os


homens

• a sensibilidade cósmica: pela qual vive sua integração ao mundo


natural

• a sensibilidade biológica: pela qual vive sua condição de organismo


vivo

• a sensibilidade intelectual: pela qual cxcrce sua capacidade epis-


têmica de conhecimento e reflexão

• a sensibilidade estctica: pela qual vivencia a vida pelos sentidos*


gerais

• a sensibilidade ética: pela qual vivencia o valor do agir humano

A formação humana se dá pelo desenvolvimento e pelo


aprimoramento dessas múltiplas formas da sensibilidade, o que

31
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

·'' ■ #
enriquece a experiência do educando que se forma, se huma -
niza. Com sua dimensão sintetizante, a filosofia pode e deve
trabalhar conjuntamente com todas as disciplinas, articulando
suas linguagens e explicitando significações parcialmente abor-
dadas pelas ciências.
Mas retomar a experiência de vida não é mover-se no inic-
diatismo espontancísta da emocionalidade dos sujeitos singula-
res, como se fosse o cultivo de uma subjetividade intimista e
sentimental. Por isso, o ensino de Filosofia para os estudantes
do nível médio não pode limitar-se a uma sensibilização emo-
tiva, apelando a uma espécie de sentimentalismo. Ocorre que
o exercício da reflexão sobre os lemas da existência humana
pressupõe a mediação de conceitos e categorias que não brotam
espontaneamente. Os conceitos são necessários para o filosofar,
lídimo exercício de pensamento rigoroso, que precisa superar
toda forma de sensò comum. Daí a necessidade do recurso ao
acervo cultural disponível da filosofia, que se encontra na pro-
dução filosófica. Eis a razão de ser do diálogo sistemático com
os pensadores e especialistas, do recurso diuturno à sua produção
escrita. Apenas, essa frequentação precisa ser feita ancorada na
problematização da experiência dos educandos. Trata-se de um
diálogo cuja temática transita numa articulação dialética entre
o particular e o universal.
A atividade didática com a Filosofia deve, pois, utilizar
.materiais comuns, debater temas de interesse recíproco, explorar
interfaces, relacionando as dimensões mais abstratas, necessárias
para a compreensão do sentido do existir humano.
Ciências e filosofia empenham-se em dar conta do sentido da
condição humana, buscando mostrar que ela se configura como
resultante de uma longa prática, histórica e social, que pressupõe

32
desafios atuais do ensino da filosofia

o habitat natural da realidade física e biológica e formas peculiares


de sensibilidade, dc expressão, de linguagens e simbolizações.
Para assim atuar, o professor de Filosofia precisa exercitar
um permanente convívio com a prática efetiva dos professores
das demais disciplinas, acompanhando o seu processo de ensino,
os conteúdos trabalhados. Não para repeti-los, mas para explici-
tar suas implicações. Enquanto os professores de disciplinas do
campo histórico-social procuram colocar os adolescentes diante
do processo histórico que vai construindo a humanidade, o pro -
fessor de Filosofia deve ajudar o aluno a decodificar a significa-
ção desse processo em sua totalidade significativa, mostrando o
que é existir na temporalidade, discutindo a dialética do passado /
presente/futuro. Trata-se de mostrar ao jovem que ele vive inse-
rido no processo temporal, que faz parte de uma longa história,
cm cujo processo ele deve inserir-se para lhe dar continuidade.

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34
O ensino de Filosofía na educação escolar
brasileira: conquistas e novos desafios

Dalton ]osé A/ves1

A origem do problema: ambigüidades e contradições da LDB


Em 7 de julho de 2006, o Conselho Nacional de Educação
(CNE) aprovou um parecer que exige a presença da Filosofía e da
Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino
médio das escolas públicas e privadas do Brasil. Homologado em
11 de agosto de 2006 pelo ministro da Educação, Femando Haddad 2 ,

1. Professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy


Ribeiro” (UENF).
2. Despacho do ministro publicado no Diário Oficial da Urtião de 14
de agosto de 2006. Na mesma linha deste parecer, a lei n° ti.683, de 2 de
i'inho de 2008, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo pre-
sidente da República em exercício, José Alencar, altera o arligo 36 da lei
n 9.394/96, no sentido de incluirá Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do ensino médio.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

o parecer CNE/CEB n° 38/2006 altera especificamente a resolução


CNE/CEB n° 3/98, em seu artigo 10°, § 2 o , suprimindo a alínea b
e incluindo o § 3 o com a seguinte redação: “As propostas pedagó-
gicas das escolas deverão assegurar tratamento de componente disci-
plinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia". Assim, procura sanar
a ambigüidade da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB) — lei n° 9.394/96 —, a qual prescreve em seu artigo 36,
§ I o , inciso III, que ao final do ensino médio o educando deverá
demonstrar, entre outras coisas, “domínio dos conhecimentos de
filosofia e de sociologia necessários ao exercício da cidadania”.
O problema era saber dc que tipo dc “domínio” se tratava e
quais “conhecimentos” de filosofia e de sociologia, mais exatamente,
ele envolvia. Ainda: por que esteS eram “necessários”? Para o “exercí-
cio” de qual “cidadania”? Criticava-se na LDB a falta de clareza a
respeito de como se deveria dar concretamente nas escolas o acesso
aos “conhecimentos de filosofia e de sociologia”, se na forma de
disciplina específica do currículo e com professor habilitado na
área ou se diluído em outras disciplinas como tema transversal,
projetos multidisciplinares etc. Tal ambigüidade vinhá gerando
interpretações contraditórias entre os gestores governamentais e
das escolas, bem corno entre os próprios professores, alunos e a
sociedade em geral, o que tendia a inviabilizar, na prática, uma
presença efetiva da Filosofia nesse nível de ensino, ao contrário
do que sc poderia imaginar à primeira vista (ALVES 2002).
Sc no caso da Filosofia e da Sociologia a resolução CNE/
CEB n° 3/98 limitava-se a reproduzir o texto da LDB quase li-
teralmente, sem dar maiores definições (ver alínea b); disciplinas
como Educação Física e Arte vinham indicadas explicitamente
como componentes curriculares obrigatórios (ver alínea a), o
que pode ser visualizado no quadro abaixo (grifos meus):

36
o ensino de filosofia na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios

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37
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Percebe-se que em nenhum momento a lei tem a preocupa-


ção de situar a Filosofia e a Sociologia como disciplinas específi -
cas e obrigatórias no currículo do ensino médio. Ao mesmo
tempo, cia também não coloca empecilho para que isto ocorra.
A decisão sobre a forma de incluí-las vinha sendo deixada a crité-
rio dos gestores, o que na prática podia produzir resultados bem
diversos e até contrários às intenções proclamadas do legislador.
Conforme mostra Silveira (1991), na década de 1980 a
Filosofia voltou a ser incluída no currículo das escolas secundá -
rias como disciplina optativa, pela lei n° 7.044/82. Os movimentos
organizados de educadores reivindicavam, na época, que a disci -
plina fosse obrigatória para todas as escolas, porque uma breve
análise das conseqüências de sua condição de optativa permitia
perceber quanto era problemática e demagógica a proposta de
deixar a critério das escolas a decisão sobre a forma de inclusão
da Filosofia no currículo. Segundo Silveira,

[...] em função do aviltamento salarial a que estavam submetidos,


cada professor desejava assegurar para si a maior jornada dc trabalho
possível dentro de uma mesma escola a fim de evitar deslocamentos
para outras [...], considerando-se ainda que para muitos a ideia de
inclusão de uma nova disciplina era entendida como uma ameaça
de diminuição da carga horária das demais [...]. Ao que tudo indica,
a se deixar a decisão por conta das escolas as chances de reimplanta-
ção da filosofia no 2“ grau seriam bastante remotas (1991, p. 178;
grifos meus).

E mais:
Acrescentc-sc a isso a possibilidade de manipulação do processo de
distribuição de aulas por parte dos diretores, beneficiando grupos de-
terminados de professores cm função de suas preferências e amizades
pessoais ou dc outros interesses particulares (ibid., p. 413).

38
o ensino de filosofía na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafíos

Imediatamente após a promulgação da LDB, ein 1996, a


Secretaria de Estado de Educação de São Paulo apresentou a de-
liberação CEE 10/97, que fixava normas para a elaboração do
regimento dos estabelecimentos de ensino fundamental e medio
do estado de São Paulo, onde se le no item 4.2, sobre Currículo,
este terceiro parágrafo:

os conteúdos incluirão, onde couber, conhecimentos de filosofía e de


sociologia, necessários ao exercício da cidadania. Não serão necessa-
riamente outras duas disciplinas a se juntarem ao rol das demais, mas
■ temas específicos destinados ao fim em vista (grifos meus).

Mais recentemente o Conselho Estadual de Educação dc


São Paulo manifestou-se contrário à obrigatoriedade dessas disci-
plinas no currículo 3, ao acatar e aprovar um parecer em resposta
ao parecer CNE/CEB n° 38/2006, com a seguinte decisão:

O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia -


se pela não obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no
currículo das Escolas de Ensino Médio, no âmbito de sua jurisdição,
no ano dc 2007, respeitado o já disciplinado pela Secretaria da Edu -
cação para as escolas da rede pública estadual, bem co mo pelas
escolas da rede privada de ensino (Processo CEE-SP n”. 492/2006,
de 20/9/2006; grifos meus).

Nas conclusões do relatório apresenta-se a seguinte afirmação:


Finalmente, entende este Colegiado que os conhecimentos de Filo-
sofia e Sociologia são necessários e oportunos à formação dos alunos,
cabendo a cada Instituição ou sistema de ensino resguardar a sua
autonomia e definir o tratamento curricular a ser dado a esses conhe-
cimentos (ibid., grifos meus).

3. Processo CEE-SP n. 492/2006, dc 20/09/2006; ver ainda Indicação


CEE/CEB n. 62/2006 publicada no DOE em 28-09-2006.
a filosofía e seu ensino — caminhos e sentidos

Por outro lado, a mencionada ambigüidade da lei e os con-


flitos de interpretações que ela gerou suscitaram dezenas de ma-
nifestações de insatisfação pelo país, o que provocou algumas
medidas concretas para alterar a LDB. Destaca-se, neste cenário,
a apresentação do projeto de lei n° 3.178, de 1997, do deputado
federal Roque Zimmermann (Padre Roque), do Partido dos Traba-
lhadores (PT/PR), explicitando a obrigatoriedade das disciplinas
de Filosofía e Sociologia. O projeto foi aprovado na Cámara em
1999 e no Senado em 2001, porcm foi vetado no mésmo ano
pelo então presidente, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.
O veto, no entanto, não desanimou os que pleiteavam a obri-
gatoriedade. Argumentava-se que, se filosofía e sociologia eram
entendidas como mediações necessárias iia formação do educan-
do do ensino médio, era preciso que isso ocorresse de forma ex-
plícita, uma vez que o tratamento interdisciplinar, tal como era
compreendido e proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais
estipuladas pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC) — a
abordagem transversal —, era insuficiente para produzir os re-
sultados proclamados. Afinal, não é por quaisquer meios que se
tem um accsso satisfatório, substancial aos conhecimentos dc
filosofia e de sociologia; seu aprendizado demanda um método
próprio de ensino que o senso comum não dá conta dc abarcar.
Portanto, se é considerado necessário que os educandos demons-
trem domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia ao
final da educação básica (lei 9.394/96, art. 36, § I o , inciso III),
então o mínimo que se espera é que se ofereça a esses estudantes
a oportunidade de acesso adequado a esses conhecimentos. Caso
contrário, a filosofia e a sociologia aparecerão na educação secun-
dária mais como adorno, adereço, não óonstituindo parte essen-
cial deste nível de ensino.

40
o ensino de filosofia na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios

Notou-se que nas condições atuais e reais em que se realiza o


processo educativo escolar no Brasil a proposta de transversalizar
o currículo é sedutora, de um belíssimo utopismo, mas despro-
vida de condições objetivas para se realizar concretamente. Os
professores têm uma formação disciplinar, os livros didáticos têm
uma estrutura disciplinar, as escolas são disciplinares até do
ponto de vista arquitetônico. Ora, quais são as chances de um
currículo transversal funcionar neste contexto? Portanto , percebeu-
se que é absolutamente necessária a introdução da Filosofia e
da Sociologia no currículo do ensino médio na forma de discipli-
nas, como meio de, assegurar sua especificidade e o cumprimento
dos objetivos propostos, para que realmente elas possam contribuir
nesse processo e auxiliar os alunos a desenvolver as habilidades
e competências básicas requeridas para a área 4.

O termo “disciplina" não deve ser entendido aqui como uma negação
da interdisciplinaridade, algo estanque e som relação com as outras
áreas que compõem o currículo, e sim como a garantia de um espaço
específico de aula, com carga horária própria e profissionais habilitados
em filosofia; nada impede, contudo, que se trabalhe nesse espaço dc
forma interdisciplinar e contextualizada (ALVES 2002, p. 105).

Esta necessidade de a Filosofia e a Sociologia receberem


no currículo escolar o tratamento explícito de disciplinas funda-
menta-se, entre outras coisas, na história de sua presença neste
nível de ensino, pois todas as vezes que a Filosofia teve seu espaço
reduzido foi exatamente nos momentos em que a legislação fe -
deral tornou-a optativa ou quando se pronunciou de forma am-

4. Sobre o tema da transversalidade na educação e a necessidade de


a filosofia se fazer presente no- currículo como disciplina específica, ver
CALLO (1997; 2002).

41
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

bígua e contraditória a respeito desta questão (CARTOLANO


1985; SILVEIRA 1991; SOUZA 1992; CARMΙΝΑΤΙ 1997,
ALVES 2002).
De acordo com Souza,

[...] o processo de extinção da filosofia dos currículos dos cursos


secundários, que teve início com a redução gradativa do número de
horas-aula semanais, se acentuou a partir do momento em que perdeu
seu caráter de obrigatória e passou a ser uma disciplina complementar,
depois optativa [...] (1992, p. 64; grifos meus).

Breve balanço da situação atual: conquistas e novos desafios

Ate o presente momento foram expostos alguns dos argu-


mentos em defesa da inclusão da Filosofia e da Sociologia como
disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio. Uma vez
alcançado este objetivo, dado que a obrigatoriedade encontra -se
agora assegurada por força de lei (a dc n° 11.683, dc 2 dc junho
de 2008), cabe fazer um breve balanço da situação atual, apon-
tando e analisando as conquistas alcançadas e discutindo os
novos desafios que surgem no horizonte. Não se pretende reali -
zar aqui esta tarefa de modo exaustivo, inas apenas, mais modes-
tamente, indicar alguns possíveis problemas sobre os quais se
debruçar, bem como alguns caminhos para o seu enfrentamen-
to, a título de contribuição para o debate que se inicia nessa
nova fase.
Um ponto inicial a ser destacado e que não se deve perder
de vista é que a obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e de
Sociologia no currículo das escolas de nível médio é uma conquis-
ta histórica, é o resultado de aproximadamente trinta anos de luta
o ensino de filosofia na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios

por uma educação de qualidade e acessível a todos os brasileiros(as),


luta para a qual vêm contribuindo muitos educadores, estudantes,
filósofos, sociólogos. Trata-se de uma reivindicação que data pelo
menos do final dos anos 1970, quando foram organizados varios
movimentos, grupos e associações em defesa da proposta. Portanto,
não se pode classificá-la como um gesto espontaneo e generoso
dos gestores governamentais, mas sim como reconhecimento e
atendimento de urna reivindicação histórica.
O parecer que o CNF, aprovou em 7 de julho de 2006
removeu um grande obstáculo para que a F ilosofia e a Sociologia
se fizessem presentes nos currículos escolares do ensino médio
de todo o Brasil, mas, passado o momento da euforia inicial, com-
preensível após uma conquista há tanto almejada e desejada, é
preciso voltar os olhos para a história recente, pois há muito que
' aprender, sobretudo para não incorrcr em equívocos do passado,
os quais podem conduzir a um retrocesso no futuro. A historia
recente dessa luta em ámbito nacional ensina que a luta não
para ai, que a conquista de uma legislação favorável à introdu-
ção da Filosofia e da Sociologia no currículo nao é o ponto de
„ chegada, e sim o ponto de partida para novos e necessários
avanços. Afinal,

[:..] em política nada é definitivo. Isto tem dois significados fundamen-


tais: primeiro significa que toda conquista, por maior que seja c mais
sólida que pareça, é sempre provisória, contingente, histórica; e, em
segundo lugar, que as derrotas também não são definitivas. A primeira
inspira-nos o cuidado e a atenção para a manutenção das conquistas
alcançadas, o que implica a necessidade de estar sempre atentos para
não haver retrocessos, como a perda dc direitos conquistados etc.; a
segunda é motivo de esperança e certeza de que noutra conjuntura ou
correlação de forças mais favorável podemos avançar e realizar novas
conquistas. F. nesta perspectiva que devemos encarar toda reformulação

43
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

da legislação 011 a formulação de novas leis, tendo-as sempre como


ponto de partida e não de chegada (ALVES 2002, p. 136).

Podé-se lembrar, também, aquilo que ensina Saviani ao


afirmar que “a organização escolar não é obra da legislação, pois
ambas interagem no seio da sociedade que produz uma e outra”
(2000b, p. 168), 011 seja, a obrigatoriedade da presença da Filo-
sofia e da Sociologia na lei c no currículo por si só não garante
nada. A questão é 0 que se fará com elas. E isto que interessa
pensar com muito cuidado: para que se quer que a Filosofia e a
Sociologia estejam na escola como disciplinas? Portanto, tal
conquista implica um grande desafio. Para dar conta dele, é pre -
ciso pensar espaços para fortalecer um pensamento em comum
sobre essa questão.
A título de exemplo, não se deve esquecer 0 que aconteceu
em meados da década de 1980 com a Sociedade de Estudos e
Atividades Filosóficas (SEAF) 5, a qual — após um período de
intensa mobilização nacional em prol da introdução da Filosofia
no antigo 2 o grau (atual ensino médio), quando conseguiu reunir
a maioria dos departamentos de filosofia nessa luta e se tornar
uma das maiores, talvez a maior referência em âmbito nacional
em relação à luta pela introdução da Filosofia 110 ensino secun-
dário —, não obstante toda força acumulada, se desestruturou

5. “A Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos — SEAF — foi


criada em 1976 com o objetivo de resgatar nma Filosofia crítica dos pro-
blemas sociais daquele período e lutar pela volta dessa disciplina ao Ensi-
, 110 Médio. Naquele momento c no posterior, a SEAF se constituiu como
entidade de nível nacional, com regionais em vários estados do País [...].
Nasceu da necessidade de criar um espaço para o debate filosófico e a
reflexão crítica dos problemas atuais” (Disponível em: http://seaf-filosofia.
blogspot.com/).
0 ensino de filosofia na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios

nacionalmente 6 com a promulgação da lei n° 7.044/82, que per-


mitiu a volta da Filosofia ao currículo como disciplina optativa,
conforme já mencionado (CARMINATI 1997).
Na época, com os estabelecimentos de ensino secundário
desobrigados de garantir habilitação profissional, muitos passaram
a estruturar-se tendo em vista a preparação dos alunos para o vesti -
bular, e somente em caráter geral fomecer uma preparação para o
trabalho. As disciplinas da parte diversificada passaram a ser conside-
radas, então, por outro prisma, ganhando destaque aquelas que
forneciam uma formação mais geral em detrimento das disciplinas
de formação específica. A retirada 'das disciplinas de Educação
Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil
(OSPB), até então obrigatórias e tidas como equivalentes aos co-
nhecimentos dc filosofia c dc sociologia, abriu espaço para a volta
da Filosofia como disciplina optativa, o que sem dúvida foi um
avanço para o contexto da época, pois permitiu que muitas escolas
incluíssem a disciplina em seus currículos, mas por outro lado,
como previam as associações que lutavam pela obrigatoriedade, o
fato de ser optativa permitia também que muitas escolas não a
introduzissem (SILVEIRA 1991, p. 412; ALVES 2002, p. 42).
Cabe dizer que, grosso modo, muitos dos participantes do
movimento pela introdução da disciplina no ensino secundário
se acomodaram. De início intransigente sobre o caráter do retor-
no da Filosofia, não abrindo mão da obrigatoriedade da discipli-
na, aos poucos tornou-se um movimento inserido na “ordem”,

6. Apesar da desarticulação em nível nacional, a SF,AF-Rio continuou


a existir e a perseguir seu objetivo de ser um espaço de “estudos e ativida-
des filosóficos”, promovendo os Encontros Estaduais de Professores de Fi-
losofia do Rio de Janeiro, de periodicidade bi-anual, alcançando a marca
de seu XIII Encontro e lançando várias publicações sobre filosofia c/ou
ensino de filosofia (vide nota 6 o Blog da SEAF).

45
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

aceitando como inevitáveis as medidas oficiais, num raciocínio


muito próximo a alguma coisa do tipo “antes pouco do que nada”.
Em suma, a Filosofia terminou por ser oferecida como discipli -
na facultativa a partir de 1982-1984, o que resultou no arrefeci-
mento do movimento que pugnava por sua obrigatoriedade.
Foi assim que se chegou ao resultado já conhecido da LDB
de 1996, que lançou novos desafios c provocou uma nova arti-
culação dos profissionais da área no intuito dc retomar a ant iga
bandeira de luta pela obrigatoriedade da disciplina e as discussões
sobre o ensino de Filosofia 110 nível médio.
O problema, neste caso, é que essa rearticulação teve de ser
iniciada quase do zero, por assim dizer, dáda a desmobilização dos
profissionais da área. Se os antigos grupos não tivessem se desarticu-
lado tanto, talvez nem tivesse sido necessária toda essa mobilização
para alterar a I ,DB, pois essa disputa teria se dado já 110 momento
de construção dessa lei c, com um poder maior de mobilização e
pressão, poderia ter chegado a um desfecho diferente. Mesmo que
isso não acontecesse, as reações e iniciativas teriam tido mais força
de pressão, por não se tratar dc iniciativas isoladas e individuais,
somando-se às organizações dos sociólogos, que neste aspecto podem
servir de exemplo. Pode-se arriscar afirmar que, Sem a liderança e
a parceria das associações e organizações dos sociólogos, muito
dificilmente se teria chegado ao resultado atual.
A contribuição da área de filosofia foi mais acadêmica do
que política, por assim dizer. Exemplo disso foi a organização
dos fóruns sobre ensino de Filosofia que começaram a ser reali -
zados a partir de 1999 no sul do país, inicialmente sob a denomi-
nação Fórum dos Cursos de Filosofia do Rio Grande do Sul
para o Ensino da Filosofia . Com 0 avançar das discussões e da

7. Disponível cm: http://www.fonmisiilfilosofia.org/ataSantaCruz.doc


[acesso em novembro dc 2007].
organização do Fórum, este foi se ampliando e hoje congrega
todos os estados do Sul em sua composição, o que deu origem
ao Fórum Sul de Filosofia 8. Depois, seguindo o modelo da região
Sul, procurou-se organizar outros fóruns em outras regiões, tais
como no Centro-oeste 9.
Na região Sudeste, porem, os eventos realizados partiram
de iniciativas isoladas de professores e organismos universitários,
não constituindo um plano prévio traçado por instituições co n-
veniadas, a excrnplo do que ocorreu no Sul e no Centro-oeste.
No entanto, tem-se procurado organizar e promover eventos
e/ou publicações em conjunto sobre o ensino de Filosofia, bem
como outras iniciativas, como a criação em 2004 de uma lista
eletrônica dos professores de Filosofia da região Sudeste 10 com
o~ objetivo de promover o intercâmbio entre os professores da
região interessados na criação do Fórum Sudeste.
Outras listas de discussão na internet foram criadas, com o
objetivo de unir e articular os educadores interessados nesse de-
bate em âmbito nacional e internacional, com professores dos
países vizinhos ao Brasil, sobretudo Argentina e Uruguai. Com
tal objetivo o Departamento de Filosofia da Universidade Me-
todista de Piracicaba (UNIMEP/SP) criou·uma lista intitulada
Rede Latino-americana de Professores de Filosofia".

8. Disponível em:
http://wwv.forumsulfilosofia.org/ [acesso em no-
vembro9. de 2007]. em:
Disponível
http://www.fcoefilosofia.cjb.net/ [acesso em outubro
dc 2007],
10. Disponível em:
http://www:listas.iinicamp.br/inailman/listinfo/
filosofiasudeste-1 [acesso
11. Mensagens paraem novembro
a lista podemde
ser2007],
enviadas
para: redefilosofia®
iepmail.unimep.br

47
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos o ensino de filosofia na educação escolar brasileira: conquistas e novos desafios

A ideia da organização dos fóruns sobre o ensino de Filoso- foi alcançada finalmente e agora é possível, por isso, debruçar-sc
fia em âmbito nacional deve-se à percepção de que muitos dos propriamente sobre questões tidas como mais filosóficas — por
problemas que afetam a situação da Filosofia 110 nível médio, exemplo, sobre a filosofia do ensino de Filosofia, sobre problemas
como a acusação de que se trata de uma área dc conhecimento metodológicos, didáticos, de formação de professores de Filosofia,
inexpressiva ou inócua, seriam fruto da desarticulação dos pró- sobre os livros didáticos etc. —, por outro lado não se deve me-
prios professores que atuam na área e de um certo descaso dos nosprezar a articulação política e institucional conquistada ao
departamentos de filosofia, que se mantinham distantes e imper- longo desse processo.
meáveis à discussão dos problemas relacionados ao ensino de A insistência nesta ideia não implica colocar em segundo
Filosofia. Daí sc tirou a proposta da organização de um con- plano as outras discussões; ao contrário, pensa-se exatamente
gresso nacional dc professores de Filosofia 12 com o objetivo de em como garantir que toda a energia despendida na produção
aprofundar essa discussão e· pensar a hipótese da criação dc uma de conhecimentos sobre 0 “melhor” modo de ensinar/aprender
associação nacional de professores de Filosofia. Filosofia no ensino médio não termine caindo no vazio por não
Fsse congresso foi realizado na UNIMKP, em Piracicaba, se ter onde aplicar tais conhecimentos, uma vez que se pode
em novembro de 2000. Nesse evento acordar um dia e a Filosofia já estar novamente fora do elenco
I' ·''
foi criada uma articulação nacional e planejada uma estratégia de dc conhecimentos fundamentais e básicos necessários à forma-
Fóruns Regionais que tem promovido diversos Congressos para discutir
ção de todo cidadão.
a situação do ensino de filosofia a partir dc um expressivo cr cseimentó
Apenas a mobilização social constante e articulada dos
e consolidação desta área temática no Brasil' 5.
educadores da área poderá fazer frente a movimentos e reações
Merece destaque o fato de que estes movimentos geraram
dessa natureza. Agora é um momento oportuno para se voltar
c continuam a gerar eventos, publicações e pesquisas de mes-
a discutir a criação de uma associação nacional dc ensino de
trado, doutorado e monografias de conclusão de curso sobre o
Filosofia que reúna e dê mais força política às demandas da área,
tema do ensino dc Filosofia sob os mais variados enfoques,
tais como: 0 debate pela inclusão da Filosofia no vestibular;
contribuindo muito para 0 enriquecimento desse debate.
sobre a metodologia e a didática do ensino dc Filosofia em sala
Resta ver qual aprendizado é possível extrair disso tudo.
de aula; sobre a formação de professores dc Filosofia; pela in-
Pode-sc dizer que, se a obrigatoriedade da disciplina no currículo
clusão da disciplina no currículo nos estados em que ainda não
é obrigatória e 0 aumento da carga horária onde ela já está no
currículo; a questão dos manuais, dos livros didáticos etc. Não
12. Disponível em: http://www.unimep.br/congressofilosofia/’ [acesso
c abe aqui desenvolver as ideias, as sugestões e as experiencias
em agosto de 2007].
13. Disponível em: http://www-.filocduc.org/socrates/ [acesso em que se têm realizado em âmbito nacional acerca de cada uma
novembro de 2004]. dessas demandas, entre outras que aqui nem foram mencionadas.

49
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Pretende-se apenas indicar que há demandas, que elas estão aí


como que “exigindo” um fórum apropriado, sua ágora, para que
se coloquem e sejam analisadas e debatidas.
Isto faz do momento atual um período de consolidação e
de aprofundamento das conquistas realizadas e de fortalecimento
(teórico e político) para enfrentar os novos desafios que estão
por vir.

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LDB. Prcf. Sílvio Gallo. Campinas, Autores Associados/FAPESP, 2002.
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Filosofia no ensino médio: as sinuosidades legais. In: ALVES, D.
J. A filosofia no ensino médio: ambigüidades e contradições na LDB.
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SAVIANI, D. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 2 a
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_ ____ ■ Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13a ed. rev.
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51
Filosofia e segurança nacional:
o afastamento da Filosofia do currículo
do ensino médio no contexto do
regime civil-militar pós-1964
i ' . (_ ··· . ; - ■ · /:
Renê José Trentin Silveira1

arece bastante difundida a opinião segundo a qual a Filosofia


teria sido eliminada do currículo do ensino médio no período
pós-1964 em virtude dc sua natureza crítica, contestadora ou
mesmo subversiva.
Em documento extraído de um encontro dc entidades de
professores de diversas áreas realizado no Rio Grande do Sul,
em janeiro de 1987, o professor Álvaro Valls, da Universidade
Federal daquele estado, explicava:

Na época da. ditadura e da ideologia profissionalizante do capital


humano, a filosofia foi considerada subversiva e inútil. Não se de -

P 1. Professor do Departamento de Filosofia e História da Educação da


Faculdade de Educação da Unicamp e coordenador da Linha dc Pesquisas
sobre Ensino de Filosofia do Grupo de Pesquisas Paideia.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

sejava um pensamento crítico para a juventude Os melhores


professores foram cassados, a filosofia desapareceu dos vestibulares, as
disciplinas dogmáticas e ideológicas trataram de preencher o espaço
antes aberto à discussão crítica (apud CEPERGS 1987).

Por sua vez, a professora Maria Célia Simon, da Universi-


dade Santa Úrsula, 110 Rio de Janeiro, pensava diferente:

Muito já se discutiu sobre as razõe.s que teriam levado ao afastamento do


ensino da filosofia do 2 o grau. Na opinião de alguns, seria a “ameaça”
que o ensino da filosofia passou a significar dentro do nosso contexto
sociopolítico-econômico vigente a partir dc 1964. Mas será que, real-
mente, esse ensino, tal como era ministrado nas escolas dc 2 o grau
no Brasil, significava uma ameaça? E pouco provável. Talvez essas
pessoas tenham se esquecido do papel submisso que, de modo geral,
á filosofia desempenhou no Brasil e lembram-sc apenas de privilegiar
o seu lado crítico e libertador (SIMON 1986, p. 19).

Ameaça ou não, 0 fato é que a Filosofia acabou afastada


do ensino médio (então denominado ensino de 2 o grau) pela
reforma nele empreendida pela Lei 5.692/71.
Como, então, compreender esse afastamento?
A meu ver, o caminho para isso passa pela análise da in-
fluência da Doutrina dc Segurança Nacional e Desenvolvimen-
to (DSND), principal suporte ideológico do regime civil-militar
instalado 110 Brasil em 1964, nas mudanças provocadas por este
regime na educação 2.
Empreender tal análise, ainda que em caráter preliminar,
com o intuito de atingir essa compreensão é o objetivo do pre-
sente trabalho. Para tanto, serão apresentados, inicialmente e de

2. Para um estudo mais aprofundado sobre a DSND ver: COMBLIN


1978; ALVES 1984.

54
filosofia e sesurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

niodo sucinto, alguns conceitos e princípios fundamentais dessa


doutTina, a fim de caracterizá-la em linhas gerais. Em seguida, à
luz dessa caracterização, serão analisadas algumas das medidas
governamentais mais importantes no âmbito da educação, a saber,
os acordos MEC-USAID, as primeiras providências no âmbito da
legislação e a reforma do ensino de I o e 2 o graus (lei 5.692/1971),
buscando demonstrar que tais medidas visavam, em última instân-
cia, a transformar o sistema de ensino em instrumento de promo-
ção da segurança c do desenvolvimento do país, nos moldes
apregoados pela DSND, função para a qual a Filosofia, bem como
outras disciplinas humanísticas, não se mostrava adequada.

A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento


(DSND)

Em linhas gerais, a DSND baseava-se, como o próprio


nome revela, na tese de que segurança interna e desenvolvimento
econômico de um.país são indissociáveis, sendo a primeira con-
dição necessária para o segundo e vice-versa.
Essa interdependência se expressava no binômio “segurança
e desenvolvimento”, lançado por Castello Branco em seu discur-
so de abertura do ano letivo da Escola Superior de Guerra (ESG)
em 1967 e adotado como lema pelos governos militares que o
sucederam. No dizer do general golpista,

A inter-relação entre o desenvolvimento e a segurança faz com que,


por um lado, o nível de segurança seja condicionado pela taxa e o
potencial de crescimento econômico, e, por outro lado, o desenvolvi -
mento econômico não possa se efetuar sem um mínimo de segurança
(apud COMBLIN 1978, p. 66).

55
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

A impregnação da DSND nas instâncias de Estado deu


origem ao chamado Estado de Segurança Nacional (ESN), de
caráter totalitário, instituído 110 Brasil a partir de então.
Vejamos, então, alguns dos principais conceitos e princípios
dessa doutrina.

1. “Guerra subversiva” ou “guerra revolucionária”


A DSND distinguía vários tipos de guerra: “guerra total” ou
“guerra generalizada”, “guerra limitada 011 localizada”, “guerra
clássica ou convencional”, “guerra indireta ou psicológica”,
“guerra fria”, “guena subversiva ou revolucionária”, esta última
a que mais preocupava os militares brasileiros 3. Trata-se dc um
conflito interno em que parte da população busca a deposição
do governo. Não implica necessariamente a existência de luta
armada. Refere-se a toda forma de oposição capaz de pôr em risco
a ordem social.
Na concepção da DSND, uma das formas pelas quais essa
guerra se realizava era pela infiltração do comunismo internacio-
nal por vias indiretas. Isto significava que, mais do que as frontei -
ras territoriais, era preciso assegurar a defesa das “fronteiras ideo -
lógicas”. Afinal, o Brasil, sendo um país dc tradição pacifista e
situando-se a grande distância dos países socialistas, dificilmente
seria alvo de uma ocupação territorial. Por outro lado, os comu-
nistas que se supunham infiltrados nas diversas instâncias da so-
ciedade brasileira, estes representavam um perigo iminente.
Como a guerra revolucionária não é declarada, o grupo subver-
sivo precisa recrutar seus combatentes secretamente, no próprio

3. A respeito desses diferentes tipos de guerra, ver: ALVES 1985, p.


36 ss.; COMBLIN 1978, p. 32 ss.

56
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

país onde ela ocorre. Por isso, cada cidadão era visto como um
revolucionário em potencial, um possível “inimigo interno”.
I Iaveria, pois, uma estratégia de ação indireta dos comunis-
tas cjuc, valendo-se da propaganda ideológica e psicológica, teria
por objetivo incitar a população à oposição e à revolta, o que
obrigava o Estado a uma ação contraofensiva, a fim de, por meio
de técnicas de contrainformação e contrapropaganda, sobrepujar
com sua propaganda oficial a suposta propaganda marxista. Isso
contribui para explicar, ao menos em parte, os vultosos recursos
investidos pelos militares no desenvolvimento de um sistema
nacional de comunicação de massa como instrumento de “inte-
gração nacional” 4, bem como a implantação de reformas educa-
cionais, como a do ensino de,I o e 2 o graus (lei 5.692/71), que,
entre outras medidas, introduziu compulsoriamente no currículo
disciplinas de cunho claramente doutrinário, como Educação
Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil. Assim,
independentemente de ter ou não a Filosofia uma natureza cr í-
tica e subversiva, sua eliminação era necessária para criar espaço
no currículo para disciplinas mais habilitadas para realizar essa·
contraofensiva à suposta estratégia comunista.

2. “Segurança interna” ou “Segurança Nacional”

A DSND concebia a segurança interna como neutralização


de “antagonismos” e “pressões” de qualquer, natureza (“política,
econômica, psicossocial ou militar”) que, real ou ficticiamente,
representassem óbices aos objetivos do ESN, independentemente

4. Vale lembrar que a Embratel foi criada nesse período, mais preci-
samente em 1965;
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

da forma como se apresentassem: “violência, subversão, corrupção,


tráfico de influência, infiltração ideológica, domínio econômico,
desagregação social ou quebra de soberania” 5. Por antagonismos
entendiam-se aquelas atividades deliberadas que visavam a con-
testar a política nacional. Quanto às pressões, referiam-se a óbices
de grau extremo em que a manifestação contestatória teria con -
dições objetivas dc se sobrepor ao poder nacional.
Tal concepção servia para justificar a criação de todo um
aparato repressivo destinado a agir sobre a população em geral,
em nome da segurança nacional.
Essa repressão foi exercida principalmente mediante a de-
cretação de toda uma legislação autoritária que iria abrir cami -
nho institucional para o desencadeamento da chamada “opera-
ção limpeza”, destinada a afastar as fontes de oposição ao ESN.
Dessa legislação merecem destaque os Atos Institucionais, que
alteravam a Constituição para legitimar medidas de exceção, e
a Constituição de 1967, que incorporava definitivamente essas
medidas, eliminando, assim, seu carátcr de exceção e institucio-
nalizando a DSND. Quanto à “operação limpeza”, abrangeu
amplos setores da sociedade, incluindo sindicatos, poder Legis-
lativo, universidades, entidades estudantis e profissionais, entre
outros. Tal operação realizou-se, principalmente, com a abertura
de inquéritos policiais militares, por meio dos quais se justifica -
vam prisões, torturas, exílios, cassações de direitos políticos,
demissões c aposentadorias compulsórias.
No caso das universidades, muitas foram invadidas por
tropas militares, como ocorreu com a Faculdade de Filosofia da
Universidade de São Paulo (USP), episódio assim relatado pelo
professor Paulo Duarte:

5. Cf. Manual básico da ESC, p. 431, apud AI.VES 1985, p. 40.


}
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

[... ] As portas eram abertas aos pontapés, embora ninguém se recusas-


se a abri-las; os objetos eram atirados ao chão e destruídos, embora
tais objetos nunca tivessem conspirado ou atentado contra a ordem,
em nome da qual agia a polícia. Mais ainda, para coroar a diligência,
a polícia invadiu uma sala onde dava a sua aula um professor estran-
geiro, de notório alheamento a tudo quanto se referia a atividades
políticas; esse professor foi revistado e expulso da sala e numerosos
alunos levados para o DOPS, sendo soltos no dia seguinte por se ter
verificado que nada tinham com os fitos da visita policial e do em-
pastelamento das dependências da Faculdade de Filosofia. Criou-se
evidentemente um ambiente de pânico e revolta dentro da Univer-
sidade [...] 6.

Algo parecido ocorreu com a Faculdade de Filosofia de Rio


Preto (SP) e com a Faculdade de Filosofía da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)7.
A violência desferida contra as faculdades de Filosofia indica
que, para o ESN, elas representavam “antagonismos” ou “pres-
sões” que precisavam ser neutralizados. De fato, algumas dessas
faculdades, como a da USP, por exemplo, haviam se constituído
cm focos dc resistência à ditadura, como relata o professor Luís
Roberto Salinas Fortes:

Foi uma época difícil, com cassação dc professores, prisões de docentes


e alunos. Apesar disso, um pequeno grupo resistiu, até porque não
tínhamos outra saída. Houve um certo heroísmo; nós formamos um
centro de resistência 8 .

6. Cf.: ADUSP, O livro negro da USP, 1979, p. 13.


7. A esse respeito, ver respectivamente: ADUSP, O livro negro da USP,
1976, p. 13; ADUFRGS, Universidade e repressão: os expurgos na UFRGS,
1979, p. 83.
8. “O papel da filosofia é pensar a realidade em crise”. Folha de
S.Paulo, 15 fev. 1984.

59
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Assim, mesmo que no ensino médio a Filosofia não mos-


trasse a mesma força contestadora, não haveria motivo para o
FSN arriscar-se a mantê-la no currículo e ver esses focos de
resistência se propagarem pelas escolas. Afinal, não era difícil
imaginar que daquele ambiente universitário dc oposição ao
regime sairiam alguns dos professores de Filosofia que atuariam
no ensino médio.

3. Desenvolvimento econômico

Como vimos, a DSND considerava o desenvolvimento


econômico indispensável à segurança nacional, pois um país
subdesenvolvido estaria mais vulnerável à influência da estraté-
gia de ação indireta do comunismo.
Era necessário, pois, aumentar a capacidade do país de acumu-
lação de capital para garantir sua segurança interna. Além disso, a
“paz social” era importante para estimular a penetração do capital
estrangeiro, cuja contribuição a DSND considerava fundamental
para a aceleração do desenvolvimento econômico do país.
Para tanto, o desenvolvimento deveria englobar: industria -
lização, real aproveitamento dos recursos naturais, extensão da
rede dc transportes e de comunicações para “integrar” o território
nacional e, ainda, treinamento de força de trabalho especializada.
Este último aspecto é fundamental para a compreensão das
mudanças promovidas pelo ESN na educação, que levaram, por
exemplo, à profissionalização compulsória do ensino médio (lei
5.692/1971) c à sua conseqüente reformulação curricular, da qual
resultou o afastamento de disciplinas humanísticas, entre elas a
Filosofia. De fato, como revela Alves (1985, p. 51), “Os programas
de educação, segundo a ESG, devem ocupar-se sobretudo com

60
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

o treinamento de téciiicos que participarão do processo de cres-


cimento econômico e industrialização”.
Se a ordem era intensificar o processo de acumulação dc
capital, a educação também deveria convergir para esse obj etivo,
para cuja consecução, pelo menos num primeiro momento, a
Filosofia parecia não ter muita utilidade.

4. “Política Nacional” ou “Estratégia Nacional”

O conceito de “Política Nacional” ou “Fstratégia Nacional”


traduz o processo pelo qual o governo procurava garantir a con-
secução e a manutenção dos seus “objetivos nacionais”, ou
“interesses nacionais”, identificados como “integridade territorial”,
“integridade nacional”, “democracia”, “progresso”, “paz social”
c "soberania” (COMBLIX 1978, p. 51-52). Contudo, a forma
genérica e abstrata como eram apresentados esses objetivos e os
valores a eles associados — os da civilização ocidental — reves-
tiam-nos de uma pseudouniversalidade, ocultando seu caráter
de classe. Consoante a isso, Comblin (1978, p. 231) adverte:

[...] o interesse nacional serve para negar ou dissimular os interesses


dc classe. Apela para o interesse nacional a fim dc forçar as classes a
renunciar à defesa dc seus interesses, e simultaneamente para tentar
encobrir o carátcr de poder de decisão assumido pelo Estado. Quanto
mais um Estado se opõe aos interesses das maiorias, mais ele invoca
o interesse nacional.

Para/garantir o cumprimento dos objetivos nacionais era


preciso eliminar todos os obstáculos, atuais ou potenciais, reais
ou imaginários, que a eles se interpusessem. Esses obstáculos
estavam relacionados tanto à falta de recursos materiais quanto
aos antagonismos e pressões internos.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Assim, a Estratégia Nacional englobava um conjunto de es-


tratégias específicas cuja finalidade era coordenar as ações de
combate a esses óbices, nos diversos setores da sociedade em que
poderiam aparecer. Eram elas: a “Estratégia Política”, destinada
a atuar na esfera política; a “Estratégia Econômica”, que atuava
no âmbito da economia; a “Estratégia Militar”, responsável pelo
controle das corporações militares e paramilitares; e a “Estratégia
Psicossocial, voltada para instituições da sociedade civil como
família, escola, universidades, sindicatos, Igreja, meios de comu-
nicação de massa, empresas privadas etc.” (ALVES 1985, p. 41;
grifos do autor). Na visão de Comblin (1978, p. 71-72),

Todos esses fatores são suscetíveis de influenciar a moral do povo, que a


propaganda comunista, supostamente, mina sob todos os aspectos. E preci-
so, portanto, contra-atacar essa ação. A doutrina militar dos últimos quinze
anos exagerou enormemente a importância dos fatores psicológicos. Os
militares da segurança nacional estão convencidos de que o destino da
guerra (¿'traçado no plano psicológico. Portanto, atribuem uma extrema
importância ao controle de todos os fatores que possam levantar ou baixar
a moral do povo e sua vontade de lutar contra o comunismo.

Vê-se, portanto, que a DSND preocupava-se também com


a instituição escolar e a universidade, incluídas em sua Estratégia
Psicossocial. Era, portanto, natural que as medidas adotadas pelo
ESN no terreno da educação sofressem a influência de seus prin-
cípios norteadores.

5. Geopolítica

Em suma, trata-se da concepção segundo a qual as condições


geográficas de um país são, em grande parte, determinantes d e
seu destino, isto é, de seu poder, de sua capacidade dc desen-

62
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

volvimento econômico, de suas possíveis alianças internacionais.


Assim, diante da ameaça de guerra total, como não seria possí-
vel a nenhum país permanecer neutro, visto que as distâncias
seriam anuladas pela moderna tecnologia de guerra, todos teriam
de tomar um partido, c esta opção dar-se-ia em função de sua
localização geográfica. No caso do Brasil, como nos encontramos
na esfera de influência e controle dos Estados Unidos, era com
este país que deveríamos nos alinhar 9.
A noção de geopolítica pode ser resumida nas palavras de
Comblin:
[....] a visão do mundo baseada na geopolítica é a de uma rivalidade de
Nações que são vontades dc poder c de poderio. Essas Nações estão reagni-
padas em duas alianças opostas. Uma representa o bem e a outra o mal. A
primeira se chama Ocidente e a outra Comunismo. As Nações do mundo
não têm salvação se não se aliarem a uma das duas potências mundiais. F.
através dessa aliança que podem realizar seu projeto fundamental. Quanto
ao que se relaciona à América Latina, ela faz parte do Ocidente. Não
há que hesitar: é preciso seguir a grande potência que dirige o Ocidente
quanto ao anticomunismo, os Estados Unidos (1978, p. 31).

Assim, ficava legitimada, inclusive pelas condições geográficas,


a submissão brasileira às determinações dos Estados Unidos, cuja
influência far-se-ia sentir também no âmbito educacional, como
seria evidenciado, sobretudo, pelos acordos MEC-USAID.

O impacto da DSND na educação

Entre as inúmeras medidas implementadas pelo ESN com o


intutito de adequar o sistema de ensino às necessidades do modelo
econômico e político adotado, serão analisados aqui os acordos

9. Sobre a noção de geopolítica, ver COMBLIN 1978, p. 23-31.

63
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

MEC-USAID, algumas <las primeiras iniciativas na forma de leis


e decretos e a reforma do ensino de I o e 2° graus.

1. Os Acordos MEC-USAID

A principal justificativa apresentada' pelo governo para a cele-


bração dos acordos entre o Ministério da Educação e Cultura e a
United States Agency for International Development (USAID) foi
a necessidade de “cooperação” externa para o enfrentamento da
crise educacional, que se caracterizava, fundamentalmente, pela
defasagem entre a demanda por educação e a oferta de vagas, so-
bretudo no ensino superior, setor em que isto ocasionava o proble-
ma dos excedentes: candidatos que mesmo tendo sido aprovados
nos vestibulares não logravam classificação para ingressar na uni -
versidade. Sobre essa defasagem, diz Freitag (1980, p. 86 -87):

Isso não só significava ura desperdício de recursos humanos c urna falha


nas formas de investimento em educação, seja por parte do indivíduo,
seja por parte do Estado, mas significava acima de tudo uma ameaça
para a “segurança nacional”, já que o descontentamento estudantil se
canalizava em atividades políticas sobre as quais o Estado estava perdendo
o controle. E este o verdadeiro sentido da crise oficialmente admitida.

Na realidade, o que o governo esperava da USAID era a


indicação dc caminhos que levassem ao ajustamento do sistema
de ensino aos preceitos da DSND.
O que foram, afinal, esses acordos?
Segundo Romanelli (1985, p. 197), foram diversos “convê-
nios através dos quais o MEC. entregou a reorganização do sis-
tema educacional brasileiro aos técnicos fornecidos pela AID”.
Entre os objetivos visados pela AID, destacavam-se: estabe-
lecimento de uma “relação de eficácia entre recursos aplicados

64
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

e produtividade do sistema escolar”; melhoria (leia-se adequação)


dos “conteiídos, métodos e técnicas de ensino”; influência direta
nas instituições escolares a fim de assegurar-lhes uma “função
mais eficaz para o desenvolvimento” (ROMANELLI 1985, p. 210);
promoção da “formação do espírito cívico e da consciência social
conforme os ideais de desenvolvimento pacífico, de respeito aos
direitos humanos e de justiça social” (Rudolph Atcon; 10, apud
ROMANELLI 1985, p. 211; grifos do autor).
Alguns aspectos desses objetivos merecem destaque. Em
primeiro lugar, é nítida a preocupação da AID com os conteúdos
e os métodos de ensino, indicando que as mudanças educacionais
por ela propostas passariam também por alterações curriculares.
Ora, considerando a preocupação revelada por Atcon com a
“formação do espírito cívico e da consciência social conforme os
ideais de desenvolvimento pacífico”, bem como a posterior inclu-
são pela lei 5.692/1971 de Educação Moral e Cívica e Organi-
zaçãio Social e Política do Brasil, sob a inspiração dos acordos,
pode-se concluir que, no que concerne aos conteúdos e métodos
de ensino, a “melhoria” desejada significava, ao menos em parte,
aprimoramento da função ideológica da educação como legiti-
madora da ordem vigente, bem ao gosto da DSND.
Em segundo lugar, o objetivo de interferir nas instituições de
ensino a fim dc conferir-lhes uma “função mais eficaz para o desen-
volvimento” põe às claras a intenção de subordinar o sistema de
ensino ao modelo econômico vigente. Considerando que esse
modelo se pautava pelo binômio “segurança e desenvolvimento”,
pode-se inferir que a referida eficácia deveria contemplar essas duas

10. Rudolph Atcon, ligado à AID, atuou como assessor técnico do


MEC no processo de reestruturação da universidade brasileira.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

dimensões: a da segurança, mediante a inculcação ideológica se-


gundo os preceitos da DSND, e a do desenvolvimento, através da
capacitação profissional com o objetivp de atender à demanda do
mercado de trabalho. Ambas as dimensões seriam contempladas
pelas reformas posteriores, particularmente pela lei 5.692/1971, que
inseriu disciplinas doutrinárias no currículo (em nome da seguran -
ça nacional) e conferiu ao ensino médio um caráter profissionali-
zante (em nome do desenvolvimento econômico).
Finalmente, o objetivo dc promover a “formação do espírito
cívico e da consciência social conforme os ideais de desenvolvi-
mento pacífico”, mencionado por Atcon, revela grande afinidade
com a tese do desenvolvimento com segurança propugnada pela
DSND. Da perspectiva da AID, a missão do sistema de ensino
seria formar indivíduos competentes e ajustados, capazes de se
integrar ao processo de desenvolvimento econômico de forma
pacífica, sem jamais perturbar seu andamento. Observa-se, assim,
mais uma vez, os motivos da inclusão de disciplinas como Edu-
cação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil
e da exclusão daquelas com potencial mais reflexivo e crítico,
como as da área humanística, incluindo a Filosofia.
Vê-se, portanto, claramente que as mudanças realizadas na
educação sob a inspiração dos conselheiros da AID, particular-
mente as alterações curriculares, estavam em perfeita sintonia
com a DSND.

2. As primeiras providências: leis e decretos

Desde o início, a coalizão civil-militar que assumiu o poder


procurou, sobretudo pela criação de leis, adaptar o sistema de en-
sino às diretrizes econômicas e políticas do novo regime. Alguns
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

exemplos foram: a lei 4.440/1964, que instituía o salário-educação;


a lei 4.464/1964, conhecida como Lei Suplicy de Lacerda, que
reformulava toda a estrutura organizacional do movimento estu -
dantil, com a finalidade de controlá-lo e atrelá-lo ao Kstado; o
decreto-lei 53/1966, que determinava mudanças na organização
das universidades, sob a alegação do combate ao desperdício de re-
cursos; o dccreto-lei 252/1967, que estruturava a universidade
por departamentos e novamente remodelava a organização estu-
dantil, proibindo “aos órgãos de representação estudantil qualquer
ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário”
(art. 11, apud ROMANELLI 1985, p. 217), e cujo resultado foi a
radicalização do movimento estudantil, que passou a existir e a
atuar na clandestinidade. A essa radicalização o Estado responde-
ria com a repressão violenta, legitimada pelo ato institucional n°
5/1968 e pelo decreto-lei 477/1969. Este último vedava aos estu-
dantes, professores e funcionários de qualquer estabelecimento de
ensino público ou particular a prática de quaisquer atos que pu-
dessem ser considerados subversivos, tais como confecção dc car-
tazes, organização de passeatas e comícios não autorizados, greves,
entre outros, além de prever punições para os transgressores.
Vê-se que, em seu conjunto, essas providências juntavam^ de
= um lado, a mentalidade empresarial dos tccnocratas que objetiva-
vam captar recursos para investimento e, de outro lado, medidas
de exceção, oriundas principalmente do setor “linha dura” dos
militares que compunham a coalizão no poder. Segundo Romanelli
(1982, p. 218), “essa dualidade iria constituir-se na linha predomi-
nante traçada pelo governo e marcar, durante toda a evolução da
implantação do regime, a política educacional adotada”.
Em suma, tratava-se de combinar desenvolvimento, entendido
como eficiência e produtividade, como pensavam os tecnocratas,-

67
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

com segurança interna, vista como repressão e controle sobre os


focos de oposição, mais a gosto dos militares. Desenvolvimento
e segurança: “Ambos, portanto, interdependentes: a mentalidad e
empresarial dando conteúdo ao desenvolvimento, e a utili zação
da força garantindo a implantação do mo'delo” (ROMANELLI
1982, p. 218).
Essa combinação era perfeitamente compatível com o pen-
samento da AID, que, como vimos, fixava como metas a ser
atingidas no âmbito educacional o aumento da produtividade do
sistema escolar e a “formação do espírito cívico e da consciência
social, conforme os ideais de desenvolvimento pacífico”.
Ora, não é preciso muito esforço para identificar, já nèssas
primeiras medidas do governo, a estreita vinculaçã o da política
educacional que começava a ser delineada com a DSND: a in-
terdependência entre a mentalidade empresarial e o recurso à
violência nada mais era do que a expressão, no plano educacio -
nal, do binômio “segurança e desenvolvimento”, pedra angular
de tal doutrina.. Essa vinculação, na verdade, iria permear todas
as medidas adotadas pelo ESN em relação ao ensino.

3. A reforma do ensino de Γ e 2a graus — Lei 5.692/1971

Em seu primeiro artigo a lei estabelecia o seguinte objetivo


geral para a educação de I o e 2 o graus: “proporcionar ao educan-
do a formação necessária ao desenvolvimento de suas potenciali -
dades como elemento de autorrealização, qualificação para o
trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania” (apud
ROMANELLI 1985, p. 235; grifos do autor).
Ora, no contexto em que foi engendrada essa refonna, a com-
binação entre “qualificação para o trabalho” e “exercício consciente
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

da cidadania” remete de antemão ao binômio “segurança c desen -


volvimento”. Examinemo-la, porém, um pouco mais de perto.
No que se refere à estrutura do ensino, a lei estabeleceu o
seguinte:

a) ensino de Γ grau: com duração de oito anos, voltado para a for-


mação geral básica e a sondagem de aptidões;
b) ensino de 2° grau: com três ou quatro anos de duração, destinado
à formação profissional.

Estava, pois, garantido o caráter profissionalizante do ensino


de I o e 2 o graus, conforme fá haviam recomendado os acordos
MEC-USAID. Além disso, esta medida encontrava respaldo tam-
bém na DSND, pois, como lembra Alves (1981, p. 51), “os pro-
gramas dc educação, segundo a ESC, devem ocupar-se sobre-
tudo com o treinamento de técnicos que participarão do processo
de crescimento econômico e industrialização”.
Quanto ao currículo, ficou dividido em duas partes: uma de
“educação geral” e outra de “formação especial”. A primeira cor-
respondia à parte de conhecimentos básicos e predominava no
ensino de I o grau, no qual a formação espetial eqüivalia à son-
dagem de aptidões c à iniciação para o trabalho. A formação es-
pecial predominava no 2 o grau e visava à profissionalização em
nível médio. Enquanto a educação geral permitia a continuidade,
a formação especial possibilitava a terminalidade. Tanto no Io
quanto no 2 o grau a parte de formação geral compreendia um
núcleo comum" de conhecimentos obrigatórios em todo o terri-
tório nacional e fixado pelo Conselho Federal de Educação
(parecer 853/1971 c resolução 8/1971). A formação especial cor-
respondia à chamada “parte diversificada”, composta das matérias
das habilitações profissionais oferecidas pelos estabelecimentos e
que era fixada pelos conselhos estaduais de educação. Cabia,

69
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

entretanto, ao CFE estabelecer os mínimos necessários para cada


habilitação (parecer 45/1972 e resolução 2/19872).
No caso da Filosofia, que no estado de São Paulo já havia
sido transformada em disciplina facultativa (resolução CEE
36/1968), teve essa sua condição confirmada pela deliberação
CEE 18/1972, que a classificou no seguinte conjunto de matérias:
“Filosofia; Filosofia da Ciência; História da Filosofia; Lógica;
Moral; Metafísica” (cf. CARTOLANO, 1985, p. 78). Caberia a
cada estabelecimento de ensino decidir por incluí-la ou não em
seus currículos. Na opinião de Cartolano (1985, p. 78), porém:

Tendo em vista que a orientação fundamental do ensino de 2 o Grau


continua a ser o preparo para o trabalho ou a iniciação a ele, é pouco
provável que a Filosofia integrará a parte diversificada, sendo preterida
por outras disciplinas que atendam àquela meta.

Na prática, portanto, consumava-se a exclusão da Filosofia


do ensino médio.
A lei determinava ainda a inclusão, como matérias obri ga-
tórias, de Educação Moral e Cívica (EMC), Educação Fínica,
Educação Artística e Programas de Saúde.
A implantação de EMC, na verdade, vinha sendo preparada
desde os primeiros momentos da instalação do ESN. Em 1966,
o decreto 58.023/1966, do general Castello Branco, já determi-
nava que a “educação cívica” fosse estimulada cm todo o país,
ainda como “prática educativa”, isto é, “mediante atitudes fre -
qüentes que lhe assegurem a continuidade e contribuam para a
consolidação dos hábitos e ideais que ela colima” 11. Pouco tempo

11. De acordo com o artigo 2 o deste decreto: “A edueação cívica visa


a formar nos educandos e no povo em geral o sentimento de apreço à
Pátria, de respeito às instituições, de fortalecimento da família, de obe-
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

depois, o decreto-lei 869/1969 a converteria em disciplina obri-


gatória cm todos os sistemas de ensino.
Entre as finalidades estabelecidas para esta disciplina, desta-
cavam-se: a preservação do “espírito religioso”; o “amor à liberdade
com responsabilidade”; o fortalecimento “dos valores espirituais e
éticos da nacionalidade”; “o culto à Pátria, aos seus símbolos,
tradições, instituições, e aos grandes vultos de sua história”; o
“fortalecimento da unidade nacional”; o “aprimoramento do cará -
ter, com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade”;
a compreensão “da organização sociopolítico-econômica do País”;
o "preparo do cidadão para o exercício das atividades cívicas com
fundamento na moral, no patriotismo e ria ação construtiva”; o'
“culto da obediência à Lei, da fidelidade ao trabalho e da integra-
ção na comunidade” (decreto-lei 869/1969, art. 3). Não havia,
portanto, espaço para o questionamento, a crítica, a contestação.
Compreende-se assim a afirmação de Luis Antônio Cunha,
para quem

As finalidades da educação moral e cívica representavam uma sólida


fusão do pensamento reacionário, do catolicismo conservador c da dou-
trina da segurança nacional, conforme era concebida pela Escola
Superior de Guerra (CUNHA, GÓES 1989, p. 76).

O Decreto 869 foi regulamentado pelo decreto 68.065/1971,


de modo que, no tocante à EMC, a lei 5.692/1971 nada mais
fez do que ratificar o que já havia sido determinado anterior -
mente pelo arbítrio do Executivo.

diência à Lei, de fidelidade no trabalho e de integração na comunidade,


de tal forma que todos se tornem, em clima de liberdade e responsabili-
dade, de cooperação e solidariedade humanas, cidadãos sinceros, convic -
tos e fiéis no cumprimento dc seus deveres” (Decreto -lei N°. 58.023/66).
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Quanto ao tratamento metodológico dado às matérias, a lei


propunha três modalidades: atividades, áreas de estudo e disci-
plinas. O parecer 853/1971 e a resolução 8/1971 esclareciam o
sentido dessas expressões: “atividades” eram as experiências vivi-
das e deveriam predominar nas séries iniciais do Γ grau; “áreas
de estudo” constituíam a integração de conteúdos afins e deve -
riam ser predominantes nas séries finais do Γ grau; “disciplinas”
eram conhecimentos sistemáticos e predominavam no 2 o grau.
Essa classificação permitia que determinadas disciplinas
fossem dissolvidas em áreas de estudo e trabalhadas simultanea -
mente, como se se tratasse de um único e mesmo conteúdo,
provocando assim prejuízo de suas especificidades. Foi o que
ocorreu, por exemplo, com História e Geografia, fundidas na área
de Fstudos Sociais. O resultado foi a drástica redução da carga
horária dessas disciplinas; a diluição de seus conteúdos e o surgi-
mento dc complicações para a formação desses professores'
Ao Conselho Federal de Educação não cabia fixar programas,
mas apenas indicar as matérias e seus objetivos. A respeito de Es -
tudos Sociais, esses objetivos foram fixados pelo artigo 3 o , alínea
b, da resolução 8/1971, segundo o qual esse ensino visava

[’...] ao ajustamento crescente do educando no meio cada vez mais


amplo e complexo em que deve não apenas viver, como conviver,
dando-se ênfase ao conhecimento do Brasil na perspectiva atual de seu
desenvolvimento (apud ROMANELLI 1985, p. 244; grifos do autor).

A função doutrinadora de EMC e OSPB seria, portanto,


partilhada com a área de Estudos Sociais. O conhecimento sobre
o Brasil, por ela ministrado, deveria ser enfocado de um ponto de
vista bem determinado: a perspectiva do modelo de desenvolvi -
mento econômico adotado, levando com isso a um “ajustamento”

72
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

dos educandos a esse modelo..Novamente transparece a orientação


ideológica conservadora que orientava as medidas adotadas pel o
ESN no campo da educação, sob a inspiração da DSND.
Em seu conjunto, a grade curricular estabelecida pela lei
5.692/1971 revelava claramente uma opção preferencial pelas
matérias da área técnica, em detrimento das humanidades, o que
ocasionou a diminuição da carga horária destas ultimas c mesmo
o afastamento de algumas disciplinas, como Sociologia e Filoso -
fia. Tal opção, além de ser uma resposta às exigências do modelo
dc desenvolvimento econômico, estava de acordo corn as sugestões
dos acordos MEC-USAID, os quais, por sua vez, seguiam os
preceitos da DSND. De fato, a profissionalização compulsória do
ensino de 2 o grau já o havia subordinado ao modelo econômico,
como prescrevia esta doutrina. Entretanto, o desenvolvimento
somente seria possível em um ambiente de segurança interna.
Daí a importância do aligeiramento das disciplinas humanísticas
e de sua substituição por outras de natureza doutrinária, a fim de
controlar os estudantes antes de chegarem à universidade, já que
os universitários representavam um dos principais focos de opo-
sição ao regime naquele momento. Desse modo, o binômio
“desenvolvimento e segurança” fazia-se presente também na or-
ganização e nos objetivos do ensino de I o e 2o graus.

Conclusão

Retomando agora a questão inicial, sobre as razões do


afastamento da Filosofia do 2 o grau no período em questão,
pode-se dizer, pelo exposto, que para os objetivos do ESN não
bastava ajustar o sistema de ensino à necessidade de formação

73
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

de mão de obra qualificada para atender às demandas do mode-


lo dc desenvolvimento econômico adotado, mediante a profissio-
nalização compulsória do 2 o grau. Era preciso algo mais: que a
escola atuasse também como instrumento de reprodução e de
disseminação dos valores e das ideias que davam aparência de le-
gitimidade ao “novo” estado de coisas, 011 seja, como instrumento
de inculcação da DSND. Daí a necessidade da inclusão com-
pulsória de disciplinas especificamente destinadas a esta tarefa,
paralelamente à supressão da Filosofia e outras matérias huma-
nísticas. A esse respeito, lembra-nos Simon:

Por um lado, tratava-se de profissionalizar o ensino médio, formando


mão de obra para atender às exigências do modelo adotado, ou, como
diz Foúcault, tratava-se de “formar competências para 0 capital”. [...]
Por outro lado, como previa o art. Io da lei (5692/71), tratava-se dc
não só qualificar para o trabalho, mas de formar “cidadãos”, certa-
mente doutrinados dentro dos valores ideais da segurança nacional.
Naturalmente, OSPB e Moral e Cívica eram disciplinas bem.mais
qualificadas para essa função (1986, p. 20).

Assim, independentemente de ter ou não o ensino de Filo-


sofia uma natureza crítica ou subversiva, havia pelo menos a
compreensão, por parte do Estado, de que a disciplina não se
prestaria muito facilmente à função de doutrinação, de inculcação
dos valores da DSND. Além disso, seria difícil imaginar uma
convivência pacífica entre a Filosofia e essas disciplinas doutriná -
rias. Em algum momento do processo pedagógico, os conteúdos
e as práticas dos respectivos professores acabariam por se sobrepor,
podendo gerar nos alunos um princípio de questionamento, de
dúvida, dc reflexão, o que dc modo algum seria desejável. Dessa
forma, a exclusão da Filosofia não apenas ajudava a abrir espaço
no currículo para a entrada de EMC e OSPB como também

74
filosofia e segurança nacional: o afastamento da filosofia do currículo do ensino médio

garantia a essas disciplinas certa hegemonia ideológica, minimi -


zando e dissimulando o conflito e as contradições.
É, pois, nesse contexto de influência da DSND sobre as mu-
danças efetuadas pelo Estado no sistema de ensino que se pode
compreender a exclusão da Filosofia do currículo do ensino médio
no período pós-1964.

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77
O filósofo e o professor de Filosofia:
práticas em comparação

Lidia María Rodrigo1

esde a Antiguidade, a articulação entre a produção do


conhecimento filosófico e seu ensino parece tcr sido urna
marca característica das instancias de cultura superior. Sócrates,
urna figura emblemática sob vários aspectos, pode ser evocado
também ueste caso: no diálogo socrático é impossível separar a
produção do conhecimento dc seu ensino. O mesmo se pode
dizer de Platão e Aristóteles, fundadores de escolas filosóficas
a Academia e o Liceu — que constituíram simultaneamente

1. Professora no Departamento de Filosofia e História da Educação


da Faculdade de Educação da Unicamp. Publicou O nacionalismo no
pensamento filosófico: aventuras e desventuras da filosofía no Brasil (1988);
Maquiavel: educação e cidadania (2002), ambos pela editora Vozes; e Fi-
losofía em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio (2009), pela
editora Autores Associados.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

locais de produção e ensino de filosofia, ensino que jamais residiu


na transmissão de doutrinas alheias. Mas a Academia e o Liceu
eram, em Atenas, escolas de alta cultura filosófica.
No interior do sistema educacional que temos hoje, essa arti-
culação tofnou-se problemática, mesmo nos centros de cultura
superior, visto que aqueles que produzem o saber filosófico e aque -
les que o ensinam constituem, por vezes, dois grupos distintos.
Nas instituições universitárias, ao menos, em princípio, a
produção do conhecimento e seu ensino encontram um espaço
propício à integração, uma vez que o professor deve ser, simulta -
neamente, pesquisador. Contudo, essa conciliação — incentivada
pelo princípio da indissociabilidade entre pesquisa, ensino e
extensão que caracteriza as universidades — não se estende à
totalidade do sistema. A política educacional vigente no Brasil
oficializou a dicotomía entre dois tipos de instituições: aquelas
que se dedicam apenas ao ensino e não desenvolvem pesquisa
— como os centros universitários e faculdades integradas — e
as universidades, estabelecimentos consagrados à pesquisa. Embora
formalmente classificadas como instituições de pesquisa, em boa
parte das universidades privadas — nas quais os cursos de pós-gra-
duação ocupam um lugar insignificante e o regime de contrata -
ção de professores predominante é por hora/aula — o princípio
da indissociabilidade entre ensino e pesquisa, que consta de seus
estatutos, não passa de letra morta.
De qualquer modo, pelo menos em princípio — e de fato
em algumas delas — as universidades são instituições que con-
ciliam ensino e produção do saber. O mesmo não acontece nas
escolas de nível médio, destinadas exclusivamente ao ensino, nas
quais não vigora o princípio da indissociação entre ensino e pes-
quisa. Nessa instância a aproximação entre filósofo e professor

80
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

dc Filosofía tém sido objeto de um debate mais difícil, mais com-


plexo e, contudo, importante, porque dele depende a determi-
nação da identidade do professor dc Filosofia do nível médio.
-Este artigo privilegiará esse recorte específico do tema.
A dicotomía entre pesquisa e ensino, problemática sob vá-
rios aspectos, carrega cpnsigo um ônus adicional. Essas diias
atividades habitualmente são encaradas não apenas como diver-
sas, mas hierarquizadas com base em juízos de valor sobre suas
atribuições: o professor, visto como mero reprodutor 011 divul-
gador do conhecimento produzido pelo especialista, c colocado
numa posição inferior e meíiosprezado ein relação a este último,
cuja função consistiria em ser um produtor de novos conheci-
mentos. As funções produtoras e reprodutoras costumam ser
recompensadas de modo diferenciado, principalmente no que
se refere ao prestigio.
Diante desse quadro, com a intenção dc valorizar a função
docente, alguns procuram aproximá-la da atividade do pesqui-
sador, argumentando que o professor não é mero reprodutor,
mas também um pródutor do saber, porque para ensinar ele
precisa ser um pesquisador. Essa tese, não obstante as intenções
louváveis de seus defensores, acaba por submeter-se à lógica que
pretende combater, na medida em que a valorização do profes-
sor à custa de sua equiparação ao pesquisador acaba por aceitar
implicitamente o pressuposto da hierarquização das funções
pesquisador/professor e a superioridade da primeira. Não se trata
de negar que o professor do nível médio também possa fazer
pesquisa acadêmica — se ele cursa uma pós-graduação ou desen-
volve algum projeto de pesquisa —, mas esta não tem sido a
regra geral, nem do ponto de vista dos projetos pessoais dos
docentes, nem do ponto de vista institucional.

81
a filosofía e seu ensino — caminhos e sentidos

Outra dificuldade com relação a esse tipo de argumentação


é que ela assenta-se na suposição de que haveria uma identidade
entre saber especializado e saber escolar. I al suposição não pode
ser sustentada, porque a reformulação didática do saber especia-
lizado, e portanto a diferenciação entre ambos, é condição de
possibilidade do.ensino de Filosofía no nivel medio. Em outras
palavras, a difusão institucional do saber filosófico passa por sua
conversão em objeto de ensino, gostemos disso ou não. Assim,
em lugar de promover a identificação entre saber filosófico e
saber escolar, entre pesquisa e ensino, trata-se de tematizar suas
diferenças, abrindo um espaço de reflexão crítica sobre o processo
de construção dos conteúdos de ensino, principalmente quanto
à sua relação com o saber de referência.

O professor como reformulador do discurso filosófico original

Para começar, é forçoso reconhecer a diversidade de atribui-


ções do filósofo e do professor de Filosofia; embora uma mesma
pessoa possa exercer essas duas funções — pense-se em Sócrates,
por exemplo —, elas permanecem diversas. Mas aceitar a distin-
ção de funções não exige que se atribua, nécessariamente, valor
superior a uma delas.
De acordo com as premissas estabelecidas anteriormente,
a atividade própria e específica do professor, aquela que o define
como tal, não consiste em ser produtor de um discurso filosófico
original — embora, insisto, ele também possa sê-lo —, mas em,
produzir um discurso pedagógico pelo qual a tradição filosófica
possa converter-se em saber ensinável.
Para desempenhar a tarefa que lhe é própria, o professor não
pode restringir-se a reproduzir o discurso do especialista, nem

82
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

igualar-se a ele ou ocupar seu lugar. Compete ao primeiro cons-


truir uma modalidade de saber distinta, que não é produzida pelo
pesquisador acadêmico, modalidade que promove a reformulação
do saber de referencia — a filosofía — para transformá-lo em
conhecimento escolar. Nessa tarefa, precisamente, reside a origi-
nalidade de seu trabalho, desde que o professor não se coloque
como mera caixa de ressonância de um saber filosófico já conso-
lidado, mas atue como produtor de urna forma própria e especí-
fica de discurso. Deste último ponto de vista, em lugar de qualifi-
car o professor como reprodutor do saber especializado, será mais
correto designá-lo como reformulador desse saber.
K bem verdade que a capacidade de intervenção direta do
professor na formulação do saber escolar, lamentavelmente, tem
se mostrado muito limitada. A defesa desse princípio ainda perma-
nece no nivel de um dever-ser que nem sempre corresponde à
realidade efetiva daquilo que se passa com o ensino de Filosofia
no nível médio, em que o professor frequentemente exime-se da
autoria desse tipo de saber, para acomodar-se à função de correia-
de-transmissão dé um discurso didático produzido por outros,
consolidado e objetivado nos textos didáticos disponíveis no
mercado editorial. Na prática dos docentes que assumem essa
postura passiva, o manual costuma ocupar o lugar do próprio pro -
grama da disciplina, o que equivale a abrir mão de umá interven-
ção pessoal tanto na seleção dc conteúdos como em relação à
sua ordem de transmissão. O professor acaba por endossar, mi-
metizar e aderir acriticamente ao itinerário proposto pelo manual,
adequando-se a ele, em lugar de formular um percurso próprio.
Ao eximir-se da responsabilidade de ser o autor de seu discurso
didático, ele próprio contribui significativamente para o rebaixa -
mento e o menosprezo da função docente.
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Assumir a autoria do discurso didático significa construir


uma ordem dc transmissão própria, quer dizer, baseada numa
elaboração pessoal, pela qual — sempre levando em considera-
ção aquilo que é relevante para a formação do aluno — o próprio
professor determina os termos e a forma pelos quais o conteúdo
adquirido durante seu percurso formativo pode converter-se em
saber escolar. Não é urna tarefa fácil, especialmente se levadas
em conta as deficiências na formação inicial de professores no
que concerne à sua preparação para enfrentar as dificuldades
postas pelas novas condições do ensino no nível médio.
Cabe lembrar que a produção dc um saber didático sobre
a filosofia constitui tarefa infinita, sempre inacabada, porque ess e
tipo de discurso envelhece, tanto em virtude da evolução das
teorias pedagógicas — que levam à reposição dos termos em que
é possível conceber a relação do discurso reformulador com o
saber de referência — como em razão de variações nas formas
da demanda social pelo conhecimento.
No Brasil, por exemplo, a transição dc uma escola secun-
dária elitizada para uma escola de massa a partir dos anos dc
1970 tomou obsoletas formas de ensino que anteriormente haviam
funcionado razoavelmente bem no atendimento a uma clientela
social e culturalmente mais privilegiada. Em decorrência disso,
a formatação disciplinar da Filosofia no nível médio também
passou por mudanças significativas nas últimas décadas, tanto do
ponto de vista da seleção e da disposição dos conteúdos como
em relação aos aspectos formais da aprendizagem.
Portanto, para dar uma resposta satisfatória às demandas
cognitivas e sociais, que se renovam a cada momento, os termos
cm que é produzido o discurso reformulador sobre a filosofia
devem ser permanentemente atualizados, responsabilidade que

84
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

cabe ao professor. Dessa perspectiva, pode-se dizer que o pro-


fessor é, em sentido amplo, um pesquisador, embora sob parâ-
metros distintos daqueles estipulados pela pesquisa acadêmica,
vale dizer, não como produtor de novos conhecimentos, mas
como produtor de um conhecimento reformulado.
A defesa desse tipo dc atuação torna possível restituir dig-
nidade à função docente, sem que para tanto seja preciso extra -
polar a esfera que lhe é própria.

Discurso originário e discurso reformulador:


suas especificidades

Qual é a natureza do discurso reformulador e o que o dife-


rencia do discurso especializado ou da filosofia stricto sensu?
Em primeiro lugar, cabe assinalar que a criação de um saber
didático sobre a filosofia não se regula pelas mesmas normas
internas que presidem à construção do discurso filosófico. Tal
discurso parte de problemas, que suscitam a criação dc novas
ideias, e estrutura-se segundo uma lógica interna determinada
pelas necessidades inerentes à demonstração de suas teses.
O saber didático-pedagógico, por sua vez, tem como ponto
de partida o saber filosófico, do qual ele se apropria para reconfi-
gurá-lo de modo que o converta num saber acessível ao aluno do
nível médio. A prática da reformulação resulta, portanto, na cons-
trução dc um discurso segundo, na medida em que ele deriva do
discurso filosófico original, que é tornado como suporte o u refe-
rência, e intencionalmente modificado. Como discurso segundo,
ele não se articula sobre um objeto próprio ou que lhe seja intrínse -
co. A dinâmica que o caracteriza, enquanto discurso reformulador,
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

consiste em deslocar o discurso de referência de seu contexto


originário para submetê-lo a uma nova regulamentação, com base
em princípios estranhos ao saber de referência, até mesmo priori-
zando fins e objetivos distintos dos de tal saber.
Assim, a Filosofia que é ensinada no nível médio é produto
de uma ação que desloca o saber especializado de seü contexto
originário de produção (as universidades e agências de pesquisa)
para submetê-lo a uma nova configuração, cujas regras — seleção,
simplificação, síntese, sequenciamento etc. — não se originam
de nenhuma lógica interna à filosofia, vasto que elas se pautam
por objetivos socioeducativos e não por exigências fundamental-
mente lógicas. Em conseqüência desse tipo de apropriação, o
discurso filosófico acaba pòr adquirir significação numa instância
diferente dele próprio.
Desse ponto de vista, fica muito clara a distiiição entre o dis-
curso criado no campo da produção do saber e o discurso reformu-
lador. O primeiro deve resultar num texto original que, mesmo
quando elaborado sob a influência de outros textos ou autores que
o precederam, ainda assim não perde seu caráter de texto primeiro
ou de autoria exclusiva, na medida em que, como afirma Bemstein
(1996, p. 259), ele converte a intertextualidade em intratextuali-
dade. Já no discurso reformulador a intertextualidade, ou referência
ao texto que ele absorve e transforma, jamais é apagada ou abolida,
nem pode sê-lo, sob peiia de autoaniquijação.
O discurso reformulador juslifica-se sob o pressuposto da dis-
tância cultural entre o saber filosófico e o aluno do nível méd io,
especialmente na atual conjuntura dc uma'escola secundária
massificada, fruto de sua expansão quantitativa nas últimas dé -
cadas. A volta da Filosofia a esse nível de ensino apresenta aos
professores o desafio de um ensino dirigido a jovens estudantes

86
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

com deficiências culturais de várias ordens, até mesmo em rela-


ção às competências mínimas requeridas pela reflexão filosófica,
tanto do ponto de vista lingüístico e lógico-conceitual como em
relação ao embasamento cultural de aspecto mais amplo.
Essa distância é muito grande para ser percorrida pelo próprio
aluno de forma autônoma; por isso, exige a mediação do professor
como alguém capaz de transitar entre o saber de referência, que
supostamente conhece e domina, e o aluno que deve ter acesso a
ele mas não tem condições de fazê-lo por conta própria.
Do ponto de vista cognitivo, a relação professor-aluno é ne-
cessariamente assimétrica. O professor é aquele que sabe “antes”
ou que sabe “mais” do que o aluno (CHEVALLARD, JOHSUA
1998, p. 71); essa condição lhe permite conduzir e dispor lógica
e cronologicamente o processo de aprendizagem, atuando na
intermediação entre o saber especializado, que ele domina, e o
aluno, que o desconhece. Em virtude da distância cultural entre
o aluno do nível médio e a filosofia, o discurso reformulador
torna-se necessário e, enquanto discurso mediador, um instru-
mento privilegiado da acessibilidade.

Tensões e ambigüidades do discurso mediador

E forçoso reconhecer que o discurso mediador ou reformu-


lador comporta certa ambigüidade. Sua Construção discursiva
se vê compelida a administrar a tensão entre a necessidade de
adequação interna ou fidelidade ao saber de referência e as mo-
dificações requeridas para adequá-lo à demanda externa por sua
socialização ou sua difusão. O caráter mediador do saber didáti-
co, ou discurso segundo, exige que ele esteja suficientemente
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

próximo do saber filosófico para tomá-lo como referência e su-


ficientemente distante do senso comum para demarcar sua des -
continuidade com ele e, assim, construir um canal de acesso do
aluno do nível médio ao campo filosófico.
Por um lado, o discurso segundo só ganha existência man-
tendo a referência ao saber originário; por outro, ele não se iden-
tifica com esse saber na medida em que o reconfigura, subme-
tendo-o a uma nova regulamentação discursiva. Significa que a
identidade do discurso didático sobre a filosofia deve ser con -
quistada com base na conjugação de um duplo movimento, que
impele em direções opostas: aproximação/afastamento ou apro -
priação/reformulação.
Tudo isso evidencia que a reformulação do discurso filosófico
origina] constitui um processo permeado por tensões e ambigüi-
dades, o que requer que se coloquem em questão tanto sua origem
discursiva como a legitimidade do saber escolar que ele produz.
As operações peculiares ao discurso reformulador — síntese,
simplificação e seleção de ideias, mantendo alguns pontos e
descartando outros — conduzem, fatalmente, a certo empobre-
cimento do discurso filosófico original. E um preço que não há
como deixar dc pagar. A reformulação didática tem seu ônus: o
que se ganha em acessibilidade perde-se em complexidade teó-
rico-rcflexiva. Por isso possui caráter ambivalente: seu empobreci-
mento por meio do processo de simplificação constitui, simulta-
neamente, condição da possibilidade de certa democratização
do acesso ao saber especializado.
Alguns filósofos ou especialistas julgam que a didatização do
saber representa uma espécie dc mistificação ou falsificação,
justamente porque, atuando na perspectiva da simplificação, aca -
ba por escamotear a complexidade da construção discursiva que

88
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

é própria da filosofia. Esse ponto dc vista dá origem à polêmica


acerca da legitimidade do saber transmitido pelo professor de
Filosofia.
A verdade é que no nível médio o professor de Filosofia
defronta-se com duas demandas contraditórias: ele deve ter a
capacidade de comunicar didaticamente — de forma acessível
ao aluno — o pensamento filosófico e, ao mesmo tempo, de pre-
servar a autenticidade desse pensamento, de modo que expresse
sua inevitável complexidade. Será possível, nesse nível de ensi-
no, encontrar algum canal de articulação entre simplificação e
complexidade?
A resposta afirmativa a essa indagação dependerá da pos-
sibilidade de extrapolação do discurso mediador, pois este é,
inevitavelmente, o discurso da simplificação. Logo, a possibili-
dade de expressar a complexidade só pode ser instaurada para
além dele. Sendo assim, a essa altura o que tem de ser posto em
questão é o sentido da mediação didática no ensino de Filosofia
no nível médio.
A natureza própria do discurso mediador é estar entre dois
termos — um inicial, outro final — e, portanto, constituir si-
multaneamente uma etapa de transição, como passagem de uma
condição a outra, e também um momento transitório, passageiro,
que tem certa duração temporal c, por isso, deve existir sob o
regimç daquilo que é provisório.
O problema é que, na realidade cotidiana do ensino médio,
frequentemente o discurso didático passa por um desvio de com -
preensão quanto à sua função mediadora e acaba por ser enten-
dido como fim último ou exclusivo da aprendizagem.
Ao negar-se como mediação para converter-se em fnn, o dis-
curso reformulador conduz à descaracterização da filosofia, pois

89
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

produz o engodo de ocultar, sob a aparência de “saber filosófico”,


sua versão simplificada. A simplificação didática, como já se afirmou
antes, é necessária porque o processo de aprendizagem não pode
prescindir dela; mais do que tolerada, ela deve ser aceita, "mas
apenas sob a condição dc não se negar como mediação ou etapa
transitória. Portanto, é da natureza da mediação que ela seja exer-
citada na perspectiva de transitoriedade, logo de sua superação.

Para aíém do discurso mediador

I lá alguma possibilidade de construção de um horizonte


que sinalize para a superação dos limites inerentes ao discurso
simplificador no ensino de Filosofia no nível médio? Será pos-
sível, ainda que sob a forma preliminar da iniciação, estabelecer
alguma forma de conexão entre simplificação e complexidade?
O discurso mediador, quando exercitado como tal, tem a
missão de construir em seu próprio interior os instrumentos de
sua superação, ou seja, os instrumentos capazes de conduzir à
autonomia intelectual do aluno. Só assim será possível restituir
ao discurso mediador seu sentido autêntico. Em outros termos,
trata-se de direcionar o trabalho no sentido de promover a passa -
gem da simplificação para a complexidade.
O instrumento apropriado para essa transição é o contato
direto com os textos filosóficos.
A proposta de inserir recortes de textos filosóficos nos pro-
gramas de Filosofia 110 nível médio é recente e ainda encontra
resistências da parte de alguns professores.
Durante muito tempo acreditou-se que os manuais seriam
os únicos instrumentos adequados a esse nível de ensino, por

90
o filósofo e o professor de filosofia: práticas em comparação

apresentarem o saber filosófico resumido, simplificado, esque-


matizado e, portanto, supostamente mais fácil de ser assimilado
pelo estudante. Todavia, essa forma de simplificação didática
frequentemente elimina todo o movimento reflexivo do pensa-
mento — desde a formulação dé problemas até a construção
argumentativa de teses — para restringir-se às conclusões ou às ■
ideias principais, despidas de suas justificações e reduzidas ao
produto reificado da elaboração cognitiva.
O abandono da antiga tese de restringir-se aos textos de ma-
nuais e a promoção de um contato direto com o pensamento dos
filósofos vêm ,se processando gradualmente nas últimas décadas.
Novos modelos de livros didáticos passaram a propor algumas for-
mas de aproximação com o texto filosófico original, de início ape-
nas sugerindo leituras complementares ao final dos capítulos, depois
apresentando pequenos trechos a ser trabalhados pelos alunos.
A ideia de conferir maior importância às obras dos filósofos
nos programas de nível médio vem conquistando adeptos, princi-
palmente em virtude da convicção de que eles ampliam significa-
tivamente as possibilidades de uma efetiva vivência da reflexão.
As dificuldades apresentadas por esse tipo de texto são inegá-
veis, mas, se bem trabalhadas, sua superação constitui um instru -
mento privilegiado de acesso gradual e progressivo à complexida -
de filosófica, como por exemplo concedendo-se especial atenção
ao esclarecimento do vocabulário, à explicitação dos conceitos e
aos exercícios direcionados ao desenvolvimento do pensamento
argumentativo. Para tanto é necessária uma seleção cuidadosa de
alguns excertos 011 trechos que tenham possibilidade de ser traba-
lhados nesse nível de ensino: os textos devem ser pouco extensos,
sem grandes dificuldades conceituais nem vocabulário muito
complexo. Além de ser importante, pelas razões apontadas a nte-

91
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

riormente, o contato direto do aluno com os textos originais via-


biliza uma aproximação com a filosofia muito mais estimulante e
prazerosa do que aquela propiciada pelos manuais.
Desse modo, será possível, simultaneamente à leitura dos
textos, desenvolver competências lógico-discursivas que preparem
o estudante para a autonomia intelectual, de modo que ele
possa, gradualmente, dispensar as mediações heterônomas do
professor c construir por si mesmo suas mediações com o dis-
curso filosófico.
Pode ser que no âmbito do ensino médio tal meta seja ina-
tingível em sua plenitude, mas ela tem de estar presente como
horizonte, quer dizer, como fim último do trabalho mediador.
O que importa é forjar os instrumentos que, mesmo num nível
elementar e sob a forma da iniciação, conduzam ao desenvolvi -
mento da capacidade de pensar criticamente e por conta própria
como termo final de um processo cujo termo inicial foi o senso
comum, o qual o aluno teve condições de superar graças a urna
intermediação didática competente e responsável. Essa interme -
diação, na medida em que se compromete com um projeto
sério dc democratização do saber, recusa-se a ceder às tentações
do democratismo pedagógico e, por isso, pode investir na criação
de formas preliminares de aproximação com o discurso filosó -
fico original.

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93
-Um diálogo e
um simpósio intermináveis

Roberto Goto1

filosofia e seu ensino: na abordagem e na exploração


deste tema, inclino-me a nele encontrar menos um en-
sino de filosofia que um ensino da filosofia. Portanto,
trata-se aqui de dar precedência à filosofia, tomando-a como pro-

A
fessora ou mestra. Assumido o tema neste sentido, poder-se-ia
traduzi-lo ou desdobrá-lo na seguinte pergunta: o que a filosofia
ensina, que ensino ela provê ou proporciona? Sc dirigirmos essa
indagação à própria filosofia, é certo que não teremos qualquer
resposta, já que a filosofia não é alguém com quem possamos
conversar.

1. Professor do Departamento de Filosofia e História da Educação


(DEPHE) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Cam-
pinas (Unicamp).
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Podemos também raciocinar da seguinte forma: o ensino


da filosofia decorre de sua natureza, é sua expressão ou manifes -
tação; portanto, para saber qual é o seu ensino, será necessário,
como pressuposto, que conheçamos a natureza da filosofia, o
que ela é essencialmente. Também neste caso, a resposta parece
muito distante, talvez impossível, uma vez que o máximo que
conseguimos saber e dizer é o que a filosofia é para este ou
aquele, nunca o que a fdosofia é em si mesma — talvez ela
jamais exista cm si mesma.
Mas podemos voltar a indagação para nós mesmos, conver-
tendo-a na seguinte questão: o que aprendemos com a filosofia?
Ou: o que esperamos que ela nos ensine? Neste caso, será de
nossa relação com a filosofia que extrairemos, digamos assim, a
resposta sobre o seu ensino.

Λ demanda da verdade e os discursos

Recomeçarei, então, pesquisando a resposta não entre filó-


sofos, professores e alunos regulares de filosofia, ou seja, entre os
que escolheram estudá-la, mas entre os outros, os que deparam
com ela na educação básica sem a terem solicitado ou esperado
por cia. Como sabemos, é comum que, após algum contato com
ela, eles, em grande número, protestem, decepcionados:

— Mas a filosofia não responde nada, não resolve nada, cada filósofo
pensa de um jeito!

Podemos, conio eu próprio tenho feito, compreender tal


reação como um reflexo das expectativas que o conhecimento
científico costuma gerar: não ter resposta significaria, no caso,

96
um diálogo e um simpósio intermináveis

não apresentar soluções objetivas e exatas. De nossa parte, co mo


professores, costumamos reagir a isso de dois modos:

a) mostrando que a ciência não é o campo idílico da objetividade e


da exatidão, mas uma arena de discussões e um processo constante
de refutações, e

b) apontando a multiplicidade de respostas da filosofia como a


riqueza do pensamento, algo a denotar tanto a liberdade quan to
a generosidade da reflexão filosófica.

No entanto, se observarmos bem, teremos de admitir que


a insatisfação e a decepção permanecem, ao menos residual -
mente. Notamos que elas ecoam uma demanda que se inscreve
tanto no que chamamos de senso comum quanto na filosofia:
a demanda pela verdade, isto é, a verdade, aquela que encerra-
ria em si todo o mistério de todas as coisas: encerraria no duplo
sentido de conter e dar fim a esse mistério, ou seja, de escondê -
lo e desvelá-lo, desfazê-lo.
Essa demanda pela verdade corresponde à ambição de dizer
as coisas, mais que pensar sobre elas: não haveria qualquer dis-
tância entre o dizer e a própria coisa. A verdade não diria o que
cada um pensa sobre isso ou aquilo, mas responderia à questão:
o que é isso, mesmo? Mais, até, diria não só o que cada coisa é,
mas o que são todas as coisas, ou seja, o que elas são em seu
conjunto, em sua totalidade; em última instância, diria o real,
isto é, nela todo o real se manifestaria, tal como é.
Não cabe, portanto, culpar o que chamamos de senso comum
por essa busca: quando um aluno cobra da filosofia que ela mostre
o que cada coisa é, mesmo — em sua essência e sua natureza —,
está, sem saber e sem querer, ecoando um desejo e uma carência
que marcam a trajetória histórica da filosofia, desde sua origem. E

97
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

quando ele raciocina assim: “Então a verdade não existe, só existem


opiniões diferentes, já que cada filósofo diz uma coisa”, sua decepção
talvez não seja maior que a do próprio filósofo, ou da filosofia. Esta
parece ter reconhecido aquela ambição como desmedida, como
uma espécie de hybris, sendo o mais sensato livrar-se dela.
Assim, ouvimos hoje os que “fazem filosofía” dizerem: não
há a verdade, mas yerdades; não há senão discursos, ou seja, a
filosofia é uma coleção de discursos, nenhum dos quais é a ver-
dade substancial, essencial, que desvela o real. Como este só pode
ser acessado pela linguagem, que condiciona o que se pensa,
então a tarefa do pensar não deve ser mais tentar capturar a coisa
pela rede da linguagem, mas tentar entender a própria rede, na
qual o pensar já se acha enredado.
Por outras palavras, dizer o real é 011 impossível ou inútil,
de qualquer forma corresponde a uma empreitada ingênua,
quixotesca; trata-se não mais de dizer as coisas mesmas, o real,
mas de desvendar 0 próprio dizer.

Filosofia: morte e arkhé

Ao mesmo tenipo, contudo, não há euforia neste cenário; pelo


contrário, há uma nota de frustração, mesmo de luto, uma vez
que ele é descrito como o fim ou a morte da filosofia. Isso pode
ser — e é — dito de outras formas: não há mais filósofos, mas
historiadores 011 comentadores de filosofia. Ou: há filósofos,
mas eles redefiniram seu papel, tornando-se analistas de discursos
filosóficos, fazendo a crítica do que os filósofos do passado disse -
ram sobre as coisas, mas eximindo-se de dizer eles próprios as
coisas mesmas, já que isso, hoje, seria uma ingenuidade.
um diálogo e um simpósio intermináveis

A situação é ambígua e ambivalente. A saída pela filosofia da


linguagem não é satisfatória, precisamente porque a insatisfação
permanece, aflorando para nós, professores de filosofia, justamente
do lado do que costumamos chamar de senso comum, quando
algum aluno manifesta sua frustração e sua decepção ao perceber
que a filosofia tem muitas respostas mas não tem a resposta. Essa
reação incomoda, pois encontra eco em nós — e o eco, lembremos,
precisa do vazio para acontecer. Quero dizer com isso que deve
haver também em nós uma insatisfação de origem, que remete a
um vazio, o qual, por sua vez, se produziu por alguma experiência
original, radical. Direi que essa experiência é a mesma que está
na origem da filosofia: é a experiência do espanto.
O espanto, como aprendemos, é a origem, a arkhé do filo-
sofar: origem não apenas cronológica, mas também — e sobre-
tudo — lógica. Em seu texto Que é isto — a filosofia?, Heidegger
(1973, p. 219) diz que a arkhé é “aquilo de onde algo surge”,
acrescentando que esse de onde “não é deixado para trás no
surgir”. Assim, o espanto “não está simplesmente no começo da
filosofia, como, por exemplo, o lavar das mãos precede a operação
do cirurgião”, mas “carrega a filosofia e impera em seu interior”.
Podemos dizer, com nossas palavras, que o filósofo não é alguém
que se espantou uma vez e começou a filosofar, mas alguém que
se espanta sempre. Podemos dizer também que qualquer um
pode espantar-se, aqui e agora, e que portanto o espanto não é
uma experiência arcaica e irreproduzível, mas, pelo contrário,
uma experiência que pode se dar no presente com a mesma
força ou potência com que se deu no passado, justamente
porque a arkhé não é algo que acontece num momento e se
dissipa no seguinte, mas algo que permanece e impera naquilo
que originou.

99
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Desse modo, qualquer pessoa pode, em algum momento,


viver, mais precisamente, sofrer o espanto. Sofrer porque, de
acordo com Heidegger, o espanto é páthos, é uma dis-posição.
Tomando-se o prefixo “dis” como a partícula de origem grega
“que entra na composição de muitas palavras, significando mal,
dificilmente, infelizmente”2, a palavra pode ser assim interpreta-
da: uma má posição, uma posição difícil ou infeliz. Ou, se se
entende o prefixo como de negação, desde sua origem latina:
uma não-posição, um não-colocar-se.
Espantar-se, em tal caso, não é se pôr a filosofar por inicia -
tiva própria, mas ser levado a isso; dis-pôr-se é não pôr-se a pensar,
mas ser posto a pensar. Ou ainda: o pôr-se a pensar requer menos
a ação do pensador que sua paixão. Paixão que é do pensador não
por ele possuí-la, mas, coerentemente, por cia possuí-lo, por ele
ser possuído por ela, por sofrê-la. Retomemos o mote heidegge-
riano (p. 219): “páthos remonta a páskhein, sofrer, aguentar, su-
portar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por”.
Imaginemos alguém que se espante hoje, no aqui-e-agora.
Menos que perguntar, é a pergunta que irrompe nele, isto é, o logos
surge, se manifesta. Neste sentido, principalmente, se pode falar
numa origem “lógica”: ela se dá por meio do logos. A pergunta é:

— Para que tudo isso, afinal?

O real e o logos: silêncio e absurdo

Neste ponto, retrocedemos em relação à lição de Heidegger,


pois o tudo-isso da pergunta, que ela interroga e ao qual se dirige,

2. Cf. Caldas AULETE, Dicionário contemporâneo da língua portu-


guesa, 5 a ed., 1968, p. 1.246.

100
um diálogo e um simpósio intermináveis

não é o ente diante do qual o espantado se detém, “pelo fato de


ser e de ser assim e não de outra maneira” (p. 220). O tudo-isso
da pergunta existe, é real, mas é indiferenciado, anterior a qual -
quer conceituação. Neste caso, o páthos do espanto se aprofunda,
se abisma imediatamente, dá numa vertigem, pois tudo-isso não
responde, ou só responde com o silêncio: tudo-isso é silencioso
e indiferente, vazio de sentido — não significa nem quer signi-
ficar nadã, apenas existe e nada mais, mas nesse existe-e-nada-mais
há uma imensidão, uma enormidade primariamente, originaria-
mente, sem sentido.
Tudo-isso não é racional nem irracional, não é lógico nem
ilógico, mas é o que não é logos, o que não é linguagem nem razão,
é o que o logos não consegue e jamais conseguirá abarcar, conter,
compreender, muito menos submeter e reduzir. Tudo-isso é o
outro do logos: é silêncio, porque não se diz nem pode ser dito;
é o que não se compreende nem pode ser compreendido, mas ex -
travasa todo e qualquer continente, inclusive o logos. E, portanto,
inominável. Mas, para efeito didático, podemos lhe dar um nome,
arbitrário e aproximado, e qualificá-lo: diremos então que o tudo-
isso daquela pergunta é o real, e que o real é absurdo.
Dizer que o real — o tudo-isso da pergunta — é absurdo
não é uma resposta, não é o real dizendo “eu sou absurdo”; é a
apreensão do silêncio do real, do fato de que ele nada diz, nada
responde quando lhe perguntamos para que é, qual é seu propó -
sito, qual é sua razão-de-ser. O absurdo é a relação pela qual o
ser humano percebe, espantado, que não há resposta. E o logos se
manifestando e topando com o que não é logos, com o seu total-
mente outro. Então o real resplandece absurdamente, como o
sol gratuito, cegante, indiferente, do romance de Albert Camus
O estrangeiro, em que o absurdo não aparece para ser desvendado,

101
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

explicado ou compreendido, como ocorre com a existência e a


contingência no romance A náusea, de Sartre, mas tão somente
aparece, em sua plenitude: onipresente, desde ò início, desde
sempre, implícito e crônico.
Assim, desde o começo, desde a arkhé, 110 páthos do espanto,
há a suspeita de que 0 logos não habita 0 real e que este é absurdo.
Se tomarmos esta arkhé como a origem primeira da filosofia,
poderemos dizer que ela, então, nasceu morta, pois não há nem
pode haver uma filosofia feita toda ela de silêncio, ou não há
como o logos dizer o silêncio ensurdecedor, absurdo, do real.

Os dois espantos e a lógica na loucura

Mas acontece com a filosofia algo semelhante ao que se dá


com a literatura, segundo Barthes. O real, diz ele no texto da aula
inaugural que pronunciou no Collège de France em 1977, “não
é rcpresentável”, mas é o que “não pode ser atingido e escapa ao
discurso”. No entanto, “com isso os homens não se conformam,
e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que
produz, numa faina incessante, a literatura” (1980, p. 22 -23).
'Iambém a filosofia não se conforma. Sc se conformasse, não
existiria, já que não pode constituir-se senão pelo logos. O espanto
que dá origem à filosofia é um espanto segundo, em que o logos,
ardiloso, se arma com seus recursos, com abstrações bem definidas,
que no entanto fingem até hoje ser muito vagas e amplas para
camuflar-se no real, tentando se confundir com ele. Mas, para aqui -
latarmos sua precisa clareza, como a de um sol afinal bastante
humano, calorosamente compreensível, basta nos reportarmos a
Parmênides, com 0 seu ser que é e o não ser que não é. Ocorre
um diálogo e um simpósio intermináveis

então o que podemos chamar de astúcia do logos: não mais se diri-


ge ao real, que nada lhe responde, que lhe é radicalmente infenso,
mas a si mesmo, aos conceitos que inventa e que ele torna como
sendo o real — os conceitos de ser e ente. Interrogando-os, eles lhe
responderão, na medida em quê são o próprio logos se desdobrando,
trabalhando, operando. A relação entre o logos e o ser é uma rela-
ção autorreferente, na medida em que Ό ser é o ser do logos: o ser
“lógico” que ele inventa, que só pode ser e não pode não ser —
ser inscrito no interior do logos e que faz que ele, logos, seja.
Desse modo, a fdosofia nasce velha, após haver amadureci -
do os frutos daquela origem primeira, sabendo então como deve
construir suas perguntas e a quem dirigi-las. Mas aquele espanto
primeiro remanesce, como uma verdadeira arkhé, justamenté na
forma de um páthos, ou seja, de uma doença da qual ela não se
livra, para a qual não encontra remédio, para a qual o espanto
segundo não é antídoto nem vacina. Naquele espanto primeiro
agita-se ainda, inconfcssadamente, a ambição de dizer o indizível,
dc fazer falar o real, 110 esplendor de seu absurdo, Há nisso
loucura, insensatez, mas também há lógica, há logos.
Dizem que dc perto ninguém é normal. Com o filósofo,
pode-se dizer 0 inverso: de longe, parece louco, mas de perto até
que é normal: há lógica em sua loucura. Ele sabe que não pode
simplesmente eliminar ou descartar 0 real, pois o real escapa à
compreensão e à própria linguagem, não porque confina com o
irreal, mas, muito pelo contrário, por impor-se brutalmente, por
ser absurdamente real: temos de nos haver sempre com ele porque
ele cai sobre nós com todo 0 seu peso, às vezes esmagadoramente
leve, e temos de o suportar, ao mesmo tempo em que não temos
como compreendê-lo, abarcá-lo, justamente porque é infinita-
mente maior que nós.

103
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

O buraco negro do discurso

Podemos concordar, assim, que na filosofia só há discursos.


Mas, ao mesmo tempo, ela não se faz somente de discursos, pois
estes estão a todo momento apontando para o real, referindo -se
a ele. O real está fora da filosofia, como está fora da linguagem:
é algo inacessível e irredutível ao discurso, do qual este sequer
pode se aproximar, sob o risco de ser engolido e destruído por
. ele. Todavia, como é sempre referido pelo discurso, o real se faz
presente também na filosofia, mas como uma ausência, inais ou
menos como as pessoas que citei aqui, ou seja, neste texto, c que
não estão presentes, inclusive porque já morreram: Heidegger,
Barthes, Camus, Sartre.
Podemos dizer que o real se faz presente na filosofia, no logos,
na linguagem, como um vazio, como um buraco negro. O discurso
não tem como compreender e abarcar o real, mas tem como
fazê-lo desaparecer, sem, é lógico, tê-lo feito aparecer: o real atra-
vessa o discurso, o texto, como algo que desaparece instantanea -
mente por um buraco negro, ressurgindo em outra dimensão, em
sua dimensão própria. O discurso dá um vislumbre do real, ao
mesmo tempo em que é ofuscado por ele, por sua luz cegante.
O real atravessa o discurso sustentando-o, não só como
evento (pois estou realmente escrevendo este texto) mas também
como algo que depende dele e para ele aponta a todo momento.
Ao mesmo tempo, o real atravessa o discurso destruindo-o, desmo-
ronando-o, fazendo-se presente como o não-discurso, o avesso
do logos, como o que não pode ser dito. Só assim o discurso
pode dar acesso direto ao real: destruindo-se. E neste sentido
que a literatura, a filosofia, toda a linguagem apresentam -se
contestáveis: não passam de palavras, de blá-blá-blá, de palavrea-

104
um diálogo e um simpósio intermináveis

do oco; para quem quer o real, o que resta, como diz Hamlet,
é o silêncio.

Do diálogo como infinito

Retomo a pergunta inicial: o que a filosofia ensina? Essa


questão projeta a imagem da filosofia como mestra, professora.
Mas essa imagem exige outra, se lembrarmos que os professores
de hoje tiveram também, por sua vez, professores. Portanto,
talvez haja uma pergunta anterior, que é: a filosofia foi, por sua
vez, ensinada? Foi discípula de algum mestre ou ensino? Seria
o espanto esse mestre? Se assim é, o que ela aprendeu, ou melhor,
o que aprende do espanto?
Talvez isto: ela aprende e sabe que, mesmo com sua grande
coleção de discursos, com a rede inteira do logos, jamais conse-
guirá capturar o real, mas insiste em perseguir aquela verdade
substancial que diz a coisa, diz o real. É o que, na linguagem co-
mum, é o de-verdade, oposto ao que c de-mentirinhà; o de-verdade
c o que c real, o de-mentirinha é o irreal. Isso, embora não pareça,
traduz a concepção platônica, em que as Ideias não são apenas
verdadeiras, mas também reais, ou seja, são de-verdade.
Essa verdade que pretende dizer a coisa dirige-se à sua
natureza, a qual, por sua vez, não c só o que a coisa é, mas tam-
bém para que é, ou melhor, o que é inclui necessariamente o
para-quê, a causa final na nomenclatura aristotélica. Portanto,
é inteiramente legítimo tomar como essencial, como substancial,
a questão que busca apreender a finalidade da coisa, o sentido
do real. Se alguém pergunta “para que tudo isso, afinal?”, essa
pergunta não é mais que um eco da pergunta que ambiciona
capturar a coisa, o que ela é realmente, de-verdade.

105
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

O projeto socrático-platônico não desiste de perseguir essa


verdade real, de-verdade e não de-mentinriha, mas lança-a no in-
finito, uma vez que ela pertence a uma sabedoria divina, imortal,
que está além do horizonte humano. Os diálogos dc Platão teste-
munham esse movimento: se permanecem inconclusos, inaca-
bados, é porque almejam uma meta que está sempre fora deles,
de seus limites textuais, apontando para uma verdade que nunca
é alcançada.
Não é casualmente que menciono o exemplo socrático -pla-
tônico; pcrcebo a filosofia toda como um diálogo infinito, que
nunca produzirá nem alcançará a verdade. Seria o caso, então,
para sermos sensatos, de desistir da busca dessa verdade? Haveria,
então, o jogo dos discursos, jogo no sentido próprio de movi -
mento lúdico, sem finalidade, ou cuja finalidade está no movimen -
to mesmo, e somente nele. Mas então não haveria diálogo, mas
uma conversa vazia ou. meramente retórica, em suma, um diálogo
sem sentido: para que dialogar se não se tem em vista uma bus-
ca comum aos interlocutores?
Não se pode fazer de conta que se busca a verdade — e dc
fato, no diálogo filosófico, não se faz de conta que o que se diz
é verdadeiro ou não. Quando um filósofo diz “penso que a
coisa é assim”, outro rebate dizendo “não, não penso que seja
assim, mas de oufra forma”, ou “penso que não seja assim”. Ne-
nhum dos dois faz de conta, o que significa que, 110 filosofar, 0
real a todo momento atravessa 0 discurso e instantaneamente
desaparece por ele, e nisso talvez esteja uma diferença essencial
entre a filosofia.e a literatura; esta, sim, faz de conta, deixando
o real fora do texto, do discurso.
Tanto o real passa pelo discurso filosófico que esse discurso
produz ou cria realidades, na proporção mesma em que cria ou

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um diálogo e um simpósio intermináveis

constrói seus conceitos e abstrações, que a todo momento ape -


lam ao real. Por exemplo, o dizer de Parmênides — “o ser é, o
não ser não. é” — não é apenas um enunciado lógico, mas uma
questão que me convoca e que posso resolver pelo menos de
duas fohnas, dizendo “o ser existe, é real”, ou “o ser não existe,
não é real”: num caso, atribuo ao real a forma do ser parrnenidia-
no, ao passo que em outro nego-me a emprestar realidade ao
dito, mas, de qualquer forma, em ambos os casos o logos coloca
em jogo sua relação com o real, ou seja, visa ao real, refere-se
a ele, colocando-se ele mesmo em questão diante do real.
Se a filosofia é um jogo, ela o é no sentido de que só existe
mediante as inter-relações e o movimento das peças que o com-
põem, o que significa que talvez não haja como a filosofia não
ser diálogo, talvez ela só possa ser dialógica. Assim como uma
andorinha só não faz verão, um filósofo só, um discurso filosó-
fico só, uma corrente filosófica só não faz a filosofia, pôis sem
o diálogo eles não são filosóficos, ou seja, um pensamento só se
configura como filosófico, só se constitui como uma filosofia na
medida em que não se encerra no soliloquio, mas se entrega à
comparação com outras filosofias, dialogando com cias e, nesse
diálogo, pondo em jogo sua concepção de real.
Manter e praticar a filosofia como diálogo significa, dessa
forma, considerá-la como tendo um fim, mas um fim que se
projeta no infinito. Assim, a filosofia existe de forma radicalmente
paradoxal: não pode existir senão pondo a perspectiva da busca
da verdade, a qual c inatingível c por tal condição contesta toda
justificativa de existência da filosofia; mas isso não nega, não anula
a filosofia — antes, absurdamente, a faz prosseguir, justamente
na sua busca absurda, porque infinita, porque não cabe nos ho -
rizontes humanos.

107
a filosofia e seu ensino — caminhos e sentidos

Mas nessa loucura vejo o que é próprio da condição huma -


na. Nisso, a meu ver, está o sentido tanto do filosofar quanto do
ensinar filosofia. Pois, por conta de nossa condição, o próprio
sentido é algo infinito, ou que se põe na perspectiva do infinito:
indagar o sentido de algo é dar um passo em direção a um ho -
rizonte que sempre avança, pois a cada para-quê respondido ou
decifrado outros se apresentam, e assim infinitamente.
Qual é, então, o sentido do filosofar e do ensinar filosofia?
Para mim, o de dialogar em vista de um fim — a busca da verdade
mesma, do sentido do real —, mas sabendo que o fim do dialoga
se põe no que não tem fim e que, portanto, o próprio diálogo é
infinito, e assim, se o interrompemos depois de algum tempo,
fazemos apenas isso: nós o interrompemos, nunca o acabamos,
jamais o terminamos.
Portanto, para (não) finalizar: o filosofar é um diálogo inter -
minável; o ensinar filosofia é um symposion infinito.

Bibliografia

BÁRTHES, Roland .Aula. Trad. Lcyla Perrone-Moisés. São Paulo, Cultrix,


1980.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Antônio Quadros. São Paulo, Abril
Cultural, 1972.
HH1DEGGER, Martin. Que é isto — a filosofia? Trad. Ernildo Stein. São
Paulo, Abril Cultural, 1973.
PARMÊNIDES. Fragmentos. In: BORNHEIM, Gerd. Os filósofos pré-
socráticos. São Paulo, Cultrix [s.d. 1.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Trad. Antônio Coimbra Martins. Lisboa,
Europa-América, 1969.
WOLFF, Francis. Dizer o mundo. Trad. Alberto Alonso Muñoz. São Paulo,
Discurso Editorial, 1999.

108
ENSAIO DE
INICIAÇÃO AO
FILOSOFAR
Marcelo Períne

A coleção Filosofar é preciso quer


oferecer instrumentos de trabalho
para professores de filosofia no en-
sino médio, assim como subsídios
para estudantes de graduação que
se preparam para o magistério. Dirigida por professores com larga
experiência no ensino de filosofia, a coleção alia a clareza na expo-
sição com o rigor conceituai que a matéria exige.

O.primeiro volume é dedicado ao tema do surgimento da filosofia


no mundo ocidental e às diferentes interpretações do que estaria
na origem dessa nova atitude diante da realidade. De fato, a filo-
sofia ou, mais precisamente, o filosofar inaugurou uma nova ma-
neira'de situar-se no mundo natural e no interior do mundo criado
pelas relações humanas.

A pergunta pela origem do filosofar atravessa a história da filosofia


e continua suscitando até hoje respostas que não querem senão
compreender a realidade na sua totalidade natural e humana. De
Platão a Eric Weíl, o grande desafio da atitude filosofante é com-
preender a realidade e compreender-se na realidade. Literalmente
falando, isso significa "pegar junto" a totalidade para transformá-
la, porque a realidade compreendida não é mais a mesma de antes
da compreensão.
FILOSOFIA NO
ENSINO MÉDIO
Temas, problemas
e propostas
R. J. Trentin Silveira e
Roberto Goto (orgs.)

O segundo volume da coleção Filoso-


far é preciso reúne textos que buscam
elucidar dilemas diários de professo-
res de filosofia no ensino médio.
No texto "A filosofia e seu ensino: conceito e transversalidade",
Sílvio Gallo expõe aqueles que, a seu ver, constituem os princípios
norteadores de tal ensino e suas fontes.
Já Lidia Maria Rodrigo, em "Uma alternativa para o ensino de filo-
sofia no nível médio", confronta-se com o específico e espinhoso
problema da leitura de textos filosóficos, no ambiente de uma esco-
la pública massificada.
Em "Que bagulho é isto —filosofia?", Roberto Goto envereda pelo
acidentado terreno em que se dá a busca de conceituações que ex-
pliquem e justifiquem a presença da disciplina no ensino médio. Su-
gerindo trilhas e questionando atalhos, passa em revista as relaçõejs
entre o conhecimento filosófico e o científico, a didática baseada na
etimologia e, sobretudo, as perquirições de cunho utilitarista.
Concluindo, em "Teses sobre o ensino de filosofia no nível médio",
Renê José Trentin Silveira procura responder a perguntas recorren-
tes, como: É possível ensinar filosofia — ou a filosofar— na escola?
É viável utilizar textos dos próprios filósofos? Como deve ser feita a
avaliação em filosofia?
Um livro que oferece instrumentos de trabalho para professores e
estudantes que se preparam para o magistério da filosofia, na ex-
pectativa de que este seja apenas o início de uma profícua e dura-
doura parceria.
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
ITCKabele Transitional 521
e impresso em papel Recidato 90g/tn

Edições Loyola

editoração impressão acabamento

ίϋύ 1822 n° 34?


042'6-000 são paulo sp
T S5 1129M 1922
F ÕS 11 2063 4275
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