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IC SIINCUSP 2016 – TRABALHOS SELECIONADOS PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO 23 O SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

IC SIINCUSP 2016
TRABALHOS SELECIONADOS
PARA A ETAPA INTERNACIONAL
DO 23 O SIICUSP - SIMPÓSIO
INTERNACIONAL DE INICIAÇÃO
CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
DA USP

IC SIICUSP 2016
TRABALHOS SELECIONADOS
PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO
O
24 SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

FAUUSP
AGOSTO 2017
IC SIICUSP 2016
TRABALHOS SELECIONADOS
PARA A ETAPA INTERNACIONAL DO
O
24 SIICUSP - SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE
INICIAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA DA USP

ORGANIZAÇÃO
LEANDRO SILVA MEDRANO

FAUUSP
AGOSTO, 2017
Universidade de São Paulo
Marco Antonio Zago – Reitor
Vahan Agopyan – Vice-Reitor
José Eduardo Krieger – Pró-Reitor de Pesquisa
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Maria Ângela Faggin Pereira Leite – Diretora
Ricardo Marques de Azevedo – Vice-Diretor
Comissão de Pesquisa
Leandro Silva Medrano – Presidente da Comissão de Pesquisa
Eugenio Fernandes Queiroga – Vice-Presidente
João Fernando Pires Meyer – AUT - Titular
Marcelo Eduardo Giacaglia – AUT - Suplente
Andrea Buchidid Loewen – AUH - Titular
Leandro Silva Medrano – AUH - Suplente
Eugenio Fernandes Queiroga – AUP - Titular
Clice de Toledo Sanjar Mazzilli – AUP - Suplente
Paulo Eduardo Fonseca Campos – AUP - Titular
Cibele Haddad Taralli – AUP - Suplente

Organização
Leandro Silva Medrano

Ficha Catalográfica

IC SIICUSP 2016: trabalhos selecionados para a etapa internacional do 24º.


Simpósio Internacional de Iniciação Científica /organização de Leandro Silva
Medrano. — São Paulo: FAUUSP, 2017.
96 p.

ISBN: 978-85-8089-109-6

1. Planejamento Territorial Urbano (Simpósios) 3. Arquitetura (Simpósios)


I. Medrano, Leando Silva,org. II. Simpósio Internacional de Iniciação Científica e
Tecnológica da USP (23: 2016 : São Paulo ). III.Título.

711.063 CDD
Serviço de Biblioteca e Informação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

Secretária
Elizabete Melchior dos Reis

Produção Gráfica
Seção Técnica de Produção Editorial
Coordenação Didática – Profa. Dra. Clice de Toledo Sanjar Mazzilli
Supervisão Técnica – André Luis Ferreira
SUMÁRIO

05 IC ANUÁRIO 2017
Leandro Silva Medrano
08 CONSTRUÇÃO DA CAMADA LIMITE ATMOSFÉRICA EM TÚNEL DE VENTO
APLICAÇÕES EM ARQUITETURA E URBANISMO
Alberto Joseph Khouri
24 INTERVENÇÕES DE BAIXO IMPACTO PARA MELHORIA URBANÍSTICA E
AMBIENTAL DE ASSENTAMENTOS INFORMAIS EM ÁREAS DE MANANCIAIS
Ana Clara de Souza Santana
36 MULHER, CIDADE E ARQUITETURA NAS REPORTAGENS DE O CRUZEIRO
Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes
50 FORMAS DE MORAR NOS ESTADOS UNIDOS: RICHARD NEUTRA
Felipe Kilaris Gallani
66 OS MORADORES DOS CONJUNTOS HABITACIONAIS DA FAVELA NOVA
JAGUARÉ E SUAS RELAÇÕES COM A POPULAÇÃO LOCAL
Lais Boni Valieris
80 ANÁLISE DE LUGARES PÚBLICOS NA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA:
ESTUDO DE CASO SOBRE A PRAÇA SÍLVIO ROMERO, SÃO PAULO - SP
Teresa Cristina Barroso Vieira
IC ANUÁRIO 2017

Leandro Medrano
Presidente da Comissão de Pesquisa da FAUUSP
O desenvolvimento de uma pesquisa de Iniciação Científica (IC) é atividade
de grande importância na formação do estudante no Ensino Superior. Pois
além de introduzir o aluno aos métodos e técnicas dos trabalhos acadêmicos
e estimular o surgimento de futuros pesquisadores e/ou professores, seus
resultados muitas vezes são essenciais às pesquisas de docentes, laboratórios
ou grupos de pesquisas.
A Comissão de Pesquisa da FAUUSP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo) tem procurado incentivar a realização de
Iniciações Científicas, apesar de nos últimos anos essa modalidade de
pesquisa ter sofrido cortes significativos das agências de fomento em relação
às bolsas disponibilizadas. A divulgação de informes relacionados às ICs, a
criação da modalidade “IC sem Bolsa” e a ampla difusão do SIICUSP
(Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP) são alguns exemplos
de ações da CPq FAUUSP que buscam inserir a Iniciação Científica no
cotidiano acadêmico dos alunos de graduação da nossa Faculdade.
O presente anuário contém os trabalhos selecionados para a Etapa
Internacional do 23º SIICUSP. Sua publicação pretende estimular o
desenvolvimento de novas Iniciações Científicas e publicizar as pesquisas
realizadas pelos alunos e professores da FAUUSP.
Boa Leitura!

Prof. Leandro Medrano


Presidente da Comissão de Pesquisa da FAUUSP
CONSTRUÇÃO DA CAMADA LIMITE
ATMOSFÉRICA EM TÚNEL DE
VENTO – APLICAÇÕES EM
ARQUITETURA E URBANISMO

Alberto Joseph Khouri


Orientadora: Alessandra Rodrigues Prata Shimomura

8 Resumo
A importância da análise da ação do vento em construções e meio urbano
torna-se cada vez maior nos estudos de engenharia civil e arquitetura,
carecendo de túneis de vento precisos e que representem melhor os diversos
ambientes. Neste artigo descreve-se o processo de busca por melhorias no
Túnel de Vento de Camada Limite Atmosférica da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo/FAUUSP, descrevendo a situação
inicial do equipamento sobre o qual trabalhamos e as mudanças que ele está
sofrendo nos últimos meses devido a dois projetos de iniciação científica. Em
seguida, descrevemos o comportamento do vento e como entendê-lo
segundo alguns parâmetros, os quais comporão parte das nossas análises
posteriores. Apresenta-se, também, o método dos elementos de Counihan e
os resultados obtidos pela sua aplicação, com a construção da barreira
acastelada, dos geradores de vórtices e das rugosidades, os quais deverão
nos auxiliar na geração de uma camada limite atmosférica mais condizente, a
fim de obterem-se resultados mais precisos em futuros testes sobre ação de
vento. Por fim, mostram-se os resultados dos primeiros testes feitos com o
gerador de vórtice, buscando indicar a real influência que os elementos
tiveram no fluxo do ar.

Palavras-chave
Vento; Ventilação; Conforto Ambiental; Túnel de Vento, Camada Limite
Atmosférica

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
1.I NTRODUÇÃO
As informações presentes nesse artigo fazem referência ao projeto de Iniciação
Científica - intitulado “Construção da Camada Limite Atmosférica em Túnel de
Vento – Aplicações em Arquitetura e Urbanismo”, realizado pelo Bolsista Alberto
Joseph Khouri. O projeto de pesquisa insere-se no projeto intitulado “Túnel de
Vento de Camada Limite Atmosférica. Pesquisas em Arquitetura e Urbanismo e
aplicações potenciais em outras áreas do conhecimento”, coordenado pela Profa.
Dra. Denise Duarte. Juntamente a esta pesquisa, corre em paralelo o projeto de
Iniciação Científica da aluna Bruna Dallaverde de Sousa; sendo que esta pesquisa
trabalhará em conjunto para definição de elementos que compõem os ensaios a
serem adotados para pesquisas que envolvem a questão da ventilação natural
para arquitetura e urbanismo.
Como fins deste estudo, espera-se modelar uma série de elementos, entre eles:
barreira acastelada, gerador de vórtices e rugosidades, os quais contribuirão para
a geração de uma Camada Limite Atmosférica (CLA) que adeque-se as
necessidades dos usuários. Ou seja, como fruto deste projeto, espera-se que,
com o uso destes elementos, possam-se simular diferentes terrenos, os quais
caracterizam o entorno de modelos de ensaio, a fim de que haja maior precisão
quanto ao fluxo de vento gerado pelo túnel de vento sobre as maquetes.
Para a definição das medidas e características destes
elementos, usou-se o método de modelagem de Counihan,
referência na área de túneis de vento. Algumas adaptações
deverão ser feitas para o túnel de vento em análise, visto
que o autor adota certos fatores de escala entre a CLA que
se deseja produzir e as medidas dos elementos, abrindo
também espaço para que se permitam alterações quanto
9
aos valores obtidos, adequando-se aos diferentes túneis de
vento e suas peculiaridades.
Por fim, o projeto prevê alguns testes com estes elementos,
adotando diversas composições entre eles no túnel de
vento, para assim avaliar os diferentes efeitos que as
combinações podem ter. Dentre eles serão feitos ensaios de
erosão, além de medidas de pressão em diferentes seções
do túnel de vento, com a finalidade de se desenhar perfis de
velocidade e pressão, podendo-se observar as variações ao
longo do equipamento e com as diferentes configurações.

D ESCRIÇÃO DO TÚNEL DE VENTO – FAU USP


O túnel de vento (Figura 1), objeto de estudo desta
pesquisa, localizado no LAME - Laboratório de Modelos e
Ensaios foi fruto de um projeto iniciado em 2005, numa
parceria LABAUT/LAME, com orientação da Prof. Dra. Denise
Duarte e co-orientação do Prof. Dr. Reginaldo Ronconi. Com
um projeto de Iniciação Científica deu-se continuidade na
Figura 1: Imagem do túnel de vento. construção deste equipamento, o qual foi entregue em
Fonte: Denise Duarte (2008 e 2013)
meados de 2008.

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
Objetivando estudos nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Engenharia Estrutural,
entre outros, optou-se pela construção de um túnel de vento do tipo N.P.L. -
National Physics Laboratories com circuito aberto. Ou seja, o ar entrará por uma
contração, localizada numa das extremidades, passa pelos módulos do túnel de
vento, onde são instalados os elementos de geração da CLA e os modelos de
ensaio, e, por fim, sai pelo conjunto difusor/ventilador, retornando para a
atmosfera.
O motor instalado no túnel, em sua configuração atual, é capaz de produzir um
fluxo de até 10 m/s aproximadamente, mas, com o incremento dos elementos
geradores de vórtices, de um novo módulo de ensaio e de uma colmeia, espera-
se que o valor máximo de velocidade tenha uma redução. Apesar disso, estima-
se que as velocidades que o túnel de vento atingirá ainda serão suficientes para
seus fins, não havendo perdas significativas.

2.1. Dimensões do túnel de vento


Visto o fato do túnel de vento da FAUUSP estar em processo de melhoria e
mudança, suas medidas serão alteradas após a construção do novo módulo,
assim como pelo incremento da colmeia, sendo necessária a descrição dele tanto
antes quanto depois das reformas previstas. Mas, como a mudança que mais
influencia no nosso estudo é a instalação de um novo módulo, a sua diferença
estará apenas no comprimento.
Cada módulo do túnel tem 1,61 m de comprimento por 1,05 m de altura e 1,05
m de largura externa, com paredes de espessura de 3 cm. Com isso, é notável
10 que a seção de testes do túnel seja quadrada com aproximadamente 1 m², visto
que a largura e altura internas são de 0,99 m. A contração apresenta 2,09 m de
comprimento, enquanto o difusor tem apenas 1,36 m e o ventilador 0,6m,
totalizando, atualmente, 7,27 m, mas chegando a 8,88 m após as alterações.
Todo o equipamento está apoiado sobre uma estrutura metálica.
Para os cálculos futuros, os fatores mais relevantes dentre estas medidas são: o
comprimento dos módulos, contando que um deles não poderá ser utilizado
para colocação de elementos, já que estará reservado para se posicionar os
modelos a serem ensaiados; a altura interna dos módulos, sendo esta uma
limitante para a altura da camada limite atmosférica a ser gerada; e, a largura
interna dos módulos, visto que este fator determina a quantidade de geradores
de vórtices que poderão ser posicionados, um ao lado do outro, no túnel.
Desta forma, temos duas situações possíveis: a do túnel com 3,22 m (Figura 2) e
com 4,83 m (medida após ser acrescentado um módulo) de comprimento dos
módulos somados, ambos com 0,99 m de altura e largura.

Figura 2: Geometria inicial do


túnel de vento da FAUUSP.
Fonte: Alex Uzueli (2006).

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Figura 3:: Desenho ilustrativo da
CLA mostrando linhas do
deslocamento do plano-zero e
da rugosidade aerodinâmica
sem escala.
Fonte: Arquivo pessoal.

3. CLA – C AMADA LIM ITE ATMOSFÉR ICA


A principal finalidade do túnel de vento da FAUUSP é a simulação de modelos,
como edifícios ou pequenas regiões urbanas, buscando estudar seus
comportamentos sobre a ação do vento, analisando fatores como ventilação
natural, conforto de pedestres, dispersão de poluentes, entre outros. Para tal,
precisa-se ter em mãos um túnel de vento que proporcione uma boa precisão
das características do fluxo, dependendo do tipo de terreno em torno do modelo
e dos objetivos de quem o manuseia. Sendo assim, devemos elaborá-lo de
maneira a produzir uma camada limite atmosférica adequada, a qual é o ponto
principal no desenvolvimento deste estudo.
Primeiramente, deve-se ter claro que a CLA é a região da troposfera que sofre
efeito direto das características superficiais da Terra, principalmente pelo arrasto
causado pelas rugosidades ali presentes, tendo sua natureza alterada para cada
região sobre a qual ela ocorre (LOREDO-SOUZA et al, 2004, p. 1). Podemos listar
também alguns aspectos que descrevem a CLA, como por exemplo, a altura
gradiente ou espessura da CLA (ä ä ), o deslocamento do plano-zero (d d) e a
rugosidade aerodinâmica (yo yo
yo), Figura 3. 11
A altura gradiente é um fator que descreve o quão espessa é a CLA, avaliando
seu desenvolvimento e até que ponto o fluxo pode atingir. Com isso, percebemos
que a ä depende da rugosidade da superfície local, posto que, quanto mais
rugoso for o terreno, mais difícil será para a CLA se propagar, tendo menores
velocidades e menor desenvoltura. Outro ponto fundamental nessa variável é o
fetch, termo em inglês que representa a pista de sopro que o vento tem a
barlavento, para poder se desenvolver na superfície, pois com maiores distâncias
para percorrer, mais tempo/espaço o fluxo terá para ampliar sua CLA.
Para conseguir explicar o deslocamento do plano-zero, faz-se essencial descrever
uma divisão feita na CLA. O que afeta de fato o fluxo são as tensões superficiais
(tensões aparentes de Reynolds ou tensões turbulentas), as quais causam uma
perda de quantidade de movimento do fluido. A partir disso, podemos realizar
uma separação da camada limite em duas partes: a camada superficial e a
camada de Ekman.
A primeira representa a região de velocidades mais estável (e menor) e de
tensões mais constantes, variando em até 10% dos valores médios. Nesta região,
pode-se identificar uma faixa na qual o transporte molecular se sobrepõe ao
transporte turbulento, devido às baixas velocidades, definindo a altura desta
subcamada em relação ao chão como sendo o deslocamento do plano-zero (d d ).
É intuitivo que, se tratarmos de uma área lisa como, por exemplo, campo aberto
ou o mar, estaremos em um caso que o d tende a zero, pois as rugosidades não
são significativas. Entretanto, para zonas urbanas ou florestas, devemos notar que,

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
devido aos grandes obstáculos, teremos uma região próxima ao chão onde o
ar tende a se estagnar e o fluxo cai bruscamente. Consequentemente, o valor
de d cresce e assume a altura média das formas de rugosidade do local,
tomando como premissa que o vento passa a correr livremente apenas em
cotas mais altas (acima dos obstáculos).
Por último, a rugosidade aerodinâmica dimensiona o espaço no qual a
velocidade média do vento tende a zero, ou seja, é a altura abaixo da qual o
fluxo de ar se aproxima de valores nulos. Esse termo caracteriza os diversos
tipos de terreno, uma vez que ele está diretamente ligado à quão rugosa é a
superfície e o quanto ela consegue barrar o vento que a atinge, inferindo que,
locais com obstáculos mais aglomerados e mais altos impedem muito mais a
ação do vento nas proximidades do solo.
Pode-se notar que, levando em consideração a definição de deslocamento do
plano-zero, esta nova zona está abaixo de d , já que neste as velocidades não
são tão próximas de zero, apesar de serem baixas, logo, não sofre mais tanto o
efeito das rugosidades se comparado àquela. Fazendo agora uma comparação
entre eles, quando o vento corre sobre algo liso, concluímos anteriormente que
o valor de d tende a zero, portanto, a rugosidade aerodinâmica também se
anula, estando ambas praticamente juntas. Porém, em lugares com mais
obstruções, o d tende a crescer mais e se fixar acima de yo
yo, havendo um
desnível entre eles.
Retomando a divisão feita anteriormente sobre a CLA, falta explicar a camada
de Ekman, a qual se estende para toda região acima da camada superficial.
12 Nela, as tensões superficiais, aquelas que causam o decréscimo da quantidade
de movimento do fluxo, começam a perder o efeito e impactam menos sobre
o escoamento, até chegarem à altura gradiente, onde se anulam. Desse modo,
o vento pode atingir sua máxima velocidade, se propagando livremente,
sofrendo apenas efeitos das forças de pressão e algumas influências da
rotação da Terra, mas que são pequenos se comparados com os as
adversidades próximas do solo.

4. D IMENSIONAM ENTO DOS ELEMENTOS


Os elementos (barreira acastelada, o gerador de vórtice e as rugosidades)
dimensionados nesta pesquisa têm como objetivo gerar uma CLA apropriada
para o ensaio de modelos no túnel de vento. Logo, utilizando o método de
modelagem de Counihan, foram modelados estes elementos, observando as
relações de proporcionalidade.
A utilização destes elementos possibilitará o desenvolvimento mais rápido da CLA,
necessitando de menos espaço para que ela atinja sua plenitude. Naturalmente,
uma CLA pode alcançar seu estado de plena desenvoltura, mas, para tal, o vento
precisa de uma pista de sopro muito grande, o que é um limitador no túnel de
vento da FAUUSP. Tendo essa dificuldade em mente, alguns métodos
desenvolvidos para se obter um crescimento acelerado da CLA permitem que
muitos túneis menores consigam oferecer resultados mais precisos e consistentes.
Como exemplo, para Counihan, a maneira de se acelerar este processo foi por
meio da construção de geradores de vórtices e uma barreira acastelada a

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montante, além de utilizar rugosidades a jusante destes outros objetos para
caracterizar o terreno simulado, relatando em seus estudos (COUNIHAN, 1969 p.
197 e 1971, p. 637).
É notável em seus relatos que, para o dimensionamento dos elementos, Counihan
tinha bem definida qual seria a altura desejada para sua camada limite, sendo esta
fundamental para se prosseguir com o projeto. Nos textos, o autor antecede as
análises dizendo que a altura da CLA desejada é de 6 in., aproximadamente 0,15
m, o que equivale a um pouco mais de 80% da altura de seu túnel de vento.
Para o nosso túnel de vento, com o auxílio do engenheiro Paulo Jabardo,
pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas/IPT, decidiu-se adotar uma
altura de CLA de 0,60 m, aproximadamente 60% da altura dos módulos,
considerando-se que as análises futuras seriam feitas principalmente para o túnel
com 3 módulos, visto que essa será sua configuração ideal futuramente.

4.1. Barreira Acastelada


A barreira acastelada tem um papel bem importante e definido, o de causar um
deslocamento vertical inicial do fluxo que vem da contração, deslocando a CLA
para cima. Com isso, busca-se quebrar a homogeneidade do vento que vem da
contração, visto que este tem um perfil muito homogêneo, demorando mais para
se desenvolver plenamente. Logo, a barreira acastelada irá criar uma perturbação
inicial nesse fluxo e contribuir para que ele tenha uma grande distância a
percorrer já com uma heterogeneidade, o que gera turbulências.
É notável que esse elemento não possa ser posicionado imediatamente na saída
da contração, uma vez que ele perderia sua função e apenas atrapalharia no
bom funcionamento do túnel. Isso se deve ao fato que, nessa posição, a barreira 13
acastelada causaria uma grande perda de carga no fluxo, diminuindo em muito
as velocidades. Além disso, o vento vindo da contração adaptar-se-ia ao
obstáculo, contornando-o por cima e, desta forma, não sofreria a perda de
homogeneidade esperada.
Empiricamente, Counihan (1969, p. 203) chegou numa relação que a barreira
acastelada deve ser posicionada, a partir da contração, a uma distância de 1/3 da
altura da CLA, o que equivale a 0,20 m para nosso caso. Apesar disso, ele relata
que, caso o túnel em estudo não seja tão comprido e precise aproveitar melhor
o espaço, a barreira acastelada pode ser aproximada da contração sem que haja
grandes mudanças no resultado final, o que poderá ser avaliado futuramente. Já
para a altura desse elemento, foi adotado um fator de escala de 1/8 da altura da
CLA, representando 0,075 m. Caso se faça uma barreira maior, haverá um
aumento na intensidade das turbulências e nos defeitos do perfil de velocidades,
provavelmente devido ao espaço localizado a jusante, logo atrás da barreira
acastelada, no qual o ar a baixa pressão gera os redemoinhos pelo
deslocamento das correntes de vento.

4.2. Geradores de Vórtices


Segundo Counihan (1969, p. 200-204), os geradores são de extrema
importância principalmente nos casos em que o túnel de vento apresenta
turbulência constante em toda vertical, assim como naqueles em que a
turbulência varia de máxima nas proximidades do chão a zero na altura dos

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
geradores. Tendo isso em vista, os geradores elípticos, considerados de melhor
formato pelo autor, podem causar, justamente pelo seu perfil, perturbações nas
regiões de baixa turbulência (no topo dos geradores), e, ao mesmo tempo,
deixando as regiões mais próximas do piso se desenvolver livremente, visto que
elas têm maior importância nos ensaios.
Este tipo de gerador em formato de cunha elíptica, se visto lateralmente, tem o
formato de 1/4 de elipse, com sua altura sendo o dobro de seu comprimento de
base. Visto por cima, pode-se notar o formato de um triângulo isósceles, sendo os
dois lados iguais muito maiores que o terceiro, posto que o ângulo entre eles é
de pequena ordem, variando de 10o a 12o.
Todos os planos horizontais apresentam este mesmo formato, mantendo
obrigatoriamente o mesmo ângulo no ponto de incidência do vento, o que
garante que os geradores não causem nenhuma assimetria no fluxo, evitando
perturbações direcionadas em um sentido. Para assegurar este estado de
completa simetria, deve-se também posicioná-los a uma mesma distância entre
seus eixos centrais, garantindo que não haja sobreposição de efeitos em uma
seção maior ou menor do que em outra.
A decisão de adotar pequenos ângulos para os geradores foi justificada por
Counihan (1969, p. 203) pelo fato de que assim se obteria uma melhor
distribuição dos vórtices na vertical, não os concentrando na base da pista de
sopro. Após alguns testes com geradores de 5º e 6º de semiângulo, foi provado
em seu estudo que a perda de uniformidade lateral do fluxo é maior para
maiores ângulos, logo, se utilizássemos o valor de 5º, deveríamos aproximar mais
14 o geradores do que se adotássemos 6º.
Somando-se a isso, a preocupação em manter o ângulo constante em todos os
planos horizontais se baseia na tentativa de produzir turbulências constantes ao
longo de toda altura dos geradores. É notável que diferenças ao longo da vertical
pudessem deixar regiões com excesso de perturbações, enquanto outras teriam
efeitos muito menores sobre o todo.
O espaçamento entre os geradores também é fator essencial para o
desenvolvimento adequado da CLA, visto que o posicionamento adequado deles
influencia diretamente na uniformidade do fluxo. Logo, deve-se determinar um
limite para a variação da turbulência ao longo de toda vertical, a qual foi delimitada
a 1% para Counihan (1969, p. 203). Outro ponto crucial em relação a este
posicionamento é que, caso os geradores estejam muito próximos, eles passam a
canalizar o fluxo, afetando a frequência espectral da turbulência. Portanto, a
disposição ideal dos elementos seria a mais espaçada possível, porém, respeitando
os limites adotados para a variação da turbulência, citados anteriormente.
Sabendo-se que a altura dos geradores equivale à altura da CLA desejada e que
seu comprimento vale metade desta, conclui-se que os geradores do túnel de
vento da FAUUSP devem ter 0,60 m e 0,30 m para cada uma das respectivas
dimensões. Além disso, para se estipular a distância ideal entre os geradores,
Counihan (1969, p. 203) estudou os efeitos dessa variável para diferentes
posições entre dois geradores, tanto para um par com ângulos de 10o quanto
para um com 12o, chegando à conclusão de que, a melhor combinação seria de
geradores com semiângulo de 6o e espaçamento da ordem de 0,5 a 0,6 alturas
da camada limite desejada. Para o projeto retratado neste artigo, adotou-se o valor

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


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de 0,55, visto que a distância entre os eixos dos geradores seria de 0,33 m,
possibilitando o posicionamento exato de três geradores.
Por fim, o último fator a ser determinado seria a distância dos geradores em
relação à barreira acastelada, a qual está a montante deles e deve ter seu
posicionamento fixado previamente a esta etapa. Em seu trabalho, Counihan
(1969, p. 203-204) avalia que este fator é obtido praticamente de forma
arbitrária, variando a posição dos geradores até se obter o melhor resultado
possível, fazendo a ressalva que, se os dispositivos estiverem muito próximos, isto
poderia causar problemas nas turbulências rentes ao chão. Levando tudo isto em
conta, o pesquisador recomenda que os geradores estejam a 5/6 da altura da
CLA a jusante da barreira, sendo que, caso sejam aproximados, haverá perdas na
intensidade da turbulência. Ou seja, para o túnel de vento da FAUUSP, os
geradores estarão a 0,50 m de distância da barreira acastelada e a,
aproximadamente, 0,70 m da contração.

4.3. Rugosidades
Na tentativa de simular um terreno de maneira mais fiel à realidade, utilizam-se as
rugosidades para representar as características do contorno do modelo, sendo um
fator determinante na forma com que o fluxo chega à seção de ensaio. Cada tipo
de região apresenta diferentes ocupações e, por isso, deve-se estipular mais de
uma disposição das rugosidades, podendo simular vários ambientes em nosso
túnel de vento.
Um dos principais parâmetros que iremos variar conforme o tipo de terreno é a
rugosidade aerodinâmica. Se desejarmos simular locais abertos, sem muitas
edificações e com relevos mais constantes, como em campos lisos ou nas 15
encostas, é fácil perceber que a superfície ali presente causa pouco efeito sobre o
vento, concluindo que as rugosidades serão pequenas ou, em alguns casos,
desnecessárias, tendo um yo (rugosidade aerodinâmica) tendendo à zero. Já para
os grandes centros urbanos, ou até mesmo em áreas suburbanas, as influências
das construções locais afetam sensivelmente o fluxo de vento, sendo essencial a
utilização de rugosidades para caracterizar estas áreas, o que não é algo intuitivo
como na outra situação descrita acima.
O método de analise descrito por Counihan (1971, p. 638) tem base no trabalho
de Perry e Joubert (1963) para determinação da rugosidade aerodinâmica e o
deslocamento do plano-zero, na situação bidimensional. Ele descreve que, se a
relação da velocidade média local sobre a velocidade de corte for plotada contra o
logaritmo natural da distância em relação ao piso, devemos obter uma reta, caso d
seja nulo. Se esta condição não for satisfeita, faz-se necessário assumir diversos
valores para ele até que se ache uma variação linear para o gráfico. Em seguida,
extrapolando essa relação com o logaritmo natural da distância vertical ao plano-
zero, podemos chegar ao valor do logaritmo natural do yo yo.
Já para o caso tridimensional, Counihan (1971, p. 638) relata a necessidade de se
determinar os perfis de velocidade em diversas posições, obtendo, assim, diversos
valores de rugosidade aerodinâmica, chegando a um valor médio. Com esse valor
podemos utilizar o método bidimensional descrito no parágrafo anterior.
Com os resultados obtidos por Counihan (1971, p. 639), nota-se pelo perfil de
velocidade média que, próximo às rugosidades, a velocidade se mantém

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
aproximadamente constante, mas, acima de uma vez e meia a altura das
rugosidades, ela tende a crescer rapidamente e tende a velocidade de corrente
livre. A partir disso, pode ser feita uma aproximação por uma curva, adotando
velocidade nula na altura do deslocamento do plano-zero, resultando em uma
função para tal.
Outro fator importante para o dimensionamento das rugosidades é a densidade
do elemento sobre o do túnel, sendo a área de rugosidade (Ar Ar
Ar) sobre a área
A ). Analisando os resultados apresentados por Counihan (1971, p.
total do piso (A
640), em que ele faz uma comparação entre a relação de áreas descrita acima e
os valores de rugosidade aerodinâmica sobre a altura das rugosidades ou o
deslocamento do plano- zero e o mesmo denominador, duas situações ficam
evidentes: quando a área de rugosidade sobre a área total vale zero ou um. Na
primeira situação temos o túnel sem rugosidade, o que proporciona o menor
valor possível de yo
yo. Essa condição se estende para o segundo caso, em que o
piso todo está coberto por rugosidades, logo, tendo uma superfície lisa e,
considerando as faces desse elemento com mesma textura que o chão do túnel,
com mesmo yo yo. Por outro lado, o deslocamento do plano-zero se comporta de
outra maneira: na primeira situação, este fator tende a zero, visto que não há
superfície rugosa, mas, quando a relação se aproxima de um, o d aproxima-se de
seu máximo que se assume igual à altura das rugosidades, visto que se cria um
novo plano liso, onde não há forças de cisalhamento, logo, o escoamento flui
livremente nesta nova composição.
Além disso, foi feita uma divisão de dois tipos de regime de fluxo, A e B. Quando
Ar/A varia de zero a 0,25, aproximadamente, nota-se na literatura que, tanto a
16 relação da rugosidade aerodinâmica média quanto o deslocamento do plano-
zero sobre a altura das rugosidades (h h ) cresce, sendo que o o/h chega a seu
valor máximo. Nesta condição, Counihan (1971, p. 640) avalia que cada
elemento de rugosidade está contribuindo da melhor forma possível com o
conjunto, incrementando turbulência ao sistema, e eliminando efeitos secundários
no fluxo, o que poderia atrapalhar na formação da CLA. Já para a situação em
que Ar/A > 0,25, a proximidade entre cada elemento rugoso acaba por reduzir o
efeito individual das outras peças, proporcionando condições melhores para os
fluxos secundários se desenvolverem. Quando a relação de Ar/A tende a um,
pode-se até considerar que a corrente de ar produzida no túnel passa por cima
das rugosidades, sem sofrer nenhuma perturbação pela presença delas,
deixando os pequenos espaços entre elas livres para os fluxos diversos. Com isso
em mente, devemos desconsiderar as situações em que Ar/A é maior que 0,25,
assumindo apenas valores abaixo disso e acima de 0,1, o que representa bem
regiões urbanas e suburbanas, segundo Counihan (1971, p. 640).
Por fim, Counihan (1971, p. 641) menciona a relação entre o/h com Ar/A e h/
f , sendo f o fetch citado anteriormente. Variando tanto a altura das rugosidades
quanto o fetch, chegou-se na seguinte expressão:

Equação 1:

Sendo que, aproximando-se da condição de equilíbrio, em que h/f tende a zero,


temos:

Equação 2:

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O que vale, apenas, para valores de Ar/A entre zero e 0,25.
Com essas expressões, Counihan (1971) pode fazer uma aproximação do
comportamento de o/h com a variação de h/f se comportar de maneira linear,
considerando que não havia necessidade de se chegar a uma relação mais
precisa neste estudo.
Segundo Davis (1970), citado no texto de Counihan (1971, p. 642), para uma
densidade de rugosidade próxima a 0,15, podemos aproximar ?o/h = (Ar/2A),
em situações em torno do equilíbrio. Somando-se a isso, com seus resultados, o
autor concluiu que as densidades iguais a 0,15 e 0,20 foram as que melhor se
adaptaram às equações acima, quando h/f estava em torno de 0,001, e que,
para conseguir atingir uma condição que se assemelha ao equilíbrio, precisaria
de uma distância de mil vezes a altura da rugosidade.
Considerando a situação do túnel de vento da FAUUSP com três módulos,
teríamos um fetch de 2 m e, além disso, considerando uma Ar/A = 0,15,
chegou-se a um valor plausível de 0,02 m de altura para as
rugosidades, com base quadrada de 0,03 m de lado. Cada fileira
estará espaçada das outras por 0,03 m, assim como as
rugosidades estarão separadas, na mesma fileira, em 0,06 m. No
total, serão necessários 330 bloquinhos de rugosidade para esta
situação descrita. Vale ressaltar que, é preciso que haja um
comprimento de aproximadamente mil vezes a altura dos
elementos rugosos para que a CLA atinja um estado de
equilíbrio. Para o nosso caso, onde não há dimensões suficientes
para tal, construiremos os elementos com apenas,
aproximadamente, 100 vezes a altura de nossas rugosidades, a
17
fim de estudar quais serão os efeitos destas e analisar maneiras
de aprimorá-las para melhor funcionamento.

5. C ONSTR UÇÃO DOS ELEMENTOS


Como afirmado anteriormente, construiremos as peças referentes
a uma CLA de 0,60 m de altura, projetando para o túnel de três
módulos (4,83 m de comprimento). Será necessário construir
uma barreira acastelada de 0,075 m de altura e 0,99 m de
largura, além de três geradores de vórtice com formato de cunha
elíptica, sendo um quarto de elipse com 0,60 m de altura e 0,30
m de comprimento, com base triangular de 0,063 m de largura e
ângulo de incidência do vento de 12o, assim como serão
produzidas 330 rugosidades de base quadrada de 0,03m de
lado, com altura de 0,02 m.
A construção e disposição dos elementos no túnel de vento da
FAUUSP terá como meta chegar ao modelo mostrado na Figura
4a. Apesar disso, com a configuração atual do túnel de vento, o
a. b. qual ainda está com apenas dois módulos, impede que se
Figura 4: Representação de dois possíveis posicionem todas as rugosidades necessárias. Logo, com todos
esquemas para o túnel de vento com os os elementos construídos e posicionados, teremos uma
elementos instalados. configuração que segue o que está mostrado na Figura 4b.
Fonte: Arquivo pessoal.

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
A barreira acastelada foi produzida com uma chapa de madeira de 0,009 m de
espessura, tendo os 0,075 m de altura e 0,99 m de largura (Figura 5). Já as
rugosidades foram feitas com uma chapa de madeira de 0,02 m de espessura,
atendendo a altura estabelecida para os bloquinhos, e sendo cortadas em
quadrados com 0,03 m de lado (Figura 6).
No que diz respeito aos geradores de vórtices, foram produzidas três peças,
tendo cada uma 0,30 m de comprimento por 0,60 m de altura (Figura 7). Elas
foram modeladas no LAME pela CNC, máquina que produz peças de diversos
materiais, sendo que utilizamos duas placas de isopor acartonado de 0,05 m de
espessura, o qual é facilmente moldado e apresenta bom acabamento. Os
geradores foram produzidos em seis metades pela CNC, as quais foram coladas e
receberam acabamento em massa corrida, produzindo uma superfície mais lisa
para o vento.
Vale ressaltar que, para a produção de todos os elementos, obteve-se ajuda do
LAME para o manuseio das máquinas, além de informações para a seleção dos
materiais mais adequados. Todos os elementos foram parafusados em placas de
madeira de 0,004 m de espessura, a fim de manter eles estáveis e evitar que a
força do vento deslocasse os objetos.

Figura 5: Imagens das barreiras


acasteladas que foram
18 construídas, posicionadas dentro
do túnel.
Fonte: Arquivo pessoal.

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Figura 6: Imagens das
rugosidades que foram
construídos, colocados dentro
do túnel.
Fonte: Arquivo pessoal.

19

Figura 7: Vista dos geradores


de vórtices posicionados no
túnel de vento com os outros
elementos.
Fonte: arquivo pessoal.

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
6. P RIMEIROS TESTES
Com a construção dos elementos finalizada, deu-se início a uma série de testes no
túnel de vento da FAUUSP. O primeiro que está sendo feito, no momento, consiste
em instalar um manômetro de fio quente no meio da seção de ensaios do túnel,
medindo a velocidade e a temperatura do ar instantânea. Neste ensaio, apenas, o
gerador de vórtice é instalado em comparação ao túnel de vento sem nenhum
elemento.
De partida, instalou-se o equipamento fazendo um furo no piso do túnel de vento,
no último módulo, permitindo-se que o medidor do fio quente passasse. Este
medidor tem altura variável, possibilitando medir até a metade da altura da seção,
logo, nos testes, foi-se variando a altura de 5 cm a 50 cm em relação ao chão,
mudando de cinco em cinco centímetros.
Como a velocidade do vento medida varia muito para uma mesma rotação, o
método de medida consistiu em pegar o menor e o maior valor de velocidade para
cada ponto, obtendo, assim, um valor médio. Vale ressaltar que valores muito
discrepantes foram desconsiderados, visto que não condiziam com os padrões vistos
e podem representar tanto uma perturbação externa ao túnel quanto erro na leitura
do equipamento.
Os dados acima citados foram coletados para três valores de rotação distintos, 300,
600 e 900 rpm, visando analisar as diferenças no fluxo para valores de rotação
baixos, médios e altos do túnel em questão. Após a mudança de rotação ou
qualquer modificação feita no túnel de vento, deixou-se um período de estabilização
do fluxo, por volta de 30 segundos, diminuindo a influência externa nos dados.
20
Os resultados já obtidos podem ser visto nas tabelas de 1 à 4:

Tabela 1 – Velocidade e
Temperatura na seção de
ensaio do túnel sem geradores.

Tabela 2 – Velocidade máxima


e mínima medida na seção de
ensaio do túnel sem geradores.

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Tabela 3 – Velocidade e
Temperatura na seção de
ensaio do túnel com geradores.

Tabela 4 – Velocidade máxima


e mínima medida na seção de
ensaio do túnel com geradores.

21
Pode-se notar que, com os resultados para o túnel de vento da FAUUSP sem
elementos e com a inserção dos geradores de vórtices, ouve uma queda na
velocidade do fluxo nesta seção de estudo, a qual se localiza após as posições
dos elementos. Para a menor rotação, houve uma queda de 13 % na maior
média de velocidade observada, enquanto para a rotação intermediária ocorreu
uma diminuição de 17 % entre as médias mais altas e, por fim, para o fluxo mais
intenso, a redução foi de 18 %. Além disso, pode-se notar uma pequena
elevação na temperatura do ar em ambos os casos, sendo que se variou mais na
situação com os geradores de vórtices.
Esses resultados parciais podem indicar algumas conclusões já esperadas, como
por exemplo, que a utilização dos elementos construídos causaria uma
significativa queda na quantidade de movimento do fluxo, o que nos leva a
redução de velocidade observada acima. Além disso, possivelmente pelo maior
atrito sofrido pelo vento no contato com os elementos, houve uma maior
variação da temperatura do ar na situação com os geradores de vórtices em
relação à outra mostrada.
Os futuros testes, com as diversas configurações dos elementos, poderão afirmar
as hipóteses citadas aqui, comprovando o que já era esperado no túnel de
vento. Essas configurações testarão o túnel com das seguintes maneiras: apenas
com barreira acastelada; apenas com as rugosidades; apenas com geradores de
vórtices e barreira acastelada; apenas com geradores de vórtices e rugosidades;
apenas com rugosidades e barreira acastelada; com todos os elementos.

Alberto Joseph Khouri – Construção da camada limite atmosférica em túnel de vento –


aplicações em arquitetura e urbanismo – p. 08-22
7. R EF ERÊNCIAS BIB LIOGRÁFICAS
-UZUELI, A. Pesquisa, projeto e construção de ferramentas de ensaio para modelos físicos em
confor to ambiental – Túnel de V
conforto ento. Relatório Final de Iniciação Científica – P
Vento. PII B IC
IC. Orientadora:
Prof. Dra. Denise Duarte. Co-orientador: Prof. Dr. Reginaldo Ronconi. São Paulo: FAUUSP. 2007.
-LOREDO-SOUZA, A. M.; SCHETTINI, E. B. C.; PALUCH, M. J. Simulação da Camada Limite
Atmosférica em Túnel de V ento
Vento
ento. ABCM – Associação Brasileira de Engenharia e Ciências Mecânicas,
IV Escola de Primavera de Transição e Turbulência, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2004.
-COUNIHAN, J. An Improved Method of Simulating an Atmospheric Boundary Layer in a Wind
Tunnel
unnel. Atmospheric Environment. Pergamon Press, vol. 3, pp. 197 – 214, 1969.
unnel Determination of the Roughness Leght as a FFunction
-COUNIHAN, J. Wind TTunnel unction of the FFetch
etch
Elements. Atmospheric
and the Roughness Density of Three-Dimensional Roughness Elements
Environment. Pergamon Press, vol. 3, pp. 637 – 642, 1971.

22

Alberto Joseph Khouri


Aluno de graduação da FAUUSP.

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INTERVENÇÕES DE BAIXO
IMPACTO PARA MELHORIA
URBANÍSTICA E AMBIENTAL DE
ASSENTAMENTOS INFORMAIS EM
ÁREAS DE MANANCIAIS

Ana Clara de Souza Santana


Orientadora: Prof. Dra. Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martins
Colaboradores: Giuliano Salvatore Fiusa Magnelli e Priscila Yumi Endo

24 Resumo
O objetivo do projeto desenvolvido no Laboratório de Habitação e
Assentamentos Humanos (LabHab) é desenvolver soluções não
convencionais de drenagem urbana articuladas à configuração física de
assentamentos precários. O local de intervenção foi no bairro do Alvarenga,
em São Bernardo do Campo/SP, às margens da represa Billings. A partir de
pesquisa e análise de dispositivos existentes, além de contínuos debates com
a comunidade, foi definida a área de intervenção. O projeto foi desenvolvido
com o dimensionamento dos dispositivos de drenagem de águas pluviais e
construído pela metodologia de canteiro-escola. A obra foi realizada pela
equipe de pesquisadores, por trabalhadores da construção civil e por
moradores, com o apoio de órgãos públicos. Foram construídos uma escada
com rampa, jardins de chuva, sistema de captação de água da chuva e kits
de drenagem nas casas vizinhas. A obra construída, embora pontual e de
caráter experimental, indica um novo caminho possível para a ocupação e
consolidação de áreas públicas nos assentamentos informais, introduzindo a
questão ambiental e a participação da comunidade em todas as etapas como
estruturadores do programa.

Palavras-chave
Drenagem urbana; manancial; assentamento informal; meio ambiente;
técnicas alternativas.

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1. I NTRODUÇÃO
Este documento apresenta o relatório final do projeto “Intervenções de baixo
impacto para melhoria urbanística e ambiental de assentamentos informais em
áreas de mananciais”, com início em 22/02/2016 e término em 23/08/2016.
Durante o período, foi possível envolver-se intensamente com uma dentre as
diversas atividades desenvolvidas no Laboratório de Habitação e Assentamentos
Humanos - LabHab da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
de São Paulo - FAUUSP, que desde 1997 interliga a prática de ensino, pesquisa e
extensão universitária em um mesmo espaço, dando prioridade à formulação de
alternativas para as demandas habitacionais, urbanas e ambientais que visem a
inclusão social.
Os exercícios realizados no laboratório têm sempre um caráter experimental,
constituindo-se em processo de formação e capacitação para análise crítica e
ação propositiva. No presente trabalho, a área de estudo/ intervenção é
localizada no Baixo Alvarenga, bairro do município de São Bernardo do Campo
(figura 1). Toda a região é situada em área de manancial, às margens da represa
Billings (figura 2), cuja ocupação se caracterizou por loteamentos irregulares ao
Figura 1 – Localização do longo de décadas, e que gradativamente passa por processos de regularização
Alvarenga na região fundiária e por intervenções urbanísticas.
metropolitana.
De maneira geral, a urbanização dos grandes centros
urbanos no Brasil vem decorrendo de forma
desigual e desordenada. E isso ocorre numa chave
de precariedade das políticas habitacionais, pouco
articuladas com uma ocupação estratégica e eficiente
do território urbano, favorecendo as ocupações em
áreas de proteção ambiental (sobretudo pelas
25
populações mais vulneráveis).
Na Grande São Paulo, nas imediações das áreas de
manancial, os municípios apresentam uma gama de
condições de precariedade no que diz respeito aos
assentamentos urbanos. Muito disso em decorrência
de uma má articulação da política habitacional com
os instrumentos legislativos ambientais do Estado

Figura 2 – Foto a partir do bairro Alvarengo em frente à represa Billings. Fonte: autoria própria.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
(pouco eficaz pois trata de modo simplista a diversidades das situações
encontradas nos municípios, dificultando as possíveis regularizações).
Em São Bernardo do Campo, foi instituído o programa de Regularização
Fundiária no Plano Local de Habitação de Interesse Social, vigente, que a partir de
2009 adotou o Orçamento Participativo (OP), promovendo uma relação mais
efetiva e dinâmica da população junto do planejamento municipal. Após
estruturar essa política habitacional, foram identificadas as tipologias dos
assentamentos precários, definindo as ações necessárias para a regularização e
urbanização. Os loteamentos do Alvarenga, área de estudo dessa pesquisa,
receberam a tipologia 2, que os define como assentamentos parcialmente
consolidados e irregulares, demandando execução e complementação de
determinados serviços de infraestrutura. Essas áreas foram demarcadas como
ZEIS no Plano Diretor.
As atividades de projeto expostas tiveram a colaboração - já estabelecida ao
longo de anos de pesquisa e atuação do laboratório na região - das Secretarias
de Habitação, Planejamento Urbano, Gestão Ambiental e Serviços Urbanos da
Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo. No plano acadêmico, é
importante ressaltar que o presente projeto tem diálogo com as demais 15
equipes de diferentes universidades em todo o país que participam do projeto
“Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano” (MAPLU 2), cuja coordenação geral
cabe ao Prof. Nilo de Oliveira Nascimento (UFMG), com recursos da FINEP -
Financiadora de Estudos e Projetos.
Este trabalho também se vincula ao projeto “Canteiro Escola Águas Urbanas”, com
26 o apoio da PRCEU (Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP).
O projeto “Canteiro Escola Águas Urbanas”, atividade de extensão universitária do
LabHab, realizou oficinas na escola pública do bairro com o objetivo de promover
a preservação das áreas de mananciais e busca da participação ativa da
comunidade na tentativa de ampliar a discussão ambiental e também de garantir
a manutenção dos dispositivos e consolidação da preservação.

2. O BJETIVOS
O objetivo do projeto é, a partir de um contexto urbano concreto, desenvolver
soluções não convencionais de drenagem urbana que visem à recuperação
urbana e ambiental de modo articulado à configuração física de assentamentos
precários, minimizando o impacto da ocupação urbana feita de modo informal,
por autoconstrução, sem infraestrutura, em áreas de risco e/ou ambientalmente
protegidas por lei.
A partir do recorte espacial do bairro do Alvarenga, o projeto visa planejar e
executar obras de drenagem urbana integradas ao espaço de moradia e espaços
públicos, utilizando técnicas compensatórias que podem ser aplicadas como
complemento às redes convencionais existentes – ou que estão previstas no
processo de regularização fundiária na região. Dessa forma, busca-se, para além
da salubridade e sustentabilidade da ocupação urbana, a possibilidade de aliar as
técnicas alternativas, por meio do projeto, à qualificação do espaço público, que
ali tem condições de se integrar à paisagem natural e proporcionando espaços
de convivência e lazer.

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A participação na equipe do laboratório no projeto é uma oportunidade de atuar
diretamente na elaboração de obras isoladas ou de obras interligadas à
infraestrutura convencional, que promovam melhorias ambientais e sejam
executadas sob a forma de canteiro-escola. Ao longo do desenvolvimento das
atividades, a compreensão do processo de formação dos loteamentos periféricos
informais, a articulação entre os diversos agentes atuantes na área e a
participação da comunidade durante todo o processo são considerados
essenciais para consolidar uma possível replicação dos projetos e para sua
manutenção e bom funcionamento.

3. M ETODOLOGIA
A primeira etapa das atividades consistiu no contato com o material já produzido
na pesquisa “Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano”, incluindo relatórios,
manuais e estudos de campo para compreensão das características da área e
cotejamento com levantamentos técnicos já disponíveis. Também foi possível
aprofundar o estudo de soluções ambientais, como cisternas, poços de retenção
/ infiltração e ampliação de áreas permeáveis, jardins de chuva e poços de
retenção / infiltração em vias e praças públicas a partir de pesquisa bibliográfica e
estudos de dispositivos já construídos.
A partir da pesquisa e de debates com a comunidade, foi necessário especificar a
área onde seriam executadas as obras. Deu-se início ao estudo preliminar de
intervenção nas possíveis áreas de interesse, cuja escolha foi pautada pela

27

Figura 3 – Caracterização da
microbacia. Fonte: LabHab.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
28
Figura 4 –Fotomontagem das etapas da construção. Fonte: LabHab.

Figura 5 –Esquema das intervenções construídas.

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avaliação do impacto do local na bacia hidrográfica e da inserção no bairro
enquanto espaço público (figura 3). Nessa etapa foram realizadas reuniões
semanais internas da equipe do laboratório e, principalmente para as
especificações técnicas, conversas com equipe da Escola Politécnica (Poli-USP),
coordenada pelo Prof. José Rodolfo Scarati Martins.
A elaboração da proposição deu-se em meio ao ambiente colaborativo composto
pelos próprios pesquisadores universitários e também pelos moradores,
lideranças locais, secretarias, técnicos do poder público e trabalhadores da
construção civil. Esse ambiente colaborativo é o início da prática do canteiro-
escola, pois tem como objetivo uma formação emancipatória do trabalhador. É o
início de uma relação que, diferente da tradicional, visa real autonomia no pensar
e fazer. A equipe de pesquisadores realizou a elaboração do projeto técnico com
o dimensionamento dos dispositivos de drenagem que, mais tarde, seriam
apresentados aos construtores como parte da prática do canteiro-escola. Com o
apoio e participação de todos os agentes presentes na discussão, foram
implantados, enfim, alguns dispositivos alternativos de drenagem urbana.
Com a conclusão da obra, foi proposto aos construtores um total de quatro
encontros, realizados na sede da Associação de Moradores Parque dos
Químicos, com a intenção de transmitir, no formato de oficinas, conhecimentos
sobre meio ambiente, orçamento, projeto (desenho) e propostas de alteração na
obra. Nesse período, também se torna possível a análise e avaliação dos
dispositivos construídos, a resposta da comunidade e, a partir de alguns
encontros com todos os participantes, realizar eventuais acabamentos e reparos –
como recolocação de mudas que não se fixaram nos canteiros . Dá-se início à
etapa de consolidação do trabalho realizado pela elaboração de manuais para
divulgação das experiências e de seus produtos, por meio eletrônico e impresso, 29
destinados ao setor público, comunidade local e meio universitário.

4. R ESULTADOS
Ao longo de quatro semanas, o projeto foi construído pela equipe de
pesquisadores, por quatro trabalhadores da construção civil e por moradores,
com o apoio das Secretarias de Habitação, Planejamento Urbano, Gestão
Ambiental e Serviços Urbanos do município e da Associação de Moradores do
Parque dos Químicos (figura 4). O local de intervenção é um espaço público,
uma viela entre a Rua da Evolução e a Rua das Oliveiras.
A escolha do local foi feita a partir do estudo da contribuição de cada parte do
bairro na microbacia do córrego que recebe o escoamento da região até atingir
a represa - cujo ponto mais baixo sofre recorrentes enchentes. O bairro possui
uma grande área com cobertura vegetal preservada, localizada numa área
central de seu perímetro. Este maciço tem assumido a função de “wetland”
natural, possibilitando que a vazão das águas pluviais e provenientes de esgoto
e poluição difusa seja então retida e parcialmente filtrada, depois de serem ali
encaminhadas por meio das escadas hidráulicas (obra da Prefeitura de São
Bernardo).
O potencial de atuação na Rua das Oliveiras foi ampliado pela importância na
rede urbana local, no ponto mais alto da topografia do bairro, por ser próxima

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
ao ponto final da linha de ônibus que conecta o bairro à região do entorno, por
ser um ponto encontro dos moradores, por ser onde acontece semanalmente
uma feira livre e por se configurar como uma passagem de pedestres com
demanda de qualificação urbanística.
Foram construídos uma escada com rampa na lateral; jardins de chuva; um
sistema de captação e armazenamento de água pluvial em uma das casas
vizinhas à viela; kits de drenagem na calçada de duas casas vizinhas; e instalados
postes de iluminação pública (figura 5).

4.1. Projeto
Uma importante referência projetual foi o trabalho desenvolvido na tese de
doutorado de Newton Célio Becker de Moura, “Biorretenção – Tecnologia
Ambiental Urbana para manejo das águas de chuva”, sob a orientação do
professor doutor Paulo Renato Mesquita Pellegrino da FAUUSP e coorientação do
professor José Rodolfo Scarati Martins da Escola Politécnica da USP, com quem o
projeto realizou parceria através do Departamento de Engenharia Hidráulica e
Ambiental (PHD).
A tese é bastante elucidativa e propositiva nas suas experimentações, sendo uma
fonte de referência alinhada com o que se almeja propor como técnica alternativa
no manejo de águas pluviais a serem aplicadas especificamente no Alvarenga. O
doutorando explora o conceito de infraestrutura verde apostando numa
urbanização sustentável e de baixo impacto, se utilizando de dispositivos de
biorretenção de execução simples e baixa manutenção que garantem uma
30 mínima eficiência sem comprometer as funções de retenção e filtragem.
Um dos recortes da tese, que foi utilizado como objeto de estudo, é o processo
de concepção e execução de um protótipo de elemento de biorretenção,
instalado nas imediações do Centro Tecnológico de Hidráulica-CTH na Cidade
Universitária Armando Salles de Oliveira. Foi proposto com a finalidade de medir a
vazão de efluentes e também coletar amostras de água para análise laboratorial.
Ao apropriar-se do desenho em questão, foram incorporados os conhecimentos
a respeito da técnica de biorretenção por meio do dispositivo apresentado, no
entanto a equipe do LabHab desenvolveu um desenho próprio, levando em
conta tanto a limitação orçamentária como a viabilidade de execução no canteiro
de obras, fundamental para a exequibilidade da intervenção, que contaria com a
mão de obra profissional dos pedreiros moradores da região, mas também com
mão de obra de moradores em geral e também de estudantes e professores,
pela metodologia de canteiro-escola e em mutirões programados.

4.2. Obra
As obras se iniciaram no dia 21 de março de 2016, com parte da equipe de
obras e com os pesquisadores, que começaram a limpeza da viela. A demolição
do piso e da escada preexistentes e a retirada do entulho e de volume de terra
foram auxiliadas por maquinário e mão de obra da Secretaria de Serviços
Urbanos, da Prefeitura de São Bernardo do Campo. No final da primeira semana,
foi cavada a trincheira onde seria instalado o jardim de chuva, além de um
sumidouro na calçada.

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Na segunda semana, já com a equipe de obras completa, com dois mestres de
obra e dois pedreiros, foi iniciada a construção da escada em blocos de
concreto e dos jardins de chuva em degraus e a trincheira e os canteiros foram
preenchidos com rachão. Na semana seguinte, os sarrafos foram postos ao
longo da trincheira, deixando as laterais preparadas para receber o concreto do
piso. Também foram montados kits de drenagem na calçada das casas dos
vizinhos da viela, que são compostos por dois jardins de chuva ligados a uma
pequena bacia de retenção.
Na quarta e última semana, um sistema de captação de água da chuva foi
montado na casa de um dos vizinhos. E, finalmente, dois caminhões de
concreto chegaram à rua, e com a equipe ampliada e com o auxílio de uma
bomba, foi possível concretar toda a viela: as calçadas, os dois lados de
passagem ao longo da trincheira, a escada e a rampa lateral.
O último dia para finalização das obras, no dia 16 de abril de 2016, foi
destinado à colocação de mudas de plantas na trincheira e nos canteiros ao
longo da escada por meio de mutirão. E a “viela ecológica” foi finalmente
recebeu o nome de “Francisco ‘Xiquinho’ da Silva”, em homenagem a uma
atuante liderança do bairro, que já faleceu. O pedido para oficialização do
nome foi enviado à prefeitura. A inauguração teve a participação da equipe de
obras, dos pesquisadores, de membros da associação, de moradores e da
família de Xiquinho.

4.2.1 Canteiro-Escola
Durante o período de obra ficou nítido o domínio da técnica construtiva por
parte dos trabalhadores e a falta de familiaridade da mesma pela equipe de 31
pesquisa, reafirmando a importância da discussão sobre a divisão tradicional do
trabalho. Com o término das atividades no canteiro, foi proposto aos
construtores realizar quatro encontros em formato de oficinas na sede da
Associação de Moradores Parque dos Químicos, com a intenção de transmitir
conteúdos ministrados nos espaços educacionais voltados para as elites a fim
de proporcionar o início de uma autonomia em relação a essas -
tradicionalmente consideradas - disciplinas. Nesses encontros foi possível
perceber o quanto a prática e a teoria da construção, e a separação dessas,
permeia e determina tanto a formação do trabalhador da construção quanto
da equipe de pesquisa.
O primeiro encontro foi sobre “meio ambiente”, onde foi discutido o
funcionamento da bacia hidrográfica, a importância da preservação ambiental
nas áreas de manaciais e a inserção da técnica dos dispositivos construídos na
escala do bairro e da metrópole, bem como seu funcionamento. O segundo
encontro, sobre “orçamento”, foram abordadas questões sobre custos de obra,
que incluíam cálculo de materiais e estimativa de tempo de execução.
O terceiro encontro foi sobre projeto, abordando a importância do desenho na
prática da arquitetura em suas diversas linguagens e representações. O último
encontro foi destinado a planejar o último dia de trabalho da atividade na viela,
programado para realizar acabamentos, como aplicação de revestimentos e
ajustes, como recolocação de mudas que não se fixaram nos canteiros.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
4. 3. Os dispositivos e seu funcionamento

4.3.1. Jardins de chuva


Os jardins de chuva são dispositivos de drenagem que retêm, filtram e infiltram
parte das águas pluviais, diminuindo o volume e a velocidade do escoamento
superficial e melhorando a qualidade da água que retorna ao sistema hídrico da
bacia. O funcionamento dos jardins ocorre em duas etapas principais. A primeira
etapa é a filtração, na qual o volume de água escoado das chuvas é direcionado
para o jardim que possui duas camadas: substrato (com vegetação) e material
agregado, separados por uma manta geotêxtil. As raízes das plantas, ao
crescerem, perfuram a manta e compõem um importante fator na despoluição
da água.
Num primeiro momento (passagem da água pela camada de substrato até
alcançar a manta geotêxtil), são removidos sedimentos finos da água. Num
segundo momento, o volume de água avança pela manta geotêxtil e fica retido
nos espaços vazios do material agregado. Pela ação das raízes das plantas e de
bactérias anaeróbicas, são retirados da água alguns metais e nutrientes poluidores.
A segunda etapa consiste na infiltração do volume de água armazenado, que
lentamente é absorvido pelo solo no local e retorna ao lençol freático.
Neste projeto, a mesma técnica do jardim de chuva foi utilizada sob duas formas,
para se adaptar ao terreno da viela, que possui diferentes declividades. No trecho
mais plano, do lado da Rua da Evolução, o jardim foi disposto ao longo de uma
trincheira de aproximadamente 30m de comprimento, 50cm de largura e 70cm
32 de profundidade. Para aumentar a capacidade de retenção e de infiltração,
alguns pontos foram escavados com maior profundidade, chegando aos 1.20m,
com seção transversal circular de 20cm. A cobertura vegetal desse trecho foi
composta por “grama-amendoim”.
No trecho com maior declive, do lado da Rua das Oliveiras, o jardim de chuva foi
disposto em cascatas, associada à escada; com largura variável entre cerca de
30cm e 80cm e profundidade também variável entre cerca de 20cm e 80 cm. O
dimensionamento dos dispositivos foi calculado a partir da área de contribuição
dos telhados dos lotes lindeiros à viela, para serem capazes de reter uma chuva
média de 10 min. A cobertura vegetal desse trecho foi composta por “pingo-de-
ouro”, “maria-sem-vergonha”, “amarílis”, “dália” e “frésia”.

4.3.2 Kits de drenagem por lote


No tecido urbano, a área que recebe o maior volume de água da chuva é
composta pelos lotes privados das residências, que sistematicamente escoam a
água para as ruas, e o espaço público precisa drenar todo esse volume de água
(cada vez maior pela impermeabilização do solo no espaço intra-lote). O kit de
drenagem por lote é um experimento que tem como objetivo reduzir o volume
do escoamento de água pluvial superficial advindo de cada lote particular, e que,
se realizado em conjunto com outras residências de uma mesma rua, por
exemplo, pode reduzir inundações e melhorar a qualidade de água em toda a
bacia. O kit de drenagem, tendo como área de contribuição a projeção do
próprio lote da casa, pode ser implantado na calçada, contribuindo também para
aumentar a qualidade paisagística da rua.

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
O funcionamento do kit de drenagem acontece em três etapas. A primeira etapa
é a filtração, na qual o volume de água escoado do lote é direcionado para um
pequeno jardim filtrante – análogo ao jardim de chuva- com camada de
substrato, manta geotêxtil e material agregado, que remove sedimentos finos,
metais, nutrientes e bactérias. A segundo etapa é a retenção, quando o volume
de água filtrado é direcionado para uma bacia de retenção que pode ser
permeabilizada ou não, de acordo com o solo na área. Na terceira etapa, de
infiltração, o volume de água, dependendo das condições do solo no local, pode
retornar ao sistema de drenagem urbana pelo escoamento superficial (sarjeta)
ou subterrâneo (galerias), ou, ainda, infiltrar diretamente no lençol freático.
Neste projeto, foram construídos dois kits, na calçada das casas vizinhas à viela na
Rua das Oliveiras. Os dois pequenos jardins, dimensionados para reter chuvas de
até 10 minutos, se conectavam a uma mesma bacia de retenção, construída com
manilhas de concreto e 2m de profundidade. O fundo da bacia não foi
impermeabilizado, o que permite a infiltração do volume de água armazenado
diretamente no solo.

4.3.3 Sistema de captação de chuva


Foi construído, ainda, um sistema de captação e armazenamento de águas
pluviais em uma das residências vizinhas. O volume de água é direcionado da
cobertura da casa para uma caixa d’água que, quando atinge sua capacidade
máxima, desvia o volume excedente para o kit de drenagem por lote em frente à
sua calçada. A água armazenada deverá ser usada na manutenção da vegetação
dos jardins de chuva construídos, além de poder ser utilizada pelo morador para
uso doméstico, como em limpeza de pisos por exemplo.
33

5. D IVULGAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS


Como produto dos encontros promovidos conjuntamente, será distribuído o
terceiro número do “Navega Alvarenga”, informativo do bairro realizado em
parceria com o LabHab. O objetivo da distribuição do informativo é promover a
conscientização da importância da preservação ambiental na região, divulgar as
atividades realizadas e explicar o funcionamento dos dispositivos construídos.
A difusão das técnicas para a comunidade local é essencial para o bom
funcionamento dos dispositivos, sobretudo nos serviços de manutenção que
essas técnicas demandam, como reposição de mudas e substituição da manta
geotêxtil que gradativamente acumula sedimentos e perde a capacidade de
filtração. É importante, ainda, para estimular a replicação de intervenções no
espaço urbano que utilizem técnicas de baixo impacto.
No plano acadêmico, o projeto prevê uma publicação pelo projeto FINEP -
“Manejo de Águas Pluviais em Meio Urbano” (MAPLU 2). Há previsão de
consolidar o material com toda a pesquisa realizada ao longo do projeto,
referências de projetos construídos e estudos publicados, documentação da obra,
análise técnica dos resultados etc. O trabalho foi apresentado no 24º SIICUSP -
Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP, foi
selecionado para a Etapa Internacional e recebeu Menção Honrosa.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
6. C ONCLUSÕES
O trabalho desenvolvido ao longo dos sete meses na equipe do laboratório foi
bastante enriquecedor pelo contato com o contexto urbano predominante nas
periferias da metrópole paulista e, ao mesmo tempo, com as particularidades das
áreas de mananciais. Estudar a viabilidade de urbanização pautada em questões
ambientais através de intervenções de baixo impacto nas áreas informais revela
questões desafiadoras por diversas questões, sobretudo pela lógica das obras
tradicionalmente construídas pelo poder público após longos períodos de
negligência nessas regiões.
Os processos de regularização fundiária e obras de infraestrutura urbana no
bairro Alvarenga eram demandas dos moradores há anos e foram atendidos
serviços elementares como saneamento básico, iluminação, pavimentação de
guias e sarjetas etc. Nos trechos com altas declividades, também foram
construídas escadas hidráulicas para direcionar o escoamento superficial da água
pluvial ao córrego e, finalmente, à represa. Embora essas intervenções tenham
proporcionado melhorias e condições de habitabilidade em geral, a
impermeabilização do solo traz consequências como o aumento da velocidade
do escoamento das águas pluviais, centralizando os lugares de passagem da
água - gerando pontos de alagamento e de acúmulo de poluição. A viabilidade
da implantação de técnicas compensatórias, a fim de configurar uma rede
resiliente formada por pequenas obras pontuais de baixo impacto, que implicam
manutenção permanente, demandaria uma outra postura do poder público no
gerenciamento desses espaços.

34 Outra questão presente nas etapas de pesquisa e de elaboração do projeto é


em relação à inserção das técnicas no contexto urbano real no qual seriam
construídas. As principais referências projetuais eram em sua maioria
implementadas com caráter experimental em ambientes controlados ou em
espaços públicos cujo uso formalizado tem parâmetros diferentes da realidade
dos locais públicos dos espaços urbanos brasileiros. O desenho final dos
dispositivos, portanto, não foi norteado somente pelo desempenho ambiental,
mas a fim de compatibilizar a durabilidade da intervenção, os usos que já existiam
no local, as demandas da comunidade, os materiais disponíveis, o orçamento
para a construção, tempo de execução etc.
A obra construída pelo presente projeto, embora pontual e de caráter
experimental, tem um potencial alcance por dois motivos principais: em primeiro
lugar, indica um novo caminho possível para a urbanização dessas áreas, um
padrão exequível de ocupação e consolidação das áreas públicas nos
assentamentos informais, introduzindo a questão ambiental como estruturador
do programa. Outro aspecto é ter no diálogo e na participação da comunidade o
elemento crucial da tomada de decisões, que neste projeto aconteceu desde os
primeiros levantamentos, discussões das problemáticas, definição das prioridades
e na construção de fato. Além de ser um incentivo para a participação dos
residentes na preservação dos mananciais e na discussão de futuras intervenções
nessas áreas, é indispensável para o bom funcionamento e manutenção das
intervenções.

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
Enquanto atividade de formação, o período foi uma oportunidade de se
familiarizar com a elaboração de desenhos técnicos e dos aspectos construtivos
concretos, que também são indispensáveis no exercício da arquitetura e no
programa da formação universitária. A prática do canteiro-escola foi um grande
aprendizado sobre as técnicas construtivas a partir da prática dos trabalhadores.
Mais ainda, foi uma oportunidade de refletir sobre a divisão do trabalho no
canteiro de obras e participar de uma vivência coletiva e autônoma na prática da
arquitetura .

7. R EFERÊNCIAS
BAPTISTA, Márcio Benedito. NASCIMENTO, Nilson de Oliveira. BARRAUD, Sylvie. Técnicas
compensatórias em drenagem urbana
urbana. 2. ed. rev. Porto Alegre, 2011. 318p.
CHRISTOVAM, Mariane T. Infraestrutura de drenagem e áreas verdes na bacia do Córrego P onte
Ponte
Alta. Trabalho final de graduação apresentado na FAUUSP. São Paulo, 2013.
Alta
MOURA, Newton Célio Becker de. PELLEGRINO, Paulo Renato Mesquita (orient). MARTINS, José
Rodolfo Scarati (co-orient). Biorretenção : tecnologia ambiental urbana para manejo das águas
de chuva
chuva. Tese de Doutorado apresentado na FAUUSP. São Paulo, 2013. 177 p. Disponível em: <
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16135/tde-30052014-104153/publico/
FAUUSP_TESE_MOURA_NEWTON.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2016.
Stormwater Management Manual
Manual. City of Portland, 2016. Disponível em: < https://
www.portlandoregon.gov/bes/article/582086>. Acesso em: 28 nov. 2016.
Projeto técnico: jardins de chuva
chuva. Manual sistematizado por FCTH e ABCP. Disponível em: < http://
solucoesparacidades.com.br/wp-content/uploads/2013/04/AF_Jardins-de-Chuva-

35

Ana Clara de Souza Santana


Aluna de graduação da FAUUSP.

Ana Clara de Souza Santana – Intervenções de baixo impacto para melhoria urbanística e
ambiental de assentamentos informais em áreas de mananciais – p.24-35
MULHER, CIDADE E ARQUITETURA
NAS REPORTAGENS DE
O CRUZEIRO

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes


Orientadora: Profa. Dra. Joana Mello de Carvalho e Silva

36 Resumo
A iniciação científica que deu origem a este artigo buscou compreender o
processo de disseminação de valores modernos no papel da mulher, nas
configurações familiares e na arquitetura entre a população brasileira durante
os anos 1950. Para tanto, foi escolhida como objeto de análise a revista
ilustrada de variedades O Cruzeiro, de grande relevância no período. Seus
conteúdos sobre os temas observados nos revelam os padrões correntes,
aceitos e divulgados. A revista, enquanto mídia de grande circulação, pode ser
considerada ao mesmo tempo um reflexo da sociedade que retratava e um
mecanismo influenciador de seus leitores, registrando e promovendo
transformações em gostos, comportamentos e valores. Nesse texto,
procuramos apresentar alguns aspectos dos debates travados na revista
acerca da mulher, das cidades e da arquitetura brasileiras.

Palavras-chave
Arquitetura moderna, Gênero, O Cruzeiro

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
I NTRODUÇÃO
A revista O Cruzeiro foi uma revista ilustrada de variedades brasileira, parte do
grupo Diários Associados de Assis Chateaubriand, e que foi publicada de
novembro de 1928 até possivelmente meados da década de 1980,1 quando a
mudança da direção do grupo, dívidas, a ascensão e a popularização da televisão
como meio de comunicação e entretenimento teriam impulsionado seu fim. Sua
distribuição contava com um sistema logístico que permitia um amplo alcance em
escala nacional, como se verá no item a seguir. Ainda que com alguns dias de
defasagem, a revista chegava a municípios pequenos e muito distantes do Rio de
Janeiro (sede da revista) – contando inclusive com uma versão internacional,
distribuída na Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru, Bolívia, Venezuela, dentre
outros países de 1957 a 1965. A revista se orgulhava de possuir um agente em
cada cidade brasileira e correspondentes nas principais cidades do mundo.
Os investimentos em novas tecnologias gráficas e as inovações no uso de
imagens em revista contribuíram, dentre outros fatores, para que suas tiragens
alcançassem uma escala impressionante para o período, confirmando a revista
1 Embora a bibliografia sobre a como uma publicação de sucesso do grupo e afirmando seu caráter de
revista considere que seu fim
vanguarda no campo editorial. A preocupação de O Cruzeiro com a questão da
tenha acontecido em 1975, o
último exemplar disponível no imagem pode ser observada através das fotorreportagens, gênero em cujo uso a
acevo da Hemeroteca Digital da revista foi pioneira, e do foto-teste “Aprenda a ver as coisas”, que tinha como
Biblioteca Nacional corresponde objetivos educar e modernizar o olhar do leitor a partir da criação de um
ao mês de junho de 1985.
repertório de referências imagéticas. Por ser concebida como uma revista
ilustrada, as imagens ocupavam papel central na publicação e na década de
1950 é notória a evolução no uso das mesmas, com a utilização cada vez maior
de fotografias, em detrimento de desenhos, e o uso, a partir da segunda metade
de 1952, de fotografias coloridas (BAHIA, 2009; BARBOSA, 2002; BURGI e 37
COSTA, 2012; FRANCISCHETT, 2015).
Desde sua inauguração, a revista procurou imbuir-se de uma imagem de
modernidade identificada com a industrialização, a urbanização, o estilo de vida
das metrópoles e o progresso da sociedade. Por ser parte de um grupo editorial
forte e de grande renome, O Cruzeiro sempre figurou entre os semanários mais
prestigiados da imprensa nacional, porém em seus quase 60 anos de circulação,
as décadas de 1940 e 1950 se destacam como o período áureo da revista pelas
vendas em alta, grande quantidade de anunciantes e pelo momento de
implantação de novidades gráficas e renovação do layout (BARBOSA, 2002;
BURGI e COSTA, 2012).
Um exemplar da revista O Cruzeiro consistia em um caderno de 25,5 por 32
centímetros impresso em papel couchê na capa e papel jornal no miolo. A
publicação saía com frequência semanal (até 1975), todos os sábados e era
comercializada por venda avulsa ou assinatura anual. O número de páginas por
exemplar ficava na faixa de 100 a 140 páginas, quantidade semelhante a de
semanários atuais como Veja (editora Abril), Época (editora Globo) e IstoÉ
(editora Três).
Seu principal público alvo eram, inquestionavelmente, as mulheres. Embora a
revista não fosse considerada uma publicação feminina, muitas das seções da
revista eram dedicadas especialmente ao gênero feminino. Elas estiveram
presentes na maioria absoluta das capas ao longo da história da revista:
modelos, misses, cantoras, atrizes, moças da alta sociedade brasileira, estrelas do

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
cinema, “Madonnas” e crianças. No recorte histórico
adotado por esta pesquisa, que compreende 616
publicações da versão nacional da revista, menos de
2% das capas continham apenas figuras masculinas.
Nos casos observados figuraram nas capas Pe. Manoel
da Nóbrega (representado em gravura), índios, Carlos
Gardel, Ernest Hemingway, o Papa Pio XII e Juscelino
Kubitschek.
A predominância de figuras femininas nas capas da
revista revela a dupla imagem que a mulher assume na
cultura de massas ocidental: a mulher sujeito e a
mulher objeto. A mulher representada na capa pode
tanto gerar identificação com potenciais consumidoras
da revista quanto despertar o desejo, pela mulher e
pela revista (FRANCISCHETT, 2015, p. 1).
Seus conteúdos eram dos mais variados possíveis,
como matérias de sociedade, comportamento, política,
história, eventos, celebridades, cinema, teatro, rádio,
televisão, moda, folhetins, crônicas de diversos escritores,
colunas variadas de humor, dicas de beleza, saúde,
decoração e economia doméstica, receitas,
aconselhamento por cartas e etc. Além dos conteúdos
editoriais, os anúncios publicitários também tinham
O Cruzeiro, ano XXVIII, nº 22, 17/03/1956. Acervo ECA-USP.
Imagem da autora.
grande peso na revista, aparecendo na maioria das
38 páginas da publicação.
A revista tem como sua principal referência cultural os Estados Unidos, porém a
França também apresenta um papel de destaque, o que se exemplifica
principalmente pelo espaço ocupado na revista pelo cinema hollywoodiano e pela
alta costura parisiense. Não à toa a revista é frequentemente relacionada às
revistas Life e Paris Match (onde inclusive trabalhou um dos maiores nomes de O
Cruzeiro, o fotógrafo Jean Manzon), que são consideradas seus modelos
inspiradores. De todo modo, considerando o conteúdo geral da revista no
período abordado, pode-se afirmar que O Cruzeiro foi um dos veículos de
divulgação do American Way of Life no Brasil.
Quanto ao seu posicionamento político, pode-se dizer que a revista seguia os
interesses de Assis Chateaubriand, sendo predominantemente de situação. Apesar
disso, O Cruzeiro abria espaço para textos que criticavam o governo e em suas
matérias sobre política apareciam constantemente referências sobre as oposições
enfrentadas pelo governo, além da preocupação com a crise política. As
reportagens publicadas por Jean Manzon na década de 1960 criticando o
presidente Juscelino Kubitschek são um exemplo dessa atitude. Além da situação
política, a revista também denunciava diversas mazelas do Brasil, como por
exemplo o analfabetismo, as altas taxas de mortalidade infantil, a fome e miséria, o
crescimento do número de habitações em favelas, o trânsito e outros problemas.
Mesmo construindo alguns cenários negativos, deve-se dizer que o tom
predominante na revista era de otimismo. Sobre o sentimento dúbio de
frustração e esperança típico do pós II Guerra, vale destacar o lide de uma das
principais matérias da primeira edição de 1950:

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Cinquenta anos de Século XX trouxeram para o Ser Humano todas as maravi-
lhas da técnica e todas as frustrações morais e sentimentais. A geração de
1900 possui essa glória, que nenhuma outra jamais possuiu em qualquer
tempo – ver nascer e crescer uma civilização – e um desespero também
jamais sentido em qualquer outra era – a certeza de que nunca o homem foi
tão infeliz quanto hoje (PEREIRA, 07/01/1950, p. 44).
Do lado positivo, no típico espírito dos anos dourados e das políticas
desenvolvimentistas, a revista acreditava no progresso do país, um Brasil em
franca industrialização e urbanização - processos que também eram
constantemente retratados nas páginas da revista, sobretudo a partir dos
exemplos do Rio de Janeiro e São Paulo. Para O Cruzeiro, o futuro rumo ao qual
seguia o Brasil era de desenvolvimento, crescimento econômico, superação dos
problemas denunciados e melhoria nas condições de vida, conduzindo os
brasileiros a uma vida parecida àquela da qual desfrutavam os cidadãos de
países desenvolvidos, sobretudo no que dizia respeito ao consumo.
Além de otimista, pode-se dizer que a revista assumia também por vezes um
caráter propositivo. Exemplos disso são a divulgação dos avanços a ciência
referentes ao parto e à medicina neonatal, o patrocínio aos concursos “10
Municípios de Maior Progresso”, realizado pelo Instituto Brasileiro de
Administração Municipal e que teve três de suas edições em 1955, 1957 e 1960,
e, com destaque, a publicação em outubro de 1957 da cartilha de alfabetização
“O Cruzeiro”, divulgada como uma ação parte de uma campanha pela
erradicação do analfabetismo em nível nacional.
Quantos aos temas de gênero, cidades e arquitetura moderna brasileira,
especificamente abordados neste trabalho, embora não fosse um periódico
especializado em arquitetura ou urbanismo, as reportagens de O Cruzeiro 39
abordaram tais temas em diversas ocasiões, conferindo-lhes maior destaque do
que o observado nas revistas atuais e criando repertório e discussões a respeito
em seu público leitor. Os assuntos femininos eram muito mais explorados nas
seções e colunas das revistas, assim como nos anúncios publicitários, mas
também figuraram frequentemente nas reportagens.

M ULHER E FAMÍLIA
A presença das mulheres em O Cruzeiro começa na figura de sua presidente,
Amélia Whitaker Gondim de Oliveira que, embora não tivesse uma atuação central
na definição do perfil editorial da revista, assumia uma posição de destaque. Além
dela, diversas outras mulheres constavam da equipe da revista como cronistas,
colunistas e colaboradoras. Entretanto, nenhuma mulher, ao menos durante os
anos 1950, chegou a ocupar na revista os postos de repórter ou fotógrafa.
As mulheres que O Cruzeiro mais gostava de retratar eram, em suma, as estrelas
do entretenimento (rádio, teatro, televisão e cinema) e as moças e senhoras da
alta sociedade brasileira. Elas eram apresentadas como verdadeiras inspirações a
serem seguidas e o desejo de toda mulher deveria ser o de se parecer com elas,
vestir-se como elas e desfrutar da vida que elas tinham. Se não fosse possível, as
imagens das revistas podiam lhes dar ao menos uma amostra, uma orientação.
Em segundo plano, a mulher comum era representada sempre nos papéis de
esposa, mãe e dona-de-casa, entendidos como essenciais para a satisfação do

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
espírito feminino e cruciais para o bem-estar da família e, consequentemente, do
país. Dentre estes papéis, tinha maior destaque o papel de mãe, pois a
maternidade era considerada sagrada. Tornar-se mãe era a realização máxima na
vida de uma mulher, e a partir disso, todos os planos acerca de seu futuro
girariam em torno dos filhos2 . Normalmente, a não ser quando se tratava de
contar alguma história particular e individual ou noticiar algo inusitado, a mulher
comum de que falava a revista procurava refletir a realidade da classe média.

2 A sublime missão das mães. O


Em uma das raras exceções onde tal padrão foi quebrado, a mulher foi
Cruzeiro, ano XXVI, nº 30, 08/05/ representada em outras funções que poderiam ser desempenhadas no dia-a-dia
1954, pp 48, 52-55. do Rio de Janeiro. Eram estas – além da dona-de-casa e da mulher da alta

40

O Cruzeiro, ano XXVIII, nº 22, 17/03/1956. Acervo ECA-USP. Imagem da autora.

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sociedade é claro – a funcionária pública, a estudante, a lavadeira, a policial, a
artista, a balconista, a aeromoça, a frequentadora da praia e até mesmo a
moradora de favelas e a prostituta, chamadas na reportagem respectivamente de
cabrocha e mariposa.3
Para reforçar a importância e naturalidade do pertencimento da mulher ao
ambiente doméstico e familiar e revesti-lo de certo ar de glória, era comum que a
revista veiculasse reportagens sobre a vida íntima de celebridades. Uma das
favoritas da revista durante os anos 1950 foi Martha Rocha, Miss Brasil em 1954,
que continuou a ser notícia muito depois de passar seu título. Atrizes, cantoras,
ou misses nacionais eram as que mais tinham sua vida particular retratada em O
Cruzeiro, talvez até como um mecanismo de aproximação com as leitoras. A
matéria “70 Bilhões”4 de 3 de dezembro de 1955 e três reportagens5 sobre as
misses Martha Rocha, Emília Lima e Maria José Cardoso de 6 de abril de 1957
mostram respectivamente modelos norte-americanas e ex-Misses brasileiras em
suas casas, como mães esposas e donas-de-casa; dando atenção aos maridos,
alimentando os filhos, fazendo as tarefas domésticas, usando até mesmo avental
3 Mulher, vida e alegria da cidade. e touca, mas sem perder a beleza e o glamour que as caracterizavam.
O Cruzeiro, ano XXXII, nº 51, 01/
10/1960, pp 22-25.
O Cruzeiro, em “A Mulher em Nova Edição”,6 procurou definir quem era a mulher
latino-americana da metade do século XX, a partir de jovens de diferentes países.
4 70 Bilhões. O Cruzeiro, ano
Chegou a conclusão de que a “nova mulher” buscava equilibrar “as virtudes
XXVIII, nº 7, 03/12/1955, pp 36-
42, 92. tradicionais e a liberdade da educação moderna, sem perder a feminilidade”. A
5
educação moderna teria, segundo a revista, emancipado a existência da mulher
O Cruzeiro, ano XXIX, nº 25, 06/
04/1957, pp 4-9. em relação ao homem. O trabalho teria lhe dado independência econômica e a
6
enriquecido psicologicamente, de modo que a mulher moderna seria mais
A mulher em nova edição. O
Cruzeiro, ano XXIX, nº 50, 28/09/
descontraída, com muitos interesses e ocupações. A mesma cultuaria ainda a
1957, pp 24-33. higiene e a prática de esportes, usando roupas mais “racionais”. A despeito das 41
7
muitas transformações, a existência dessa “nova mulher” não colocava em risco as
Das desvantagens de ser mulher.
O Cruzeiro, ano XXIII, nº 12, 06/ noções de lar e família, exceto em algumas poucas camadas da população dos
01/1951, p3. grandes centros urbanos.
8 Mulheres contra a lei dos Mas nem só de imagens idealizadas se encheram as páginas da revista. Vez ou
homens. O Cruzeiro, ano XXIX, nº
46, 31/08/1957, pp 14-18.
outra, reportagens denunciaram condições difíceis para as mulheres. Em janeiro
de 1951, no artigo “Das Desvantagens de Ser Mulher”,7 é denunciada uma
9 O direito de casar. O Cruzeiro,
condição social desigual entre homens e mulheres que se revela através de
ano XXIV, nº 51, 04/10/1952, pp
8-14. liberdades tolhidas desde a infância, pressões sobre a imagem, subestimação da
10
inteligência e rotulação entre “bonitas” e “feias”. A respeito das desigualdades, a
Odisseia da mãe brasileira. O
Cruzeiro, ano XXIX, nº 30, 11/05/
revista noticiou em 31 de agosto de 19578 a mobilização da União Universitária
1957 pp 91-97. Feminina em prol de mudanças no Código Civil, que considerava a mulher
parcialmente incapaz no matrimônio conferindo ao marido o poder de autorizar
que ela trabalhasse ou não. Em outubro de 1952, a revista noticiou a situação
das normalistas, que não tinham permissão para simultaneamente serem casadas
e cursarem a Escola Normal ou exercerem o magistério, por um alegado embate
entre a vida de estudante, de esposa e dona-de-casa. Nesse caso, a revista
defendeu a liberdade das normalistas para o casamento.9 As mães brasileiras, em
sua “árdua” e “heroica” missão, também não enfrentavam um cenário fácil, com
desassistência do poder público à maternidade e à infância e dificuldade de
acesso à educação e a espaços de lazer para seus filhos.10
Além disso, a família também estava mudando, comentavam os artigos e
reportagens da revista. No Rio de Janeiro, noticiava-se que diminuía o número de

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
casamentos e crescia o de divórcios. Essa situação revelava, segundo O Cruzeiro,
que não havia a mesma responsabilidade para com o casamento e a família,
sendo comum o abandono de menores, a existência de lares desestruturados e
uma juventude “transviada”.11
Como se vê nesses poucos exemplos, a revista ao mesmo tempo em que
noticiava e promovia relações de gênero tradicionais, com as mulheres
desempenhando os papéis consagrados desde o século XIX de mãe, esposa e
dona-de-casa, dava mostras de que mudanças, ainda que lentas, estavam em
curso, apontando o aparecimento de novas atividades e lugares sociais ocupados
pelas mulheres, especialmente as das camadas médias, nas cidades.

C IDADE
11 Desagregação
A revista O Cruzeiro se identificava com o estilo de vida das grandes metrópoles
da família,
problema de uma época. O
nacionais e internacionais que, não raras vezes, mostrou em suas páginas. As
Cruzeiro, ano XXXI, nº 44, 15/08/ cidades norte-americanas apareciam como exemplos do estilo de vida urbano
1959, pp 4-12, 106. dos países desenvolvidos, como modelos urbanísticos a serem referenciados. Los
12 A cidade do automóvel. O Angeles é apresentada por seu modelo rodoviarista e descentralizado, constituído
Cruzeiro, ano XXII, nº 28, 29/04/ em subúrbios.12 Nova York é apresentada segundo seu dinamismo e sua
1950, pp 62-64, 76. imagem de cidade densa e vertical, aparecendo como um lugar onde haveria

42

O Cruzeiro, ano XXX, nº 22, 15/03/1958, pp 27 e 32. Acervo ECA-USP. Imagem da autora.

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diversidade populacional, tudo funcionaria, o sistema de metrô seria eficiente,
todas as fiações e tubulações seriam subterrâneas, o tráfego seria organizado e
haveria muitas opções de comércio, lazer e cultura. As grandes obas viárias
facilitariam o trânsito de automóveis e resultariam em “consequente progresso”.13
Quanto às principais cidades brasileiras naquele momento, uma matéria
publicada por ocasião da visita do presidente de Portugal ao Brasil em 195714
permite saber, em um panorama um tanto romantizado, quais as virtudes que a
revista via em cada uma delas. Salvador era símbolo do passado e do folclore,
cidade de miscigenação racial, sem segregação; Rio de Janeiro, símbolo do
presente, capital da República, do samba e do futebol; Belo Horizonte, exemplo
de urbanismo moderno e digna de destaque pelo conjunto arquitetônico da
Pampulha; São Paulo, símbolo de pujança, maior cidade do Brasil em intenso
crescimento urbano e industrialização; Brasília, por fim, a cidade do futuro, onde
a máquina não destruiria a pessoa.
O Rio de Janeiro, claramente, foi a cidade que mais figurou nas páginas de O
Cruzeiro, que louvaram a honra digna de um Distrito Federal, mas também
13 Nova York. O Cruzeiro, ano XXVIII, mostraram seus problemas. De um lado, um Rio que crescia de forma
nº 3, 05/11/1955, pp 70-77;
Caminhos livres em Nova York, O
impressionante, verticalizando Copacabana e construindo centenas de
Cruzeiro, ano XXVIII, nº 30, 12/ apartamentos para compradores de alta renda em tempo recorde – otimizado
05/1956, p18. pela padronização, racionalização dos serviços, estocagem de material e extensão
14 Brasil. O Cruzeiro, ano XXIX, nº das jornadas de trabalho – com uma
34, 08/06/1957, pp 35-49.
arquitetura própria, uma arquitetura de sol e luz, uma arquitetura funcional, sob
15 Guerra às favelas. O Cruzeiro, ano condições especiais, criando soluções novas para cada problema de residência,
XXVIII, nº 22, 17/03/1956, pp 76- estabelecendo normas de conforto e bem estar jamais igualados noutra parte
80. do mundo (600 milhões de cruzeiros em apartamentos. 17/01/1953, p. 31).
16 Rio, cidade estrangulada. O 43
Cruzeiro, ano XXVIII, nº 41, 28/ Por outro lado, esse mesmo Rio também enfrentava sérios problemas com a
07/1956, pp 104-113. proliferação de habitações informais, sobretudo as favelas, fenômeno típico
17 Este Rio de loucos. O Cruzeiro,
carioca. Um programa de urbanização de favelas, que a revista noticiou em março
ano XXIX, nº 52, 12/10/1957, pp de 1956, construiria dez blocos de habitação de sete andares, com projeto
6-12. moderno (edifício em lâmina, pilotis, janelas em fita) e equipamentos urbanos
associados (escola, posto de saúde, mercado e igreja) para realocar dois terços
da população da favela da Praia do Pinto. A iniciativa era da Cruzada São
Sebastião, órgão da Arquidiocese do Rio de Janeiro chefiado pro Dom Helder
Câmara, com contribuições da Caixa Econômica e do Governo Federal. A intenção
do programa era urbanizar todas as favelas do Rio de Janeiro num prazo de dez
a doze anos.15
Além das favelas, o trânsito também despontava como uma questão
problemática, com muitos engarrafamentos na cidade. Era preciso remodelar a
malha viária para desafogar o trânsito com obras tais como o alargamento da
Avenida Atlântica, a abertura de túneis e a construção da avenida perimetral16 .
Não só o trânsito, mas também o ritmo de vida estressante típico das grandes
cidades deixavam as pessoas neuróticas e prejudicavam sua qualidade de vida e
tranquilidade.17
É exatamente neste momento histórico que São Paulo afirma sua rivalidade com
o Rio de Janeiro enquanto principal metrópole do país. Seu crescimento urbano,
industrial e econômico era notório e sua população acabara de ultrapassa a
carioca. Por ocasião de seu IV Centenário em 1954, a cidade foi bastante
enaltecida pela revista por sua pluralidade cultural e racial de caráter cosmopolita,

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
sua “força realizadora” e seu ritmo ímpar de progresso. “Fabulosa metrópole” de
“arquitetura arrojada”, São Paulo se afirmava para O Cruzeiro como a cidade
número um do Brasil.18
Estas reportagens e artigos sobre a cidade dão conta das transformações em
curso e dos ideias de modernidade em voga. Fica clara também a referência ao
processo de modernização que alterava a paisagem da cidade por meio de um
duplo movimento: a verticalização das áreas centrais e o espraiamento da mancha
urbana. A cidade como suporte desses processos, de certa forma também os
promovia, possibilitando novos arranjos familiares, novas formas de morar e novos
papéis de gênero, com as mulheres assumindo outras atividades e funções sociais.

A RQUITETURA
O Cruzeiro, mesmo não sendo uma revista especializada em arquitetura, não
deixou de tratar deste tema, e o fez tanto em relação a um lado mais cotidiano e
18 São Paulo. O Cruzeiro, ano XXVI,
palpável para os leitores quanto em relação à arquitetura moderna brasileira
nº 15, 23/01/1954, pp 22-42A, canônica, representada especialmente pela chamada “escola carioca”.
68.
Em março de 1950 foi divulgado um projeto de vivenda rural do arquiteto
19 Ângelo Murgel (1907-1978), Ângelo Murgel19 no intuito de facilitar aos leitores proprietários de terras no
arquiteto formado pela Escola de
Arquitetura da Universidade de campo ou sitiantes a construção de casa própria ou de veraneio. O projeto foi
Minas Gerais. Teve sua atuação publicado com planta, quatro fachadas, um corte e uma perspectiva, todos em
profissional vinculada ao escala. O texto considerava o projeto moderno, segundo termo empregado na
Ministério da Agricultura e
própria matéria, porém “sem lançar mão de figurinos alienígenas, de exotismo, de
44 lecionou na Faculdade Nacional
de Arquitetura (antiga Escola formas imprevistas, cuja única finalidade seria diferir de tudo”. Tal consideração era
Nacional de Belas Artes). alimentada por uma crítica à arquitetura moderna de matriz funcionalista,
20 Vivenda rural. O Cruzeiro, ano
europeia, cujas formas seriam disformes, esquisitas e despropositais.20
XXII, nº 23, 25/03/1950, pp 6,
92, 93.
Ao longo da década, a arquitetura ganhou mais espaço na revista e a apreciação
sobre o modernismo se tornou mais positiva. No final de 1955, ao noticiar uma
21 Sucesso. O Cruzeiro, ano XXVIII,
feira de decoradores do Rio de Janeiro, onde figuravam tanto propostas
nº 3, 05/11/1955, pp 84, 85.
tradicionais como modernas, a reportagem comenta que o carioca se valia cada
22 Arte e repouso. O Cruzeiro, ano vez mais do trabalho destes profissionais que “sabem juntar o bonito ao
XXVIII, nº 7, 03/12/1955, p98.
prático”.21 Na nota “Arte e Repouso”, com imagens da cadeira Bowl, de Lina Bo
23 Marília Escosteguy era gaúcha e Bardi, o texto comenta sobre a dificuldade do público em apreciar a arte
trabalhava promovendo cursos
moderna em contraposição à naturalidade com que se viam móveis de design
de decoração. Não se sabe sua
formação profissional. arrojado, revelando as contradições acerca da aceitação da estética moderna em
24
uma época marcada pela geometrização e o ideal de conforto.22
Filhos felizes com o lar bem
decorado. O Cruzeiro, ano XXVIII, Cursos de decoração ministrados por Marília Escosteguy23 também foram
nº 47, 08/09/1956, p106.
noticiados pela revista, como o curso intensivo de decoração voltado a mães
25 “Doutores” em decoração. O cariocas, que relacionava a felicidade das crianças à qualidade do ambiente onde
Cruzeiro, ano XXIX, nº 25, 06/04/
viviam e contemplou conteúdos de aproveitamento de espaço, distribuição de
1957, p125.
móveis, influência da cor e iluminação.24 Realizou-se também o curso em Porto
Alegre, com duração de sete meses, onde os alunos fizeram trabalhos cuja
predileção era pelo “estilo modernista”.25
As primeiras obras de arquitetura moderna a serem mostradas na revista foram o
Museu de Arte de São Paulo (em sua primeira sede à Rua Sete de Abril),
colocando-o como uma “cidadela da civilização”, de arquitetura “moderna,
racional e funcional” e que, quando feita a reportagem, exibia uma exposição

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24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
O Cruzeiro, ano XXX, nº 22, 15/03/1958, p31. Acervo ECA–USP. O Cruzeiro, ano XXVII, nº 37, 25/06/1955, p32. Acervo ECA–USP.
Imagem da autora. Imagem da autora.

26 Museu de Arte de São Paulo, sobre a obra de Le Corbusier.26 A publicação não é fortuita, uma vez que o 45
cidadela da civilização. O MASP foi fundado por Assis Chateaubriand. Outra obra que figurou nas páginas
Cruzeiro, ano XXII, nº 42, 05/08/
1950, pp 94-103.
da revista por ocasião de sua inauguração, em 1952, o Hotel da Bahia, de
Diógenes Rebouças e Paulo Antunes.27
27 O mais belo hotel do Brasil. O
Cruzeiro, ano XXIV, nº 38, 05/07/ O Rio de Janeiro era a mais importante vitrine da arquitetura moderna brasileira,
1952, pp 112-114. aquela que “renovou, no mundo todo, nosso renome artístico”, tendo Lucio Costa
28 Rio. O Cruzeiro, ano XXX, nº 22, como grande impulsionador e Oscar Niemeyer como grande executor, mas
15/03/1958, pp 24-33. também outros nomes de destaque como Jorge Moreira, Henrique Mindlin, Sérgio
29 Museu de Arte Moderna do Rio Bernardes, Affonso Reidy, Francisco Bolonha, Carmen Portinho e Roberto Burle
de Janeiro. O Cruzeiro, ano XXVII, Marx. Dentre os edifícios modernos marcantes na paisagem fluminense, a revista
nº 37, 25/06/1955, pp 32,33.
aponta o Aeroporto Santos Dumont, o edifício sede da ABI (Associação Brasileira
de Imprensa), o Ministério da Educação, Conjunto Habitacional do Pedregulho,
Parque Guinle, Parque Proletário da Gávea, edifício Marquês de Herval e Clube de
Engenharia.28 A revista também divulgou a maquete e fotomontagens do projeto
de Reidy para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro classificando o edifício
como digno da arte que abrigaria.29 As obras são exatamente aquelas
consagradas a partir dos anos 1940 pela crítica nacional e internacional, em
exposições (GOODWIN, 1943); livros (MINDLIN, 1956) e revistas ecoando,
portanto, o discurso especializado também nas páginas deste semanário.
A cidade de Belo Horizonte é colocada como “experiência notável no campo das
construções residenciais” e sua população teria aceitado integralmente os novos
sistemas construtivos e os novos padrões estéticos da arquitetura. Assim sendo,
suas residências com jardins, piscinas, grandes panos de vidro e ambientes bem

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
iluminados e ensolarados se tornaram referencias no campo da habitação
moderna.30 Em São Paulo, clubes esportivos, em uma espécie de “torneio de
arquitetura moderna”, também contribuíam para a presença da arquitetura da
“escola paulista” na paisagem da cidade.31
30 Belo Horizonte, cidade sob A figura que O Cruzeiro mais destacou no cenário arquitetônico nacional foi
medida. O Cruzeiro, ano XXX, nº certamente Oscar Niemeyer. A maior parte das matérias publicadas sobre obras
30, 03/05/1958, pp 26-31.
de arquitetura versavam sobre a sua produção. O arquiteto carioca, tido como
31 Clubes de São Paulo. O Cruzeiro, um gênio pela revista, teria dado “novo e surpreendente rumo às formas básicas”,
ano XXXI, nº 26, 11/04/1959, pp
valendo-se da tecnologia, com graça e sutileza rompendo com os limites do
58-64.
“funcionalismo ortodoxo”. Suas obras retratadas nas páginas da revista foram:
32 Cataguases, uma réplica a Ouro Colégio de Cataguases; Fábrica Duchen; o Conjunto da Pampulha, apresentado
Preto. O Cruzeiro, ano XXII, nº 17,
11/02/1950, pp 50-57, 64, 78.
como o “maior conjunto arquitetônico do mundo”; o Iate Clube da Pampulha;
Niemeyer, o poeta das formas. O Igreja de São Francisco de Assis; a sede das Empresas Gráficas O Cruzeiro; o
Cruzeiro, ano XXIII, nº 11, 30/12/ edifício da Bienal de São Paulo, a Taba Tupi, projeto de edifício residencial não
1950, pp 91-95. construído; e, é claro, Brasília.32
Pampulha, uma capela em busca
de Deus. O Cruzeiro, ano XXV, nº A presença dessas obras na revista se explica de um lado pela valoração que a
9, 13/12/1952, pp 62-68, 72. arquitetura moderna alcançou internacionalmente, mas também pelo vínculo com
A nova sede de “O Cruzeiro”. O Assis Chateaubriand, cuja ação cultural se deu vinculada aos modernistas, haja
Cruzeiro, ano XXVI, nº 5, 14/11/
1953, pp 62,63. vista, as suas relações com o MASP e nomes importantes como Niemeyer,
Exposição do IV Centenário. O responsável por um dos edifícios de suas empresas no Rio de Janeiro.
Cruzeiro, ano XXVI, nº 47, 04/09/
1954, pp 18-18G. Brasília foi um caso à parte. Não só foi considerada uma obra-prima da
Taba Tupi. O Cruzeiro, ano XXIX, arquitetura moderna brasileira como também a materialização de um sonho de
nº 7, 01/12/1956, pp 14-17. progresso nacional. Brasília foi tema de reportagem em O Cruzeiro pela primeira
46

O Cruzeiro, ano XXXII, nº 8,


05/12/1959, p71. Acervo ECA–
USP. Imagem da autora.

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


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vez mais de três anos antes da inauguração da cidade e sua arquitetura já
ilustrava as páginas da revista muito antes de 21 abril de 1960.
Em 1956, foram mostrados os primeiros croquis e maquetes da “cidade de
linhas modernas”, cuja obra “desafia os brasileiros há 165 anos”. À época, o
nome da nova capital não havia ainda sido definido e falava-se em Brasil, Santa
Cruz, Tiradentes ou Deodoro.33 Anos depois, já com a cidade se materializando,
a Brasília das construções modernas e funcionais era lida como a representação
simultânea do presente e do futuro; “marco da Nova Era Brasileira” e “a mais
moderna capital do Século XX”. Juscelino Kubitschek, seu idealizador, a definiu
como a “mais arrojada obra de arquitetura e urbanismo da nossa História”,
“entroncamento de vidas, de progresso e expansão do Brasil”.34
Inaugurada Brasília, estavam dissipadas todas as dúvidas sobre a realidade de
tamanho feito. Símbolo unificador de um povo que seguia com determinação em
direção ao futuro e seria capaz de “nivelar a dinâmica do progresso entre irmãos
ricos e pobres”, Brasília definitivamente “saltou por cima do Século XX. (...) É de
cimento e de sonho”.35 Brasília estava pronta para receber seus habitantes em
33 A nova capital. O Cruzeiro, ano residências modernas, com grandes janelas de vidro e com uma vida urbana
XXIX, nº 7, 01/12/1956, pp 106-
113.
planejada para os cidadãos, que já contava com diversos serviços e com opções
de lazer como cinemas, boates, restaurantes e locais para passeios.36 Brasília
34 Isto é Brasília. O Cruzeiro, ano
consagrava, de uma vez por todas, a ousadia do plano de Lucio Costa e, mais
XXXII, nº 8, 05/12/1959, pp 62-
71. ainda, a genialidade criativa de Oscar Niemeyer.
35 Brasília, o futuro já tem capital. O
Cruzeiro, ano XXXII, nº 30, 07/05/
1960, pp I-XXI.
C ONSIDERAÇÕES F INAIS
36 Conheça Brasília por dentro. O
Cruzeiro, ano XXXII, nº 33, 28/ O Cruzeiro veiculou o estilo de vida das grandes cidades, pautado em ideais de 47
05/1960, pp 134-145. progresso, desenvolvimento e consumo. As cidades brasileiras, naquele período,
cresciam, se industrializavam, se adensavam e verticalizavam e teriam sua
paisagem marcada cada vez mais por dois símbolos de modernidade:
automóveis e edifícios de arquitetura moderna.
A arquitetura brasileira se renovava naquele momento e a “escola carioca” se
destacava no cenário internacional. A revista veiculou esta arquitetura
principalmente para ilustrar o desenvolvimento das cidades e do país, destacando
a obra de Oscar Niemeyer. Se no começo da década é possível dizer que havia
ainda certa resistência às novas formas, no final dela havia plena aceitação da
nova arquitetura por parte da revista.
As mulheres com as quais O Cruzeiro dialogava eram esposas, mães, donas-de
casa, habitantes das cidades e integrantes da classe média. As trabalhadoras
urbanas, agricultoras ou donas-de-casa pobres tinham pouca representatividade
em suas páginas. Embora o quadro fosse de pouca alteração no papel da
mulher e em sua autonomia, algumas mudanças começavam a acontecer, como
por exemplo, a entrada de mulheres no mercado de trabalho, crescente, mesmo
que não muito expressiva. Também passou a haver gradativa abertura para
denunciar condições de desigualdade às quais as mulheres estavam submetidas.
Em geral, nota-se a permanência de valores tradicionais simultânea à assimilação
de valores modernos, tanto no papel da mulher quanto no espaço e cotidiano
domésticos, configurando um momento de transição de mentalidade. A
coexistência do tradicional e do moderno é justamente a contradição da

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
modernidade brasileira. Ela se deixa entrever, por exemplo, através da
conceituação de uma mulher moderna, cuja virtude consiste em não abandonar
os valores tradicionais, mas conciliá-los com o espírito dos novos tempos.
Por fim, conclui-se que dada a natureza dos conteúdos publicados, é possível
dizer que a contribuição da revista para a divulgação de ideais, princípios e
padrões estéticos modernos foi real e certamente gerou impactos. Entretanto, é
preciso pontuar que a influência de O Cruzeiro sobre os processos de
modernização deve ser entendida na consideração do alcance real que a revista
obteve. Embora fosse uma das mais vendidas do período, a revista alcançava de
fato em suas edições cerca de 6% da população nacional, circulando
principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, o que cria ressalvas quanto à
extensão quantitativa e geográfica de seu impacto. A influência da revista pode ter
sido exercida da mesma forma por outros periódicos ou meios de comunicação,
que também eram produto da mesma época e cultura. Embora muitos veículos
de imprensa tenham contribuído para a assimilação da modernidade, O Cruzeiro
ainda pode ser tomado como o maior dos exemplos por se tratar da revista de
maior alcance nacionalmente e por seu caráter assumidamente de vanguarda.

R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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48 BARBOSA, Marialva. O Cruzeiro: uma revista síntese de uma época da história da imprensa
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BUITONI, Dulcília H. Schroeder. Imprensa Feminina. São Paulo: Editora Ática, 1986.
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DEL PRIORE, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
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GOODWIN, Philip L. Brazil Builds: architecture new and old 1652 – 1942. Nova York: MoMA, 1943.
LIERNUR, Jorge Francisco. The south american way. O milagre brasileiro, os Estados Unidos e a
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RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e história. A década das grandes mudanças. Observatório da
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SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil, 1900-1990. São Paulo: Edusp, 1999.

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Nota da Autora
Este artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica O morar moderno: o
processo de transformação do espaço da casa e da vida doméstica pela revista
“O Cruzeiro”, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAUUSP), entre 2015 e 2016 com apoio da Fapesp
(processo n. 2015/07441-8) e a orientação da Profa. Dra. Joana Mello de
Carvalho e Silva, como parte da pesquisa O avesso da arquitetura moderna:
domesticidade e formas de morar na habitação privada brasileira 1940-1960
(Fapesp n. 2014/02756-8).

49

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes


Aluna de graduação da FAUUSP.
beatriz.santos.fernandes@usp.br

Beatriz dos Santos Alves Ventura Fernandes – Mulher, Cidade e Arquitetura nas
Reportagens de O Cruzeiro – p.36-49
FORMAS DE MORAR NOS ESTADOS
UNIDOS: RICHARD NEUTRA

Felipe Kilaris Gallani


Orientadora: Profa. Dra. Joana Mello de Carvalho e Silva

50 Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar os projetos residenciais do arquiteto
Richard Joseph Neutra (1892-1970). A partir do levantamento de seus
projetos residenciais e da análise especial da Desert House (1946), também
conhecida como Casa Kaufmann, avaliou-se o contexto histórico e o processo
criativo do arquiteto, reconhecendo transformações sociais, especialmente no
tocante aos ideais de domesticidade, as relações de gênero e disciplinares.
Contribuiu para a investigação o acesso à coleção Richard and Dion papers,
1925-1970 (UCLA) que permitiu além da identificação de características da
sociedade norte-americana a comprovação da singular relação que Neutra
mantinha com seus clientes em cada um dos projetos. Assim, entendendo a
casa como um documento, a pesquisa pode contribuir para a história da
habitação moderna.

Palavras-chave
Arquitetura moderna, domesticidade, Richard Neutra.

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Este artigo tem o intuito de investigar mudanças nas formas de morar no Brasil
em diálogo com os Estados Unidos da América. Para tanto, seu objeto de análise
são os projetos residenciais do arquiteto austríaco Richard Joseph Neutra (1892-
1970). Radicado nos Estados Unidos desde os anos 1920, Neutra foi um nome
fundamental da constituição de uma domesticidade específica, alinhada com os
ideais do American Way of Life, impactante entre clientes e arquitetos brasileiros,
sobretudo aqueles que atuavam em São Paulo em meados do século XX.
Neutra parece entender as transformações nos modos de morar em curso
naquele país no segundo pós-guerra, desenvolvendo propostas não só
projetuais, mas também técnicas para edifícios residenciais, compromisso
assumido em vários trabalhos, inclusive no livro Architecture of Social Concern in
Regions of Mild Climate (1948) que escreveu quando de sua passagem pela
América Latina, quando travou contato com vários profissionais locais. Atento aos
desejos dos clientes que ele procurava atender, a obra do arquiteto permite
compreender as propostas disciplinares, os ideais de domesticidade e anseios de
sua época, as particularidades da sociedade norte-americana em processo de
industrialização no momento de constituição de sua hegemonia cultural. Deve-se
lembrar que a residência particular servia ainda como prova de sucesso de seu
proprietário, o abrigo destinado a oferecer conforto aos seus moradores, a
atender os ideais de democracia e ao elogio do empreendedorismo e do
trabalho.
Além dos aspectos já indicados, é característica do arquiteto sua convicção da
necessidade de fornecer por meio da arquitetura a recuperação do contato
humano com a natureza, fundamental, do seu ponto de vista, por razões
fisiológicas. Justamente por um processo criativo que considerava o diálogo com
o encomendante, cada projeto do arquiteto é condicionado ao entendimento 51
específico do cliente, atrelado a conhecimentos científicos.
Ao longo da pesquisa, o diálogo com os clientes se tornou a questão
fundamental, seja porque tratava-se de um aspecto recorrentemente indicado
pela bibliografia, seja porque tais diálogos interessam na análise da assimilação
dos preceitos da arquitetura moderna pela clientela privada no Brasil, questão
central para a pesquisa da orientadora. A partir desses parâmetros e do limite
temporal de 1930 a 1960 definido para a pesquisa, foram selecionados os
projetos residenciais para John Nicholas e Anne Brown (1936-38), Stuart Bailey
(1948) e Joseph e Sonia Staller (1955), de forma a avaliar a existência de um
singular processo criativo. Contudo, para uma investigação mais precisa e
aprofundada da intimidade dos clientes que pudesse informar os ideais do
arquiteto e daquela sociedade, optou-se por uma análise mais detida do projeto
Desert House (1946), destinado ao casal Edgar e Liliane Kaufmann.
O aprofundamento da análise documental para este último projeto justifica-se
pela busca de características recorrentes de sua obra em seus diálogos com uma
sociedade em processo de industrialização. Entendida como a materialização de
uma somatória de documentos, suas casas permitem a compreensão não
apenas da construção, mas, principalmente de seu processo de concepção; o
modo como se estabeleciam as relações entre as partes envolvidas; a existência
de novos meios de produção e criação da arquitetura; as propostas de novas
formas de morar que exprimem as características singulares de um ideal de
sociedade construído a partir dos Estados Unidos.

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
Neste sentido, foi fundamental o grupo semanal de leituras e discussões
organizado pela professora orientadora, voltado primeiramente ao contexto
internacional e nacional de produção arquitetônica, concomitantes às leituras que
auxiliassem na compreensão das formas e ideais de domesticidade em curso. Em
sequência, foram lidos e discutidos textos específicos sobre a trajetória e a obra
de Richard Neutra, de sua autoria ou de críticos, atentando-se para os diálogos
entre Estados Unidos e Brasil. Além da revisão bibliográfica, a pesquisa se dedicou
também a um amplo levantamento documental, analisando-se revistas de época -
Habitat, Acrópole e Módulo -, projetos, ofícios e fotos relativos à produção do
arquiteto na Califórnia. Parte desses documentos, fundamentais para a
comprovação do seu processo criativo, seja do ponto de vista dos princípios
arquitetônicos, seja do ponto de vista das características, hábitos e desejos dos
seus clientes, foram levantados nos arquivos da Universidade da Califórnia
(UCLA), em sua Special Collections Library Department, no Getty Museum e no
Neutra Institute for Survival Through Design.
De mesma importância também foram as entrevistas realizadas com Dion Neutra,
arquiteto e filho de Richard Neutra, que destacou o processo investigativo de seu
pai aos clientes, a partir de um modelo-exemplo de “questionário”. A esse
contato, pois, se deve a busca pelo que comprovaria o reconhecimento da
contribuição do cliente na concepção do projeto. Ademais, a recuperação inédita
deste documento seria a prova física e o caminho de descoberta das
características mais íntimas daqueles que confiaram em Neutra e seu escritório
para a criação de seus refúgios de privacidade.
Por este motivo, este artigo apresenta parte da pesquisa, enfatizando-se o
52 empenho do arquiteto na extensa leitura do perfil de seus clientes. Aliás, é
inegável que seus projetos assim tenham um valor histórico que ultrapassa o
campo disciplinar, afinal, eternizam os desejos da sociedade norte-americana em
seu devido tempo e lugar. Resgatar tais nuances projetuais, estejam elas atreladas
à escolha do material, do processo construtivo, da organização do espaço ou da
sua relação com o meio ambiente, significa também o resgate da história da
habitação moderna.2
Para a análise da Desert House de Edgar e Liliane Kaufmann (1946), realizou-se
uma minuciosa leitura dos duzentos e setenta e um documentos levantados
diretamente na UCLA junto à busca por detalhes característicos não apenas dos
clientes, como também dos ideais de domesticidade da sociedade norte-
americana daquele período. Colaborou para a contextualização e o
desenvolvimento do texto as interpretações de Adrian Forty, em seu livro Objetos
de Desejo (2007).
Sabendo disso e lembrando do entendimento da casa como a celebração do
encontro entre cliente e arquiteto, o início da construção da Desert House deve
ser visto a partir do pedido de uma residência para temporadas de inverno por
Edgar J. Kaufmann e sua esposa Liliane [1], no dia 5 de Fevereiro de 1946 - uma
década após o mesmo casal solicitar ao arquiteto Frank Lloyd Wright a residência
que ficou conhecida como Fallingwater (1935-1939).
Em sua carta, escrita em sequência à conversa telefônica com o arquiteto, Edgar
formaliza alguns requerimentos, indicando as dimensões e a localização dos
terrenos de seu interesse em Palm Springs. Segundo o cliente, a casa deveria ter
a sala de jantar à parte da sala de estar, uma cozinha com armários metálicos

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dimensionados de modo a guardar bem os eletrodomésticos. O quarto do casal
deveria ter um grande closet para a Liliane e, junto a ele, um ambiente para que
o próprio Edgar pudesse se vestir. O quarto deveria ainda ter dois banheiros, um
para cada um dos membros do casal, e o ambiente para se vestir deveria ser de
tamanho considerável, com guarda-roupas e gavetas. Outros dois quartos,
grandes o suficiente para dois leitos, deveriam ser previstos, cada qual com seu
banheiro. Somente um dos banheiros deveria ter banheira, considerando que o
casal não tinha o hábito de usá-la. A casa deveria contar ainda com uma
garagem e quarto com banheiro para os funcionários.
Esse primeiro documento já pode ser entendido como uma possibilidade de
descoberta de características daquela sociedade em seu devido tempo. Edgar
Kaufmann revela a preferência do casal para banheiros independentes,
ressaltando a falta do hábito de uso de banheira. A indicação de banheiros
independentes revela a preocupação com a intimidade, mesmo entre os membros
do casal. A partir deste primeiro sinal de confiança, com informações dos hábitos
de uma rotina privada, o cliente progressivamente abre-se ao arquiteto, permitindo
a elaboração de um projeto que atenda às suas particularidades. Mais do que
isso, ao que parece, a preocupação com a higiene é evidenciada com a
determinação de revestimento metálico para a cozinha e área de serviço,
indicando uma associação do material com a preservação da saúde.
A princípio curiosas e talvez excêntricas as primeiras solicitações do casal, deve-se
atentar às duas primeiras décadas nos continentes europeu e norte-americano,
com a divulgação do ideal moderno de casa estritamente associado não só ao
ideal de eficiência de tempo e de recursos, mas também ao de higiene, ditando
os novos modos de morar com a adesão de maior expressão nas décadas de
1920 e 1930. Nesse sentido, é interessante a perspectiva do autor Adrian Forty 53
em seu capítulo “Higiene e Limpeza”, no qual recupera as mais famosas formas
de expressão da beleza através do ideal de limpeza desde o “Manual da
Habitação” de Le Corbusier, em Vers une Architecture (1923). Forty argumenta
ainda que o ideal higienista e a preocupação com a limpeza para além de se
associarem às ações reformistas de controle sanitário e moral por parte das
classes médias e das classes operárias - ainda que de modos e com sentidos
diversos -, atenderiam a busca por conforto físico e psíquico, incluindo aí
aspectos vinculados à beleza. As preocupações de Richard Neutra parecem se
inserir dentro desse contexto.
No entanto, tal discurso enfrentou dificuldades de aceitação calcados apenas em
justificativas científicas dentro do ambiente privado. Para Forty, somente com o
condicionamento emocional da população, a partir da divulgação de imagens
para a determinação dos padrões de higiene pelos anunciantes, designers e
fabricantes, o público assimilou o novo conteúdo. A inquestionável relação entre
sujeira e doença, agora foi utilizada a favor da publicidade para o aumento de
vendas dos utensílios domésticos industrializados. Enquanto que a primeira
demonstrava um valor pessoal, não sendo absoluta, a segunda poderia ser
verificada, valendo-se intencionalmente da condição de limpeza como algo
sagrado, semelhante a uma realidade inatingível. Quanto a isso, Forty questiona a
hipótese de que horas na escola, livros e artigos de revistas serviriam à total
transformação higienista na sociedade, não convencendo-o. Somente com a
linguagem dos objetos e a percepção de seu poder em transmitir mensagens e
ditar novos parâmetros que o design incorporou os ideais da limpeza obrigatória.

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
Para tanto, é válido o resgate da substituição de motivos morais e estéticos pela
determinação da higiene desde 1910, notavelmente disseminada através do
próprio design dos objetos. Neste primeiro momento, o crescente
desenvolvimento de utensílios destinados à vida doméstica, encontrou a
justificativa da eficiência em promover a limpeza, alimentando a paranoia da
higiene. Em consequência, não seria justa a afirmação de que o tempo gasto com
as tarefas domésticas foram reduzidos, mas, que os padrões de limpeza
passaram a ser mais altos, implicando em mais ações de trabalho dentro de casa.

[1] Documento inicial de


Em um segundo momento, com as descobertas da indústria automobilística de
conversa entre o casal que o consumo aumentava com a introdução de novos designs, a aparência dos
Kaufmann e Richard Neutra. utensílios domésticos incorporou novos ritmos e expressões. A redução dos
Collection 1179. Box 119. F.2. custos com materiais e componentes da mesma forma seguia a defesa de novas
Richard & Dion Neutra Papers:
Client Files estéticas, inevitavelmente regradas para o aumento das vendas. Novas máquinas
Kaufmann, Edgar de lavar, aspiradores de pó, geladeiras e seus semelhantes, afinal, criaram
Correspondence. February – oportunidades para a incessante construção dos incisivos valores de limpeza que
June 1946
passaram a orientar não só as suas funções, mas também o seu desenho.
Finalmente, é justo o entendimento de
que a capacidade de tradução de uma
mensagem pelo design, com a
determinação objetiva da eficiência à
maior limpeza, impulsionou à crescente
compulsão pelo consumismo. Assim,
ainda que destacada por higienistas em
função de preocupações com a saúde
54 individual e coletiva, a sujeira como causa
do sofrimento e a limpeza como sua
solução, apenas se transformou em
realidade padrão pela ação do comércio
e da indústria, com os avanços do
marketing e da publicidade.
Tais transformações - em sintonia com o
período determinado da produção de
Richard Neutra -, devem ser analisadas,
especialmente quanto às consequentes
transformações da vida privada, e na
relação com outras mudanças em curso,
notadamente aquelas relativas à
separação entre casa e trabalho. Para
melhor compreensão desses aspectos,
são importantes as análises
desenvolvidas por Adrian Forty em seu
capítulo “O lar”.
No processo de distinção entre os
espaços de moradia e os espaços de
produção, que se intensifica a partir da
metade do século XIX, Forty aponta que
passa a valer uma associação complexa
entre as atividades domésticas e criadas

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– vistas como inferiores e indignas. Dessa forma, qualquer que fosse o esforço
físico dentro de casa era visto como algo impróprio, sobretudo quando realizado
pelas donas de casa de classe média ou das elites. Seguindo de forma
mascarada, o trabalho dentro de casa somente seria justificado se este fosse
assumido como cuidado com a família e o lar. Mesmo o trabalho realizado pelas
criadas deveria ser escondido e, portanto, totalmente separado e distante das
áreas de estar e íntima.
No entanto, com o desenvolvimento das metrópoles e as transformações
econômicas em processo de industrialização, a manutenção da ordem doméstica
exigiria revisões. Sua principal alteração talvez possa ser entendida com a
contribuição do Mito da criada mecânica, afinal, a ideia de que os novos
eletrodomésticos substituiriam as criadas significou reflexos comportamentais.
Nesse sentido, deve-se à publicidade – elo de convencimento entre quem
consome e quem produz – a manutenção do sistema. Intensificando-se, ainda
com a propaganda dos eletrodomésticos afirmava que os mesmos poupariam
tempo em cada tarefa, não seria verdade afirmar que com eles o gasto de tempo
com o trabalho doméstico diminuiu. Para Forty,
O que parece ter acontecido é que os aparelhos tornaram mais leve o fardo e
pouparam tempo em certas tarefas, mas também tornaram possível atingir
padrões mais elevados. Desse modo, o tempo economizado era gasto
fazendo a mesma tarefa, ou outras, com mais frequência e melhor (FORTY,
2007: 284).
O aumento no número de tarefas e dos níveis de exigência com a limpeza e
higiene tem relação com o que indicamos acima, seja do ponto de vista médico,
sanitário, seja do ponto de vista das estratégias de consumo e de separação
entre as esferas do descanso e do trabalho. De todo modo, se nesta primeira 55
instância a publicidade auxiliou o início da mudança significativa de modos de
morar em defesa da eficiência dos produtos, em um segundo momento, esta
suportaria outro argumento: a própria substituição das criadas. Mesmo com
clientes de poder aquisitivo significativo, a difusão de tal ideologia assimilaria
inconscientemente o objeto eletrodoméstico à criada, a ilusão a quem nunca
havia tido empregada doméstica, da conquista de status na sociedade, como
uma nova senhora servida de criadas. A questão é complexa e exige
detalhamento. Para Forty, nos Estados Unidos houve rapidamente uma mudança
nas formas de relação de trabalho, com a incorporação de um contingente
significativo de mulheres, que antes assumiam o papel de empregadas
domésticas, pela indústria. Essa transformação foi sentida sobretudo pelas
mulheres de classe média que passaram a ter que abraçar um conjunto de
trabalhos realizados anteriormente pelas criadas. Para elas os eletrodomésticos
assumiriam não só o papel de facilitar as atividades, como também de distingui-
las do trabalho manual e artesanal das empregadas. Ao mesmo tempo, entre
aquelas mulheres cujo poder aquisitivo permitia a contratação de domésticas, os
eletrodomésticos serviam a afirmação de modernidade e vanguardismo, de
atendimento às exigências de higiene e limpeza.
O desenvolvimento da estética aos utensílios domésticos veio em seguida. A
produção em massa, principalmente após o ano de 1930, abandonou as
exclusividades, e, com ela, os objetos voltaram-se também ao uso pelas donas de
casa. A referência direta à eficiência das fábricas com o design dos objetos
passou a ser oposta à mais nova prioridade: a praticidade e a necessidade da

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
não associação doméstica aos ambientes de trabalho. Difícil, segundo o autor, é
definir quando isto ocorreu, sendo mais apropriada a sua definição como um
processo. Difícil também é responder ao questionamento de se este design
emergiu para satisfação do consumidor ou se apresentou como um resultado de
persuasão. Nesse processo, a linguagem dos eletrodomésticos antes mais
próximas do maquinário industrial, foi se aprimorando tanto em termos de
limpeza e uso, quanto em termos estéticos. Materiais de fácil limpeza e
manutenção, desenho com cantos arredondados e linhas sintéticas atenderam
a esse conjunto novo de exigências funcionais e simbólicas. Esse conjunto de
reflexões ajudam a circunscrever as exigências de Edgar quanto a separação da
cozinha e sua determinação de revestimento metálico, assim como a distância
do quarto dos proprietários e hóspedes das áreas de serviço, bem como as
escolhas de materiais.
[2] “Questionário” investigativo
ao casal Kaufmann. Seguindo os primeiros passos do desenvolvimento do projeto, Neutra comenta
Collection 1179. Box 119. F.2. com Edgar Kaufmann o seu grande entusiasmo com o projeto, documentando
Richard & Dion Neutra Papers: em 18 de fevereiro de 1946 os primeiros contatos com engenheiros estruturais e
Client Files
Kaufmann, Edgar
empreiteiros. Ao mesmo tempo, desde a declaração inicial do cliente acerca do
Correspondence. February – desejo de construção de sua casa, pode-se dizer que o processo criativo seguiu
June 1946 fiel ao princípio defendidos pelo arquiteto. Em nenhum momento, a partir do que
os documentos demonstram, Neutra
assumiu uma postura impositiva,
sustentando o ritual de dialogar com seu
cliente, propondo soluções em comum
acordo.
56 Tal processo investigativo, segundo as
análises, é mantido e incentivado a partir
de diferentes tipos e formatações de
documentos. Para a Desert House
predominam as cartas entre os clientes,
mas, são notáveis também diversos
telegramas telefônicos, fotografias,
anotações de telefonemas e os
anteriormente mencionados
“questionários”. Distintos
significativamente, estes últimos parecem
abranger um campo maior de
informações, diretamente associados à
busca por particularidades. A partir deles,
são apresentados desejos e hábitos
específicos, descobertos durante uma
conversa.
Inaugurando uma sequência de
similares documentos investigativos para
a concepção da Desert House, o
documento [2] do dia 19 de fevereiro
de 1946 reafirma a existência dos
“questionários” como uma constante no
processo criativo do arquiteto. Para este
primeiro caso, notam-se requerimentos

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como Hercules glass aos painéis deslizantes, forno elétrico e a gás para a
cozinha, aquecedor elétrico para os banheiros, quartos de visitas e de
funcionários e a possibilidade de reuso da água pluvial para a piscina. Ao mesmo
tempo, destacam-se informações que talvez jamais fossem descobertas sem este
particular processo investigativo, a exemplo das solicitações de uma mesa para
um teleimpressor ao ambiente de troca de roupas de Edgar Kaufmann, dos
devidos acabamentos para a lareira e da necessidade de alteração da entrada da
residência, prevendo-se uma porta deslizante para o armário de roupas de
inverno.
A continuar a leitura dos documentos, recupera-se também o esforço e interesse
de Edgar Kaufmann a cada detalhe da residência em sua carta a Richard Neutra
no dia 5 de agosto de 1946. No documento, Edgar responde a uma série de
fotografias a ele enviadas, para a aprovação ou não do progresso com o
revestimento de pedras. Edgar ainda comenta sobre os sistemas de aquecimento
e resfriamento da residência, esperando não encontrar nenhum tipo de
problema no futuro.
Em meio a demais comentários, no entanto, é preciosa uma de suas
observações. Atento às mínimas escalas do projeto, o cliente exige uma diferença
máxima de uma polegada para a largura do revestimento da área externa e
interna, não devendo ser aparente vestígios mecânicos. Sua associação incômoda
entre o revestimento natural e o trabalho realizado, não deve ser vista
exclusivamente em seu sentido literal. Ao contrário, deve-se atentar às suas
possíveis interpretações além das esferas materiais.
Uma interpretação possível parte do reconhecimento do rápido crescimento das
cidades norte-americanas por conta dos avanços industriais da época, induzindo
57
a uma urbanidade ainda não completamente assimilada. Os vestígios de
externalidades indesejáveis, como a demasiada ordem no posicionamento das
pedras para o revestimento, incomodariam pela transgressão do sentido de
refúgio da casa, pela memória do trabalho.
Com o advento da fábrica pela revolução industrial, o trabalho que anteriormente
era realizado no mesmo ambiente de abrigo de seus moradores foi separado
das atividades habituais de comer e dormir. Consequentemente, e em vista das
péssimas condições iniciais de trabalho nas fábricas, a oposição de um a outro é
exaltada. Ou seja, se a função do trabalho – precário – é enfrentada
exclusivamente dentro das fábricas, para as demais atividades, buscou-se o
isolamento da indústria. Explica-se tal reação pela necessidade humana de viver
sem a constante sensação de opressão, suficientemente presente nas fábricas.
É óbvio que as fábricas são resultado da revolução industrial, mas raramente
pensamos que os lares, tal como os conhecemos hoje, são uma criação da
mesma revolução (FORTY, 2007: 137).
Desta forma, desde sua decoração, até o design dos utensílios, cada escolha viria
a ser mostra avessa da vida nas fábricas. O reflexo trouxe o questionamento do
cenário apropriado para o lugar do não-trabalho. Para a burguesia, a resposta
foi de um palácio protegido em meio à natureza, rico de intimidade e conforto,
palco de consumo e segredos.
A continuação dos diálogos investigativos parece priorizar detalhes que
isoladamente poderiam ser encarados como preciosismos, mas, entendendo-se

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
58

[3] Kaufmann House. os princípios arquitetônicos de Neutra e o conjunto da obra, devem ser
Julius Shulman photography encarados como essenciais. O cuidado com a mínima escala traduz os esforços
archive, do arquiteto e de seus clientes para a materialização de um universo de máximo
1935-2009, Job 093.
© J. Paul Getty Trust. Getty
conforto. As liberdades criativas, assim, são conduzidas por particularidades. Se no
Research Institute, início do processo foram assumidas diretrizes gerais, com o avanço construtivo, o
Los Angeles (2004.R.10) desenho volta-se à solução de pontualidades.
Finalmente, quase dois anos após o primeiro contato documentado entre os
clientes e o arquiteto, o primeiro inverno com a apropriação do espaço pelos
proprietários é anunciado. Após um extenso processo investigativo, pontualmente
recuperado a este artigo, Edgar Kaufmann escreve uma carta a Richard Neutra no
dia 13 de janeiro de 1948, afirmando sua recém chegada na residência. A
acomodação acompanhada de algum mal-estar de saúde não impede o
proprietário de comentar que não necessitava de nenhuma ajuda de Neutra,
mas, que caso algo extraordinário fosse notado, entraria em contato.
O breve documento celebra o primeiro dia de ocupação humana na Desert
House, mas não o seu final construtivo. Afirmar que uma vez ocupada, a casa
poderia ser considerada pronta, é incorreto. Os anos seguintes guardavam
reconsiderações construtivas dos clientes, ao mesmo tempo em que o arquiteto
construía fotograficamente sua memória. O documento [4] comprova a

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[4] Carta de Richard Neutra a Edgar Kaufmann.
Collection 1179. Box 120. F.5.
Richard & Dion Neutra Papers: Client Files
Kaufmann, Edgar
Correspondence. September 1947 – May 1948, 1953.

inexistência de um fim para a residência, seja pela


necessidade de sua constante documentação em
imagens, seja pela sua não configuração como algo
intocável - principalmente constatado com requerimentos
de adaptações espaciais nos ambientes já construídos.
A manutenção do diálogo entre arquiteto e cliente parece
também propiciar a continuidade do processo
investigativo e criativo, incorporando transformações aos
ambientes. Comprova-se com o documento [4] de
Richard Neutra a Edgar Kaufmann, no dia 17 de fevereiro
de 1953, a necessidade de reparos na cobertura da
residência e suas primeiras ideias para corresponder à
intenção do cliente em expandir a sala de estar.
Recuperando os desenhos do projeto original para
consulta, Neutra anexa à carta outras duas páginas
explicativas sobre as alterações do projeto, com um total
de três desenhos de estudo.
Em seu primeiro comentário, Neutra indica uma proposta 59
para o assento ao lado da lareira, assumindo um caráter
mais técnico do que artístico para o desenho. É
apresentada a intenção de prateleiras ajustáveis, novos
revestimentos, e o reposicionamento das tomadas
elétricas e de telefone. Para um segundo esclarecimento,
o arquiteto revela as intenções de alteração no hall de
entrada da residência. Após a interpretação de
requerimentos e preferências do cliente, propõe-se que o
armário para roupas de inverno deveria ser removido
para dar lugar a um tronco, escultura ou plantas do
deserto. Os revestimentos do hall também deveriam ser
alterados e uma parede demolida. Neste caso, a consulta
aos desenhos executivos confirma a importância de seu
arquivamento, visto que revelaram o conflito com a
estrutura de resfriamento da casa. Para o terceiro
esclarecimento, Neutra descreve alterações para a
valorização do armário próximo à entrada da residência,
contando também com outros revestimentos e nova
iluminação.
Os diversos estudos para a sala de estar recuperam a
ideia de inexistência de um fim para a construção da
residência. Seja por parte do cliente que volta a conversar
com o arquiteto, ou por parte de Richard Neutra que dá

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
continuidade ao seu desenvolvimento criativo, é valiosa a percepção da casa
como uma construção relativamente flexível. Conjuntamente à percepção de
transformações de hábitos e comportamentos, ambos concordam na
necessidade do apoio transformativo do ambiente.
Entendendo a evolução construtiva e suas inevitáveis alterações espaciais, uma
última análise documental da Desert House voltou-se aos desenhos executivos
assinados por Richard J. Neutra em 1946. Os desenhos fornecidos pelo Neutra
Institute for Survival Through Design, apresentam as plantas, elevações e cortes
do projeto. Pode-se imaginar desde a sua implantação até a especificação dos
acabamentos, uma hipotética inserção em cada ambiente, valendo-se das
características históricas, o ideário do arquiteto e particularidades dos clientes.
Volumetricamente, a Desert House é disposta caracteristicamente, de forma similar
empregada por Richard Neutra em seus projetos para Warren e Katharine
Tremaine (1948), Fred e Alicia Adler (1956), Charles Oxley (1958) e Martin Rang
(1961). Quatro diferentes alas da casa abrigam cada qual uma função diversa. A
semelhança do desenho a um cata-vento traduz para os ambientes ao norte as
duas suítes de hóspedes e um pátio aberto. A oeste, são dispostos os ambientes
de serviço como cozinha e depósito, além dos dois quartos para funcionários. Ao
sul, é destinado o abrigo para carros e disposto o caminho de acesso à
residência. Finalmente, a leste, Neutra determina o quarto dos proprietários,
conectado visualmente e fisicamente com a área externa da piscina.
Intencionalmente planejado como um amplo ambiente de encontro das
diferentes alas, a sala de estar incorpora a sala de jantar, destacando a
60 centralidade da lareira ao restante da casa. A confluência dos possíveis fluxos
para um mesmo espaço, assume importância maior ao volume revestido de
pedra, dando continuidade aos mesmos significados gradualmente desenvolvidos
por Frank Lloyd Wright - com quem Neutra trabalhou assim que chegou aos
Estados Unidos - que culminam na expressão simbólica e praticamente sagrada
da lareira. É este o elemento que apresenta ao visitante a importância do
conforto para o lar, evidenciando um foco de reunião, também pela proximidade
da própria mesa de jantar.
A amplitude deste ambiente central também confere um caráter propício à
observação das dinâmicas internas e externas da residência. Para alguém
posicionado na sala de estar, qualquer movimentação na ala dos quartos de
hóspedes, piscina ou quarto dos proprietários pode ser percebida. A exceção do
contato visual, intencionalmente, volta-se à área de serviço, com uma cozinha,
dois quartos de funcionários e um depósito. Neste sentido, a separação do
restante da casa - ainda que exista uma mesma linguagem arquitetônica e
qualidade espacial - é evidente.
A segregação visual da ala oeste, com seus ambientes e usos praticamente
escondidos, indica significados maiores que os fomentados pela distinção de
classes. O não contato com o que garante a funcionalidade da casa, ao que
parece, indica novamente os desejos de conforto do lar a partir do esquecimento
da atmosfera de trabalho. Associa-se a esta disposição espacial a criação de um
universo de ilusões, em que as refeições, a limpeza e a ordem façam
obrigatoriamente parte da da casa, sem que existam vestígios de seus esforços.
Seguindo a busca pela materialização de outros ideais do arquiteto, comprova-se
a valorização do contato entre o ambiente interior e exterior da residência. Com

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generosas aberturas, além de canteiros para vegetação, a condução do
observador à natureza é aliada aos planos horizontais do forro ininterruptos pela
indiferença de altura do pé-direito dentro ou fora da casa. Justamente nestes
espaços de transitoriedade, com a projeção da cobertura, que a sensação de
comunicação com a natureza assume continuidade.
A máxima desta virtude do projeto, teoricamente defendida pelo arquiteto, é vista
na gloriette. Determinada pela palavra de origem francesa, empregada
usualmente a construções com jardins em um local elevado, não são consentidas
formalidades construtivas, mas, determinado um espaço aberto de contemplação
da paisagem, tal como tinha sido proposto na Casa Schindler, projetada por seu
conterrâneo, o arquiteto Rudolf Schindler (DATAS), onde Neutra morou quando
nos primeiros anos em que se transferiu para Los Angeles. Com acesso por uma
escada externa, o único ambiente da casa disposto no primeiro pavimento
apresenta a continuidade da lareira da sala de estar junto ao seu mobiliário solto.
Novamente como o volume fixo próprio do ambiente, a lareira é contrastante às
persianas verticais de alumínio, possivelmente alternadas de posição para a
proteção do vento.
Quanto à área de lazer da casa, disposta com a piscina no extremo leste da
residência, parece certo afirmar em um primeiro momento sua controvérsia.
Ocasionalmente, pode-se imaginar a exposição indesejada do quarto dos
proprietários a convidados, mas, se considerado o emprego de cortinas e a
reflexibilidade prevista nos planos de vidro, a privacidade não deveria ser
prejudicada. Sua disposição, ao contrário, talvez seja de fato a que melhor se
adeque às dinâmicas e usos da residência, também devendo-se considerar seu
fundamental papel ao equilíbrio de implantação proposto.
61
Para o projeto, percebe-se também a preocupação com a relativa reconfiguração
dos ambientes. Notável na sala de estar, nos quartos de hóspedes e dos
proprietários, a existência de painéis de vidro deslizantes garante a alteração
espacial a partir das necessidades de conforto e privacidade, além de criar ou
impedir novos acessos. Neutra promove, em certos aspectos, a interação do
usuário com o ambiente construído, permitindo sua acomodação sem que
existam imposições como planos fixos.
A predominância horizontal da Desert House aproxima a vivência dos moradores
à paisagem exuberante do seu entorno. Os vazios internos da residência, como
um pátio entre a sala de estar e os quartos de hóspedes, defendem a ideia de
transitoriedades imperceptíveis para o bem-estar. Ao passo que a mudança de
ambientes internos e externos não é declarada, mas sutil, o arquiteto cria certa
experiência sinuosa. Valendo-se de ideais de limpeza visual para o menor
distúrbio espacial, os materiais empregados parecem solidificar a relação com o
uso do vidro, aço, madeira e pedra. Como exemplo, deve-se destacar a
continuidade dos materiais de piso e forro, justamente nos espaços de
transitoriedade dos ambientes internos e externos.
Esta proposta de uma nova forma de morar, junto ao dado numérico da compra
de 2,4 milhões de novas residências em 1948 nos Estados Unidos, finalmente
permite a discussão das mudanças econômicas também como um reflexo de
mudanças sociais e comportamentais. Como mostra de uma construção capaz de
abrigar a vida moderna, Neutra destaca a necessidade do acompanhamento da
modernização da casa junto às já notáveis transformações na rotina de seus

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
habitantes. O arquiteto destaca a revoltante existência de muitos que trabalhavam
em escritórios modernos, dirigiam automóveis como um Studebaker e, ainda assim,
resistiam às novas proposições para a vida privada. A esquizofrenia de negação da
residência em sintonia ao moderno deveria ser revista do seu ponto de vista.
A Desert House, assim segue as proposições do arquiteto, posteriormente com
outros proprietários. A falta de cuidado com a manutenção da residência, sem valer
de preocupações para a preservação da proposta moderna de habitação, no
entanto, foi contornada com sua compra por outro casal apreciador de casas
modernas do século XX. Hoje, contando com a colaboração de Julius Shulman, a
casa encontra-se restaurada, podendo ser considerada um marco para a história
da arquitetura. Um marco não só em função da expressão dos ideais
arquitetônicos de Neutra, mas também como símbolo de um conjunto de ideais de
domesticidade que então se configuravam nos Estados Unidos do Segundo Pós-
Guerra e que terão forte impactos em outras localidades, como o Brasil e mais
especialmente São Paulo. As investigações e análises aqui desenvolvidas podem
contribuir para a avaliação desses impactos e as reflexões sobre os diálogos de
modernidade arquitetônica entre o norte e sul do continente americano.
Esta pesquisa reconhece que em razão de novas dinâmicas globais,
gradualmente regradas ao ritmo industrial, a casa da mesma forma insere-se
nesse contexto, é parte da materialização das transformações na sociedade. Mais
do que apresentar elementos de inovação espacial, técnica e construtiva, esta é
também elemento-chave à compreensão do comportamento humano e de sua
adaptação aos novos ritmos, aos seus desejos e necessidades da modernidade.

62 Além disso, com o acesso à valiosa coleção Richard and Dion papers, 1925-1970 -
doada por Frank, Raymond, Dion e Dione Neutra à Universidade da Califórnia
(UCLA) -, puderam ser identificadas as características desta sociedade,

[5] Fotografia selecionada da


Kaufmann House.
Julius Shulman photography
archive,
1935-2009, Job 443.
© J. Paul Getty Trust. Getty
Research Institute,
Los Angeles (2004.R.10)

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[6] Planta
pavimento térreo
sem escala da
Kaufmann House.
Disponivel através
do Neutra Institute
for Survival
Through Design.
Richard & Dion
Neutra Architects &
Associates.
© 1998 All rights
reserved.

63

[7] Elevação Leste sem escala


da Kaufmann House. principalmente em razão da leitura minuciosa das cartas, “questionários” e
Disponivel através do Neutra
telegramas originais, documentos que também comprovam as extensas
Institute for Survival Through
Design. investigações dos clientes. Neste sentido, a análise particular da Desert House
Richard & Dion Neutra (1946) complementa o entendimento dos princípios que orientavam a produção
Architects & Associates. de Richard Neutra, seu contexto histórico, as características íntimas desta sociedade
© 1998 All rights reserved.
e os diálogos com a arquitetura moderna brasileira. É possível destacar ainda a
importância da leitura dos diversos tipos de documentos, essencial ao detalhamento
da relação arquiteto-cliente. Permite-se, assim, a ampliação e a continuidade desta e
de outras pesquisas dedicadas à produção e ao ideário de Richard Neutra – visto
Fernanda Critelli (2015) e Patrícia Ribeiro (2007) - com a possibilidade do maior
detalhamento do contato internacional entre os arquitetos desta época, a saber a
predominância, ou não, dos impactos em ambos os sentidos.

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
B IBLIOGRAFIA
NEUTRA, Richard Joseph. Richard Neutra. London: Thames and Hudson, 1971.
. Life and Shape. Nova York: Appleton-Century-Crofts, 1962.
. Architecture of Social Concern in Regions of Mild Climate. São Paulo: Ggerth Todtmann, 1948.
. Survival Through Design. New York: Oxford University Press, 1954.
FORTY, Adrian. Objetos de Desejo – Design e Sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
CURTIS, William J. R. Arquitetura Moderna desde 1900. Porto Alegre: Bookman, 2008.
LIRA, José Tavares Correia de. Arquitetos estrangeiros, arquitetura no estrangeiro e a história. In: LANNA,
Ana Lúcia Duarte [et al.] (Orgs.). São Paulo, os estrangeiros e a construção das cidades. São Paulo:
Alameda, 2011, pp. 353-385.
DREXLER, Arthur. Architecture of Richard Neutra. Nova York: The Museum of Modern Art, 1984.
AZEVEDO, Patrícia Pimenta Azevedo. Teoria e prática: a obra do arquiteto Richard Neutra. São Paulo:
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2007.
SHULMAN, Julius. Photographing Architecture and Interiors. Nova York: Whitney Library of Design, 1962.
LOUREIRO, Claudia; AMORIM, Luiz. Por uma arquitetura social: a influência de Richard Neutra em
prédios escolares no Brasil. São Paulo, Portal Vitruvius, jan 2002. Disponível em: <http://
www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.020/813>
. Edificações futuras: transcendental assunto humano. Acrópole. São Paulo, n.231, p.101-104, jan,
1958. Conferência realizada em Zurique.
ORTENBLAD FILHO, Rodolpho. A arquitetura de Richard Neutra. Acrópole. São Paulo, n.230, p.56-57,
dez, 1957.
A arquitetura de Richard Neutra. Acrópole. São Paulo, n.232, p.152-154, fev. 1958.
A vida e o Habitat Humano: A arquitetura residencial de Richard Neutra. Habitat, São Paulo: nº 30, p.
60-61, maio 1956.
LOZANO, Eduardo E.. Evocando Richard Neutra. Habitat, São Paulo, nº 60, p. 13-16, jun. 1960.
FERRAZ, Geraldo. Richard Neutra permanece renovador aos setenta anos. Habitat, São Paulo: nº 69, p.
64 5-15, set. 1962.
LIERNUR, Jorge Francisco. The South American Way: O Milagre Brasileiro, os Estados Unidos e a
Segunda Guerra Mundial – 1939-1943. In: GUERRA, Abílio. Textos Fundamentais sobre História da
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MARTINS, Carlos A. Ferreira. Construir uma Arquitetura, Construir um País. In: SCHWARTZ, Jorge. Da
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Neutra_Time_Aug_15_1949.pdf>
The case study house program announcement. Arts and Architecture, jan. 1945. Disponível em: <http:/
/www.artsandarchitecture.com/case.houses/>

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Nota do Autor
Este artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica Formas de morar nos
Estados Unidos: Richard Neutra, desenvolvida na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), entre 2015 e 2016 com
65
apoio do programa PIBIC CPNq e a orientação da Profa. Dra. Joana Mello de
Carvalho e Silva como parte da pesquisa O avesso da arquitetura moderna:
domesticidade e formas de morar na habitação privada brasileira 1940-1960
(Fapesp n. 2014/02756-8).
O texto completo do relatório final de pesquisa está disponível em: <http://issuu.com/felipe
kilarisgallani/docs/neutra?workerAddress=ec2-54-163-32-250.compute-1.amazonaws.com>.

Felipe Kilaris Gallani


Aluno de graduação da FAUUSP.

Felipe Kilaris Gallani – Formas de morar nos Estados Unidos: Richard Neutra – p. 50-65
OS MORADORES DOS CONJUNTOS
HABITACIONAIS DA FAVELA
NOVA JAGUARÉ E SUAS RELAÇÕES
COM A POPULAÇÃO LOCAL

Lais Boni Valieris


Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Zuquim

66 Resumo
A pesquisa visa compreender as políticas de oferta e demanda da produção
habitacional proveniente dos processos de urbanização em favelas; o
processo de cadastramento e atendimento habitacional, incluído políticas de
distribuição das unidades e sua relação com as questões de remoção e
reassentamento. Através do estudo de caso na favela Nova Jaguaré, buscou-
se compreender como essas questões se resolveram, relacionando quem são
os moradores dos conjuntos habitacionais produzidos no processo de
urbanização, e qual a relação deles com a população da favela Nova Jaguaré.
A pesquisa se estabelece na favela Nova Jaguaré, contextualizada no período
das obras de urbanização de 2005 a 2010. Como uma das mais antigas da
cidade de São Paulo, sofreu intervenções de várias gestões municipais, desde
casos pontuais de provisão habitacionais, infraestrutura, até a elaboração e
execução de projetos de urbanização. O recorte territorial, portanto, oferece
uma visão mais completa e multifacetada dos objetivos previstos para essa
pesquisa. Ademais, alguns projetos de pesquisas já realizados no local de
estudo, incitaram questões a serem respondidas, além de se apresentarem
como importantes subsídios para a formulação de um estudo mais completo
sobre a favela Nova Jaguaré.

Palavras-chave
Urbanização de favelas, conjuntos habitacionais, unidades habitacionais, Nova
Jaguaré.

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1. I NTRODUÇÃO
A questão da habitação é algo que tange o estudo de arquitetura e urbanismo
em praticamente todas as suas áreas. Concerne inclusive no que diz respeito ao
direito à cidade. A produção de habitação de interesse social, mais
especificamente, constitui um dos principais focos de necessidade de ação do
poder público, visto que a questão da moradia no Brasil, e em São Paulo é
emergencial. O Plano Municipal de Habitação de São Paulo, de 2009, coloca
como ponto central a questão da habitação para garantir o direito à cidade,
afirmando que “a moradia digna é entendida como vetor de inclusão socio-
territorial, que garante a construção da cidadania a todos os moradores.”. Torna-
se claro, portanto, que os estudos sobre a produção habitacional e as políticas
que tangem o assunto, devem ser realizados de maneira contínua.
Desconsiderando ainda o debate mais atual sobre a modalidade de atendimento
e os novos programas como o de locação social, no que diz respeito à provisão
de moradia feita através do repasse da propriedade habitacional aos moradores,
há ainda muitas questões por traz do processo de produção de habitação,
cadastro e a distribuição dessas novas unidades. Essas questões, que não são
claras nem para pesquisadores, muito menos para as famílias incluídas nos
programas de habitação, constituem uma grande barreira para se entender e por
fim, buscar soluções concretas para a questão habitacional na cidade de São
Paulo. A falta de informações no que diz respeito à pré-ocupação, torna o
processo de ocupação das unidades de difícil entendimento, e
consequentemente, ainda mais distante da população que mais necessita
entende-lo. Por mais que os processos de elaboração de projetos e intervenções
em assentamentos precários tenha evoluído ao longo dos anos no que diz
respeito, principalmente, à participação popular, o pós projeto, ou seja, a forma 67
como ele será construído, ofertado e gerido de maneira adequada, ainda não é
compreensível. As questões relacionadas às remoções e ao reassentamento das
populações das favelas ainda são muito complexas e sem uma forma clara de
atuação, e pouco se consegue estudar para propor novos métodos.
A pesquisa visa compreender as políticas de oferta e demanda da produção
habitacional proveniente dos processos de urbanização em favelas; o processo de
cadastramento das famílias e atendimento habitacional, incluído as políticas de
distribuição das unidades habitacionais e sua relação com as questões de remoção
e reassentamento. Para tanto, através do estudo de caso na favela Nova Jaguaré,
buscou-se compreender como essas questões se resolveram, relacionando quem
são os moradores dos conjuntos habitacionais provenientes do processo de
urbanização, e qual a relação deles com a população da favela Nova Jaguaré.

1.1. Justificativa e objetivos


O foco da pesquisa se estabelece na favela Nova Jaguaré, contextualizada no
período das obras de urbanização de 2005 a 2010, com foque nos três
conjuntos habitacionais produzidos nesse período – Kenkiti Simomoto,
Residencial Alexandre Mackenzie e o conjunto Nova Jaguaré. A favela do Jaguaré
é uma das mais antigas da cidade de São Paulo, e sofreu intervenções de várias
gestões municipais, desde casos pontuais de provisão habitacionais, a
relacionados à infraestrutura, até a elaboração e execução de projetos de
urbanização. Portanto, esse recorte territorial ofereceu uma visão muito mais

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
completa e multifacetada dos objetivos previstos para essa pesquisa. Ademais,
existem muitos projetos de pesquisas realizados no local, os quais incitaram
questões a serem respondidas, além de se apresentarem como importantes
subsídios para a formulação de um estudo mais completo sobre a favela Nova
Jaguaré. É importante ressaltar, em especial, os projetos de iniciação científica da
Márcia Trento, realizada em 2011, a qual procurou entender quais foram as
mudanças físicas propostas pelas diversas intervenções, e a pesquisa da Bruna
Sato de 2013, partindo das intervenções estudadas pela Márcia, procurou
entender o impacto que esses projetos tiveram no que diz respeito às remoções
das famílias afetadas pelas mudanças físicas da favela, além disso, a Bruna
também procurou entender quais foram as respostas de atendimento
habitacional oferecidas à essas famílias removidas, considerando a produção das
unidades habitacionais produzidas no período de recorte da presente pesquisa.
Como objetivo principal, portanto, a presente pesquisa procurou dar
continuidade ao extenso processo de entendimento sobre a favela do Jaguaré já
iniciado pelos diferentes autores, e como forma de contribuição se propôs a
entender os moradores dos conjuntos habitacionais produzidos no território no
período das obras de urbanização (2005-2010), e a relação deles com a
população local. Para tanto, compreender como ocorreu o processo de
distribuição das unidades habitacionais se torna primordial, processo que inclui
também questões relacionadas ao cadastramento, reassentamento das famílias
removidas e por fim o destino das unidades habitacionais produzidas, buscando
compreender intrinsecamente ao processo, quais critérios e lógica fora usada.

68 1.2. Desenvolvimento da pesquisa


A pesquisa se iniciou através da análise de dados secundários, pelos quais,
buscando-se compreender o recorte território, seu percurso histórico de
formação, incluindo as intervenções físicas e propostas políticas feitas na região ao
longo das diferentes gestões municipais. Além disso, a base teórica inicial também
se propôs a entender os dados oficias disponíveis sobre o processo de
urbanização ocorrido no período de 2005 a 2010, se atendando principalmente
para questões relacionadas aos processos de remoção, cadastramento e
distribuição das novas unidades habitacionais produzidas no local - objetivo desta
pesquisa. Nesse primeiro momento também se realizou a formulação dos
questionários, os quais visaram confrontar e/ou complementar os dados oficiais.
A segunda parte da pesquisa se iniciou através da aplicação dos questionários nos
três conjuntos habitacionais. Apesar de prever 20% de respostas para a viabilidade
de análise dos resultados, a pesquisa buscou alcançar o maior número de
moradores dentro dos conjuntos habitacionais. Para tanto, e além da proposta do
maior alcance possível de respostas, a coleta de respostas entre todos os blocos
dos três conjuntos, se mostrou muito importante para refletir um maior número de
realidade dentro dos conjuntos, e assim se aproximar dos objetivos propostos pela
pesquisa, que visara compreender a lógica da ocupação das unidades.
A terceira fase da pesquisa se dividiu entre a tabulação dos questionários e a
análise de conclusões críticas a partir do cruzamento dos resultados com os dados
secundários coletados previamente. Os resultados obtidos, como se demonstrará a
seguir, serviram muito mais como base de reflexão e análise qualitativa crítica.

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A aplicação dos questionários ocorrera de duas maneiras, direta e indiretamente.
As diferentes formas de aplicação foram resultados do percurso metodológico da
pesquisa e sua evolução no que diz respeito a delimitações de tempo, e também
à busca por respostas mais efetivas. A forma indireta de aplicação se viabilizou
através do contato com um morador de cada bloco nos três conjuntos
habitacionais. Este contato se responsabilizou em distribuir os questionários para
os seus vizinhos de bloco e então recolher os questionários. Essa primeira
modalidade de aplicação se propusera a alcançar um maior número
questionários respondidos tanto por distribuir as fontes de aplicação, tanto por
acreditar que através da distribuição dos questionários por um morador do
próprio conjunto, que conhecesse o projeto de pesquisa, os outros moradores
se sentiriam mais a vontades para responder. Esse método mostrou-se, ao longo
de sua aplicação, não tão efetivo quanto o previsto, visto que muitos
questionários voltaram incompletos, e a dependência dos moradores voluntários
para a aplicação dos questionários deixava o cronograma da pesquisa muito
dependente da disponibilidade desses moradores. Portanto, como alternativa
optou-se pela aplicação direta, porta em porta. A aplicação direta possibilitava
conversas com os moradores que se expandiam para além das seis questões
principais, formuladas para a análise quantitativa. Esse método, apesar de mais
trabalhoso se revelou muito rico em diferentes insumos para futuras análises
qualitativas e para reflexões sobre casos muito singulares, mas com grande poder
de ilustrações e de grande importância para a compreensão da complexidade do
processo de urbanização de favelas.

2. R ESULTADOS 69
2.1. Dados secundários
Breve histórico da questão habitacional no Brasil
No Brasil as causas do déficit habitacional estão ligadas desde o principio à
questão da posse da terra. A Lei de Terras, de 1850, fora a primeira tentativa de
organizar a propriedade privada no Brasil, a qual contribuiu para perpetuar a
estrutura fundiária já existente no país. Esse fato ocorre, paradoxalmente, em
um período no qual a demanda por terras aumenta, principalmente, devido à
promulgação da Lei Áurea, em 1888, e com a vinda de imigrantes para o país.
A lei não foi acompanhada de medidas que de fato poderiam garantir a
igualdade racial e o fim da estrutura elitizada da propriedade. Nesse período
começam a surgir alternativas ao acesso a habitação no Brasil. Como afirma
Maricato, A emergência do trabalho livre dá origem ao problema da habitação
(MARICATO, 2003).
Com o início da urbanização e industrialização do país, essas questões
começam a se agravar. Segundo Maricato A invasão de terras urbanas no Brasil
é parte intrínseca do processo de urbanização. [...] Ela é institucionalizada pelo
mercado imobiliário excludente e pela ausência de políticas sociais (MARICATO,
1999). A então ocupação das periferias vai evidenciar e acentuar a relação
entre exclusão, legislação e mercado imobiliário restrito, visto que as populações
mais desfavorecidas irão se instalar nas áreas de menor valor de mercado
(BARROS, 2014).

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
Em 1942, a Lei do Inquilinato, a qual congela o valor dos aluguéis, é um fator
importante para a discussão da formação dos assentamentos precários. A partir
dos anos 50 a economia urbana industrial passa a ditar as políticas públicas do
país (ZUQUIM, 2012), que segundo Maricato se caracteriza por: baixos salários,
os quais não eram definidos segundo o custo da habitação fixado pelo mercado
privado; gestores com tradição de investimentos regressivos, ou seja, com obras
de infraestrutura que alimentavam a especulação imobiliária; além de uma
legislação urbana ambígua e aplicada de forma arbitrária (MARICATO, 1999).
Dessa forma, no início do século XX em São Paulo, cidade que concentrou um
grande número de indústrias advindas da pós economia cafeeira, os números de
cortiços aumentaram muito, representando um terço das moradias em São Paulo
representavam cortiços (KOWARICK, 1994). Além dos cortiços, as periferias e as
favelas também surgirão como alternativa habitacional.
Até os anos 70, as favelas eram vistas como ocupações provisórias e de caráter
pontual. Por essa razão, as respostas dos agentes públicos eram no sentido de
extinguir esses assentamentos, sem uma solução permanente. Criou-se inclusive
um projeto de Remoções de Favelas e Vilas Habitacionais sobre a coordenadoria
da Sebes - Secretaria do Bem-Estar Social. No fim da década de 70, as crises
internacionais do petróleo refletiram sobre a economia brasileira. É nesse
momento, que as ocupações aparecem de forma mais expressiva, deixando de
ser resultado de ações individuais familiares para se tornarem movimentos
massivos organizados. Em 1979 é aprovada a Lei Federal de Parcelamento e Uso
do Solo (6766/79), a qual exige a instalação de uma infraestrutura mínima para
a aprovação de um novo loteamento. Ou seja, ao mesmo tempo, torna ilegal
70 todos os outros loteamentos que não se enquadram nos parâmetros por ela
propostos. Não é por acaso que nesse momento o discurso da urbanização e
regularização de assentamentos precários se consolidada como alternativa
importante para a questão habitacional nas grandes cidades.
Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, estabelecendo a função social
da propriedade, importante progresso da política urbana no Brasil. Além disso,
institui os Planos Diretores com parte essencial do processo de planejamento
urbano. Além disso, em 2003 é criado o Ministério das Cidades, que dentre
outras medidas, estabeleceu maior importância aos programas de intervenções
em assentamentos precários, levando em pauta a ideia da urbanização em todos
os seus âmbitos. Um ponto essencial que o Estatuto da Cidade coloca em
discussão é a do usucapião coletivo. Entretanto, apesar de reconhecer o direito
de uma terra ocupada, abre espaço para a regulamentação de loteamentos sem
infraestrutura básica ou mesmo em situação de risco (MARICATO, 2003).
Paralela a esses processos urbanos – políticos e socioeconômicos - que
esclarecem a formação dos assentamentos precários nas cidades brasileiras,
aconteceu a produção habitacional estatal. Apesar da eficácia questionável, eles
tiveram um importante papel na formação da postura do Estado frente à
responsabilidade de redução no déficit habitacional brasileiro. As primeiras
expressões de políticas públicas que tratam a moradia como questão social são os
IAPs (1937 – 1946) e a Fundação Casa Popular (1946 – 1964), considerada
precursora do BNH. Na década de 60 o Estado cria o SFH – Sistema de
Financiamento de Habitação e o BNH – Banco Nacional de Habitação, com a
finalidade de subsidiar programas habitacionais voltados ao mercado popular.
Após o período militar, o BNH foi incorporado à Caixa Econômica Federal, ficando

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


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a cargo desta, a partir de então, os financiamentos habitacionais populares dos
programas que serão formulados futuramente. Até o final do século XX, o Estado
brasileiro não apresenta novos programas de produção habitacional. A produção
habitacional em grande escala e as pautas de urbanização e regularização de
assentamentos precários, retornam à mesa de discussões do governo com
expressividade apenas com o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, em
2007, disponibilizando grandes montantes de recursos. O Brasil se insere no
século XXI, sem propostas claras para a questão habitacional, e continua, mesmo
que de forma mais expressiva, tanto em recursos como em números de moradias
produzidas, a atuar de forma pontual e não estrutural na questão da habitação.

Histórico de intervenções e políticas públicas em favelas na cidade de


São Paulo
Através do percurso da política urbana e habitacional realizada na cidade de São
Paulo, atrelados ao contexto socioeconômico, é possível perceber avanços e
retrocessos na forma de atuar junto à democratização dos direitos sociais, os
quais refletirão nas intervenções nos assentamentos precários da cidade.
As primeiras ações da prefeitura em resposta a ocupações irregulares aparecem
na década de 40, as quais foram a de remoção e tentativa de irradicação. Nessas
ações, as famílias eram tratadas de forma individualizada, ou seja, o
encaminhamento e indenização eram feitos de forma pontual, visto que a visão
que predominante em relação às favelas era a de um problema pontual, que
representava, principalmente, entraves para a construção de obras de
infraestrutura. Essa situação pode ser contextualizada às obras do Plano de
Avenidas do prefeito Prestes Maia, a qual foi responsável pela remoção de
71
inúmeras famílias na época (MARICATO, 2003). A partir de 1971, começam a ser
tomadas decisões de remoções coletivas, com a execução de alojamentos
provisórios para as famílias atingidas. Durante a década de 70 houve as primeiras
construções de vilas de habitação provisória. No final da década de 70, cria-se o
FUNAPS – Fundo de Atendimento á População Moradora em Habitação
Subnormal, o qual possibilitou a prefeitura atual de maneira mais autônoma no
que diz respeito ao repasse dos recursos federais. A gestão de Reynaldo Barros
(1979 – 1982), junto com a de Mário Covas (1983 – 1985), promovem uma
nova, segundo Silva (SILVA, 1994). Percebem o caráter persistente das favelas e
sua contribuição física para a formação urbana. Dessa forma, as intervenções
demandam um caráter mais estruturado e visando soluções permanentes.
Reynaldo Barros cria o PROFAVELA, o qual englobava subprogramas como
PROLUZ E PROAGUA. Esse foi o primeiro programa destinado a oferecer
infraestrutura para as favelas. Durante a gestão de Covas, o PROFAVELA é
aprimorado, incorporando diretrizes de urbanização e regularização fundiária,
momento político importante, o qual reconhece a permanência das famílias nos
locais ocupados. A administração seguinte foi acompanhada de um retrocesso.
Jânio Quadros paralisou os programas ofertados nas gestões anteriores,
promulgando a Lei do Desfavelamento, nome dado as Operações Interligadas, as
quais tinham por objetivo flexibilizar a lei de zoneamento com a intenção de
eliminar favelas situadas em bairros valorizados, contribuindo para a valorização
imobiliária em locais antes comprometidos pela presença dos assentamentos
(BONDUKI, 2000). A gestão da prefeita Luiza Erundina (1989 – 1992) por sua
vez, significou um grande avanço, inclusive um marco nas questões habitacionais

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
da cidade de São Paulo. Pela primeira vez, um programa municipal de
urbanização de favelas foi estruturado como parte integrante de uma política
habitacional municipal (DENALDI, 2003). Através do FUNAPS – FAVELA foi possível
criar escritórios regionais de habitação, contando com a participação da
população, os quais respondiam à Superintendência de Habitação Popular da
SEHAB. A maior inovação do governo municipal se deu na abertura da
possibilidade da autogestão pelos moradores. Outra importante medida foi a de
avaliação de áreas de risco. Com apoio técnico do IPT, foram avaliadas 300 áreas
de risco em 240 favelas (FREIRE, 2006). Os programas da Erundina executaram,
principalmente, obras pontuais dentro do projeto de urbanização de favelas, não
priorizando a produção habitacional.
A administração seguinte representou novamente um retrocesso. Apesar de
promover em números o que parece ser um avanço, em termos qualitativos e
sociais não evoluíram. Paulo Maluf (1993 – 1996) e Celso Pitta (1997 –
2000), os quais são comumente referidos com as mesmas diretrizes de gestão,
trabalharam no setor habitacional em cima do programa PROVER – Programa
de Urbanização de Favelas com Verticalização, conhecido como Cingapura, e
paralisaram outros importantes mecanismos criados anteriormente, como os
mutirões. Claramente movidos por um caráter político-eleitoreiro, as
implantações dos edifícios buscavam visibilidade, eram feitas em avenidas de
grande fluxo e serviam para esconder as favelas (FREIRE, 2006). Além disso,
nesse período foi constante o uso de abrigos provisórios, visto que os edifícios
padronizados, não ofereciam soluções que abrigassem todas as remoções.
Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 e do Plano Diretor
72 Estratégico em 2002, o qual dentre outras realizações importante, criou as ZEIS
– Zonas Especiais de Interesse Social, dentro da cidade. A então prefeita Marta
Suplicy (2001 – 2004) pôde desfrutar de maiores mecanismos políticas para a
aplicação de uma política habitacional voltada à urbanização de favelas. Sob a
coordenadoria da SEHAB e integrado a outros órgãos da prefeitura como o
HABI – Superintendência de Habitação Popular, a COHAB – Companhia
Metropolitana de Habitação em São Paulo e RESOLO – Departamento de
Regularização do Solo, a gestão da prefeita desenvolveu o programa Bairro
Legal, voltado à urbanização de favelas. O programa tinha por objetivo
promover a urbanização de favelas; a regularização fundiária de loteamentos
clandestinos e ocupações irregulares; a qualificação de conjuntos habitacionais
existentes; além da promoção de programas sociais de caráter social e de
geração e renda. Entretanto, muitos dos projetos não saíram do papel durante
a administração, sendo apenas orçados e licitados no período. (FREIRE, 2006).
José Serra foi o sucessor de Marta Suplicy, entretanto, deixou o cargo nas mãos
do seu vice Gilberto Kassab em 2006. A prefeitura herdou muitos projetos
habitacionais da gestão anterior, a alguns foram dados continuidade, outros
como o Morar Centro, foram desarticulados. O Bairro Legal, principal programa
até então da Secretaria de Habitação, sofreu algumas modificações, e por isso
recebeu o nome de Urbanização de Favelas, abrangendo apenas um dos
subprogramas do Bairro Legal. Um importante momento dessa gestão foi a
criação do Plano Municipal de Habitação (PMH 2009/2004), o qual representa
o comprometimento em traçar diretrizes que visem a promoção de moradia
digna e se apresentam como um elemento integrante de ações no campo da
ambiental, social, habitacional e urbanístico.

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
A atual gestão do prefeito Fernando Haddad (2013-2016), tem focado muito
mais em promover habitação no central da cidade de São Paulo. O prefeito
entrou com o processo de desapropriação de 41 edifícios vazios na região central
com o intuito de promover habitação de interesse social nesses locais. Entretanto,
há questionamentos sobre a forma como esse projeto habitacional se viabilizaria,
visto que a PPP – parceria público-privada, denominada Casa Paulista, responsável
pela execução do projeto, já é alvo de muitas críticas, principalmente no que diz
respeito à faixa de renda de destinação dessas novas unidades habitacionais.

O caso do Jaguaré
O caso do Jaguaré está diretamente relacionado ao desenvolvimento da cidade
de São Paulo. Como um dos assentamentos mais antigos e consolidados da
cidade, sua história reflete em muito a história de ocupação e expansão da
cidade. O início da ocupação da região remonta à retificação do Rio Pinheiros em
1930. Nessa época as margens do rio eram ocupadas por grandes propriedades
até então rurais, a qual foi adquirida pela Sociedade Imobiliária Jaguaré que
previa um projeto de urbanização para a área. O planejamento visava a um
bairro com caráter industrial que incluía zonas residenciais e comerciais. O então
loteamento fora projetado com um desenho orgânico, para melhor se adaptar à
topografia acidentada. A parte da encosta leste, mais próxima ao rio fora
destinada a um parque público devido aos fatores que não favoreciam a
ocupação humana, como acentuada declividade, exposição a ventos frios e
úmidos do sudeste e orientação solar ruim (FREIRE, 2006). Fora exatamente
nessa área onde se originou a favela do Jaguaré.
A Nova Jaguaré começou a ser formada no fim dos anos 1950, intensificando-se
73
nas décadas seguintes. A falta de monitoramento da prefeitura em preservar o
parque previsto para o local e a intensificação das migrações para São Paulo nesse
período, além da região ser provida de grande oferta de emprego e baixa oferta de
moradia popular, formaram o cenário propicio a ocupação do espaço. Além disso,
a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo – COHAB, no final da
década de 60, alocou dezenas de famílias no terreno em resposta a um processo
de desfavelamento em outra região da cidade. O crescimento da ocupação se dá
de forma exponencial, em 1968 são numeradas 310 famílias; em 1973, 850
barracos instalados; e, em 1978, 3000 mil famílias moram na região (TRENTO,
2011). Em meados de 70 as vias de grande porte são abertas, atraindo maiores
ocupações e intensificando o adensamento populacional na região. A partir da
década de 1980, a favela Nova Jaguaré já se apresenta muito consolidada, apesar
de demonstrar diferentes padrões de moradias. E segundo dados do Habisp, com
sua maior parte vivendo em alto índice de vulnerabilidade social.

Intervenções
As primeiras propostas de intervenção pelo poder público surgiram nos fins da
década de 80, no mandato da então prefeita Luiza Erundina. Através do
diagnóstico do “Plano de ação para as favelas em situação de risco de vida e
emergência”, o qual classificou parte da ocupação da favela como risco 1, risco
iminente, as primeiras ações de contenção foram pensadas para amenizar essa
situação. Em 1991, foram executados três grandes taludes. Apesar de a
intervenção visar prevenir possíveis desmoronamentos, o risco poderia retornar

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
com a reocupação irregular desses espaços. A prefeitura então esboçou
propostas de ocupação habitacional, prendo a construção de 78 moradias
adequadas à topografia. Entretanto, o projeto não foi executado e posteriormente
a área foi reocupada por barracos e se tornou uma das áreas mais densas da
favela com grande risco de deslizamentos (FREIRE, 2006). Ainda durante a gestão
Erundina, também houve pequenos serviços de melhoria, como a construção de
muros de arrimo, canalização de drenagem de águas pluviais e a construção de
uma escadaria de 100 metros que proporcionou a ligação entre a parte alta e a
parte baixa da favela, melhorando a circulação (TRENTO, 2011).
Em 1995, durante a gestão do Paulo Maluf, houve um dos mais marcantes
deslizamentos na favela Nova Jaguaré. A prefeitura então remove as famílias da
área através de uma proposta de indenização barraco. Em 1996, ainda na
mesma gestão, através do PROVER, iniciou-se a construção de dois conjuntos
habitacional Cingapura na favela. Ao todo, os conjuntos ofereciam 260 unidades
habitacionais, distribuídas em 13 prédios de 5 pavimentos.
Na gestão da Marta Supplicy, um novo deslizamento de terra acontece na favela,
localizado no Morro do Sabão, área com as maiores declividades no perímetro
da Nova Jaguaré. O deslizamento atingiu 26 famílias. Após o ocorrido,
subprefeitura da Lapa executa obras de drenagem e contenção, através da
construção de escadarias hidráulicas e muros de gabião. Em 2003, a prefeitura
lança o edital para o projeto de urbanização da favela Nova Jaguaré, através do
programa “Bairro Legal”. O projeto abrangia não só a regularização física, mas
também fundiária, dispondo de mecanismos de participação popular. O projeto
vencedor foi o do escritório de arquitetura Projeto Paulista de Arquitetura, o qual
74 buscou conciliar fatores técnicos de drenagem, abertura de viário e obras de
saneamento, com fatores de integração com o tecido urbano existente, criação de
espaços livres e uma proposta de provisão habitacional atrelada a tipologias de
plantas diversificas, que conversassem com a topografia da área, integradas a
edifícios de uso misto. Em 2004, no ultimo mandato da prefeita, o projeto foi
licitado, entretanto, não havendo os recursos previstos no contrato de licitação, a
obra foi paralisada.
Na gestão seguinte de Gilberto Kassab, em 2006, iniciam-se algumas remoções
para implantação dos conjuntos habitacionais. Entretanto, o projeto a ser seguido
sofreu diversas alterações, e passando inclusive a fazer parte do programa
Urbanização de Favelas. As principais mudanças em relação ao projeto foram a
implantação das unidades habitacionais, a qual seu número é inclusive reduzido;
o traçado do viário; e algumas áreas livres de uso comum são alteradas, além da
execução de mais dois conjuntos habitacionais não previstos anteriormente, o
conjunto habitacional Kenkiti Simomoto e o Residencial Alexandre Mackenzie, que
alteram o perímetro da favela, visto que são implantados em terrenos limítrofes
mas fora do perímetro antigo. Ao todo foram construídas 947 novas unidades
habitacionais, sendo 110 no conjunto habitacional Kenkiti Simomoto, 427 no
Residencial Alexandre Mackenzie, e 405 no conjunto Nova Jaguaré. Entretanto,
para que a obra fosse executada, foi necessária a remoção de 1879 famílias. Fica
claro que a provisão habitacional não foi suficiente para atender a toda a
população residente do local. As famílias que não foram atendidas, como
demonstra Sato (2003) tiveram diferentes tratamentos, dentre as quase 2000
famílias, 369 foram atendidas através de Verba de Apoio; 177 atendidas através
da compra de moradias; 81 fizeram permuta ou troca interna; 30 receberam

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unidades readequadas ou realocadas; 5 receberam boxes comerciais; 283
na época aguardavam atendimento no bolsa-aluguel; e apenas 934
receberam de fato as unidades habitacionais, sendo que segundo os dados
cedidos pelo Habi Centro e divulgados na pesquisa de Sato, não foi possível
obter a informação da localização dos conjuntos habitacionais que essas
famílias foram transferidas. A falta dessa informação é justamente o objetivo
de busca que essa pesquisa se propõe a realizar.

2.2. Dados primários


Apesar de prever 20% de respostas para a viabilidade de análise dos
resultados, o que corresponderia a 189 questionários respondidos (22 no
Kenkiti Simomoto, 81 no Nova Jaguaré e 86 no Residencial Alexandre
Figura 1: Gráfico resultado da questão 01. Mackenzie), a pesquisa buscou alcançar o maior número de moradores
dentro dos conjuntos habitacionais. Para tanto, e além da proposta do
maior alcance possível de respostas, a coleta de respostas entre todos os
blocos dos três conjuntos se mostrou muito importante para refletir um
maior número de realidades, e assim se aproximar dos objetivos propostos
pela pesquisa – compreender a distribuição das unidades habitacionais e a
organização social dos conjuntos e sua relação com a população local. O
número final de questionários respondidos foi de 206 no total, sendo 28
no Kenktiti Simomoto, 91 no Nova Jaguaré e 87 no Alexandre Mackenzie.
Dentre todas as variações de tipologias e organização entre os blocos e os
complexos dos conjuntos, a pesquisa buscou uma amostra de cada um.
Apenas os resultados principais foram ressaltados neste artigo, aqueles
provenientes das questões que levantaram mais insumos para a reflexão e
75
as análises que serão evidenciadas nas conclusões.
Os três primeiros gráficos revelam que a maior parte dos moradores dos
conjuntos habitacionais eram residentes da favela do Jaguaré antes das
obras de urbanização, os quais, inclusive, quase 80% sofreram diretamente
com as obras de urbanização, através das remoções. Entretanto, quando se
Figura 2: Gráfico resultado questão 2.3.
relaciona as remoções aos motivos, os moradores em grande parte não
sabiam responder precisamente, além de, ficar claro na aplicação indireta
dos questionários um consenso em relação a ser removido e morar em
área de risco. O que revelou a falta de clareza do projeto e seus impactos
aos moradores da favela e principalmente às famílias afetadas diretamente
pelas obras em suas antigas casas. Como afirmou Giraldez (GIRALDEZ,
2014) em sua pesquisa, o assunto das remoções ainda é tratado de
maneira pouco clara por parte do poder público e da própria população.
Foi possível notar na aplicação dos questionários de maneira direta que,
essa questão poderia sofrer com grandes desvios de auto-declaração, pois
muitas vezes quando perguntados sobre o motivo da remoção, algumas das
respostas frequentes eram: “Ah deve ser área de risco, é favela ne? Toda
favela é área de risco.”. Esse argumento pronto, e descolado do contexto,
reflete um discurso sobre favelas e assentamentos precários ainda regado
de preconceito e que visa favorecer a remoção a todo custo.
Ao longo da aplicação dos questionários, principalmente quando feita de
maneira direta, surgiram pontos fora da curva, ou seja, casos muito
Figura 3: Gráfico resultado da questão 2.4.
específicos que não podem ser considerados representativos, mas que

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
ilustram bem a complexidade que envolve as questões ligadas à urbanização
de favelas, remoções e reassentamentos.
Tive a oportunidade de conversar com uma senhora do conjunto Nova
Jaguaré, a qual passou pelo processo de remoção justificado pelas obras
urbanísticas. Segundo ela, os desenhos mostravam que iria passar uma
nova rua por onde sua casa estava. Entretanto, após o termino das obras, o
projeto foi alterado e sua casa permaneceu em pé, sendo reformada e
oferecida à outra família removida. A moradora removida de sua casa não
conseguia compreender e aceita os motivos pelos quais a levaram a se
mudar para um apartamento cujo tamanho era incapaz de atender às
necessidades de sua família, e sem compreender o processo, não sabia por
onde buscar recursos para recorrer sobre seus direitos e de sua antiga casa,
que continuara no local sobre posse de outra família.
Outros casos chamaram a atenção, e, especial dois no Residencial Alexandre
Mackenzie, o primeiro envolve um caso de invasão/ocupação de um
apartamento. Uma mulher ocupou um apartamento por meios próprios,
pois sua casa, apesar de não fazer parte de maneira direta das obras de
urbanização, foi afetada por elas. Segundo relatos da moradora, após as
obras no entorno de sua residência, sua casa começou a sofrer com
inundações provocadas pelas chuvas, fato que antes não acontecia e que
segundo ela foram causados pelos intervenções físicas na vizinha de sua
casa. Ela reclamara por meios oficiais e dissera que os orgãos públicos
responsáveis pelos conjuntos habitacionais estavam cientes de sua ocupação
no apartamento, mas por ela não ter sofrido com as remoções oficialmente,
76 não era possível prever o atendimento habitacional. Atualmente ela paga
todas as contas de consumo, menos o valor do financiamento.
O segundo caso, foi de um antigo morador da favela do Jaguaré que ficou
tetraplégico no período das obras de urbanização. Ele e sua família
moravam no alto do morro, e por causa das novas limitações, sua vida ficou
muito difícil. Durante as obras de urbanização, ele conversou com os
responsáveis pelas intervenções, e conseguiu trocar sua casa por dois
apartamentos térreos no condomínio C do Alexandre Mackenzie. Segundo
ele, sua casa foi reformada e entregue para uma família que havia sido
removida.
É interessante notar, em ambos os casos, a fragilidade do controle sobre as
questões de reassentamento das famílias. Existem muitos desvios no
processo convencional, que contribuem para o não fechamento da conta,
ou para o fechamento de maneira alternativa. Além de demonstrar como
não apenas as famílias removidas são impactadas pelas obras de
urbanização.
Passados cinco anos do final das obras, e da entrega das unidades
habitacionais, era de se esperar uma margem de rotatividade dos
moradores dos apartamentos. Mesmo que legalmente isso não seja previsto
nem permitido, por outras experiências, constata-se que essa rotatividade de
ocupantes é inevitável, e ela se justifica por inúmeros motivos. A falta de
participação popular no processo de projeto, a falta de clareza no
cadastramento e distribuição das unidades, atrelados às opções unilaterais
de provisão habitacional, terão como consequência, uma grande parcela dos

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moradores dos conjuntos habitacionais insatisfeitos. Além disso, há fatores como
o custo de vida que se eleva dentro dos conjuntos, temática abordada na ultima
questão do questionário aplicado aos moradores. Quando questionados sobre
pessoas que possivelmente foram removidos e voltaram às mesmas condições
anteriores - principalmente a ocupação de áreas irregulares e inseguras, as
respostas eram seguidas de explicações. Muitos entrevistados respondiam que o
retorno se dava principalmente pela proposta única de unidade habitacional, ou
seja, as pessoas que não se acostumassem a uma modo de vida relacionado ao
edifício de apartamento, não teriam outra alternativa que não a de receber a
verba indenização e tentar retornar ao seu modo de vida anterior. Além disso,
com frequência apareceram pontuações relacionadas ao custo de vida, e como
ele se altera de maneira elevada após a mudança para as novas unidades
habitacionais. Um dos fatores principais se deve aos gastos não previstos nas
contas do financiamento, como questões relacionadas à gestão dos edifícios - as
contas de condomínio. A mudança física de uma unidade habitacional para a
outra implica, na maioria dos casos, em uma mudança comportamental, como
afirmou uma das moradoras do residencial Kenkiti Simomoto: Para morar aqui
as pessoas precisam ter muita responsabilidade, não é mais a mesma coisa,
são muitas contas para pagar. Outras questões relacionadas ao estilo de vida
das pessoas, e como as intervenções espaciais influenciam, como relatos de
pessoas que possuíam comércio antes das obras de urbanização, e com a
mudança para as unidades habitacionais dos apartamentos, perderam sua fonte
de renda. Por isso, muitas delas preferiram o valor da indenização ou vender
posteriormente os apartamentos, para se reestabeleceram com seu comércio
dentro da favela.
Essa questão se relaciona diretamente com a rotatividade dos moradores das
77
unidades habitacionais dentro dos conjuntos. Não apenas por tratar de maneira
direta um universo de terceiros moradores, mas porque, o valor dos aluguéis
oferece uma tendência de ocupação dentro dos conjuntos. Relativamente altos e
com um claro grau hierárquico de valorização entre eles, o valor dos aluguéis dos
apartamentos dentro dos três conjuntos variou de R$ 320,00 por mês a R$
900,00. Demonstrando uma ocupação por públicos de poderes aquisitivos
distintos, é possível aferir que as obras de urbanização trouxeram valorização
imobiliária para a região, como já constatado pela Gabriela Giraldez em sua
pesquisa, e com isso, consequentemente, uma troca de público nessas
ocupações. Em alguns dos casos, principalmente no Alexandre Mackenzie, foi
possível identificar, através de conversas, que muitos aluguéis eram pagos com o
valor do Auxílio Aluguel, mas que esse se mostrava insuficiente, sendo necessária
a complementação do benefício para o pagamento do aluguel.

3. C ONCLUSÕES
Apesar de a pesquisa focalizar seus estudos em um período de intervenção
específico - 2005 a 2010, ficou claro que compreender os projetos anteriores a
esse, trariam uma visão mais clara sobre o cenário imposto para o inicio das
obras de urbanização. Ademais, parte dos insumos base para essa pesquisa,
como o cadastramento dos moradores, fora produto de outros períodos de
intervenção. A proposta inicial de aplicação dos questionários com os atuais
moradores dos conjuntos era de se obter uma base adicional de dados

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
primários. Além de se entender que, passados cinco anos do processo de
urbanização, possivelmente o cenário encontrado diferiria da base de dados
secundários e oficiais. Para mais, a busca por outras fontes de informações
previa, de antemão, a inacessibilidade de dados oficiais no que diz respeito ao
cadastramento das famílias e ao destino das novas unidades habitacionais. Essa
premissa se validou ao longo da pesquisa, uma vez que o acesso aos dados
cadastrais e ao destino exato das famílias se mostrou inviável. Entretanto, essa
falta de informação se configurou como uma informação muito importante para
a conclusão da pesquisa, visto que, ao final desta foi possível afirmar sobre a falta
de clareza e transparência em relação aos esses dados. A omissão dessas
informações traz muito prejuízo em relação ao entendimento completo sobre o
processo de urbanização ocorrido na favela Nova Jaguaré. Essa falta de controle
e transparência sobre os processos de remoção, realocação e distribuição de
novas unidades habitacionais produzidas dentro da favela, contribui para um
planejamento frágil sobre a questão habitacional, e, portanto dificulta
grandemente o suprimento do déficit habitacional da cidade de São Paulo.
Os resultados obtidos através da aplicação dos questionários serviram muito mais
como base de reflexão e análises qualitativas, uma vez que se estava consciente
sobre a grande possibilidade da ocorrência de desvios por autodeclaração.
Entretanto, apesar de numericamente não representar de maneira expressiva a
realidade dos conjuntos habitacionais e da população ali residente, trouxe a tona
objetos de análises muito interessantes, e que não estavam previstos inicialmente
nesse projeto de pesquisa. Muitos desses objetos de análise surgiram através de
conversas que extrapolaram as seis questões elaboradas para o questionário, o
78 que possibilitou a descoberta e a compreensão de muitas exceções dentro dos
conjuntos habitacionais, que revelaram situações pontuais com grande poder de
ilustração sobre a complexidade da urbanização de favelas e as possíveis
respostas, ou falta delas, que o poder público pode oferecer. Essas exceções
acarretaram em grandes reflexões pessoais sobre o alcance dos processos
participativa em uma obra de urbanização de favelas, e quais os problemas que
ele poderia sanar ao longo da obra e no pós-obra. Entretanto, sabe-se que para
de fato ocorrer um processo participativo, um dos elementos chaves é a clareza
das tomadas de decisões e da forma de atuação, além, claro, de uma demanda
muito maior para o tempo de execução da obra, elemento que não cabe nos
cronogramas políticos. Essa falta de atuação em um campo mais próximo da
realidade torna, muitas vezes, o projeto descontextualizado e sem resposta aos
problemas reais.
Por fim, conclui-se que a compreensão de um projeto de urbanização de favelas
demanda clareza de dados e disponibilidade de informações. Sem uma base
sólida de análise sobre a forma de atuação e de resolução de questões no que
diz respeito, principalmente a, remoção, realocação e distribuição das unidade
habitacionais produzidas, fica muito difícil se aproximar da real política de
intervenção em favelas. Propor novas soluções sem os insumos necessários para
a produção de críticas concretas torna-se um exercício descolado da realidade.
Abrir espaço para ouvir os moradores e entender as questões intrínsecas ao
processo de urbanização de favelas é um elemento chave, e deve ser
considerado primordial para a compreensão das questões habitacionais e das
melhores formas de atuação. Só assim, se conseguirá formular políticas que
auxiliem no suprimento, de fato, do déficit habitacional.

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4. R EFERÊNCIAS
BARROS, Gabriela Giraldez. Remoções provenientes do processo de urbanização de favelas no
município de São Paulo (2005-2010): o caso do Jaguaré. Relatório de Iniciação Científica CNPq. São
Paulo, Julho de 2014.
DENALDI, Rosana. Políticas de urbanização de favela: evolução e impasses. Tese de Doutorado. São
Paulo, 2003.
FACHINI, Luiz Fernando Arias. Estruturação espacial urbana: Favela Nova Jaguaré. Dissertação de
Mestrado Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2014.
FREIRE, Luis Mauro. Encostas e favelas: deficiências, conflitos e potencialidades no espaço urbano da
favela Nova Jaguaré. Dissertação de Mestrado FAU-USP. São Paulo, USP, Setembro de 2006.
KOWARICK, Lúcio. Viver em risco - Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo:
Editora 34, 2009.
SAMPAIO, M. Ruth; PEREIRA, P. C. Xavier. Habitação em São Paulo. Estudos Avançados, vol 17, nº 48.
São Paulo, 2003.
SATO, Bruna A. A. Estudos dos impactos das remoções de famílias por intervenções urbanísticas na
Favela Nova Jaguaré. Relatório de Iniciação Científica Pró - Reitoria de Pesquisa USP. São Paulo,
Fevereiro de 2013.
TASCHNER, Suzana Paternak. Favelas: fatos e políticas. Revista Espaço & Debate, nº 18, ano VI. São
Paulo, 1986.
TRENTO, Márcia. Estudo dos projetos e intervenções de urbanização na Favela Nova Jaguaré.
Relatório de Iniciação Científica CNPq. São Paulo, Agosto de 2011.
ZUQUIM, Maria de Lourdes. Urbanização de assentamentos precários no município de São Paulo:
quem ganha e quem perde? II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Arquitetura e Urbanismo. Natal, Setembro de 2012.

79

Lais Boni Valieris


Aluno de graduação da FAUUSP.

Lais Boni Valieris – Os moradores dos conjuntos habitacionais da Favela Nova Jaguaré e
suas relações com a população local – p. 66-79
ANÁLISE DE LUGARES PÚBLICOS
NA METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA:
ESTUDO DE CASO SOBRE A PRAÇA
SÍLVIO ROMERO, SÃO PAULO – SP

Teresa Cristina Barroso Vieira


Orientador: Prof. Dr. Eugenio Fernandes Queiroga

80 Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar comparativamente as apropriações
públicas da Praça Sílvio Romero, tradicional espaço público, e do
Shopping Tatuapé, potencial lugar público. Investigam-se seus papéis na
constituição da esfera pública local, tendo em vista o sistema de objetos
e o tipo de propriedade dos espaços supracitados. Ambos os objetos
de estudo estão localizados no bairro do Tatuapé, na cidade de São
Paulo.

Palavras-chave
Espaço público, Esfera pública, Praças, São Paulo.

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1 I NTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa de Iniciação Científica
intitulada de Análise comparativa de lugares públicos na metrópole
contemporânea: estudo sobre a Praça Sílvio Romero e o Shopping Tatuapé,
São Paulo – SP, realizada entre julho de 2015 e agosto de 2016 na FAUUSP,
com fomento do CNPq.
Inicialmente buscou-se analisar comparativamente as apropriações públicas da
Praça Sílvio Romero e do Shopping Tatuapé, tendo em vista o sistema de objetos
e o tipo de propriedade dos diferentes espaços. Ambos os objetos de estudo
localizam-se no bairro do Tatuapé, na cidade de São Paulo.
A Praça Sílvio Romero, um tradicional espaço público, foi definida como objeto
empírico desta pesquisa por sua importância simbólica e histórica para a Zona
Leste de São Paulo. A escolha do Shopping Tatuapé, por sua vez, deveu-se à
hipótese de que este fosse um potencial lugar público contemporâneo. Explica-se,
o Shopping Tatuapé está integrado à Estação Tatuapé de Trem, linhas Coral e
Safira, e Metrô, linha Vermelha, por onde circula a maior demanda de usuários
do sistema metroviário. É segmentado em dois empreendimentos, Shopping
Metrô Tatuapé e Shopping Metrô Boulevard Tatuapé, um em cada lado da
Avenida Radial Leste. A princípio, levantou-se a hipótese de que o Shopping 81
Tatuapé, de forte apelo popular, funcionasse como ponto de encontro de
diferentes “tribos urbanas”, a despeito de sua propriedade particular e de suas
funções primeiras de compras e serviços.
Foram realizadas sucessivas visitas de campo ao Shopping Tatuapé, em dias e
horários diversos. Contudo, a hipótese inicial de que este era ponto de encontro
de diferentes “tribos urbanas”, ou seja, apesar de sua propriedade privada
possuía apropriações públicas diversas de seu espaço, não se confirmou. Desta
maneira, o Shopping Tatuapé reafirmou seu caráter de espaço privado e
controlado, com uso exclusivo para as funções de compras, serviços e
entretenimento. Por este motivo, descartou-se a investigação do Shopping
Tatuapé enquanto lugar público e deu-se sequência à pesquisa analisando
exclusivamente a Praça Sílvio Romero. Assim sendo, o presente artigo apresenta
resultados e análises relativos à Praça Sílvio Romero.
A Praça Sílvio Romero, um tradicional logradouro público, possui uma forte
relação com seu espaço adjacente. A análise conjunta da praça – uma
propriedade pública – e de seu entorno – propriedades privadas - resulta em
um espaço complexo, de propriedades públicas e privadas, e nos permite analisar
a praça e seu entorno enquanto “lugar público”. Desta forma, a Praça Sílvio
Romero, além de tradicional espaço público, se considerada conjuntamente com
seu entorno imediato, também se constitui num espaço de apropriações públicas
mais complexas, um lugar público contemporâneo. Interessa a este trabalho a
investigação da Praça Sílvio Romero enquanto lugar público.

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
2 M ETODOLOGIA
A pesquisa teve início com o aprofundamento teórico de sua temática por meio
de revisão bibliográfica. As principais referências teóricas deste trabalho são os
estudos de Milton Santos (2004), Sun Alex (2008) e Eugenio Queiroga (2012)
acerca do espaço, de praças e da esfera de vida pública e de lugares públicos,
respectivamente.
Na sequência, fez-se uma leitura urbana da Praça Sílvio Romero, de maneira a
aprender as formas de relação do homem com este lugar público. Para tanto,
foram realizadas sucessivas visitas de campo à Praça Sílvio Romero, em dias e
horários distintos ao longo do ano.
A leitura urbana da Praça Sílvio Romero teve como referência metodológica o
trabalho de Rupf (2015), que investiga lugares públicos no centro de São Paulo.
A autora propõe a análise dos objetos de estudo segundo os seguintes aspectos:
breve contexto histórico; acessibilidade e atratividade em relação à inserção
urbana; uso e ocupação do solo do entorno; relações de troca com o entorno e
principais fluxos; sistema de objetos e sistema de ações.
Por fim, os dados levantados em campo foram sistematizados e analisados
visando à compreensão das apropriações públicas da Praça Sílvio Romero.
Investigou-se de que maneira o sistema de objetos da praça, a morfologia
urbana e os usos de seu entorno influenciam tais apropriações.

82 3 F UNDAMENTAÇÃO TEÓR ICA


Nesta seção serão brevemente expostos três conceitos fundamentais para esta
pesquisa: espaço (SANTOS, 2004); esfera pública política a geral (QUEIROGA,
2012); e lugar público (QUEIROGA, 2012).

3.1 Espaço
Na Obra de Milton Santos percebemos sucessivas aproximações ao conceito de
espaço geográfico. Em Por uma Geografia Nova, o autor define espaço
geográfico como um conjunto de fixos e fluxos:
Os elementos fixos, fixados em cada lugar, permitem ações que modificam o
próprio lugar, fluxos novos ou renovados que recriam as condições ambientais
e as condições sociais, e redefinem cada lugar. Os fluxos são um resultado
direto ou indireto das ações e atravessam ou se instalam nos fixos, modifican-
do sua significação e o seu valor, ao mesmo tempo em que, também, se
modificam.
Desta forma, a realidade geográfica é expressa por meio de fixos e fluxos
imbricados, que aparecem conjuntamente como um objeto possível à geografia.
Em Metamorfoses do Espaço Habitado, por sua vez, Milton Santos trabalha o
conceito de espaço geográfico a partir de outro par de categorias: a configuração
territorial e as relações sociais:
A configuração territorial é dada pelo conjunto formado pelos sistemas naturais
existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos que os
homens superimpuseram a esses sistemas naturais. (...) A configuração
territorial, ou configuração geográfica, tem, pois, uma existência material

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própria, mas sua existência social, isto é, sua existência real, somente lhe é
dada pelo fato das relações sociais (SANTOS, 2004, p.62).
A partir dos ensaios anteriormente apresentados, Milton Santos formula, então,
uma terceira definição para o objeto de estudo da geografia. Segundo o autor,
cabe a esse campo disciplinar estudar o espaço enquanto conjunto indissociável
de sistemas de objetos e sistemas de ação:
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também
contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá. (...) Siste-
mas de objetos e sistemas de ações interagem. De um lado, os sistemas de
objetos condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o
sistema de ações leva à criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos
preexistentes. É assim que o espaço encontra a sua dinâmica e se transforma
(SANTOS, 2004, p.63).

3.2 Esfera Pública Política e Geral


Eugenio Queiroga (2012) destaca que, muitas vezes, os conceitos de “esfera
pública” e “espaço público” são tratados como sinônimos e empregados de
maneira indistinta. O autor, apoiado nos estudos de Hannah Arendt (2004) e
Jürgen Habermas (1984 e 2007), discute o conceito de “esfera pública”,
relacionando-o e diferenciando-o da noção de “espaço público”, para, por fim,
propor o conceito de “esfera pública geral”.
Atribui-se a Hannah Arendt (2004) a primeira definição do conceito de esfera de
vida pública, ou simplesmente esfera pública. A autora “denomina vita activa às
três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação” (QUEIROGA, 2012, 83
p.36). Ao labor dizem repeito os processos biológicos do corpo físico dos
homens, cuja condição humana é a própria vida. Ao trabalho, por sua vez, estão
relacionadas às atividades próprias da “mundanidade”, do artificialismo da
existência humana. Por fim, relaciona-se a ação o estar na presença de outros e
a participação política na vida pública. O labor e o trabalho correspondem à
esfera de vida privada. A esfera de vida pública, por sua vez, refere-se,
fundamentalmente, a ação (política).
Ao contrário de Arendt, que propõe esfera pública como um conceito estrito e
relacionado à ação política, Jürgen Habermas (1984) discorre sobre várias
esferas públicas:
a burguesa (dominante) e a plebeia, a política e a politicamente ativa (esta
última, a rigor, pode ser considerada como equivalente ao conceito arendtiano
de esfera pública), literária, democrática, plebiscitária, interna à organização,
regulamentada, parlamentar, manipulada, helênica, refeudalizada, esfera
pública da Corte, da grande família etc. (QUEIROGA, 2012, p.40).
Desta maneira, o autor evidencia que o conceito de esfera pública não é puro e
absoluto, como sugerido por Arendt, mas construído e caracterizado
historicamente. Para Habermas (1984), um mesmo momento histórico admite
múltiplas esferas públicas, relacionadas ao domínio da cultura, “do cotidiano às
artes” (QUEIROGA, 2012, p.42).
Em Entre naturalismo e religião (2007), Habermas apresenta duas categorias de
esfera pública, uma de caráter geral e outra de caráter específico. A primeira diz

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
respeito às questões de representação do indivíduo (espaço de
autorrepresentação) e de grupos sociais de diferentes naturezas (gênero,
comunidades, classes sociais etc.). A segunda, denominada de “esfera pública
política”, se aproxima a noção arendtiana de “esfera pública”, por referir-se à ação
(política). “Para Habermas (2006, p. 28-29), a esfera pública política se constitui
nas ações atinentes ao debate político, filosófico, científico e artístico” (QUEIROGA,
2012, p.48).
Queiroga adota em sua tese de livre-docência a expressão “esfera pública política”
com o mesmo sentido utilizado por Habermas. Por outro lado, propõe
denominar-se de “esfera pública geral”:
(...)toda a vida “em público”, incluindo, portanto, o debate público (político e
intelectual), a ação comunicativa, inclusive cotidiana, e qualquer outra ação que
se compartilhe “em público”, seja no espaço real, seja no virtual. Não se trata,
desse modo, de uma relação de oposição entre esfera pública política (esfera
pública em sentido estrito) e esfera pública geral. A esfera pública geral inclui a
esfera pública política, não apenas como um conjunto que contém outro
conjunto, mas sistêmica e dialeticamente, de sorte que o que ocorre numa
esfera modifica a outra e vice-versa, em movimento dialético entre todo (esfera
pública geral) e parte (esfera pública política) (QUEIROGA, 2012, p.49).
Observa-se que na definição de Queiroga (2012) a esfera pública política
aparece apenas como parte, ainda que fundamental, da esfera pública geral. Essa
definição também reconhece qualidades da vida pública mesmo em ações não
intencionalmente políticas, como as cotidianas.
O convívio público, voluntário ou involuntário, possui um grau de civilidade que,
84 em harmonia ou em conflito, já se constitui parte da vida pública, integrante
da esfera pública geral. A vida em público é já um importante elemento para
a consciência da alteridade, base potencial para a ação (política) arendtiana,
ou comunicativa habermasiana. Nesse sentido, a esfera pública política –
esfera pública stricto sensu – seria como a ponta de um iceberg, cuja
totalidade inclui compreender toda a vida em público, a esfera pública geral –
esfera pública lato sensu (QUEIROGA, 2012, p.49).
Queiroga (2012) também destaca a importância de se distinguir entre os
conceitos de “esfera de vida pública” e “espaço público”, por vezes utilizados
como sinônimos nas áreas da filosofia política, sociologia e ciência política. O
primeiro é campo das “relações sociais do mundo vivido, desde a vida familiar
(esfera íntima habermasiana) à pública política (esfera pública arendtiana)”, ao
passo que o segundo, “é uma instância social híbrida entre materialidade e ação”
(QUEIROGA, 2012, p.57) de propriedade pública, podendo prestar-se, ou não,
as práticas espaciais da esfera da vida pública.
As práticas espaciais da esfera pública, denominadas espacialidades da
esfera pública (QUEIROGA, 2006, p. 131-141), ainda que majoritariamente se
deem nos espaços livres públicos, sobretudo nos bens de uso comum do
povo, podem se realizar em diferentes espaços: livres ou edificados, públicos
ou privados. A esfera pública geral, ou mesmo a esfera pública política, se
efetiva, portanto, em um amplo sistema de espaços, com maior ou menor
intensidade neste ou naquele lugar (QUEIROGA, 2012, p.59).
A citação acima evidencia que a proposta conceitual de Queiroga (2012) não
impõe a obrigatoriedade de vincular-se esfera pública a espaço público. Desta
maneira, o autor amplia o escopo de análise da esfera pública contemporânea,

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que pode ser apreendida onde e quando vier a se manifestar: em espaços livres
ou edificados, de propriedade pública ou privada. Para Queiroga (2012) o
principal é compreender as apropriações espaciais da esfera de vida pública, e
em que medida o sistema de objetos dos locais onde elas se dão estimulam ou
limitam determinadas ações da vida pública.

3.3 Lugar público


A partir dos conceitos de “esfera pública geral” e “espaço”, anteriormente
expostos, Queiroga (2012) define “lugar público”:
“(...) propõe-se considerar “lugar público” todo aquele em que se estabelece a
esfera pública – geral ou estrita –, independentemente de se tratar de
propriedade(s) pública(s) ou privada(s), visto que o lugar público se estabele-
ce com frequência combinando espaços tanto da propriedade privada quanto
da pública” (QUEIROGA, 2012, p.215).
Queiroga salienta, ainda, que nem todos os espaços públicos constituem-se em
lugares públicos. Explica-se, “uma penitenciária, uma usina nuclear, uma estação
rebaixadora de voltagem ou um aterro sanitário” (QUEIROGA, 2012, p. 216),
por exemplo, ainda que possam pertencer juridicamente a um ente público, não
são locus da esfera de vida pública, não sendo, portanto, lugares públicos.
Outro aspecto digno de nota é que nem todas as ações da esfera pública se
manifestam nos lugares públicos. A internet, por exemplo, é um meio virtual que
se presta tanto à esfera de vida privada quanto à pública. “Outras ações da
esfera pública podem se realizar em redes mais complexas, envolvendo meios
virtuais e reais não contíguos” (QUEIROGA, 2012, p.216).
85

4 L EITURA URBANA DA PRAÇA SÍLVIO ROMERO

4.1 Contexto Histórico


1 Segundo Ponciano (2002) o Embora Ponciano (2002) afirme que a fundação do bairro do Tatuapé remonte
bairro do Tatuapé foi fundado em as primeiras décadas da colonização brasileira1 , é apenas na Planta da Cidade de
1560 por Brás Cubas durante
expedição ao planalto em busca
São Paulo de 1914 que esta região é mapeada pela primeira vez. Já nesta planta
de ouro na sua sesmaria. é possível observar a área da atual Praça Sílvio Romero denominada, então, de
Praça da Conceição.
É apenas em 11 de abril de 1931, por meio do Ato nº 139, que a Praça Sílvio
Romero recebe este nome. Antes disso, este logradouro era conhecido como
Praça da Conceição por conta de uma pequena capela dedicada a Imaculada
Conceição que existia no local. Posteriormente esta capela foi demolida e em seu
lugar foi edificada a Igreja Nossa Senhora da Conceição, inaugurada em 1960 e
que permanece até os dias de hoje no centro da Praça Sílvio Romero.
No período entre sua formação e o início do século XX, o bairro do Tatuapé
conservou-se como predominantemente agrícola. Além da criação de gado –
bovino e suíno – desenvolveram-se algumas culturas no bairro, dentre as quais
destacamos cana-de-açúcar e uva para a produção de vinho.
Entre 1910 e 1920, enquanto os bairros vizinhos – Brás, Belém e Mooca – já
estavam saturados de indústrias, o Tatuapé possuía diversas chácaras, ideais para

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estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
a necessária expansão das indústrias oriundas destes outros bairros. Assim
sendo, em meados dos anos 1930 tem início a industrialização do Tatuapé.
Se por um lado o Tatuapé mostrava-se atrativo às atividades industriais, por conta
Figura 1. Pormenor da Planta da grande disponibilidade de terras e da ferrovia, por outro, possuía uma
da Cidade de São Paulo de infraestrutura urbana ínfima, se comparado aos bairros vizinhos. Neste sentido, a
1914. Fonte:
smdu.prefeitura.sp.gov.br/ .
industrialização do bairro foi de suma importância para a sua urbanização, pois

86

Figura 2. Foto da antiga Praça


da Conceição com a Capela
dedicada à Imaculada Conceição
ao fundo. Fonte:
alotatuape.com.br.

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junto das fábricas vieram os postes, cabos elétricos e transformadores, lâmpadas
e asfalto, rede de água e esgoto canalizado.
É com a industrialização do bairro que se dá o processo de urbanização,
principalmente após os anos 40, que são realizadas obras de infra-estrutura,
que são instalados os primeiros equipamentos urbanos e que se desenvolve o
comércio local, especialmente em torno da Praça Sílvio Romero (ENDRIGUE,
2008, p.105).
A partir dos anos 1970, em consonância com o processo de descentralização
industrial do município, muitas fábricas do Tatuapé migraram para outros
municípios da Região Metropolitana ou do Estado de São Paulo. Aos poucos, as
edificações destas plantas industriais foram sendo demolidas, abrindo espaço
para o ‘boom imobiliário’ do Tatuapé – enorme expansão dos setores de
comércio, serviços e residencial vertical, com empreendimentos voltados,
sobretudo paras as classes médias e alta (ENDRIGUE, 2008).
Em novembro de 1981, é inaugurada a estação Tatuapé do metrô, situada a
apenas 900 metros da Praça Sílvio Romero. Esta estação permaneceu como
terminal do ramal leste até 1986, quando foram inauguradas as estações Carrão
e Penha (ENDRIGUE, 2008, p.108):
A linha do metropolitano não somente iria reforçar a divisão espacial do bairro,
mas, do ponto de vista socioeconômico, determinaria o desenvolvimento de
toda região. A oferta de transporte rápido e de qualidade, que representa o
metrô, valorizou a região do Tatuapé no início da década de 80 em detrimen-
to das demais áreas ao leste, além de acelerar a formação de uma forte
centralidade alguns metros da estação, a qual já vinha se configurando desde
os anos 70: a Praça Sílvio Romero (ENDRIGUE, 2008, p.108).
Em janeiro de 2008, o Boletim da Subprefeitura da Mooca já anunciava a
87
reforma da Praça Sílvio Romero. Contudo, a última só ocorreu no ano de 2014.
Na revitalização, o calçamento foi substituído por um piso de concreto estampado
em três tonalidades. Os canteiros foram reformados e receberam novo
ajardinamento, totalizando 5000 m2 de áreas verdes na praça. O sistema de
iluminação foi revisto e foram instalados quarenta novos bancos. Neste mesmo
ano, a Praça Sílvio Romero foi contemplada, ainda, pelo programa “Wi-Fi Livre”,
permitindo que até 100 usuários se conectem à sua rede de internet
simultaneamente (Gazeta Virtual, 2015).

4.2 Contexto – acessibilidade e atratividade


A Praça Sílvio Romero está localizada em uma área de fácil acesso, seja por
transporte público ou privado. Suas quatro ruas delimitadoras são abertas ao
trânsito de veículos particulares que, por meio de Zona Azul, podem estacionar
em seu perímetro. O acesso via transporte público, por sua vez, se dá através de
três diferentes modais, concentrados no Complexo do Shopping Tatuapé, a
saber: Estação Tatuapé da CPTM – Linhas Coral e Safira; Estação Tatuapé de
Metrô – Linha Vermelha; e Terminal de Ônibus Tatuapé. Outra possibilidade de
acesso via ônibus é por meio do ponto localizado na própria praça, à Rua
Coelho Lisboa.
Kevin Lynch (1997) define “pontos nodais” como pontos estratégicos de uma
cidade, focos intensivos para os quais ou a partir dos quais as pessoas se

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
Figura 3. Contexto Geral, Praça
Sílvio Romero. Sem escala.
Fonte: Intervenção da autora
sobre imagem do Google Earth

locomovem. O Complexo do Shopping Tatuapé pode ser considerado um ponto


nodal, não por abrigar um centro de compras, mas por concentrar, em um único
local, três diferentes modais do sistema público de transportes. Situar-se a apenas
88 900 m. desse ponto nodal é extremamente vantajoso para a Praça Sílvio Romero,
pois garante um grande fluxo de pessoas em seus arredores.
É oportuno comentar ainda que do Terminal de Ônibus Tatuapé partem ônibus
do Airport Bus Service com destino direto ao Aeroporto Internacional de São
Paulo – Guarulhos. Apenas sete Terminais no município de São Paulo,
estrategicamente localizados, oferecem esse serviço. O fato de o Terminal Tatuapé
ser um dos poucos em São Paulo a oferecer uma conexão direta com o
Aeroporto de Guarulhos, reforça o status do bairro do Tatuapé como importante
centralidade da Zona Leste e da cidade de São Paulo.

4.3 Tecido urbano – uso e ocupação do solo


O uso do solo predominante no entorno da Praça Sílvio Romero é comercial e
de serviços. Dentre as edificações lindeiras à Praça, essa tendência é ainda mais
forte, existindo apenas quatro exceções de uso institucional. Nos edifícios com
mais de um pavimento é comum o térreo abrigar lojas ou agências bancárias e
os pavimentos superiores, escritórios.
Na medida em que avançamos em direção ao bairro, aumenta significativamente
o número de edificações residenciais, muitas delas, inclusive, em torno de vilas,
cujo acesso é restrito aos seus moradores. É relevante o número de instituições
bancárias, estabelecimentos do setor alimentício e salão de cabeleireiros na área –
ao menos um por quarteirão.
No tocante à tipologia das edificações lindeiras à Praça Sílvio Romero, podemos
afirmar que estas não possuem recuos laterais ou frontal. A inexistência de

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Figura 4. Mapa de uso do solo.
Fonte: Elaboração da autora.

89

Figura 5.. Mapa de gabarito.


Fonte: Elaboração autora.

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estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
recuos confere continuidade ao conjunto edificado no nível do térreo, de forma
que o caminhar do pedestre é sempre acompanhado por um corredor de
baixas edificações de fachada contínua. Eventuais espaços não edificados no
interior das quadras são decorrentes de recuos posteriores ou das mencionadas
vielas, já que não foram observados terrenos vagos na área.
A maior parte das edificações possui dois pavimentos resultando em uma relativa
unidade volumétrica no tangente aos gabaritos. A segunda tipologia mais comum
na área são as casas térreas. A predominância de baixos gabaritos faz com que
as raras construções verticais se sobressaiam no entorno da Praça Sílvio Romero.
Dentre essas exceções, gostaríamos de destacar o Edifício Terraza Office Loft,
localizado na Rua Padre Adelino. O edifício, que teve sua construção completa no
ano de 2005, possui 10 andares, o que faz com que destoe em relação às
construções adjacentes. Em seu térreo encontram-se um salão de cabeleireiros e
uma loja, e nos demais andares pequenas e médias empresas.

4.4 Permeabilidades
A Praça Sílvio Romero, de formato retangular e praticamente plana, é limitada por
quatro vias: Rua Padre Adelino ao norte; Rua Serra de Bragança ao sul; Rua
Coelho Lisboa a leste; e Rua Tuiuti a oeste. Tais vias possuem faixa de pedestres e
semáforo, oferecendo boas condições de travessia ao pedestre. As entradas da
praça também são rebaixadas e sinalizadas por piso tátil, o que facilita o acesso
de cadeirantes e deficientes visuais.
O maior fluxo de pedestres ocorre na Rua Tuiuti, onde está localizada a Praça
90 Sílvio Romero e também o Complexo do Shopping Tatuapé, importante ponto
nodal. Durante o horário comercial, o percurso entre ambos é extremamente
dinâmico e animado. Das lanchonetes, lojas de doces, de vestuário e acessórios
da Rua Tuiuti, toldos se projetam na calçada, promovendo abrigo para os
pedestres em dias ensolarados ou chuvosos. É grande o número de transeuntes
que apressados passam ou param para olhar as vitrines do comércio
diversificado. Misturados a eles, anunciantes de porta de loja divulgam ofertas
imperdíveis e bancas de vendedores ambulantes ocupam parte da calçada. Os
horários de maior movimento são o almoço, o início e o fim do expediente.
O fluxo de veículos mais intenso também se concentra na Rua Tuiuti, seguida pela
Rua Padre Adelino. Durante todo o dia, a Rua Tuiuti, importante via de conexão
entre a Avenida Radial Leste e o bairro, apresenta um intenso e constante fluxo
de ônibus e carros. A Rua Padre Adelino, por sua vez, possui um menor fluxo de
veículos, mas é mais congestionada em virtude do demorado ciclo de seu
semáforo. Esta via permite o acesso às Avenidas Salim Farah Maluf e Marginal
Tietê, e ao bairro do Belenzinho.
O suave declive, praticamente imperceptível, e a continuidade de pisos da Praça
Sílvio Romero fazem com que o caminhar do pedestre em seu interior seja fluído
e tranquilo. Muretas de cerca de 20 centímetros de altura delimitam de forma
clara os caminhos e os canteiros da praça, e também inibem o acesso da
população a estes últimos espaços.
Se por um lado não foi percebido nenhum projeto paisagístico de plantio para a
praça, por outro, o desenho de seus canteiros mostrou-se conveniente para o
fluxo de passantes do local. Apesar de suas grandes dimensões, os canteiros não

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Figura 6. Diagrama de fluxos.
Fonte: Elaboração da autora.

constituem empecilhos ao pedestre, de forma que não se observou nas visitas de


campo pessoas atravessando os canteiros para “cortar” caminho. Esses se
revelaram vantajosos até para os passantes, pois a copa de suas árvores garante
um caminhar mais agradável em dias quentes e ensolarados.
Os caminhos no interior da praça são relativamente largos, permitindo o
deslocamento de cadeirantes e grupos. Sua largura uniforme demonstra uma
ausência de hierarquia entre os caminhos, criada espontaneamente pelo fluxo de
pedestres no local. Bancos em seu perímetro convidam os passantes a breves ou
91
prolongadas pausas e permanências.

4.5 Sistema de objetos


A implantação da Paróquia Nossa Senhora da Conceição contribui para a
configuração de cinco subespaços distintos na Praça Sílvio Romero, a saber: 1)
amplo espaço livre à sua frente, alimentado por intenso fluxo de passantes; 2)
espaço de permanência em sua lateral direita, com canteiros arborizados, bancos
e Wi-Fi livre; 3) área nos fundos da Igreja, que conta com
quatro pequenos comércios, os canteiros de maiores
dimensões da praça e muitos bancos; 4) espaço livre a sua
esquerda de tímidas passagens e permanências, equipado
com bancos e poucos canteiros; 5) por fim, área de
permanência com mobiliário de concreto à sua frente.
Além da Igreja, de implantação central, a Praça Sílvio
Romero possui quatro lojas, localizadas nos fundos da
Igreja; três bancas de jornais; trailers de lanches; base da
polícia militar e um monumento à paz. O local também é
servido por um ponto de ônibus com cobertura, bancos e
informações sobre itinerário, e um ponto de táxi.

Figura 7. Subespaços da Praça Sílvio Romero. A praça possui piso pavimentado e sua vegetação está
Fonte: Elaboração da autora. restrita a canteiros claramente delimitados. É bastante

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
Figura 8. Sistema de objetos da
Praça Sílvio Romero. Fonte:
Elaboração da autora.

arborizada, predominando árvores de pequeno e médio porte. Pouquíssimos


arbustos foram encontrados. A distribuição e a escolha das espécies vegetais
parecem aleatórias, de forma que nenhum projeto paisagístico de plantio foi
percebido. É frequente a observação nos canteiros de áreas com terra, no lugar
de grama, devido à incidência de sombra.
A praça apresenta postes de iluminação tanto em seu perímetro como em seu
92
interior, sendo os últimos mais baixos e situados sob a copa das árvores, de
forma a garantir uma boa iluminação. Todos os postes possuem lixeiras plásticas,
a maioria em bom estado de conservação. Observou-se pouco lixo no chão e
poucas folhas caídas nos canteiros, o que pode indicar manutenção frequente.
A praça dispõe ainda de: Wi-Fi livre e em bom funcionamento; muitos bancos de
formato curvo; telefones públicos em seu perímetro; dois postos de coleta de
material reciclável; e alguns jogos de mesas e cadeiras de concreto.

4.6 Sistema de ações

Diferentes horários e períodos do ano


Durante todo o horário comercial há um constante fluxo de pessoas transitando
e em breves ou prolongadas permanências na praça. O horário de almoço
configura-se como o de maior movimento, principalmente pelo grande número
de estabelecimentos do setor alimentício e de trailers de lanche no local. Devido à
proximidade com a estação Tatuapé de trem e metrô, os horários de começo e
final de expediente também apresentam consideráveis fluxos de passantes.
O Cursinho Objetivo, localizado à Rua Tuiuti, possuí três turmas em diferentes
períodos: matinal; vespertino; e noturno. Antes e depois de cada período letivo,
assim como durante seus respectivos intervalos, é comum encontrarmos alunos
do cursinho na praça, conversando ou lendo. Outra entidade que atrai
frequentadores para a Praça Sílvio Romero é a Paróquia Nossa Senhora da
Conceição, situada em seu centro. Além dos tradicionais cultos aos sábados e

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domingos, aos quais comparece o maior número de fiéis, a igreja possui ainda
cultos às terças e sextas-feiras, no período da manhã, às quintas-feiras, no
horário de almoço e às quartas-feiras, no período da noite. Estes cultos, durante
a semana e em horários alternativos, aumentam o número de fiéis da Igreja e
enriquecem o convívio da praça, na qual ela se insere.
Foi observada uma boa diversidade de usuários na praça, com um equilíbrio
entre homens e mulheres, casais e grupos, de diversas faixas etárias. Durante a
semana, a maioria dos frequentadores que permanecem têm de 16 a 40 anos.
Os subespaços 2 e 4 são os mais apropriados por estes usuários, quando em
grupos ou sozinhos. Casais, por outro lado, costumam se concentrar na área
situada atrás da Igreja – subespaço 3 – de menor movimento e equipada com
muitos bancos. Outro grupo significativo encontrado de forma recorrente na
praça são os idosos. Estes se localizam, preferencialmente, no subespaço 5, à
direita da igreja, que possui mesas e banquinhos de concreto utilizados para o
jogo de cartas ou dominó. Aos finais de semana, somam-se aos grupos
supracitados famílias que costumam se concentrar nos subespaços 2 e 4, e
crianças que brincam na escadaria em frente a igreja antes e após os cultos.
O comércio e os serviços no entorno da Praça Sílvio Romero garantem a
presença de usuários no local durante todo o horário comercial. No período
noturno, contudo, são os trailers de lanche que mantém o movimento na praça,
reunindo colegas para comer cachorro-quente, após o expediente de trabalho
ou o término das aulas do cursinho. Muito antes da onda de “food trucks” em
São Paulo, a Praça Sílvio Romero já era conhecida por sua comida de rua.
Inclusive, a maior parte das postagens em redes sociais relacionadas à Praça diz
respeito ao seu tradicional cachorro-quente.
93
Sobre os diferentes períodos do ano, pontua-se que a cobertura vegetal da
praça cria um clima agradável e ameno em dias de forte calor. Mesmo em
horários de sol intenso, as permanências prolongadas continuam acontecendo,
sobretudo nos lugares sombreados pela copa das árvores. Em dias frios, por
outro lado, o sol é amplamente buscado, aumentando o número de usuários
encontrados no subespaço 5. Dias chuvosos não apresentaram permanências.

Passagens e permanências
A maior parte dos usuários da Praça Sílvio Romero está em deslocamento: a
presença de uma estação de trem e metrô, em suas imediações, garante um
intenso fluxo de passantes durante todo o dia. Atraídos pelo comércio e serviços
de suas edificações lindeiras, clientes e funcionários cruzam a Praça em direção a
estes estabelecimentos. O cursinho Objetivo e a EMEF General Othelo Franco,
localizada a duas quadras da praça, também são responsáveis por boa parte dos
pedestres no local.
Embora a Praça Sílvio Romero tenha se revelado importante lugar de passagem,
esta também se configura como espaço para permanências. Alguns passantes
realizam pequenas pausas no local, seja para fumar um cigarro ou para observar
a vitrine das bancas de revistas. Já para as permanências mais prolongadas,
observou-se em campo que o mobiliário da praça foi fundamental. Isso porque,
conforme o subespaço da praça e o mobiliário nele disponível, certas
apropriações eram (ou não) suportadas, influenciando, consequentemente,

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
quanto tempo o usuário permaneceria no local. As áreas de maiores
permanências são os subespaços 2,3 e 5.
O subespaço 2 é bastante apropriado, no horário de almoço, por funcionários e
estudantes dos estabelecimentos próximos à Praça. Eles costumam se sentar nos
bancos para conversar com outros colegas, utilizar o Wi-Fi livre, escutar música ou
simplesmente observar o ir e vir das pessoas. Já o subespaço 3, por seu menor
fluxo de passantes, é o espaço predileto de casais para namorar. O quinto e
último subespaço, por sua vez, possuí mesas e banquinhos de concreto, o que o
torna atrativo a homens e idosos, que costumam jogar cartas ou dominó.
No tangente à diversidade de usuários da praça, observou-se uma equilibrada
proporção entre homens e mulheres, e relevante presença de casais e grupos.
Durante o dia, encontramos ainda idosos e crianças, raramente vistos no período
da noite. Mesmo neste período, quando os estabelecimentos adjacentes à Praça
já estão fechados, esta continua movimentada devido aos trailers de lanche
instalados em seu perímetro. De acordo com os proprietários dos trailers, é
justamente à noite que ocorre a maior procura por seus produtos.

Outros usos
Embora seja recorrente a presença de moradores de rua na Praça Sílvio Romero,
não foi observada a prática de mendicância à porta da igreja local ou nos
semáforos de seu entorno. Nas sucessivas visitas de campo observou-se que este
grupo de pessoas geralmente permanece no espaço livre à esquerda da Igreja
Nossa Senhora da Conceição, onde ocorrem tímidas passagens e permanências
94 (subespaço 4). Os moradores de rua fazem uso dos bancos do local para tomar
sol ou dormir, atividade que também é praticada em um canteiro próximo, junto
à Igreja. É usual ver sobre a grama deste canteiro poucos pertences, além de
papelões e mantas utilizados na proteção contra o frio.
Outras ocupações informais ocorrem no perímetro da praça, onde “flanelinhas” e
vendedores de Zona Azul abordam motoristas que acabaram de estacionar. Não
foram observados vendedores ambulantes no local.

Eventos
A maior parte dos eventos da Praça Sílvio Romero ocorre no amplo espaço livre
à frente da Igreja (subespaço 1). Há mais de 20 anos que este espaço é
apropriado, às terças-feiras, por barracas e expositores da Feira de Artesanato e
Comidas Típicas Sílvio Romero. Atualmente existem 65 barracas cadastradas, mas
é raro que todas estejam montadas no mesmo dia. Dentre os produtos
comercializados encontram-se desde objetos típicos de feiras de artesanato,
artigos hippies e comidas variadas até plantas, pijamas e serviços de búzios e tarô.
Desde maio de 2014, o Encontro de Artes Circenses da Zona Leste – Circo na
Praça é realizado semanalmente, sempre às terças-feiras à noite, na Praça Sílvio
Romero. O encontro permite que artistas da Zona Leste se reúnam para treinar
juntos e trocar técnicas e experiências circenses. Cada um leva seus próprios
materiais, que variam desde claves, monociclo, diabôlo e perna de pau, até tecido
aéreo ou lira, que são pendurados nas árvores durante o treino. Ocasionalmente
há também oficinas, nas quais são ensinadas técnicas específicas, e o “cabaré”,

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onde a praça transforma-se em palco para um espetáculo circense a céu aberto.
O encontro, que surgiu de forma independente e se mantém com contribuições
espontâneas, conta ainda com a colaboração do trailer Dogão e Cia. que cede
um ponto de energia elétrica para que os artistas liguem seus aparelhos.
Por seu valor simbólico, a Praça Sílvio Romero também é referência para atos
públicos políticos e protestos. Durante a onda de manifestações de 2013, por
exemplo, o átrio à frente da Igreja funcionou como importante ponto de
concentração e articulação de manifestantes na Zona Leste.

5 C ONSIDERAÇÕES FINAIS
A Praça Sílvio Romero mostrou-se importante locus das espacialidades da vida
pública na Zona Leste de São Paulo, por meio de suas passagens e
permanências. A Praça, como espaço público que constitui, é acessível a todos os
indivíduos da sociedade, independentemente de seu gênero, faixa etária ou
condição social. A coexistência desses diferentes frequentadores em seu espaço
promove o exercício da alteridade, com maior ou menor intensidade.
As ações de passagem que acontecem na praça estão relacionadas ao trajeto
cotidiano; ao movimento dos transeuntes e a conectividade de espaços. Mesmo
o simples caminhar pode promover o contato com o diferente, ainda que de
forma breve e involuntária. A Praça Sílvio Romero se torna ativa com o
deslocamento dos passantes, pois são as ações que dão significado à forma, e a
forma que possibilita a ação. A inserção urbana e o conjunto construído que
envolve e gera o lugar público da Praça Sílvio Romero revelaram-se fundamentais
para as ações de passagem. 95
A Praça Sílvio Romero situa-se em uma área de fácil acesso da Zona Leste, seja
por transporte público ou privado. A diversa oferta de modais de transporte
público nas proximidades – concentrados no Complexo do Shopping Tatuapé,
um ponto nodal – garante à Praça alto e constante fluxo de pedestres durante
todo o dia. Neste sentido, os edifícios adjacentes à Praça também se mostraram
essenciais. O uso do solo predominantemente comercial e de serviços destas
edificações atrai funcionários e clientes para o lugar público da Sílvio Romero. A
ausência de recuos frontal e lateral destes edifícios garante que um maior
número deles se abra diretamente para a rua, potencializando as trocas com a
Praça e contribuindo para que este lugar público seja um espaço contínuo e
dinâmico.
Contudo, é nas permanências que reside o maior potencial de trocas
comunicativas mais intensas e diversas entre os usuários da praça, sejam elas
verbais ou não verbais. Às ações de permanência estão relacionados o lazer, o
consumo, as pausas, o descanso ou, simplesmente, o estar. Conforme
anteriormente apontado, a forma urbana e o mobiliário são fundamentais para
permitir (ou não) a permanência em um espaço público. No presente estudo, a
morfologia urbana e o sistema de objetos da Praça Sílvio Romero revelaram-se
adequados à permanência e a múltiplos usos, atraindo boa diversidade de
usuários ao local. A diversidade de usuários incrementa a qualidade da vida
pública na Praça Sílvio Romero, configurando-a como importante lugar público,
que promove encontros, convívio, trocas, conflitos e manifestações.

Teresa Cristina Barroso Vieira – Análise de lugares públicos na metrópole contemporânea:


estudo de caso sobre a Praça Sílvio Romero, São Paulo - SP – p. 80-96
6 R EFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição humana (1958). Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
ALEX, Sun. Projeto de praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: SENAC, 2008.
ENDRIGUE, Taisa da Costa. Tatuapé: A valorização imobiliária e a verticalização residencial no
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em: http://gazetavirtual.com.br/Sílvio-romero-passa-por-reforma/. Acesso em: dez. de 2015.
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. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
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Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2015.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção (1996). São Paulo:
Edusp, 2004.

96

Teresa Cristina Barroso Vieira


Aluna de graduação da FAUUSP.

IC SIICUSP 2016. Trabalhos Selecionados para a Etapa Internacional do


24 o SIICUSP - Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP
Seção Técnica de Produção Editorial
Coordenação Didática
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Supervisão Geral
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Supervisão de Projeto Gráfico
José Tadeu de Azevedo Maia
Supervisão de Produção Gráfica
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Impressão (capa)
Canon ImagePRESS 1135+
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Acabamento
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Mário Duarte da Silva
Roseli Aparecida Alves Duarte
Valdinei Antonio Conceição
Secretária
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Seção Técnica de Produção Editorial da


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo
Papel
Miolo - Papel Chambril Avena 80 g/m2
Capa - Cartolina F CARD Ouro (FEDRIGONI) 240 g/m2
Tiragem
100 exemplares
Data
agosto 2017

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