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dossiê iphan 4 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano }
imagem
“O samba é a vida, é a
alma, é a alegria da gente
(...) lhe digo, eu estou
com as pernas travadas
de reumatismo, a pressão
circulando, a coluna
também, mas quando toca
o pinicado do samba eu
acho que eu fico boa, eu
sambo, pareço uma menina
de 15 anos.”
Dalva Damiana de Freitas,
Cachoeira/BA
Presidente da R epú blica Instrução Técnica e Elaboração do dossiê Edição do Dossiê
Luiz Inácio Lula da Silva
para Registro do Samba de Roda
EDIÇÃO DE TEXTO
M inistro da C ultura Carlos Sandroni
SUPERVISÃO TÉCNICA
Gilberto Gil Moreira Marcia Sant’Anna
Departamento de Patrimõnio Imaterial
Ana Gita de Oliveira
Presidente do I phan REVISÃO DE TEXTO
Marcia Sant’Anna
Luiz Fernando de Almeida Graça Mendes
COORDENADOR DE PESQUISA Luiz Henrique de Azevêdo Borges
C hefe de G abinete Carlos Sandroni Rívia Ryker Bandeira de Alencar
Aloísio Guapindaya Sérgio de Sá
EQUIPE DE PESQUISA
ProcuradorA -chefe federal Ari Lima ELABORAÇÃO DOS ANEXO S
Tereza Beatriz da Rosa Miguel Francisca Marques Luiz Henrique de Azevêdo Borges
Josias Pires Rívia Ryker Bandeira de Alencar
D iretora de patrimônio imaterial Katharina Döring
Márcia Sant’Anna Suzana Martins PROJETO GRÁFICO
Victor Burton
D iretor de patrimônio material
ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO
e fiscalização
Alessandra Leão DIAGRAMAÇÃO
Dalmo Vieira Filho
Pedro Ivo Oliveira
D iretor de Museus
FOTOGRAFIAS
e centros culturais
José do Nascimento Junior Luiz Santos
Jean Jaulbert
D iretora de planejamento Gilberto Sena
e administração Márcio Vianna
Maria Emília Nascimento Santos Pedro Ivo Oliveira
APOIO
Núcleo de Etnomusicologia da Universidade
Federal de Pernambuco
Secretária – Anita Holanda Freitas
PA R C E R I A
Amafro – Sociedade Amigos da Cultura Afro-
Brasileira
sumário
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano }
S eu Z é de L elinh a (Jo sé
Vitó ri o do s Re is) e s eu
machete. foto: lu iz
santos.
S e u Pe dr o Sa m bad or
e Dona P or cina ,
sa m bad eira , e m
marac angal ha . foto :
l ui z santo s .
página ao la d o
Baiana na part e
e x t eri or d o T e rre ir o
d e Pai Ed in h o , e m
maragogipe . foto : l ui z
santo s .
definida uma lista de temas, em ção, incluindo imagens de arquivo Participaram cerca de 50 samba-
torno dos quais as informações e imagens colhidas em 2004, bem dores de todo o Recôncavo, repre-
sobre cada localidade passaram a ser como uma síntese deste vídeo, com sentantes do Iphan e da Comissão
organizadas. duração de 10 minutos. Baiana de Folclore. A discussão,
Paralelamente a esse trabalho de O conjunto das informações realizada em plenária e em grupos
campo foi também realizada pes- processadas a partir dessas pesquisas separados, versou sobre a situa-
quisa em fontes secundárias como foi utilizado para produzir o texto ção dos sambadores, seus grupos e
livros e artigos acadêmicos sobre o do dossiê de Registro e a versão, comunidades; sobre a memória e
samba de roda e seu contexto, fon- encaminhada à Unesco para apoiar documentação a respeito do sam-
tes sobre o samba de roda na inter- a candidatura do samba de roda à III ba; e sobre a transmissão do samba
net e fontes audiovisuais existentes Proclamação das Obras-Primas do Patri- às novas gerações. As conclusões,
(cinema, vídeo e som). mônio Oral e Imaterial da Humanidade. sintetizadas e postas no papel pela
O material de áudio produzido Cópias do áudio em CDs, de parte equipe de pesquisa, foram incorpo-
pela pesquisa de campo foi pré- das fotografias e uma síntese do radas ao dossiê de Registro, sendo,
mixado e, dos 13 CDs resultantes, material em vídeo (fita VHS) foram mais tarde, objeto de detalhamento
selecionou-se cerca de uma hora de entregues aos sambadores. por ocasião da implementação do
música, que recebeu mixagem defi- No dia 18 de setembro de 2004 Plano de Salvaguarda do samba de
nitiva e masterização. A parte vocal foi realizada na cidade de São Fran- roda.
das músicas constantes deste CD foi cisco do Conde, com o apoio da Presentemente, com o apoio fi-
transcrita em partitura, e suas letras prefeitura local e da Universidade nanceiro do Ministério da Cultura
também transcritas. As fotografias Estadual de Feira de Santana, reu- e do Iphan, as ações para a salva-
feitas foram selecionadas e identi- nião com os sambadores para dis- guarda dessa forma de expressão se
ficadas por localidade. O material cutir a situação do samba de roda, encontram em pleno andamento.
audiovisual foi editado e produzido sua sustentabilidade e eventuais me- Entre os seus principais resultados
um vídeo com duas horas de dura- didas de apoio a serem propostas. destacam-se: maior articulação
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 15
notas
Pr o ciss ã o d e Nossa
S en h o ra da B oa Mort e ,
e m cac h o eira. foto :
l ui z santo s .
periodicidade
da forma de
expressão
cultural
Caru ru de C os me e
Da mião na comunida de
d e p o nta de s ouza,
m arag ogipe. foto: lu iz
san tos .
meia-noite, essa barca ia pra praia e o fato de que formas de samba são
colocava-se no mar com as oferen- ligadas, de uma ou outra maneira,
das, pedindo que traga boas coisas a quase todas as espécies culturais
para o ano vindouro e leve as coisas importantes, e que têm um papel
ruins que passaram do ano que es- importante nas demais datas festi-
tava terminando, e pedindo fartura vas, sejam elas religiosas, rituais ou
para o pessoal que aqui vive da pesca de outra natureza”. (1990:106) notas
e dos barcos”. (Maria Rita, Bom
Jesus dos Pobres)3 Esta posição especial faz tam-
bém do samba de roda a forma mais
Embora essas outras celebrações comum e tradicional de o povo
e formas de expressão tenham gran- baiano festejar em seu dia-a-dia:
de importância para as comunida-
des em questão, numa visão global “Além dos diversos eventos 1. Fonte: IBGE. Os dados populacio-
nais correspondem à estimativa realizada
nenhuma delas parece exercer, tão mencionados acima para se fazer em 2005 e à população total dos municí-
bem quanto o samba, o papel de um samba, todos os acontecimentos pios, com base nos dados do Censo do ano
denominador comum da cultura podem dar motivo para um samba, 2000.
popular do Recôncavo. Como es- seja um batizado, uma reunião es- 2. Fonte: IBGE. Os dados populacio-
creve Tiago de Oliveira Pinto: pontânea dos moradores do povoa- nais correspondem à estimativa realizada
em 2005, com base nos dados do Censo
do etc.” (Pinto, 1990:108). do ano 2000.
“No Recôncavo, o samba sem 3. As entrevistas citadas, a não ser
dúvida tem uma posição especial. É quando especificado, foram registradas em
significante a ligação que o samba vídeo, no Recôncavo, em agosto de 2004.
consegue entre todas as faixas etá-
rias e entre os sexos, como também
descrição
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 23
S a mb a C hul a o s Fi lho s
d a P itang ue ira, s ão
f rancis co do co nde.
foto: lu iz san tos .
página ao l ado
D etalhe de b aiana
d u ran te pr oc iss ão
d e No ssa Se n ho ra d a
Boa Mo rte. foto: lu i z
san tos .
nância é masculina, com exceção do corpo. O princípio da alternância mitidas por africanos escravizados
prato-e-faca. Outro traço marcante relaciona-se também com um dos no Estado da Bahia. Essas tradições
da coreografia é a alternância, ou gestos coreográficos mais típicos do se mesclaram de maneira singular
seja: exceção feita à finalização de samba de roda, a famosa umbigada, a traços culturais trazidos pelos
um samba, não é comum que todos ou choque de umbigos: traço cultu- portugueses, como os instrumentos
os participantes dancem ao mesmo ral de origem banto, a umbigada é mencionados acima, e à própria
tempo, o que teria por efeito desfa- um sinal por meio do qual a pessoa língua portuguesa e elementos de
zer o círculo de assistentes, desca- que está sambando designa quem suas formas poéticas. Tal mescla,
racterizando assim o samba como de irá substituí-la na roda (Carneiro, assim como outras mais recentes,
roda. Em alguns casos é estritamente 1961; Tinhorão, 1988:45-68). não exclui o fato de que o samba
proibido que mais de uma pessoa • O samba de roda pode acon- de roda foi e é essencialmente uma
dance de cada vez: uma só pessoa tecer dentro de casa ou ao ar livre, forma de expressão de brasileiros
deverá executar sua dança, sempre em um bar, uma praça ou um afro-descendentes, que se reconhe-
no interior do espaço delimitado terreiro de candomblé. Sua per- cem como tais.
pela roda, e em seguida escolher formance tem caráter inclusivo, ou
entre os participantes o que irá seja, todos os presentes, mesmo os
substituí-la. Em outros casos, várias que ali estejam pela primeira vez,
pessoas podem dançar ao mes- são em princípio instados a parti-
mo tempo. Os participantes que cipar, cantando as respostas corais,
formam a roda, por não estarem batendo palmas no ritmo e até mes-
dentro dela, não dançam, a não ser mo dançando no meio da roda caso
que se considere o bater palmas um a ocasião se apresente.
tipo de dança; ou eventualmen- O samba de roda, desde antigos
te dançam apenas através de uma relatos, traz como suporte deter-
discreta movimentação rítmica do minante tradições culturais trans-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 25
HISTÓRIA,
DESENVOLVIMENTO
E FUNÇÃO SOCIAL,
SIMBÓLICA E
CULTURAL
O Recôncavo na história gueses, e do infortúnio de muitos 1693, e a de Santo Amaro foi criada
Por Recôncavo, como visto, se africanos e indígenas. Por isso, em 1724. A elas se seguiram várias
costuma designar uma vasta fai- trata-se de uma unidade regional outras e, assim, no final do século
xa litorânea que circunda a Baía que foi concebida e é situada por XVIII, as margens do rio Paraguaçu
de Todos os Santos, à entrada da dentro da história dos engenhos de – até onde ele se fazia navegável – já
qual se ergue a cidade de Salvador, cana, da escravidão e da indústria estavam relativamente povoadas.
capital do Estado da Bahia. São as açucareira no Brasil. Ainda naquele século, Salvador e
terras em “volta d’água” (Brandão, Assim que chegaram, os portu- Cachoeira já eram os dois princi-
1998:30): afinal, foi como a boca gueses perceberam que a baía era pais centros metropolitanos da re-
aberta da Baía de Todos os Santos um porto naturalmente seguro, e as gião, pólos integradores do circuito
que a região passou a fazer parte terras em seu entorno lhes parece- comercial, político e cultural que a
do mundo Atlântico. Na definição ram propícias para que os primei- colonização portuguesa inaugurou.
de Kátia Mattoso, “o Recôncavo é, ros núcleos colonizadores fossem No ritmo dos engenhos de açú-
antes de tudo, uma terra oceânica” estabelecidos. As pequenas ilhas e car o Recôncavo foi se formando,
(Mattoso, 1992:54). Delimitá-lo, os recifes dificultavam a entrada de e foram surgindo e crescendo os
no entanto, não é uma tarefa fácil, navios inimigos, mas para quem núcleos urbanos, fazendo funcio-
ainda que se use o oceano como conhecia bem os caminhos do mar nar uma rede pela qual transitavam
fronteira. Mesmo porque, quando e dos rios era possível transitar em produtos e pessoas ocupadas com o
se diz Recôncavo baiano, está se fa- médias e pequenas embarcações. comércio.
lando muito mais de um “conceito Resguardados do Atlântico, mas Dessa rede tem sido subtraído
histórico [do] que de uma unidade também por ele providos, ergue- e acrescentado, ao longo de tantos
fisiográfica” (Santos, 1998:62). O ram-se no Recôncavo engenhos de séculos, um considerável número
Recôncavo é uma invenção histórica cana-de-açúcar, paróquias e vilas. de cidades. Para o geógrafo Milton
e uma configuração cultural que As de São Francisco do Conde, Santos, por exemplo, fazem parte
nasceu da aventura de alguns portu- Cachoeira e Jaguaripe datam de do Recôncavo 28 municípios.4
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 26
S am ba d e R o da S u er di e c k
no dia da Fes ta da B oa
Mort e e m cac h o eira.
foto : l ui z san to s .
Pes ca dor es d a
c omuni da de de p onta
d e souz a t raze ndo os
f ruto s do m ar para o
t ra dici onal Caru ru de
Co sme e Da m ião. foto:
l uiz santos .
permeável, mas capaz de conservar a Na segunda metade do século XIX esmagadora maioria negros, que
umidade durante um longo tem- foram abertas as primeiras fábricas abandonaram as velhas cidades de
po. O massapê e o clima tropical de charutos. No período, a região Santo Amaro, Cachoeira, São Félix
se prestavam bem para o cultivo amargava uma grave e irreversível e São Francisco do Conde para se
em larga escala da cana-de-açúcar. crise econômica e, para muitas estabelecerem em povoados e vilas
Após a dizimação de muitos indí- trabalhadoras – visto ser esta uma menores, em busca de melhores
genas e a escravização ou expulsão indústria de predominância femi- condições de vida. Com isso, o Re-
de outros tantos, os portugueses se nina – ser empregada na feitura côncavo foi expandido para dentro
assenhorearam dos melhores ter- dos charutos era uma oportunidade de si mesmo. É muito corriqueiro
renos, fazendo-se donos de pessoas ímpar. As fábricas mais importantes encontrar na região famílias espa-
e riquezas. Embora os negócios do foram a Suerdieck, fundada em Ca- lhadas por diversas cidades: o re-
açúcar estivessem sempre à mercê choeira por imigrantes alemães, e a sultado de inúmeras tentativas de se
do mercado internacional, as ven- Dannemann, em São Félix. Ainda viver melhor. Entretanto, também
das garantiram fortuna e prestígio se cultiva fumo no Recôncavo, mas é preciso acentuar que foi graças a
aos grandes proprietários locais. uma produção acanhada, em pe- esse processo migratório que hoje
Criou-se ali, assim, uma economia quena escala. é possível perceber certa unida-
sustentada pelas lavouras do fumo, Com a decadência da produção de cultural na região. Mesmo em
da cana-de-açúcar e pelo trabalho da cana-de-açúcar e do fumo, e o povoados e cidades distantes entre
de negros escravizados; criou- empobrecimento regional que se si, podem ser observadas práticas e
se também uma cultura filha das seguiu, ficaram ainda mais redu- tradições similares, a exemplo do
relações sociais geradas no mundo zidas e precárias as oportunidades samba de roda.
escravista. de sobrevivência. Assim, teve lugar Nos anos 1950, a extração de
Associada à lavoura canaviei- uma outra forma de expansão do petróleo, recém-descoberto na
ra, a indústria do tabaco também Recôncavo: a migração. Foram região, prometia encerrar a letargia
floresceu no Recôncavo baiano. muitos os trabalhadores, em sua econômica que nos 100 anos ante-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 28
D o na Fia, do S amba de
R o da de P iraj uía. foto:
l uiz san tos .
S e u Pe dr o Sa m ba d or , d e
marac angal ha . foto :
l ui z san to s.
A primeira menção registrada no quando vi que era na 4a prisão desta a seguir -, na primeira metade do
Brasil da palavra samba data de cadeia (...) imediatamente disse ao século XIX o termo utilizado por
1838, e se encontra num jornal sargento mandasse a sentinela con- escrito para designar de manei-
satírico então editado em Pernam- ter a ordem naquela prisão: cessou ra genérica os divertimentos dos
buco, estado com o qual a Bahia faz o samba (...)” (Reis, 2002:130). negros era batuque. É só na segun-
fronteira a noroeste. A menção é, da metade do século que se passa a
entretanto, feita de passagem, sem Mas este é, no estado atual das encontrar, sobretudo na imprensa
nenhuma descrição, nem, aliás, pesquisas, um registro isolado, e em registros policiais, referências
associação específica a afro-des- e que de resto não traz maiores em profusão ao samba na Bahia, e
cendentes. Já o primeiro registro esclarecimentos sobre em que já agora com muitas das caracterís-
conhecido da palavra samba na consistia o referido samba, além de ticas hoje presentes no Recôncavo.
Bahia, encontrado pelo historiador ser alarme, estrondo e desordem; ressal- A primeira delas data de 1864 – de
João José Reis, data de 1844, em vando-se que o próprio carcereiro 140 anos atrás, portanto, e 20 anos
Salvador, e está num relato feito em não só parece saber bem de que se depois do carcereiro Santos Vieira:
janeiro daquele ano pelo carcerei- trata - posto que se declara capaz, “Nos becos da Rua da Castanhe-
ro da prisão municipal, Joaquim em princípio, de fazer a distinção da, por exemplo, havia, segundo o
José dos Santos Vieira, ao Chefe de entre sambas de africanos e de nacionais jornal O Alabama [de 26/1/1864],
Polícia: - como não tem nenhuma dúvi- sambas, todas as noites, acom-
da de que o Chefe de Polícia seria panhados de pratos e pandeiros”
“Ontem quase 9 horas da noite, igualmente capaz de entendê-lo. (Santos, 1998:23-4). Como vimos,
depois das prisões fechadas, ouvi A julgar pelas pesquisas de que pratos e pandeiros estão ainda hoje
um alarme, que não podia perceber dispomos - cujos resultados estão entre os instrumentos mais típicos
se era samba de africanos, ou de no artigo já citado de João José de acompanhamento do samba.
nacionais (...) vim à guarda infor- Reis, e no de Jocélio Teles dos San- Dois anos depois, o mesmo
mar-me aonde era aquele estrondo, tos que citaremos abundantemente jornal O Alabama publicava, em
S r . Lu ís Bispo d os Ram o s
(L u ís F eirant e ) , e m
c as t r o a lv es . foto : l ui z
santo s .
versos, uma descrição mais detalha- Dá embigada no Victor descrição para o que se tem obser-
da de samba acontecido no bairro E cai sobre um canapé 8 vado de maneira predominante nos
do Uruguai, em Salvador: últimos anos é a presença de mu-
A descrição corresponde, com lheres tocando pandeiro e tirando
Houve samba no Uruguai pequenas ressalvas, ao que se pode o samba, isto é, cantando a estrofe
A vinte e três do passado ver hoje no Recôncavo, assim como principal. Outra mulher canta chu-
(...) ao vocabulário empregado. Há la em poema publicado no mesmo
concordância no que se refere aos jornal no ano seguinte:
Mestre Paulino ferreiro elementos materiais – a viola, com
Com a viola empunhada sua corda mais aguda chamada de A creoula Herculana
Acompanhava na prima prima, e o pandeiro. Aos verbos Uma chula entoou
Uma chula bem tirada usados – rufar o pandeiro, tirar a Rosa do peixe, Lourença
chula ou o samba, responder a toada. A toada acompanhou
A Mariquinhas rufava E finalmente à dança, em que uma
Com muito garbo o pandeiro pessoa específica sai e dá uma em- Caiu na roda Olegária
Custódia tirava o samba bigada em outra. Note-se ainda que Puxou mui bem a fieira
Tocava o samba o Pinheiro acompanhar a chula na prima corres- E foi dar uma umbigada
ponde ao modo de tocar ponteado No rapaz Bastos Pereira
Miguel Corcunda e Paulina dos violeiros do Recôncavo, em
Respondiam a toada que se tange uma corda de cada vez, Este depois dum corrido
De vez em quando tomando diferentemente de outros estilos de Deu na creoula Clotildes
De cachaça uma golada acompanhamento de música popu- A qual fez o seu peão
lar, em que várias cordas são tangi- E foi bater na Matildes
Saiu então o Elias das ao mesmo tempo.
A fazer seu roda-pé A principal diferença desta
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 32
Depois de um miudinho
Que fez Antonia Dengosa
Dançou Maria Libânia
E depois Maria Rosa 9
página ao l ado
D ona Car do (A n tô nia
Erotildes da S ilva ),
d e saubara . foto: lu i z
san tos .
gues, Manoel Querino, Artur Ra- etnomusicologia pela Universidade bom estado, em Berlim, Alemanha.
mos e, sobretudo, Edison Carnei- do Texas, em Austin, nos Estados Finalmente, nos anos 1990, a
ro. Este período coincide, como Unidos. Esta pesquisa se deu entre etnomusicóloga Rosa Maria Zami-
veremos à frente em detalhe, com o 1976 e 1982, e embora Waddey não th, trabalhando então para a Co-
da ascensão do samba feito no Rio tenha finalmente escrito uma tese, ordenação de Folclore e Cultura
de Janeiro, como gênero de canção publicou um importante artigo em Popular da Fundação Nacional de
urbana gravada em discos e tocada duas partes na Latin American Music Arte - Funarte, fez uma pesquisa de
no rádio. Coincide, na verdade, Review (Waddey, 1980 e 1981). A curta duração na cidade de Cacho-
com as etapas iniciais do predomí- pesquisa de Waddey centrou-se em eira, que resultou em artigo (Zami-
nio do modo de vida industrial e Salvador, Saubara, Santo Amaro e th, 1995) e CD, gravado em cola-
urbano – e de estabelecimento de Castro Alves. Seu acervo encontra- boração com Elizabeth Travassos.
um mercado de entretenimento se sob custódia da Universidade do O acervo gerado por esta pesquisa
de massas – no país. Tais processos Texas. encontra-se guardado em condi-
influenciaram, é claro, a prática A segunda pesquisa foi feita pelo ções adequadas no Centro Nacional
do samba de roda, cuja importân- etnomusicólogo brasileiro radica- de Folclore e Cultura Popular, no
cia declinou muito em Salvador, do na Alemanha Tiago de Oliveira Rio de Janeiro.
embora tenha declinado menos em Pinto. Ela aconteceu, sobretudo, No início dos anos 2000, três
muitas partes do estado da Bahia, e, entre 1982 e 1990, nas proximi- dissertações de mestrado foram
em particular, no Recôncavo. dades de Santo Amaro, e seus resul- escritas sobre o samba de roda. A de
No último quarto do século XX tados foram publicados no livro Erivaldo Sales Nunes, Cultura popular
houve três pesquisas acadêmicas Capoeira samba candomblé. O livro não no Recôncavo baiano: a tradição e a moder-
importantes sobre o samba de roda foi traduzido para o português e o nização do samba de roda, defendida no
no Recôncavo. A primeira delas acervo gerado pela pesquisa, bem Programa de Pós-Graduação em
foi feita por Ralph Cole Waddey, como pelas freqüentes voltas de Letras da Universidade Federal da
então candidato ao doutorado em Pinto à região, encontra-se em Paraíba, em 2002, enfoca, sobre-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 34
DESCRIÇÃO
TÉCNICA:
ESTILO, GÊNERO,
ESCOLAS,
INFLUÊNCIAS
tudo, a região de Santo Amaro. A TIPOS pantes, por contraste com o samba
de Katharina Döring, O samba de roda Há inúmeras modalidades de chula, de samba de roda simples-
do SembaGota, defendida no Progra- samba de roda no Recôncavo. A mente.
ma de Pós-Graduação em Música pesquisa realizada propõe entendê- As principais diferenças entre
da Universidade Federal da Bahia, las com base em dois grandes tipos. samba corrido e samba chula se
em 2002, é um estudo de caso O primeiro corresponde a uma ca- referem às relações entre música e
sobre um grupo de jovens músicos tegoria nativa bastante generalizada dança, e podem ser resumidas em
profissionais de Salvador, ligados no Recôncavo e em Salvador: samba dois pontos principais. Primeiro:
a um dos mais tradicionais terrei- corrido. O segundo permite apro- no samba chula, a dança e o canto
ros de candomblé da cidade. A de ximar, por alguns traços comuns, nunca acontecem ao mesmo tempo
Francisca Marques, Samba de roda em sambas diferentes, na região de - estando os toques dos instrumen-
Cachoeira, Bahia: uma abordagem etnomu- Santo Amaro e municípios vizinhos tos presentes nas duas atividades
sicológica, defendida no Programa - muitos dos quais de emancipação -, enquanto no samba corrido,
de Pós-Graduação em Música da política recente em relação a Santo ao contrário, dança, canto e to-
Universidade Federal do Rio de Amaro -, que são chamados de ques acontecem simultaneamente.
Janeiro, em 2003, enfoca especial- samba chula, de parada, amarrado ou de Segundo: no samba chula apenas
mente o samba de roda na festa de viola; e que na região de Cachoeira, uma pessoa de cada vez samba no
Nossa Senhora da Boa Morte, na com diferenças maiores, são cha- meio da roda; enquanto no sam-
cidade de Cachoeira. A pesquisa- mados de barravento. Será usado, por ba corrido podem sambar uma ou
dora, instalada em Cachoeira desde convenção, o nome samba chula várias pessoas ao mesmo tempo no
2001, vem produzindo um im- em referência ao segundo tipo em meio da roda. Pode-se dizer que no
portante acervo sonoro digital – o questão. Já o samba corrido, como samba corrido os eventos tendem
único deste tipo que se encontra será visto a seguir, tem um caráter a ser mais agregados, e no samba
atualmente na Bahia segundo nossas mais genérico, e por isso pode ser chula, mais separados. Os músicos
informações. chamado às vezes pelos partici- expressam a diferença dizendo,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 35
sam ba su er di e c k ,
c ac h o eira. foto : l ui z
santo s .
em outras palavras, que o samba pro samba de parada”. (João Antô- cantando. Quando os homens pa-
corrido é mais livre, mais permis- nio das Virgens, de Saubara). ram de cantar e ficam só os instru-
sivo; ao passo que o samba chula é mentos e a marcação, o pandeiro,
mais exigente, mais rigoroso. Neste “Porque o samba de viola é um aí a mulher sai no pé dos tocadores,
último, não só cada um dos sam- samba amarrado e nós temos que vai saindo, dando umbigada nas
badores precisa esperar sua vez de respeitar, nós responde [cantando], outras. Quando o homem começa a
dançar, enquanto aprecia o desem- quando pára de responder a chula, cantar de novo a mulher geralmente
penho do outro, como também, de a gente sai [dançando], pra respei- só fica batendo palma e cantando”.
maneira mais geral, os conjuntos tar um ao outro. E samba corrido (Carlos M. Santana, São Braz).
de sambadores e cantores precisam todo mundo samba junto, não tem
esperar-se mutuamente, cada grupo esse negócio de parar separando as Uma vez estabelecida, por con-
apreciando enquanto isso o desem- coisas”. (Maria Augusta Ferreira, traste e em linhas gerais, a distinção
penho do outro. Dessa forma, o São Braz). entre os dois tipos de samba de roda
samba chula é uma modalidade de encontrados no Recôncavo, segue-
expressão onde a apreciação estética “[No samba corrido] pode sair se uma descrição mais pormenori-
desempenha papel especialmente homem e mulher na roda, e já a zada, tanto de seus aspectos gerais,
importante. chula, quando as pareias [isto é, como de suas particularidades.
as duplas que gritam a chula] não
“No samba de parada, a gente estão cantando, a mulher leva aqui-
canta e a mulher sai na roda, e a lo com uma grande consideração.
gente espera ela sair da roda pra Porque se as pareias estiverem can-
gente repetir a cantar. Cada qual tando e a mulher sair na roda, exis-
tem sua vez, não saem duas [mulhe- te aquela desfeita, já é um conceito
res], só sai uma: a diferença é essa mesmo da chula, que você não pode
do samba de roda [isto é, corrido] sair enquanto os homens estiverem
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 36
S r. Lu ís Bispo d os
R a m os (L u ís Fe irant e )
e jov e m sa m ba d eira , e m
c ast r o a lv es . foto : l ui z
santo s .
também como arena privilegiada “A gente precisa muito do ho- sambaram]”. (Pedro dos Santos,
para um diálogo altamente codifi- mem por causa do toque, porque líder do samba chula de Maracan-
cado entre homens e mulheres. O raramente a mulher toca; e o ho- galha).
erotismo é um componente estru- mem precisa da mulher pra acom-
tural do samba, expresso não só panhar na voz e no pé. Sem a mu- Para outros, porém, os homens
pelos corpos dos participantes, mas lher não tem samba, sem homem também podem sambar, mas fazem-
também pelas mais variadas inter- também não tem. Aqui a gente no de maneira um pouco diferente:
jeições e comentários, inclusive depende dos toques, mas pra sam-
aqueles relativos aos conflitos por bar depende de mulher: um samba “A diferença é que a mulher se
ciúmes (Waddey, 1981:33). só de homem, você vem, dá uma sacode mais do que o homem. É
De maneira geral, considera-se olhada e vai embora, mas quando vê que a gente nasceu pra sambar no
que no samba de roda e, como de mulher, fica”. (D.Mirinha, Pira- pé e a mulher pra se requebrar”.
hábito com mais rigor no samba juía). (Antonio Correia de Souza, de
chula, o papel típico do homem é Mutá).
tocar, enquanto o da mulher é Esta diferença é levada a rigor
sambar: em algumas comunidades que pra- Em todo o caso é importante
ticam preferencialmente o samba notar que a relação entre homens
“Eu acho que a mulher pra chula: tocando e mulheres sambando
essa coisa assim [de sambar] é mais é algo fundamental para o bom
quente, mais enérgica. Eu também “Nesse samba da gente, só dança desenrolar de um samba. A boa
toco, sambo, canto, mas eu acho mulher. Homem só dança se vem sambadeira estimula o tocador,
que a mulher tem mais elegância uma pessoa de fora, que a gente não do mesmo jeito que o samba bem
pra sambar e o homem pra tocar”. queira dizer nada, aí a gente deixa tocado, e muito particularmente
(Maria Rita Machado, Bom Jesus [ele sambar]. Mas o certo... vocês a viola bem tocada, estimulam a
dos Pobres). viram aí [isto é, apenas mulheres sambadeira:
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 38
alto, entendeu?” (Carlos M. Santa- mesmo. Isso é que é mulher pisar l ui z santo s.
na, dito Babau, São Braz). valente, mulher boa, é prazer e página ao la d o
alegria e satisfação”. (João Saturno, baiana cantand o . foto :
Me st r e Qua dra d o , e m
mar grand e , m unic í pi o
d e v era cru z . foto : l ui z
santo s .
questão de dizer – com uma ponta As partituras e letras transcritas cisco do Conde, faixa 10 do CD
de orgulho – que “não se canta re- anexas trazem inúmeros exemplos Samba de Roda – Patrimônio da Humani-
lativo” (Mestre Gerson Quadrado, de chulas com e sem relativos, e de dade).
7 de agosto de 2004, anotação de corridos. Daremos aqui, a título
campo). de ilustração, apenas uns poucos Chula:
No samba corrido é mais exemplos: “Foi agora que eu cheguei,
comum o cantador principal do Tava na beira da praia
samba ser um solista. É em média Chula: Conversando com meu bem:
mais curta a duração de cada in- “Minha sinhá, minha iaiá (bis) – Eh, minha caboquinha, me queira bem,
tervenção sua, constituída às vezes Quem tem amor tem que dar Que o bem que eu quero a outra,
de um único verso ou um dístico. Quem não tem não pode dar Eu quero a você também.”
Aqui, a existência de uma estro- Mulata baiana, quero ver a palma zoar (Mestre Quadrado e Manteigui-
fe de resposta - também curta - é Chora, mulata, chora nha, Mar Grande, Itaparica, faixa
obrigatória. Não recebe o nome de Na prima desta viola” 4 do CD Samba de Roda – Patrimônio da
relativo e será cantada, idealmente, Relativo: Humanidade).
pelo conjunto dos participantes do “Ôh, vi Amélia namorando, eu vi Amélia
samba. Em alguns casos, o texto e Eu vi Amélia namorando, namora, Amélia”
a melodia cantados pelo solista são (Waddey, 1982:26)
repetidos com variações mínimas
pelo coro dos presentes. Em ou- Corrido:
tros, as duas partes são diferentes. “Você matou meu sabiá,
A parte coral é, no entanto, sempre Moça morena, vou pra Ribeira sambar”
fixa, enquanto a do solista, se for Resposta:
diferente da primeira, pode variar Igual
ou não. (Samba Raízes de Angola, S. Fran-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 42
S am b ã o na rua e m
Piraju ía. foto : l ui z
santo s .
Pess oa l d o grup o
d o Sa m ba C h u la d e
Maracangal ha (Zé d e
G l ória – prato , Hil ári o
Mota , c onh e ci d o po r
Pe qu eno – pand eir o ,
S e u Pe dr o Sam ba d or
– ti m ba l ) . foto : l ui z
san tos .
página ao la d o
c avaquinh o usa d o
no Sam ba Ch u la d e
Maracangal ha . foto :
l ui z santo s .
Quadrado não sabia tocá-lo, mas parecido com o de violões e cava- que a viola é mais fundamental. Isso
guardava-o com muito ciúme por- quinhos modernos, e inclui crave- se deve também a que, neste tipo
que pertencera a Chico da Viola, lhas de metal com roscas. O tampo de samba, quando uma sambadeira
oriundo de Santiago de Iguape e, não é ornamentado. Por dentro há entra na roda, as vozes se calam e
posteriormente, músico em Salva- um selo onde ainda se pode ler o passa a caber à viola - e, no caso da
dor, com quem fez sambas duran- nome do construtor: Clarindo dos região de Santo Amaro, de prefe-
te muitos anos e que, ao falecer, Santos.13 rência a um machete - o papel de
deixou-lhe o instrumento como No samba chula, como ficou protagonista musical, num diálogo
herança. claro, o uso da viola é mais impor- com a dança. Na ausência de viola,
A fatura do quinto mache- tante que no samba corrido. Os o mesmo papel de protagonista
te encontrado é diferente da dos dois tipos podem acontecer com ou musical poderá ser desempenhado
anteriores. Seu acabamento é mais sem viola, mas é no samba de chula por violão, cavaquinho ou bando-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 45
a b aixo
t i m bales . foto: lu iz
san tos.
à direi ta
D e talhe de Dona Maria
Aug us ta, samb adeira
d e S ão Bra z, toc ando
prato-e-faca . foto:
l uiz santos.
• Tamborins ou tamborinos:
tambores pequenos, de aro, com
membranas de couro ou sintéti-
cas que são tocados com pequenas
baquetas de madeira.
• Marcação: tambores cilíndri-
cos grandes com membrana plásti-
ca, de um lado só, tocados em posi-
ção horizontal, apoiados nas pernas
de tocadores sentados, ou vertical,
apoiados no chão e com tocadores
de pé. Tocam-se com as mãos.
Entre os idiofones, o mais
lado só, tocados em posição vertical característico do samba de roda é Ao contrário dos outros ins-
e apoiados no chão. Os tocadores o prato-e-faca. Trata-se dos dois trumentos citados, o prato-e-faca
ficam de pé e tocam com as mãos. utensílios domésticos usuais, com a é tocado predominantemente por
São os tambores clássicos do can- única especificação de que o prato mulheres. Isto pode se dever à rela-
domblé baiano. deve ser, de preferência, esmaltado. ção tradicionalmente privilegiada,
• Timbales: tambores cônicos Na descrição de Waddey: “Mantém- no Recôncavo, entre mulheres e o
grandes com membrana plástica, se o prato na palma aberta de uma mundo da cozinha. Outra peculia-
de um lado só, tocados em posição mão, numa posição como se fosse ridade da tocadora de prato-e-faca
horizontal e apoiados nas pernas um pastelão que o tocador estivesse é que ela, regra geral, toca de pé, e
dos tocadores, que ficam sentados. preparando para lançar no próprio não necessariamente numa posição
Tocam-se com as mãos. rosto. Arranha-se a faca na borda próxima à do conjunto dos tocado-
do prato (...)”. (1981:15) res.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 47
à dir eita
ta buin has toca das por
baiana do sa mb a de roda
sue rd ieck. foto: ped ro
i vo ol iveira .
a bai xo
x eque r ê. foto: lu iz
santos.
Outros idiofones encontrados geral, as mulheres batem palmas isso, o uso de amplificação para os
no samba de roda são reco-recos e suaves durante a chula cantada para instrumentos de corda se generali-
chocalhos - estes, de contas inter- não atrapalhar os cantadores, ou zou. Cavaquinhos, violões e violas
nas ou externas -, dos mais variados mesmo, em vez de bater palmas, em muitos casos foram dotados de
formatos e materiais; e, nos muni- esfregam suavemente em movimen- captador embutido e conectados
cípios mais distantes do mar, tri- tos circulares as palmas das mãos. por um fio a pequenas caixas de
ângulos de metal, suspensos no ar Quando então a chula termina, to- som, geralmente, de má qualidade.
pela mão menos hábil do tocador, e das começam a bater as palmas - ou Em algumas ocasiões, o uso de mi-
tocados pela outra com uma vareta tabuinhas - com entusiasmo. crofones para as vozes também não
também de metal. Os resultados da pesquisa de é incomum.
É de especial importância no Waddey indicam o conjunto de
acompanhamento rítmico do samba percussão apropriado para o samba
de roda o papel das palmas, batidas, como sendo constituído de dois
idealmente, por todos os partici- pandeiros, prato-e-faca e ocasio-
pantes/assistentes. A participação nalmente um pequeno tambor.
de todos os presentes por meio das Não são mencionadas as tabuinhas.
palmas funciona como uma indica- Nos sambas presenciados duran-
ção da qualidade do samba, de sua te a preparação deste dossiê, esse
capacidade de contagiar a todos. conjunto foi consideravelmente
Como uma espécie de derivação das acrescido. Viam-se geralmente três
palmas, alguns grupos – de Cacho- pandeiros e a presença de tambo-
eira, Saubara - utilizam pares de res grandes - timbales e marcação
tabuinhas, ou taubinhas, que fazem os - era usual. O resultado é que o
mesmos padrões rítmicos. acompanhamento rítmico cresceu
É importante notar que, regra em volume. Em concordância com
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 48
passo d e baiana d o
sa m ba su er di e c k . foto :
pe dro i vo o li v e ira.
assim dizer mais espaçado e num que os pontos de apoio dos pés, mentos dos pés é percebida pelas
registro mais grave, é configurado sempre alternando entre o direito e sambadeiras como igual – o que
predominantemente por instru- o esquerdo, correspondem aos beats. configuraria um ritmo de subdivi-
mentos como os timbales e tambo- No entanto, o que acontece entre são propriamente ternária, como
res de marcação. Este corresponde um beat e outro é menos claro. no caso de um compasso seis por oito,
às semínimas, ou ao beat de Kubik, A alternância dos passos se dá simultâneo ao dois por quatro dos ins-
ou ainda, como ficou dito atrás, da seguinte maneira no miudinho, trumentos; ou se tal duração é por
aos passos de uma caminhada em estando sublinhados os pontos de elas percebida como diferente, indi-
sintonia com o samba. Em alguns apoio: direito-esquerdo-direito- cando uma subdivisão, finalmente,
casos, essas semínimas são tocadas esquerdo-direito-esquerdo-direito binária como no caso da chamada
de maneira igual, sem marca que as etc. Como o mesmo pé nunca se síncope característica, ou, usando-se
distinga; em outros casos – talvez repete, o ritmo seria em princípio figuras musicais convencionais,
por influência do samba carioca? binário (direito-esquerdo); mas do semicolcheia-colcheia-semicolcheia. Como
– há acentuação e timbre mais grave ponto de vista dos pontos de apoio, o miudinho é rápido, as diferenças
no que seria a segunda semínima do sublinhados acima - pontos onde de duração absoluta entre as duas
dois por quatro, configurando mais os passos coincidem com o beat hipóteses são dificilmente percep-
um caso de contrametricidade. - a subdivisão seria antes ternária. tíveis, e provavelmente coincidem
A alusão aos passos remete a um Percebe-se que o miudinho não com as margens de erro de qualquer
ponto de grande interesse e que corresponde ao que foi chamado formalização musical. É possível
necessita maior aprofundamento: acima de caminhada, sendo um que estratégias de pesquisa baseadas
o da definição do ritmo feito pelos movimento, além de obviamente na psicologia cognitiva sejam indi-
pés das sambadeiras no miudinho. mais complexo, sensivelmente mais cadas para dirimir a dúvida.
A importância dos pés no samba rápido que os passos cotidianos. Um terceiro plano do ritmo
de roda é ressaltada em inúmeros No entanto, ainda não foi possível corresponde às linhas-guia, e sua
depoimentos colhidos. Parece claro saber se a duração desses movi- execução cabe prioritariamente às
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 50
palmas e/ou às tabuinhas. Tanto no No entanto esta se combina, Finalmente, um quarto plano da
que se refere à densidade ou espaça- no caso aqui estudado, com outros elaboração rítmica é o que corres-
mento das durações, como no que se elementos rítmicos de maneira ponde às vozes que cantam chulas,
refere ao timbre (grave ou agudo), bastante singular, gerando inclu- relativos, barraventos e corridos.
no samba de roda as linhas-guia sive configurações rítmicas que se Como já notara Waddey, a liberda-
ficam numa posição intermediária aproximam do que foi chamado de rítmica das melodias em relação
entre os dois outros planos já men- paradigma do Estácio (Sandroni, ao beat é muito grande, confirmada,
cionados. 2001): mais um caso em que as in- portanto, no samba de roda, uma
A presença de linhas-guia como fluências mútuas entre samba baia- tendência percebida pelos estu-
traço rítmico africano na músi- no e carioca são difíceis de elucidar. diosos na música influenciada pela
ca brasileira tem sido notada por cultura negro-africana de maneira
vários pesquisadores (Kubik 1979; Ex. 2, 3 e 4 geral.
Mukuna, s/d; Sandroni, 2001). A rítmica do samba de roda é
No caso do samba de roda, a linha- um terreno vasto e fascinante e aqui
guia mais presente é aquela talvez não se pretendeu mais que apontar
mais comum na música tradicional alguns elementos gerais para sua
brasileira: o famoso 3-3-2, ou col- caracterização.
cheia pontuada, colcheia pontuada,
colcheia.
Ex. 1
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 51
Melodia e harmonia
Os sambas de roda do Recônca-
vo baiano empregam escala diatô-
nica maior não temperada, com
o sétimo grau oscilando entre a
sétima maior e a menor e, freqüen-
temente, numa posição intermedi-
ária. A articulação das melodias tem
forte tendência a acontecer off-beat,
confirmando a opinião geral dos
especialistas sobre as tendências
rítmicas das músicas afro-america-
nas. A polifonia em terças paralelas
é muito freqüente, e mesmo obri-
gatória no caso do samba chula. Os
gritadores de chulas tendem a can-
tar no registro de tenor, chegando
às vezes ao lá agudo (ver Exemplo 5).
Estes são os intervalos predomi-
nantes, mas há também ocorrência
de quartas, quintas e sextas entre
os dois gritadores de chulas (ver
Exemplo 8).
No relativo, as mulheres cantam
geralmente uma oitava acima do
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 52
a Trad i c i onal
umb iga da, Sa m ba d e
Roda S u er di e c k . foto :
lu iz san to s.
página ant e ri or
Samb a d e R o da Fil h os
de Nag ô , d e s ã o f é li x .
foto: l ui z san to s .
sam ba d eira d o sa m ba d a
c ape la , d e c onc ei ç ã o
d o a l m ei da . foto : l ui z
santo s .
S am ba d e R o da Ra í z es
d e Ango la , e m S ã o
Franc is c o d o C ond e .
foto : l ui z santo s.
página ao la d o
S am ba da Cape la , e m
c onc ei ç ã o d o a l m ei da .
foto : l ui z santo s .
O segundo aspecto coreográfico complex dialogue in which various parts of the a cabeça – se move como um todo.
fundamental do samba de roda diz body talk at the same time, and in seemingly Esta articulação total do corpo pode
respeito ao papel preponderan- different languages: “um diálogo com- ser considerada uma conseqüência
te exercido pela parte inferior do plexo no qual várias partes do corpo natural da participação íntegra e
corpo. A expressão, aliás, difundida falam ao mesmo tempo, e em lin- apaixonada dos sambadores em suas
em todo o Brasil, segundo a qual o guagens aparentemente diferentes” performances. Como bem explicou
sambador tem que saber dizer no pé (1995:2). a sambadeira Alva Célia Medeiros,
sintetiza não apenas uma das regras de São Francisco do Conde: “O
mestras do samba como dança – Ou, nas palavras de uma sambadei- samba de roda, pra mim, é algo
regra que não é exclusiva do samba ra: espontâneo, é algo que mexe com o
de roda – mas também revela qual coração, mexe com o corpo, mexe
a parte do corpo que desempenha “Samba é para quem sabe sam- com a mente, mexe com toda a
o papel principal dentro da dan- bar (...) [mas] nem todo mundo estrutura nossa”.
ça. Com isso não se quer dizer que sabe sambar. Sambar não é estar Isso explicaria, talvez, por que
os pés são os únicos a falar, ou que pulando, sambar é no pé. O sam- alguns entrevistados consideram
o significado da dança se confina ba vem do pé. Se fizer o ritmo no a prática do samba como algo que
aos movimentos dos pés. Mas sim, corpo e o pé certinho no chão, o alegra, rejuvenesce e cura. A alegria
que os pés são o centro gerador de samba vai longe”. (Maria Augusta S. e o bem-estar desfrutados pelos que
movimentos, centro que ressoa e Ferreira, São Braz). participam da roda de samba, seja
repercute no resto do corpo. Como tocando, cantando ou dançando, é,
bem disse Barbara Browning, o Em suma, embora no samba os de fato, um tema recorrente alu-
samba é the dance of the body articulate, pés comandem os movimentos do dido por inúmeros entrevistados.
ou seja, a dança do corpo capaz de resto do corpo, como um centro Dona Dalva Damiana de Freitas,
falar (1995:1). A autora descreve gerador de movimento, o corpo da por exemplo, ressalta os benefícios
os movimentos do samba como a sambadeira – da ponta dos pés até físicos e mentais do samba dizendo:
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 57
ro, as mulheres vão, uma a uma, e dade, aliás, quase que inteiramente panela de alumínio que está no
passam por cima dele, executando formada por negros, como tantas chão, panela que depois é colocada
um passo pulado de cruzar e des- outras no Recôncavo. na cabeça. Enquanto isso, as ou-
cruzar as pernas; depois é a vez dos As sambadeiras Paparutas in- tras que estão no círculo cantam e
homens. Ainda na evolução dessa terpretam uma coreografia com um dançam, segurando um prato de
coreografia, um outro momento enredo fixo, ao som de um grupo comida na cabeça, preparado por
original consiste em os homens se de músicos. Todas vestidas com elas, e repetindo, inúmeras vezes, a
dirigirem às mulheres e, com muita trajes padronizados, as sambadei- seguinte canção:
habilidade, as suspenderem pelas ras do Paparutas desenvolvem uma
axilas e as girarem no ar. cena com a finalidade de mostrar a “E somos nós, Paparutas boas (bis)
O entusiasmo é vibrante, tanto culinária local por meio do samba, Na cozinha na manemolência
dos participantes como da platéia onde se destacam a coreografia e a somos pequenas e provocantes
que assiste atenta às evoluções dos pantomima de gestos. na maior reminiscência.
sambadores, principalmente quan- A exibição das sambadeiras do Eu sou a manemolência
do eles demonstram domínio numa Paparutas, junto a outros mora- que me chamam de Iaiá
variedade de ações corporais, como, dores da ilha, se deu ao ar livre. Eu sou a dona da cozinha
por exemplo, sapatear, deslizar, sa- No centro de um grande círculo como eu não há igual”.
cudir, balançar, pular, entre tantas formado só por mulheres e três
outras. meninas, fica a protagonista da O movimento de deslocamen-
Outra variação coreográfica do coreografia, a Dona da Comida, to no círculo é repetitivo e se dá
samba de roda que merece destaque que se destaca pela vestimenta de através de um passo que vai para um
é a do grupo de mulheres e músicos baiana, toda de branco. Inicialmen- lado e para o outro, balançando o
chamado Paparutas, da comunidade te, a Dona da Comida, sambando, corpo todo, num movimento de
da Ilha do Paty, no município de simula um gesto de mexer com pêndulo. Depois dessa primeira
São Francisco do Conde, comuni- uma colher de pau a comida numa cena, as mulheres se dirigem, uma
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 59
a d ona da c o mi d a das
pararu tas, i l h a d o
pat y, m uni c ípi o d e s ã o
franc isc o d o c on d e .
foto : l ui z san to s .
d e ta l h es d e
ind u m ent ária das
baianas d o sam ba d e
r o da s u er di e c k . fotos :
pe dro i vo o li v e ira.
à dir eita
v es time nta d as
paparutas . foto: lu iz
santos.
a bai xo
A s mulhe res do S a mba
d e Rod a Bar qu inh a de
B om Je s us ( Dona R ita ,
N i ce, C harle ne e Dona
Eli ene). foto: lu i z
santos.
calços, dependendo do local onde cabelos. Esse adereço é característi- presentes entraram na roda com as
se samba. co da tradicional baiana, das ven- roupas cotidianas que vestiam na-
Dos mais destacados trajes de dedoras de acarajé e das filhas-de- quele momento. Em outros grupos,
baiana tradicional estão os do grupo santo quando se apresentam para a os sambadores dançaram desde o
comandado por D. Dalva Damiana dança do Xirê, em cerimônias do início com a roupa do cotidiano,
de Freitas, na cidade de Cachoeira, candomblé.17 como calças compridas, bermudas,
durante as comemorações na Festa O único grupo de sambadores shorts, camisa de mangas curtas ou
da Nossa Senhora da Boa Morte. que vimos vestindo indumentária compridas de tecido de algodão ou
As sambadeiras usam por baixo da totalmente uniformizada e padro- mesmo camisetas de malha e sapa-
saia estampada – ampla, compri- nizada é o de D. Marina, em Con- tos. Em outros ainda - Terra Nova,
da, até os tornozelos, franzida na ceição do Almeida. Ainda assim, Suerdieck, Samba Chula de Pitan-
cintura e rodada – várias outras no final do samba, várias pessoas gueira - as sambadeiras usavam,
que são chamadas de anáguas, para
dar um maior volume. Além disso,
por cima dessa saia, elas usam uma
blusa ampla, branca e rendada, com
mangas curtas, a chamada bata;
uma grande quantidade de colares,
pulseiras, brincos; e um manto
largo e comprido colocado por
cima de um dos ombros, conhecido
pelas filhas-de-santo do candomblé
como pano da costa. Essas senhoras
também usam um turbante branco
amarrado na cabeça, encobrindo os
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 62
página ao la d o
S e u J o ã o d o B oi e os
ne to s, Ca lango e N êgo ,
d e S ã o Braz , m unic í pio
S anto A mar o da
P uri fi c a ç ã o . foto : l ui z
santo s .
do samba, meu pai era sambador, E depois eu fui crescendo, minhas Nem sempre a observação é
meus tios, meus parentes são daqui tias gostavam muito de samba e pedi tão passiva quanto pode parecer.
de Terra Nova, e eu me criei nesse a ela: ‘Júlia, deixe Fiita ir conti- Em alguns casos, parece haver uma
clima e gosto até hoje do samba, go pro samba’, e ela deixava e eu intencionalidade educativa, tanto
acho bonito” (Carlos Pereira dos sambava a noite toda, achava bo- por parte dos mais velhos, quanto
Santos, chamado Carlito Carpin- nito minhas tias sambando porque da própria criança:
teiro, Teodoro Sampaio). todo mundo sambava, era a família
inteira, achava bonito e continuei e “Quando eu tinha cinco anos
“Minha mãe saía para as rezas até hoje eu gosto do samba” (Dil- de idade, meu pai começou a me
e me levava e eu ficava olhando o ma F.A. Santana, conhecida como levar pro samba pra me ensinar. Aí
povo sambar, mas achava tão boni- Fiita, Teodoro Sampaio). eu fui, ficava com o olho em cima
to e dizia ‘eu vou sambar um dia’. da boca dos homens pra aprender e
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 64
daqui a pouco comecei a entrar no É importante ressaltar também ram envolver os rapazes no samba,
meio” (Zeca Afonso, São Francisco que o mundo do aprendizado do ensinando-os a tocar os diversos
do Conde). samba na verdade são dois mundos, instrumentos, o que obviamente
separados por gênero. As meninas tem a ver com a inclinação de cada
É claro também que, na ausên- aprendem a sambar com as mulhe- um e com os conhecimentos do pai,
cia dos pais, outros podem desem- res, que as introduzem nos passos tio, irmão etc. Em muitos casos,
penhar o papel de estimuladores do e movimentos, e adotam a postura como foi visto, o gosto dos rapazes
aprendizado: de madrinhas: em alguns casos foi ob- pelo samba é herança familiar, mas
servado e ouvido que as sambadeiras nem sempre é este o fator decisivo.
“Eu fui criado com um cidadão experientes se responsabilizam por Conversando com os sambadores,
que era sambador, aí eu fui apren- uma ou duas meninas, que inclusive percebe-se que muitas vezes fala
dendo com ele e gostando” (Manoel entram na roda junto a essas madri- mais alto o pendor individual do
Domingos J. Silva, dito Duzinho, nhas, sambando paralelamente de jovem, talvez o que se chama de
Teodoro Sampaio). forma discreta, acompanhando seus talento. Ora, segundo os samba-
passos e caminhos na roda. Esse dores, em muitos casos este pendor
“Não vou dizer nem que apren- aprendizado dentro da roda, como musical estaria se inclinando em
di com minha mãe, que minha mãe em outros momentos fora da roda, outras direções. Os jovens interes-
ela nunca gostou de samba, era uma também pode ser visto como uma sados em música, e em aprender
pessoa meia pacata. Mas aprendi introdução ao mundo feminino, instrumentos como cavaquinho ou
com as pessoas daqui, da terra, as pois a jovem começa a desenvolver violão, geralmente querem tocar os
pessoas mais antigas que saíam com uma consciência maior sobre seu estilos musicais do momento, e são
a barquinha, e eu desde pequena corpo e sensualidade, alimentada, poucos os que se dedicam ao estudo
acompanhava e aprendi” (Maria além disso, pelas conversas e co- do toque da viola no samba chula.
Rita S. Machado, Bom Jesus dos mentários das mulheres mais velhas. Várias conversas com os sambadores
Pobres). Os homens também procu- pareceram indicar que o aprendi-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 65
zado baseado na oralidade e na imi- proeminente no caso masculino, vir a tornar-se sambadeiras, en-
tação poderia ser complementado, que, ademais, traz conflitos maiores quanto apenas poucos dos rapazes
com proveito, por estilos educativos entre as hierarquias e comporta- se tornarão gritadores de chula ou
que ligassem o samba a interesses mentos tradicionais dos samba- violeiros, pontos altos da hierarquia
mais típicos dos jovens de hoje, dores, e o estilo de convívio mais dos sambadores; embora certamen-
como o uso de recursos tecnológi- democrático dos jovens rapazes. É te uma quantidade um pouco maior
cos, a profissionalização etc. possível que as diferenças de gênero deles possa vir a tocar regularmente
Assim como no caso das moças no que se refere ao aprendizado os demais instrumentos, como pan-
em relação às mulheres, o samba estejam ligadas também ao cará- deiros, atabaques e timbales.
também serve de via de introdução ter menos especializado do papel das
dos rapazes ao mundo dos homens. mulheres no samba de roda. Ou
Mas este papel do samba não é tão seja, quase todas as jovens podem
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 66
1. Uma descrição detalhada dos instru- edição e estudo crítico de uma coleção de
mentos citados será encontrada à frente. peças para machete, compostas em 1846,
2. Padrão (ou desenho) rítmico que se por Cândido Drummond de Vasconcelos
repete com regularidade (nota do editor). na ilha da Madeira (Morais, 2003). O
3. Expressão de origem latina utilizada instrumento em questão não corresponde
na escrita musical para indicar que deter- ao machete do Recôncavo, sendo, em vez
minado trecho de uma música pode ser disso, bastante próximo ao cavaquinho.
notas executado sem estrita adesão ao andamento É bastante possível que o machete que dá
estabelecido, que uma passagem é opta- nome ao conto “O machete”, de Macha-
tiva ou que o executante pode, em suma, do de Assis (1994[1878]), seja também
improvisar (nota do editor). um cavaquinho. Vide também Budasz
4. Seriam eles: Alagoinhas, Aratuí- 2001:30-4.
pe, Cachoeira, Camaçari, Castro Alves, 13. Clarindo dos Santos (1922-1980)
Catu, Conceição de Feira, Conceição do foi o mais célebre construtor de violas do
Almeida, Coração de Maria, Cruz das Recôncavo. Foi um dos principais cola-
Almas, Feira de Santana, Irará, Itaparica, boradores da pesquisa de Ralph Waddey,
Jaguaripe, Maragogipe, Mata de São João, no final dos anos 1970. Quando de sua
Muritiba, Nazaré, Pojuca, Santo Antônio morte, Ralph a contragosto comprou o
de Jesus, Santo Amaro, Santo Estevão, São que restava de sua oficina, para evitar que
Félix, São Felipe, São Francisco do Conde, se perdesse (Waddey, comunicação pessoal,
São Gonçalo dos Campos, São Sebastião julho de 2004). Este acervo encontra-se
do Passé e Salvador. hoje na Universidade do Texas, em Austin.
5. Para a descrição de um destes, 14. Sem esquecer que tal “sintonia”
ocorrido em Santo Amaro em 1808, e que não acontece naturalmente, mas depende
parece ter sido especialmente impressio- de certo conhecimento prévio da cultura
nante, vide Reis, 2002:104ss. musical em questão.
6. Para os poemas de Gregório de 15. Para uma discussão do conceito
Matos, Budasz, 2001:148-55; para os de contrametricidade, vide Sandroni,
vilancicos, Damasceno, 1970:88-9. 2001:21-8.
7. É possível que Lindley não conhe- 16. Termo técnico empregado em
cesse o cavaquinho, e o tivesse confundido estudos de dança, que significa “esfera de
com um violino. De fato, na seqüência ele movimento”.
menciona o “dedilhar” do instrumento, e 17. O Xirê é um dos rituais que com-
não o friccionar de um arco. põem as celebrações em louvor às divin-
8. Citado em Santos, 1998:27. O jor- dades do candomblé, no qual as filhas-
nal citado é de 19/5/1866. de-santo dançam em torno de um eixo
9. Citado por Santos, 1998:33. O imaginário ou assinalado por um elemento
jornal citado é de 7/2/1867. vertical denominado poste central. Cor-
10. No verbete “Chula” (não assinado), responde à parte pública dessas celebrações
para a Enciclopédia da Música Brasileira (Marcon- e pode ser assistido por pessoas não inicia-
des, 1977:192-3). das (nota do editor).
11. Substantivo masculino, pronuncia-
se com o “e” do meio fechado: machête.
12. No final de 2003, o musicólo-
go português Manuel Morais publicou a
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 67
pande ir o u sa do na
m aru ja da, em saub ara.
foto: lu iz san tos .
justificativa
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 69
D ona Ma da le na, em
G eolâ n dia, municí pi o
d e Ca baceiras do
Parag uass u. foto: lu iz
santos.
o samba de roda
como objeto de
registro
nome, mas com inúmeros traços como ainda hoje, eram chamados meros homens e mulheres de todo
comuns – do tambor de crioula também de sambas - coincidem o país. É o caso também do samba
maranhense. É o caso também do em inúmeros pontos com o que se de roda baiano, que continua “vivo
samba de roda baiano, objeto do pode observar na Bahia em ple- ainda lá”, segundo uma canção
presente dossiê, que, no entanto, no século XXI. Tais conexões são de Dorival Caymmi. Como berço
ocupa na música popular do Brasil reconhecidas e assumidas pelos reconhecido do samba brasileiro,
uma posição singular. praticantes do samba em sua versão ele já ocupa um lugar privilegiado
Esta singularidade se deve, entre carioca e nacional, como atestam, no panteão da sensibilidade dos
outras coisas, a razões históricas entre outras coisas, inúmeras letras habitantes deste país; e também, é
e a traços formais. Tanto por sua de samba e a presença indispensável importante que se diga, na de todos
origem, como por algumas de suas de uma Ala das Baianas em todos os aqueles que, da Suécia ao Texas,
características, o samba carioca – o desfiles de escolas de samba. passando pela África e pelo Japão,
samba brasileiro – apresenta pro- A enorme pujança, no Brasil, hoje amam e praticam o samba em
fundas conexões com o samba de da música popular profissional, sua versão mais difundida. É mais
roda baiano. É ponto pacífico na nacionalizada através dos meios de do que justificado, portanto, que
historiografia do gênero que os pri- comunicação – e conhecida a par- seja amplamente reconhecido tam-
meiros sambas cariocas, incluindo o tir dos anos 1960 pela sigla MPB bém como prática contemporânea e
famoso Pelo telefone (1917), nasceram –obscureceu muitas vezes o fato de como patrimônio vivo.
no seio da comunidade de imigran- que as formas de expressão tradi- A magnitude do valor do samba
tes baianos que existia em torno da cionais, que lhe serviram de ponto de roda como bem cultural reside
Praça Onze, berço do carnaval do de partida e fonte de inspiração em seu conjunto. Ele é dança, é
Rio de Janeiro (Silva, 1975; Moura, no decorrer do século XX, longe música, é poesia, é inclusive tea-
1983). As descrições dos eventos de serem apenas raízes longínquas, tro, posto que apresenta cenários,
festivos onde se cantavam e dança- continuaram, e continuam a ser, indumentária e papéis a serem
vam tais sambas - eventos que, aliás, parte importante da vida de inú- desempenhados. E é – não menos
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 71
Do na Fia e o Sam ba d e
R o da d e Piraju ía . foto :
l ui z santo s .
deixo festa, futebol, qualquer coisa, também é ligado por seus pratican- preserva uma tradição, preserva
e vou pro samba” (Manoel Domin- tes ao seu papel como testemunho uma raiz, uma cultura que é mui-
gos Silva, dito Duzinho, do samba de tradições mais que centenárias to importante para a referência da
chula de Teodoro Sampaio). trazidas ao Brasil pelos africanos própria Bahia, dentro dessa tradi-
escravizados. ção que é o samba” (Alva Célia, S.
O samba é concebido como algo Francisco do Conde).
que tem caráter de síntese. Isto, por “O que eu sei é que partiu mais
dizer respeito à totalidade de cada dos escravos, né? Que os primeiros “(...) essa tradição que vem pas-
pessoa envolvida. Mas também por habitantes da nossa terra foram os sando de geração pra geração. Foi
integrar campos distintos, consti- escravos, e geralmente nos en- meu bisavô quem trouxe para aqui
tuindo assim um saber próprio a genhos a minha mãe contava que para o Brasil, porque ele foi um dos
seus praticantes: se fazia muito samba. De noite, escravos que, quando o povo veio
“[No samba de roda] você vê quando eles terminavam o trabalho, da África, ele veio como sambador,
que algumas músicas são cantigas de quando iam descansar, noite de lua, e aqui passou pro meu avô e passou
roda, a gente canta até umas mú- sentavam no terreiro e daí surgiam pro meu pai e passou pra mim, e
sicas que são entoadas dentro dos os sambas” (Maria Ana do Rosário, por isso a gente não quer deixar
terreiros pelos caboclos (...) e até Saubara). acabar porque já tá na terceira ou
a gente faz trovas também, poesias, quarta geração” (Zeca Afonso, S.
versos. Então pra mim é uma mis- “O samba na verdade a gente Francisco do Conde).
tura de ideais, de cultura, uma mis- sabe que é de origem africana, os
tura de um saber, um saber que só o escravos quando eles vieram trou- Essa convicção expressa pelos
próprio nativo da criação do samba xeram seus anseios, seus desejos, praticantes do samba é, como já
que sabe sentir isso aí” (Idem). tradições, ideais. E na verdade não foi visto, corroborada pelos regis-
morreu, continuou: então pra mim tros históricos. Mas ela não exclui
O valor do samba de roda é muito importante porque a gente o fato de que o samba de roda é
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 73
Os ir mão s Zi lda do
S acrame nto e Alc ide s
d o S acrame nto, do
grup o A s Paparutas .
foto: lu iz san tos .
resultado de um processo de trocas cordas africanos. O mesmo se pode fazem a glória da moderna música
interculturais. Sendo uma atividade dizer da parte poética do samba, popular brasileira, como Dorival
de afro-descendentes, e exibindo cantada em língua portuguesa, com Caymmi (Samba da minha terra), Ge-
traços culturais de origem africana, corte estrófico e rítmico português, raldo Pereira (Falsa baiana) e Caeta-
ele não deixa de comportar, desde mas com emissão vocal e conteúdo no Veloso (Boa palavra, É de manhã...).
seus primeiros registros históricos, verbal absolutamente associados à Nos dias de hoje, o samba de roda
elementos trazidos pelos europeus. cultura dos afro-descendentes do tem inspirado compositores como
Esses elementos, no entanto, foram Recôncavo. Roberto Mendes - especialmente
como que apropriados à sua maneira O papel do samba de roda baia- o CD Tradução - Raimundo Sodré,
pelo samba de roda. Talvez o caso no como fecunda matriz de novas com o CD Dengo e outros. Tem
mais típico seja o do instrumento formas culturais é também indu- também inspirado grupos con-
musical prato-e-faca: os utensílios bitável. Como já foi dito, é ponto tratados por grandes gravadoras,
domésticos de origem européia pacífico entre os historiadores da como alguns dos ligados à chamada
foram empregados, de maneira música popular brasileira que foi da axé music. Finalmente, cabe men-
totalmente inesperada para seus comunidade de imigrantes baianos cionar que o samba de roda é base
fabricantes e utilizadores prévios, no Rio de Janeiro, no início do do trabalho apresentado por Dona
como idiofones raspados. Algo século XX e dos sambas que faziam, Edith do Prato - ela própria uma
semelhante ocorre com os instru- que começou a tomar forma o habitante do Recôncavo e praticante
mentos de corda - violão, machete, samba carioca, com suas inúmeras tradicional do gênero - no CD Vozes
cavaquinho - que, mesmo trazidos variantes como o samba-enredo, o da purificação, que obteve em 2004 o
por europeus, soam nas mãos dos samba de breque, o samba canção, importante prêmio TIM de músi-
sambadores afro-descendentes o samba de partido-alto etc. ca popular brasileira na categoria
de maneira totalmente original e O samba de roda foi também Regional.
única, remetendo em alguns casos fonte de inspiração para alguns Por tudo isso, a comunidade do
às sonoridades de instrumentos de dos compositores profissionais que samba de roda engajou-se no seu
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 74
D o na Dalva, do S amb a
d e R oda Sue rd ieck, em
c ac hoe ira . foto: lu iz
santos.
enfraquecimento
da forma de
expressão,
pressões
e riscos
potenciais de
desaparecimento
vo, rústico. Lê-se, por exemplo, na ter nenhuma repercussão positiva plo de uma situação conhecida de
internet: “É uma música muito rica sobre a vivência do samba de roda quantos se interessam pela cultura
que ainda está lá, quase primitiva, em, digamos, Santiago do Iguape, popular tradicional no Brasil. É
como a chula, ultimamente esque- que fica a menos de 50 km da casa problema cuja solução exige uma
cida até pelos próprios baianos” (da de Dona Edith em Santo Amaro. A longa batalha de idéias e luta contra
apresentação do CD do sambista cadeia de mediações que vai do pal- preconceitos arraigados, tal como
Roque Ferreira, na página da gra- co do Prêmio TIM ao adro da igreja vêm empreendendo o Iphan e o
vadora Biscoito Fino). Ou ainda: de Santiago do Iguape é demasia- Ministério da Cultura. Nessa luta,
“Das 14 faixas do álbum, apenas três do complexa. Em todo caso, se é um dos caminhos principais é ouvir
não pertencem ao domínio públi- possível argumentar que tal pre- as reivindicações dos próprios sam-
co. A predominância das faixas de miação traz embutida pelo menos a badores.
autoria desconhecida se deve ao fato possibilidade de um efeito positivo Uma das suas queixas recorren-
de o samba de roda ser um gênero na outra ponta, deve-se reconhecer tes refere-se à carência de violeiros
primitivo, cantado e cultivado pelas que, para que tal efeito se realize, é e violas adequadas. O instrumento,
baianas antes do aparecimento do preciso justamente atuar na referida em muitos casos, precisa ser subs-
samba propriamente dito, no Rio, cadeia de mediações. tituído por violão, cavaquinho ou
na década de 10” (da apresentação A percepção atual de uma parte bandolim; a queixa dos sambistas
do CD de Dona Edith do Prato, na significativa dos sambadores do quanto à falta de bons tocadores é
mesma página). Recôncavo é a de que seu samba de generalizada. A situação dos demais
Nesse quadro, a relativa valo- roda é desvalorizado pela socieda- instrumentos também é, em geral,
rização do próprio samba de roda de. De fato, o descaso para com o bastante insatisfatória. Já foram
como gênero comercial – manifes- samba de roda por parte de ins- mencionadas, em particular, as
tada, por exemplo, na mencionada tâncias locais - quer da sociedade sanfonas de oito baixos utilizadas
premiação do CD de Dona Edith civil, quer políticas, educacionais por alguns grupos, todas encontra-
do Prato pela TIM – pode não e culturais - é apenas um exem- das em estado lastimável.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 77
a l unos t end o au la
d e vi o la. foto : j ean
jau l b ert.
devolvido por meio de cópias para parte da juventude da região, como faço minha rocinha na terra dos
os sambadores, por enquanto há modelos a imitar, mas antes como outros porque eu não tenho sítio
apenas a intenção de que possa vir a personificação de um estado do pra plantar (...) Se não plantar roça
a ser consultado facilmente pelos qual se quer escapar. vive de quê? Tem muitas pessoas
futuros sambadores do Recôncavo. que têm idade e não são aposen-
Essa situação de falta de acesso às “O trabalho é esse, vivemos tudo tadas, não recebem. Passar fome
informações geradas por pesquisas de pescaria. Quando é no verão, não pode, tem que plantar roça,
é sentida por muitos sambadores, tem uma coisinha melhor, e quan- feijão, milho, mandioca, abóbo-
com toda a razão, como um desres- do é no inverno, que a pescaria ra, batata, tudo pra sobreviver,
peito aos seus direitos culturais. ‘pifa’, eles todos passam privação. senão vai morrer de fome. (...) E
Além disso, é forçoso mencio- Não pedem porque têm vergonha se não comer não agüenta sambar,
nar a situação de grande precarie- de sair pedindo. (...) Dentro da tem que comer pra ficar forte, pra
dade material em que vive boa parte maré, perdem a noite toda dentro agüentar sambar!!!!” (Madalena dos
das sambadoras e sambadores. De de uma canoa, correndo o risco Ramos, Geolândia, Cabaceiras do
fato, o principal risco de desapa- de perder a vida, um dia trazem Paraguaçu).
recimento do samba de roda está um quilo de siri, e às vezes voltam
ligado às difíceis condições sociais e pra casa com meio quilo, às vezes Nessas condições, a juventude
econômicas em que vivem seus pra- tem casa com quatro, cinco filhos, volta seus olhos para as perspecti-
ticantes. Em sua maioria, negros; marido desempregado, como é que vas de vida moderna oferecidas por
falantes de português dialetal, estig- está passando?” (Manoel Barbosa tudo que vem da capital do estado
matizado socialmente; em situação do Amor Divino, dito Mané do e, mais ao Sul, dos centros econô-
econômica precária pois vivem de Velho, Itapecerica). micos do país. Nisto se enquadram
agricultura de subsistência, da pesca novos gêneros e estilos de diversão,
ou de aposentadorias irrisórias, eles “Eu fazia e faço [roça], arrumo difundidos pelos meios de comu-
não se apresentam, para a maior um pedacinho de terra pra plantar, nicação de massa. Entre estes, em
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 80
M ãe Euf rásia , de
saub ara . foto: lu i z
santos.
b oi e sa m bad or es e m
fr e nt e à asso cia ç ã o
c u lt ural fi l h os d e
nag ô , e m s ã o f é li x .
foto : l ui z san to s .
S e u M un din h o , da
Marujada d e Sau bara.
do Plano
Integrado de
Salvaguarda e
Valorização do
Samba de Roda
componentes
do plano
a luno s de v i ola s e
aj udan do. foto: jean
jaulbe rt.
Além disso, é importante que os seja quanto às várias modalidades sobre tais mecanismos indica que,
resultados das pesquisas e as visões em que é praticado nas diferentes em muitos casos, a transmissão do
dos especialistas das diversas áreas regiões. samba ocorre concomitantemen-
sobre tais resultados possam ser dis- Os seminários onde serão deba- te a outras atividades. Em outras
cutidas e confrontadas, o que será tidos os resultados das pesquisas e o palavras, aprende-se o samba de
feito por meio de seminários sobre andamento do Plano de Salvaguarda roda fazendo samba de roda e, não
o samba de roda. Esses seminários contarão sempre com a participação necessariamente, em horas e locais
possibilitarão também que o traba- de sambadores como expositores específicos para o aprendizado. É
lho desenvolvido sobre esta forma e debatedores, e não apenas como importante que a intervenção nessa
de expressão possa ser compartilha- assunto do debate. área leve isto em conta e evite ao
do e aproveitado por pessoas envol- máximo o risco da escolarização desta
vidas com outras que compõem o 2. Reprodução e transmissão forma de expressão.
rico patrimônio cultural brasileiro. O samba de roda possui seus A ação mais urgente nesta linha
As atividades de pesquisa de- meios próprios de transmissão, se refere à reprodução dos saberes
verão ser desenvolvidas em cola- baseados na imitação, na oralidade relativos à viola de samba e, em par-
boração com os sambadores e suas etc. A intervenção do plano nesta ticular, ao machete: o saber fazê-lo
comunidades, e não simplesmente área justifica-se pelas alterações do e o saber tocá-lo. Para o saber-fa-
tomando-os como informantes. De contexto social, que têm diminuído zer, trata-se propriamente de uma
fato, muitos sambadores e pessoas a eficácia destes mecanismos tradi- revitalização, na medida em que o
de suas comunidades que participa- cionais. Mas tal intervenção precisa último artesão de violas de samba
ram como colaboradores na realiza- ser baseada, em primeiro lugar, conhecido, como já mencionado,
ção do dossiê de Registro demons- no conhecimento desses mesmos morreu há mais de 20 anos. Assim,
traram um profundo interesse por mecanismos, portanto, em conexão será necessário reconstruir violas
aumentar seus conhecimentos sobre com a linha de ação 1: Pesquisa. de samba e machetes a partir dos
o samba, seja quanto à sua história, O conhecimento já produzido poucos exemplares remanescentes,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 88
baiana d o sa m ba
s u er di e c k
au tografand o c d
após apre se nta ç ã o
e m brasí lia - d f. foto :
m árc i o vianna.
e com a ajuda de artesãos-luthiers dança. Isto poderá ser feito com nacional, e também à difusão do
que, no Recôncavo ou em outras o incentivo aos sambas-mirins, e conhecimento produzido sobre ele.
regiões do país, ainda fazem violas também, no caso do aprendizado Isto será feito por meio de publi-
similares. As violas que vierem a ser dos instrumentos de cordas, por cações em forma de livros, CDs,
construídas por esses artesãos serão, meio de oficinas ministradas pelos vídeos e outras mídias disponíveis.
é claro, testadas pelos sambadores próprios portadores das tradições Por outro lado, o valor do samba
para posterior aperfeiçoamento. do samba de roda, em especial pelos de roda não pode nem de longe
Para o saber-tocar, conta-se mais velhos. Nesta linha de ação, a ser aquilatado pelo público sem
com a participação do Sr. José participação dos sambadores e de um contato direto, razão pela qual
Vitório dos Reis, também conhe- suas comunidades é, mais do que considera-se importante que esta
cido como Zé de Lelinha, de São em qualquer outra, condição sine forma de expressão, também fora
Francisco do Conde, que domina qua non. De fato, aqui, o papel do de seu ambiente de origem, possa
a técnica e o repertório do mache- Iphan e das instituições parceiras ser apresentada ao vivo. Em algu-
te, e poderá transmiti-los a jovens será, sobretudo, o de contribuir mas localidades do Recôncavo, os
violeiros. Paralelamente deverá para a continuidade e a melhoria sambadores já se organizaram em
ser feito um trabalho exaustivo de de um processo de transmissão de grupos semiprofissionais e tiveram
registro em vídeo da performance saberes e práticas que se dá entre os oportunidade de se apresentar em
do Sr. Reis. sambadores mais velhos e as novas outras cidades do país e mesmo no
Outras ações propostas re- gerações. exterior. O plano pretende esti-
ferem-se à transmissão às novas mular tais iniciativas por meio de
gerações do samba de roda em sua 3. Promoção orientação, contatos e apoio ge-
totalidade, abordando diferen- Esta linha relaciona-se à valo- rencial. Outro mecanismo eficaz
tes aspectos: o canto - incluindo rização do samba de roda junto a de promoção do samba de roda é
aí as chulas e os relativos cantados um público mais amplo, tanto em a organização de uma exposição
a duas vozes, os instrumentos e a nível local, como nacional e inter- itinerante, com fotografias,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 89
mac h e t es e m o fi c ina
d e l u t eria . fotos : jean
jau l b ert.
página ao la d o
s e u z é d e l e lin h a c o m
o mac h e t e , e m s ã o
franc is c o d o c ond e :
foto : l ui z santo s .
constituição, ligada a este Centro, com o Centro de Referência do do machete. Deverá ser criada no
de uma rede de Casas do Samba nos Samba de Roda. Esta conexão diz Recôncavo a Oficina de Luteria
municípios do Recôncavo. Serão respeito, por exemplo, à disponibi- Tradicional Clarindo dos Santos,
espaços simples, a serem usados lização de cópias de documentos do nome dado em homenagem ao
coletivamente pelos sambadores centro para sambadores locais, mas citado artesão de violas, já falecido.
para ensaios, atividades educativas, também ao envio de informações Esta Oficina se dedicará em especial
reuniões e o que mais necessitarem. sobre as peculiaridades dos sambas à recuperação do ofício de fazer
Deverão estar dotadas de um salão locais para o centro. violas de samba, à capacitação de
principal, onde se realizarão as Finalmente, uma importante artesãos e também à confecção de
atividades mencionadas e uma sala ação de apoio se refere à revitali- outros instrumentos, como pandei-
menor, com computador e arqui- zação da luteria das violas artesa- ros, atabaques e timbales.
vos, onde se trabalhará em conexão nais do Recôncavo, em particular No que se refere ao apoio ao
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 91
Execução e
etapas do plano
de salvaguarda
S e u Z é d e L e linh a e
al uno prat i c and o o
mac h e t e . foto : jean
jau l b ert.
transmissão do saber a ele relacio- Fase 2: 2005-2006 presidida pelo ministro da Cultu-
nado deverá continuar nas próxi- Ações previstas ra, Gilberto Gil, foi apresentado
mas fases. • Início da implantação física do aos sambadores do Recôncavo o
O artesão responsável pelo Centro de Referência do Samba de projeto de restauração do Solar
trabalho inicial de retomada da Roda, da Oficina de Luteria Tra- Araújo Pinho, também conhecido
fabricação de violas machetes foi o dicional Clarindo dos Santos e da como Solar Subaé, imóvel que será
Sr. Antônio Carlos dos Anjos, da rede de Casas do Samba. destinado à implantação do Centro
cidade de Cachoeira, carpinteiro e • Apoio aos sambas-mirins. de Referência do Samba de Roda.
músico experiente na confecção e • Complementação das ações de No evento foi também assinado,
manutenção de instrumentos musi- pesquisa e documentação. por vários prefeitos da região, um
cais. Esta indicação foi validada por • Aquisição e duplicação de Termo de Compromisso e Adesão
pesquisadores e mestres do samba acervos. ao Plano de Salvaguarda do Samba
de roda do Recôncavo, sendo, nesta • Realização de seminários de de Roda.
fase, fabricadas três novas violas e acompanhamento do Plano. De acordo com este instrumen-
restauradas outras duas, uma das • Publicação de livros, CDs e to, caberá ao Ministério da Cultura
quais de propriedade do Mestre vídeo sobre o samba de roda. viabilizar a instalação da rede de
Zé de Lelinha. Todo o processo de • Organização definitiva da As- Casas do Samba nos municípios
fabricação foi registrado em foto- sociação dos Sambadores e Samba- do Recôncavo e ao Iphan, entre
grafia e vídeo, além de documenta- deiras do Estado da Bahia. outras atribuições, incentivar a
das as entrevistas nas quais o artesão continuidade das pesquisas sobre o
comenta e explica os procedimentos Ações realizadas ou em samba de roda na Bahia; ampliar as
de construção do instrumento. andamento ações que visem ao fortalecimento,
Em 24 de agosto de 2006, à reprodução e à transmissão dos
em solenidade realizada na cidade saberes e conhecimentos relaciona-
de Santo Amaro da Purificação e dos ao samba de roda; e promover
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 94
notas
da Oficina de Luteria Tradicional e para administração e manutenção 1. Dossiê de Registro da Arte Gráfica
Clarindo dos Santos. Na realidade, da rede de Casas do Samba. Kusiwa dos índios Wajãpi, 2002.
2. Respectivamente, Josias Pires e Jean
um embrião dessa oficina já entrou • Continuidade do apoio aos Joubert Freitas Mendes.
em atividade a partir da fabrica- sambas-mirins. 3. Foram produzidos 660 minutos
ção das três novas violas machetes • Oficinas de samba de roda de gravação audiovisual em Mini DV e
que foram financiadas pelo Iphan, ministradas pelos sambadores mais 180 minutos em MD, e 360 fotografias
estando em andamento negociações velhos. digitais.
4. Artigo 6°, do Decreto n. 3551, de 4
para a implantação definitiva desse • Exposição sobre o samba de de agosto de 2000, que criou o Registro
equipamento. roda. de bens culturais de natureza imaterial e o
• Apoio à apresentação de Programa Nacional do Patrimônio Imate-
Fase 3: 2006-2008 grupos de samba de roda fora do rial.
Ações Previstas Recôncavo.
• Conclusão da implantação
física do Centro de Referência do Fase 4: 2008-2009
Samba de Roda e da Oficina de Ações Previstas
Luteria Tradicional Clarindo dos • Finalização da implantação da
Santos. Continuidade da implanta- rede de Casas do Samba.
ção da rede de Casas do Samba. • Ações de avaliação do anda-
• Ações de apoio para a ma- mento e da eficácia do plano desen-
nutenção e auto-sustentabilidade volvido.
das estruturas de apoio montadas. • Avaliação dos impactos da sal-
Treinamento e capacitação de sam- vaguarda no samba de roda.
badores para captação de recursos
junto a agências e programas gover-
namentais e não-governamentais,
Balanço preliminar
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 97
resultados do
foto : l ui z san tos .
processo de
salvaguarda do
samba de roda
do dossiê de Registro, a realização investimentos estratégicos voltados desafios a enfrentar para que todos
de oficinas para revitalização do para o fortalecimento dessa forma os seus objetivos sejam atingidos.
saber-tocar e do saber-fazer viola de expressão em aspectos cruciais Um desses desafios é, sem dúvida, a
machete, a organização da Associa- relacionados à sua reprodução e consolidação de uma rede de par-
ção dos Sambadores e Sambadei- transmissão e, também, à afirmação ceiros e a implementação de ações
ras do Estado da Bahia, a edição e e consolidação de seus praticantes de capacitação que permitam ao
lançamento do CD de músicas dos como condutores do processo de processo de preservação do samba
grupos do Recôncavo e outras ações valorização. avançar com suas próprias pernas.
de divulgação, o Ministério da Cul- Apesar de suas conquistas, Outro desafio, não menos impor-
tura e o Iphan confirmam seu com- entretanto, o plano de salvaguar- tante, é a construção de indicadores
promisso com o fortalecimento do da do samba de roda tem ainda para monitoramento e avaliação dos
samba de roda. Estes constituíram um longo caminho a percorrer e resultados e impactos do trabalho
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 99
de salvaguarda, de modo que se porque a gente não pode deixar ção dos chamados sambas-mirins,
possa acompanhar a dinâmica de isso. Eu faço tudo, dou o meu grupos de crianças que fazem samba
valorização iniciada, especialmente sangue pra não acabar essa tradição” de roda sob orientação de samba-
no que toca à melhoria das condi- (Dona Rita, Bom Jesus dos Pobres). dores mais velhos. Entre estes, se
ções materiais e sociais que permi- destaca o que foi organizado por
tem a existência, a continuidade e “A gente está fazendo um tra- Dona Dalva Damiana de Freitas no
a renovação da tradição do samba balho de conscientização grupal, a grupo de samba de roda Suerdie-
de roda e sua transmissão às novas gente reúne as pessoas que fazem ck, na cidade de Cachoeira. Esse
gerações. parte do grupo para conversar so- samba-mirim foi criado em 1984
Até a proclamação do Registro, bre o real valor do samba. A gente no bairro do Rosarinho e desde
as principais iniciativas no sentido também está fazendo um trabalho então atende a comunidade, en-
da preservação do samba de roda de preservação através de crianças, volvendo pais e conhecidos, des-
eram tomadas pelos próprios sam- em reuniões falando sobre o que pertando-os para a importância da
badores. Muitos grupos já vinham, é o samba, como surgiu o samba, continuidade do samba de roda, e
nos últimos anos, se preocupando a importância do samba pra nos- recebendo crianças, em sua maio-
com a questão da transmissão de sa tradição, pra nossa história, a ria, com idades entre cinco e dez
suas técnicas e conhecimentos, con- relação do samba com nossa identi- anos. Integrantes da família de D.
forme já descrito em outras partes dade cultural. E aí a gente procura Dalva são responsáveis pelo sam-
deste dossiê: preservar, porque se a gente não ba-mirim, com responsabilidades
procurar preservar ele vai mor- complementares entre si. Sua filha
“O que eu tenho feito é persis- rer” (Alva Célia, São Francisco do Luci, recentemente falecida, por
tido. Muitas meninas não querem Conde). exemplo, desempenhava um papel
sair [participar do samba], ficam didático importante relativo ao to-
envergonhadas, e eu faço a cabeça Cabe mencionar também, como que das tabuinhas e à performance
delas [convenço-as a participar], fruto dessas preocupações, a cria- coreográfica das meninas. Gilson,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 100
c aruru d e c os m e e
d amião . foto : l ui z
santos .
página ao lad o
Dona Aurin d a,
toc ado ra d e prato , mar
gran d e , m uni c ípi o v era
c ruz.foto : l ui z santo s .
notas
mac h e t e . foto : je an
jau l b ert.
viola de samba
e samba de viola
no recôncavo
baiano1
1. VIOLA DE SAMBA
o segundo sentido do primado: o nando breves e simples interlúdios de outros instrumentos de cordas
sentir-se que é o primeiro dentre os de solos, que, no caso do “repen- (como o violão e o cavaquinho) e
instrumentos. Afirma-se ser o mais te”, proporcionam ao cantador um instrumentos de percussão (ten-
nobre e histórico, o mais brasileiro rápido momento para pensar no do como centro o pandeiro). A
e, ao mesmo tempo, o mais euro- próximo improviso. exatidão é essencial na complexa
peu. Na Bahia, tanto no sertão como, interação entre as violas, os outros
Em duas regiões brasileiras, a de maneira particular, no Recôn- instrumentos e quem dança ou
música da viola encontrou apre- cavo, a viola acompanha a dança e canta. Este complexo e preciso rela-
ciável número de cultivadores na o canto. O violeiro não só fornece cionamento, mais a necessidade de
indústria de discos. A viola é o um fundo rítmico aos que dançam, uma conveniente e bem-estrutura-
ponto de apoio do acompanhamen- como é encorajado a desafiá-los a da variedade musical, caracterizados
to da “música caipira”, cujo centro acompanhar com os pés a destreza pela maneira de combinar violas de
é o Estado de São Paulo, tendo se rítmica dos dedos do executante. diferentes tamanhos, afinações e
industrializado principalmente em Um “toque” (breve padrão harmô- toques, proporciona um verdadeiro
função desse mercado. Visto ser nico, melódico e rítmico) básico é ideal de conjunto que funciona na
São Paulo a metrópole fabril, ali constantemente repetido, mas há prática e se articula na teoria tradi-
é também fabricada, prevalecen- dentro desse padrão uma urdidura cional oral, parte dela aforismática,
do, pois, em todo o país, a “viola em ornamentação e ritmo de con- parte racional. Efetivamente, pou-
paulista”. No nordeste brasileiro, a siderável complexidade. O conjun- cas coisas podem ser mais típicas da
“viola repentista” é a companheira to instrumental consiste de várias complexidade do Recôncavo baiano
necessária do cantor de “repentes” violas (de tamanhos diferentes, ou, - arcaico, místico, tradicional, em
e “desafios” improvisados. O acom- se do mesmo tamanho, afinadas rápida mudança e de extraordinária
panhamento de violas nos estilos diferentemente, ou ainda, se afina- heterogeneidade - do que a viola e
caipira e repentista é musicalmente das da mesma maneira, executando sua música, e os usos e significações
bastante secundário, proporcio- toques diferentes), eventualmente de ambas.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 107
S e u Z é d e L e linh a e se u
mac h e t e . foto : l ui z
santo s .
VIOLA NO RECÔNCAVO ainda ativo na Bahia: Clarindo dos virtude de morar nas proximidades
Quase todos os aspectos da viola Santos, nascido em 1922 (falecido de Salvador e que, mais no interior
do Recôncavo comportam duas em 1o de dezembro de 1980), rocei- do Estado, poderia deparar-me
espécies de explicações e descri- ro, residente a cerca de 75 quilô- com outros artesãos, pelo menos
ções: uma natural, a outra sobre- metros de Salvador, perto da cidade em meia atividade. A nenhum ou-
natural; uma mundana, a outra de Santo Amaro da Purificação, ca- tro encontrei pessoalmente: ape-
extraterrena, mística e mítica. O pital da antiga economia açucareira, nas, aqui e ali, um nome vagamente
primado que, entre os instrumen- onde era conhecido como “Cla- lembrado; ninguém, contudo, que
tos, lhe atribuem os músicos po- rindo da Viola” e expunha à venda ainda trabalhasse em violas. Aqueles
pulares, pode ser explicado pelos os seus instrumentos na barraca de que ainda tocavam o instrumento
seus poderes não musicais (as forças um amigo no mercado municipal, usavam os antigos, feitos à mão, já
que se diz possuir) e pela vincula- quando não tinha encomendas de cheios de remendos, ou a “viola
ção, na mente dos que ainda usam instrumentos especiais. Os seus paulista” industrializada. Os arte-
o instrumento, com os primeiros eram largamente usados e aprecia- sanais eram bem semelhantes aos de
colonizadores e senhores do Brasil. dos pelos violeiros que encontrei Clarindo, com variações menores
É, ademais, o instrumento popular em Salvador, nos sambas do bairro no tamanho e na madeira usada,
mais inacessível, e por conseguinte do Alto da Santa Cruz, muitos de de acordo com as disponibilidades
o primeiro e mais elevado, tanto do cujos residentes (alguns dos quais locais. Viajei permanentemente
ponto de vista musical - pelas difi- violeiros) provinham de Santo com duas das violas de Clarindo,
culdades em dominá-lo - como do Amaro. Verifiquei que os instru- fosse para usá-las eu mesmo, caso
ângulo econômico, devido ao custo mentos de Clarindo eram usados encontrasse um mestre desejoso de
da técnica, dos materiais e ferra- e tinham preferência em Santo ensinar-me qualquer coisa, fosse
mentas necessários à sua feitura. Amaro e em volta, assim como em para fixar em gravação a arte de al-
Um único fabricante de violas Cachoeira. Suspeitava haver loca- gum violeiro que não dispusesse de
me foi possível localizar em 1976 lizado unicamente o Clarindo em instrumento. Jamais afastei-me de
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 108
uma localidade sem que me rogas- diâmetro, o inferior de cerca de 22 três-quartos, possui dez cordas de
sem deixar as criações de Clarindo cm, e a cintura de mais ou menos metal em cinco pares. A posição
com os violeiros locais, e em certa 12 cm. A viola de “três-quartos” para a execução da viola é seme-
oportunidade invocou-se mesmo, tem o comprimento de 89,5 cm, o lhante à do violão, e o instrumen-
em defesa do pedido, uma chula bojo superior de 20 cm, o inferior to é encordoado de tal maneira
tradicional, “ou me venda ou me de 29,5 cm, e a cintura de 15 cm. A que as ordens mais agudas estão
dá” (o que aconteceu ao fim de uma altura da caixa de ressonância, tanto mais perto do colo do músico que
sessão de gravação). Sinto-me, por do machete como da três-quartos, as mais graves. As três primeiras
conseguinte, à vontade para usar as é de cerca de 6 cm. A regra do ma- ordens, mais agudas, são de fios de
violas de Clarindo como modelos chete tem o comprimento de cerca aço nu afinados em uníssono. As
de descrição. de 18 cm, e a da três-quartos, cerca mais graves são afinadas em oitavas,
Clarindo fazia violas para os de 23 cm, dividida por dez trastos com uma corda revestida e a outra,
violeiros do Recôncavo de prefe- de bronze ou de cobre, espaçados a “requinta”, sem revestimento.6
rência em dois tamanhos: o “ma- de modo que produzam intervalos, A “requinta” do quarto par é de fio
chete” e a “três-quartos”, usadas grosso modo, de segundas menores. do mesmo diâmetro das cordas do
lado a lado no conjunto tradicional Instrumentos de ambos os tama- terceiro par. As requintas dos dois
de samba, por vezes acompanha- nhos podem ter outros trastos de pares mais graves são dispostas de
das também do cavaquinho e do madeira de lei ou de metal encrava- tal maneira que, com o instrumen-
violão moderno, que a tenda de dos na face da caixa de ressonância, to na posição de tocar, estão mais
Clarindo podia igualmente pro- apenas nas duas ordens mais agu- distantes do colo do músico do que
duzir. O “machete” (nome ao que das, a “prima” e a “segunda”. as suas correspondentes uma oitava
parece oriundo da Ilha da Madeira) Uma denominação coletiva mais baixa.
tem de comprimento cerca de 76 em curso no Recôncavo para esses Hoje em dia, a caixa de resso-
centímetros, com o bojo superior instrumentos é “viola de dez cor- nância é com mais freqüência feita
de aproximadamente 17 cm em das”. O machete, assim como a de pinho, embora se usem o cedro
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 109
d etalhe d a mão
e sque r da no m achete.
foto: j ean jaulbe rt.
e o jacarandá no fundo e nos lados, rial, de acordo com o seu “toque” de unha crescida, ou às vezes com a
quando as condições, sobretudo e gosto. O processo se denomina dedeira). O violeiro faz seus to-
as financeiras, assim permitem. “surrar a viola”, no sentido de cas- ques essencialmente em torno de
A regra ainda é amiúde de jaca- tigá-la ou de domá-la para adquirir padrões de acordes formados na
randá, como são as dez “craveiras” o desempenho desejado. mão esquerda, ponteando somente
(cravelhas) de afinação, o cavalete Podem negá-lo os músicos que com o indicador nos três pares de
e (de jacarandá e piaçaba) o relevo se servem de palheta, mas o uso cordas mais agudos e o polegar nos
ornamental na forma de losangos exclusivo dos dedos é geralmente dois mais graves. Nunca vi na Bahia
(às vezes em rosas, com talos de mais apreciado. A palheta é segura violeiro que ponteie com três ou
fio de piaçaba) que acompanha os pelo polegar e o indicador, limi- mesmo dois dedos.
contornos da borda exterior da face tando assim o executante a rasgar Foi empiricamente que Cla-
e circunda a abertura da mesma, ou a dedilhar uma única nota de rindo aprendeu a fazer violas.
de aproximadamente 6,5 cm de cada vez, o que resulta num padrão Contou-me que, depois que o seu
diâmetro. Os trastos são de bronze interrompido, às vezes de notá- antigo fornecedor de instrumentos
ou de cobre, estes últimos me- vel habilidade e muito próprio à converteu-se em “crente”, abju-
nos dispendiosos e mais comuns. textura do conjunto, um tanto rando assim a música, e especial-
Conquanto a ação das cordas de aço semelhante à harpa. Todavia, quem mente a viola e tudo o que significa,
mais agudas - extremamente finas se utiliza do indicador e do polegar Clarindo decidiu que era capaz de
-, ao cortarem os trastos e neles pode conseguir o efeito da palheta reproduzir um instrumento que-
deixarem incisões, exija a freqüen- - “catando” a melodia - com a unha brado que possuía. Não negava as
te substituição destes, isto serve de crescida desse dedo (ou mesmo com imperfeições da sua primeira obra.
ocasião ao proprietário da viola a espécie de palheta que se prende Os lados de suas violas são arquea-
para temperar em seu instrumento no indicador) enquanto mantém o dos ao redor de uma sólida forma
as idiossincrasias e imperfeições da pulso rítmico do toque - a “mar- de jacarandá (que Clarindo herdou
regra, as tensões internas e o mate- cação” - com o polegar (também do seu amigo renascido na religião,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 110
juntamente com algumas relutantes “Dengosa”. Meu mestre em Salva- deve ser seduzida pelo executante e
instruções sobre o seu emprego) dor, Antônio Moura da Silva, nas- tornar-se sedutora em suas mãos.
e colados sob pressão. Enquanto cido em Santo Amaro e conhecido Nem mesmo a Virgem Maria
a viola se arma e adquire forma no bairro do Alto da Santa Cruz está imune aos poderes da viola.
(na realidade, em todas as fases de como “Candeá”, denominou “Me- Ouve-se dizer na Bahia que a “pri-
construção, enquanto o instru- nina Linda” o machete que Clarin- ma” da viola (a ordem de cordas de
mento não se acha fisicamente nas do fez para ele. Inscreveu o nome afinação mais aguda) é ao mesmo
mãos do construtor), põe-se um na face da viola para complementar tempo abençoada e maldita. No
ramo de arruda para afastar o “mau os fragmentos de espelhos e as fitas sertão do estado, afirma-se que a
olhado”, que, deitado durante o do Nosso Senhor do Bonfim que viola recebe os favores da Virgem
tempo vulnerável de gestação, antes acrescentou aos relevos de jacaran- Maria porque é o instrumento mais
do acabamento e de receber nome, dá, de autoria de Clarindo, a fim apropriado para o seu ofício. Mas,
pode significar que nunca virá “a de embelezar a sua Menina Linda. no Recôncavo, se diz que a prima
prestar”. Ganha assim personalida- Quando contei a este que havia foi excomungada porque Nossa
de e, supõe-se, defesas pessoais. dado o nome de “Prima Julieta” à Senhora não pôde resistir ao seu
O proprietário do instrumento três-quartos que me preparara, dis- chamado, e uma noite desceu do
dá-lhe o nome. A viola favorita de se-me que já lhe havia dado o nome altar para sapatear ao som da viola.
Clarindo se chamava “Princesa Ma- de “Venância”, ajuntando, contu- História semelhante se conta
rinalva”. Outro violeiro de Santo do, “Prima Julieta cai bem” e que de Cristo. Este teria sido obrigado
Amaro recordou-se com saudades eu tinha liberdade para continuar a sair em busca de São João e São
da sua viola “Moça Velha Branca” com o novo nome. No Recôncavo, Pedro, que, despachados em missão
que tinha vendido quando, uns dez a viola é efetivamente mulher, e as terrena, terminaram envolvendo-se
anos antes, atravessava tempos difí- suas qualidades e formas femininas num samba de viola, desviando-se
ceis. A que possuía em 1977, quan- são realçadas pela ornamentação e assim do objetivo. Tendo final-
do foi feita a entrevista, chamava-se o nome que o dono lhe dá. A viola mente reencontrado os discípulos,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 111
S eu N inin ho e Do na
Maria Aug u sta,
t radic io nais
samb a dor es de São Braz,
m unicí pi o S anto Am aro
d a Pu ri f ica ção. foto:
l uiz santos .
em rio-abaixo; tudo o que se tem a a moça a segui-lo. Suspeita-se que to pares, há uma quinta perfeita;
fazer é “passar o dedo, e qualquer o violeiro humano tem poderes entre o quarto e o quinto, uma
floreio dá certo”. Mostrava que o de sedução aparentados com os do quarta perfeita. (Ver Exemplo 1.)
instrumento pode ser tocado em Diabo, e os violeiros têm consciên- Esta afinação toma o seu nome do
rio-abaixo dispensando a mão es- cia da sensibilidade dos seus instru- uso de uma meia-pestana sobre os
querda; demonstrava como o diabo mentos. três pares mais agudos, no quinto
seduziu “a filha do Barão” duran- Visto que todos os intervalos trasto, como centro da formação
te um samba, ao tocar um padrão entre as cordas livres em rio-abaixo da mão esquerda, “atravessando”
simples que usa as cordas livres, o são acusticamente puros, a sonori- assim a viola e criando uma tríade
tempo suficiente para desobrigar a dade do instrumento é efetivamente maior cuja fundamental é dobrada
mão esquerda e possibilitar-lhe fa- bastante ressonante e penetrante no quarto par. Essa tríade forma no
zer sinais à moça, no sentido de que nessa afinação. A maioria dos caso o acorde de tônica, do mes-
se preparasse para acompanhá-lo na violeiros, todavia, limita-se a tocar mo modo que, em rio-abaixo, a
fuga “rio-abaixo”. Somente a moça em apenas uma tonalidade em rio- tríade tônica é formada pelos três
compreendeu os sinais; seus pais se abaixo, outra razão para o desprezo primeiros pares livres. O acorde de
congratulavam por terem encon- em que o têm alguns executantes. dominante é facilmente produzido
trado um violeiro tão talentoso que A afinação “travessa”, como a (na sua segunda inversão) nos três
podia tocar com uma única mão. “rio-abaixo”, forma uma tríade pares mais agudos desta meia-pes-
Foi evidentemente a consonância maior nas três ordens mais agudas, tana do quinto trasto, apertando-se
entre as cordas livres que permitiu mas o quarto par é um tom inteiro o primeiro par no sétimo trasto
à mão do violeiro/Satanás os gestos mais grave do que o do rio abai- com o dedo anular, e o segundo
não-musicais. O encantamento da xo, invertendo-se assim a posição par no sexto trasto com o médio.
afinação, que, tratado pelo violeiro do pentacorde e do tetracorde na O indicador permanece no quinto
apropriado, pode mesmo chamar oitava entre o terceiro e o quinto trasto do primeiro par. A quinta do
os espíritos das florestas, induziu pares; entre o terceiro e o quar- acorde subdominante já está pre-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 113
d etalhe do m achete.
foto: je an jaulbe rt.
sente também no quarto par livre. tanto os violeiros como os canta- terminologia a ela associada, que é
O acorde dominante está presente dores gostam ocasionalmente de o vocabulário básico da teoria mu-
na sua posição fundamental nos três mudar de tonalidade, seja para aco- sical européia adaptado às práticas e
pares mais agudos em aberto, com a modar os seus diferentes âmbitos de categorias musicais locais, permite
sua fundamental dobrada no quinto vozes, seja para usufruir a satisfação aos músicos organizar verbalmen-
par. O violeiro remove o indica- estética que uma mudança de to- te o conjunto e sua apresentação.
dor do quinto trasto para passar nalidade proporciona. A mudança Suponho que foi introduzida por
da tônica à dominante. Embora a não somente altera a altura real da mestres de música europeus que
maioria dos violeiros se limitem a música, como também cada tona- ensinaram em Santo Amaro no
apenas uma tonalidade na travessa, lidade tem implicações próprias século XIX, e que depois veio a ser
recursos consideráveis de ornamen- de ritmo, andamento e textura. A absorvida pela população local, na
tação melódica e de complexidade afinação mais apreciada em San- medida em que cada elemento se
rítmica derivam-se desta estrutura to Amaro, chamada “natural”, é a tornou necessário para uma músi-
tão simples. Um sinal de domínio mesma do violão moderno, sem a ca realmente baiana - isto é, onde
da viola (embora mais característico sua corda mais grave, a sexta (e sem elementos europeus e africanos
do sertão) é o domínio do toque pensar em alturas absolutas). Nessa combinaram-se numa forma local.
“iúna”,8 que é executado somente afinação, o violeiro consegue tocar As relações tonais e a termino-
em travessa. Uma das combinações em certo número de tonalidades. logia a ela associadas penetraram
ideais do conjunto de violas para O termo “natural” é usado tanto nesta teoria musical popular de
o samba tradicional emprega uma no sentido de “correto” como de maneira singular. Os acordes se
machete em travessa para preencher “nativo”. Esta afinação é, por con- formam na viola afinada em natural
o registro mais alto. seguinte, originária e peculiar de em posições que seriam familiares
No samba de viola de Santo Santo Amaro, mas também a mais à maioria dos tocadores de violão
Amaro e imediações (e, em Salva- correta e apropriada, porque mais e as suas fundamentais são deno-
dor, no estilo “sant’amarense”), versátil e erudita que as outras. A minadas segundos. Executar numa
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 114
S eu Z é de L elinh a. foto:
l uiz san tos.
harmônicas. Indica também a posi- foram representados em alguns esquerda o tratamento rítmico da
ção ao longo da regra (ou braço) da sistemas renascentistas de tablatura mão direita (“marcação”) específi-
viola onde o acorde é formado. “Ré para o alaúde. “Ré maior sustenido co de cada um. O resultado é que
maior grande” compõe-se ape- bemol” é Ré maior numa quarta cada tom se identifica não somente
nas nas quatro ordens mais graves posição, ainda mais aguda, ou seja através da sua altura em relação a
e toca-se usando um padrão que “mais embaixo”. O “Sustenido de outros tons, como também pela
percorre a quarta e a quinta ordens. Lá maior” é conhecido por um maneira distinta de ser executado.
“Ré maior pequeno”, demonstrado nome especial, “samango”, palavra “Lá maior”, por exemplo, dá a sen-
no Exemplo 2, é talvez o mais comum de provável origem banto, que sig- sação de uma breve passagem pela
de todos os “tons” da viola para nifica “preguiçoso” ou “indolente”. sua subdominante, remanescente
samba. “Ré maior sustenido” não é A tonalidade e as posições onde do son jarocho mexicano e do son mon-
um acorde maior com a fundamen- as “partes” se formam têm impli- tuno cubano (suponho que não seja
tal de Ré sustenido, como seria na cações de ritmo e andamento bem simples coincidência), o que não
teoria musical convencional euro- definidas, no sentido de que cada acontece em “Ré maior” (Exemplo 2).
péia. É, sim, um acorde cuja fun- uma é tocada de determinada ma- Além disso, cada violeiro tem o seu
damental é Ré, mas formado numa neira ou conforme certo padrão. próprio padrão melódico e rítmi-
posição mais adiante na regra da Cada tonalidade ou posição, pois, co básico, com a sua ornamenta-
viola; vale dizer, o acorde soa mais é virtualmente um toque. Esses ção, para a execução de cada tom.
agudo. O violeiro diria que este padrões são ditados ao menos em “Toque”, por conseguinte, é uma
acorde é “mais embaixo”, referên- parte pelas características inerentes forma de composição para o reper-
cia à maneira como o instrumento às próprias formações: a mão pode tório da viola: é a célula através da
é empunhado: os sons mais agudos fazer certas coisas mais facilmente qual o violeiro individual introduz
da viola encontram-se mais perto em determinadas posições do que o seu próprio material no sistema
do chão (em termos espaciais, mais em outras. Complementa a ma- musical e a sua própria música na
baixos), da mesma forma como neira de formar os acordes na mão execução.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 116
sa m ba s uspir o do
ig uape, em san tiag o
d o iguape, c achoe ira.
foto: lu iz san tos.
Essas noções teóricas são im- mas afinada uma quarta ou uma em seu “Sol maior”. Quando o
portantes, principalmente na quinta mais grave. (Ver Exemplo 1.) tocador da machete, que funcio-
formação apropriada do conjunto O executante da viola maior afina a na como viola-guia, murmura aos
de violas, ou seja, um conjunto de sua “prima”, posta uma quarta mais ouvidos do tocador da três-quartos
instrumentos de diferentes tama- grave, em uníssono com a “segun- que se senta ao seu lado, “Samba
nhos, afinados diferentemente uns da” da machete. Para afinar uma em Lá”, cumpre ao último perceber
em relação aos outros e tocados quinta mais grave, o instrumento logo que vai tocar em “Ré”. Se não
diferentemente uns dos outros. A maior afina a sua “segunda” uma perceber, o violeiro-guia lhe infor-
maioria dos violeiros concordam oitava mais grave do que a “prima” ma. É a tonalidade do machete que
em que um conjunto de samba com do instrumento menor. verbalmente define a tonalidade do
muitas violas resulta, na palavra de Afinadas em “natural”, em conjunto em qualquer ocasião, e,
certo informante, em verdadeira qualquer altura, as “primas” tan- uma vez que cada tonalidade tem as
“bagunça”, basicamente por duas to do instrumento menor como suas facetas de estilo, é o estilo da
razões: primeiro, num grupo ex- do maior são chamadas “Mi”. A tonalidade do machete que predo-
cessivamente numeroso, os músicos “segunda” é sempre “Si”, a tercei- mina. Os cantadores (que podem
tendem a não se acostumar às regras ra ordem “Sol”, a quarta “Ré” e a ser ou não os próprios violeiros)
de conjunto; em segundo lugar, quinta “Lá”. Conseqüentemente, são livres para pedir determinado
instrumentos em demasia inevi- com a sua “segunda” afinada em tom. “Lá maior”, por exemplo,
tavelmente tumultuam a sutileza uníssono com a prima do mache- exige que os cantadores cantem em
e a nitidez do ideal sonoro de um te, o tocador da três-quartos deve âmbito extremamente agudo (usan-
agrupamento de violas. A com- tocar a sua terceira, a que chama do o falsete), ou em outro muito
binação a que se dá preferência, “Sol”, quando a última faz soar a grave. Tende a ser mais langoroso
no estilo de Santo Amaro, é uma sua quarta ordem, chamada “Ré”. que outras tonalidades, executan-
machete afinada em natural e uma Quando a machete toca em “Ré do-se em andamento mais lento.
três-quartos, também em natural, maior”, cabe à três-quartos tocar Os cantadores devem sustentar, por
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 117
períodos maiores, difíceis alturas de anular-se de tocar do violeiro-guia. ocasionalmente um pequeno tam-
inflexão lamuriosa, particularmente A machete em “travessa” (que do bor de tamanho variável, e prato-
nos finais de frases. mesmo modo deve atingir textura e-faca (de preferência esmaltado, e
Quando um segundo machete apropriada no registro mais alto) quanto mais arrebentado melhor).
integra o conjunto, seja na au- afina a sua “prima”, sua quarta e Qualquer dos componentes do
sência de uma viola três-quartos, sua quinta ordens em uníssono com conjunto pode figurar também
seja como terceiro componente do aqueles mesmos pares da machete entre os cantadores, que cantam
grupo, é recomendável que o seu em “natural”, com as duas outras aos pares, principalmente em terças
tocador a afine em “travessa”. Se ordens ajustadas de modo que paralelas. Ocasionalmente, em-
é dos que preferem tocar somen- ofereçam intervalos apropriados bora seja raro, um dos cantadores
te em “natural”, provavelmente à afinação. O músico continuará não fará parte do conjunto instru-
deverá (afina o seu instrumento em a chamar a quarta e a quinta or- mental. No decorrer de uma típica
uníssono com a machete do compa- dens respectivamente “Ré” e “Lá” noite de samba, os músicos poderão
nheiro) optar por uma execução em e reconhece que só pode acompa- sair do conjunto e a ele retornar,
“sustenido”, ou em “sustenido-be- nhar com facilidade a machete em mudando a sua função musical
mol”. Se resolvesse ignorar as con- “natural” se a última tocar em “Ré”. interna, numa constante recompo-
siderações de textura que o tocar Tal como um violeiro me declarou, sição do grupo que faculta varieda-
em outra posição procura cumprir, “em travessa não se fala em tonali- de estilística e a resistência física ao
o violeiro-guia provavelmente dade”. samba “de valor”, o qual “só acaba
sugeriria que o primeiro tocasse em A percussão do conjunto apro- quando o dia arraiar”.
determinada posição tonal. Con- priado para o samba consiste de um
tinuar ignorando a sugestão não ou dois pandeiros (talvez três, caso
levaria à outra coerção que um dar os tocadores sejam bastante cuida-
de ombros, um balançar de cabeça dosos para tocar no mesmo estilo e
de brando desgosto, e um discreto não “esmagar” as vozes e as violas),
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 118
2. samba de viola
exceto o tocador de prato-e-faca, claro que o conjunto está conve- faca, como no Exemplo 9. As palmas
que normalmente fica em pé (a não nientemente formado, de entre os mudam para o mesmo padrão e
ser que também cante chula). Essas músicos que formam o conjunto reduzem grandemente o volume,
palmas constituem o que pode cha- primário entram dois cantadores muitas cessando de todo. O prato-
mar-se de conjunto musical secun- com o texto do canto, uma “chula”, e-faca parece assim funcionar como
dário, proporcionando não só um em terças paralelas, como no Exemplo um instrumento-guia em relação ao
acréscimo de sonoridade percussi- 8. Ao completar-se a chula, dois conjunto secundário.
va, como também (o que é talvez de outros cantadores podem responder Com o término do relativo (ou,
importância maior) um estímulo ao (sem perder nem um só tempo, se se não se canta relativo, ao térmi-
envolvimento e ao entusiasmo de adequadamente executada) com um no da chula), o prato-e-faca e as
todos os que estão na sala. As pal- “relativo”,12 cujo texto seria, su- palmas retornam ao seus padrões
mas entram à vontade, principal- postamente, relevante para a chula iniciais, mas com insistência ainda
mente no padrão dado no Exemplo (ou, justamente, “relativo” a ela), maior, a fim de encorajar o dança-
5. Outras pessoas, à medida que o relevância essa que os próprios mú- dor - “sambador” ou “sambadora”
conjunto se forma e o entusiasmo sicos reconhecem ser muitas vezes (com mais freqüência uma mu-
cresce, podem bater palmas, num duvidosa (ou que não sabem, ou lher)13 - que logo entra na “roda”
padrão de colcheias de igual acen- não querem, explicar). De maneira (o espaço livre no centro da sala,
tuação, como no Exemplo 6. Outros, típica, o relativo consiste em dois aproximadamente em círculo),
ainda, curvando a palma direita e, versos, ocupando oito compassos, para “sambar” ou “sapatear”.14 Os
com uma rápida torção do punho, e é cantado uma vez, também em movimentos dos pés, minúsculos,
em golpes contra a esquerda, po- terças paralelas, e imediatamente intricados, rápidos, e às vezes quase
dem percutir da forma mostrada no repetido. imperceptíveis (o “sapateado”, tam-
Exemplo 7. Durante o canto, o prato-e-faca bém chamado “repicado”, “recol-
Depois de cerca de dezesseis se modifica, passando-se a bater chete”, ou “miudinho”) são quase
compassos, ou após tornar-se na borda do prato com as costas da os únicos movimentos do corpo na
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 121
S am ba Ch u la os Fil h os
da Pi tangu eira, d e s ã o
franc is c o d o c ond e .
foto : l ui z santo s.
falta dela por parte dos demais par- Introdução instrumental uma mudança e/ou um intervalo.
ticipantes em relação à sua dança), Chula A (+ Relativo A) A célula de execução está completa
mas uma execução típica dura entre Dançador A e, embora seja raro na prática, um
16 e 48 compassos musicais. Chula A (+ Relativo A ou B) samba como evento poderia em tese
O novo dançador - homem Dançador B consistir apenas desta célula (exa-
ou mulher - espera no seu lugar Chula A (+ Relativo A, B, ou C) tamente como um recital ou con-
enquanto se repete a chula, e esta Dançador C certo poderia consistir de apenas
é respondida pelo mesmo relativo, Chula B (+ Relativo D) uma peça). Um novo ciclo começa,
por outro, ou por nenhum. Tipi- Dançador D... geralmente após um descanso de
camente, uma chula e seus relativos alguns minutos (e habitualmente
são executados três vezes, cada vez ...e assim por diante. Os parênteses com o reabastecimento dos músicos
separada por uma seqüência de servem para lembrar que os relati- em bebidas, e às vezes comidas), em
dança. Três ou mais chulas diferen- vos podem ou não estar presentes, e nova tonalidade.
tes são geralmente ligadas, antes que que o mesmo relativo pode ou não O que se transcreve no Exemplo 8
os instrumentos parem e se reagru- ser repetido para a mesma chula (e é excelente demonstração de regis-
pem. Um dançador se apresenta qualquer combinação destas possi- tro alto, chamado “voz de mulher”,
entre duas diferentes chulas exa- bilidades). que é talvez o principal refinamen-
tamente como se o intervalo fosse O ciclo termina mais comu- to, ou maneirismo, da execução
apenas entre repetições da mesma mente logo depois de uma chula vocal para os cantores masculinos
chula.16 (e seu relativo), a critério da vio- de chulas no estilo sant’amarense.
Em resumo, um ciclo completo la-guia, que se interrompe por Ambos os cantores nesta apresen-
característico obedece ao seguinte motivos próprios ou por indicação tação eram homens. A despeito da
esquema: de outro músico ou de uma pessoa região tonal aguda, os sons vocais
de responsabilidade do conjunto são relaxados. O timbre não é ás-
secundário, ou da casa, para fazer pero, e a produção vocal parece ser
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 123
altamente acostumados um ao ou- são apenas implícitos. A fixação do se fossem um só. Os dois freqüen-
tro, pode mesmo permutar as vozes texto é bastante livre, e os valores temente cantam olhando atenta-
em certas frases em determinadas rítmicos variam de execução para mente um para o outro, especial-
chulas, como fazem Cobrinha execução. Os valores dados no Exem- mente se antes não cantaram juntos
Verde e Candeá no último verso (*) plo 8 não devem, por conseguinte, com freqüência. Parcerias são
desta chula: ser tomados muito literalmente. escolhidas com cuidado e cultiva-
As alterações cromáticas tam- das com carinho. Cobrinha Verde
Ô liga,19 ô liga meu bem bará, (bis) bém são tratadas um tanto livre- celebrava esse tipo de relação numa
Roxo, não. Sou mulatinho, mente, e o rebaixamento do sétimo chula que cantava tendo Candeá
Cabelo crespo, cacheadinho. grau da escala, característico da como parceiro:
Bicho do mato tem três pé. música tradicional brasileira, espe-
Ele pula alí, dança candomblé. cialmente no Nordeste, por vezes Era eu e era Candeá,
Pimenta de jiriquitá.20 ocorre, por vezes não. Mais pre- E nós dois andava junto.
*Vou beber na venda de Loriana. cisamente, o sétimo grau é tratado Não sei se Deus consente
como neutro: pode ser uma sétima Numa cova dois defunto.
O Exemplo 8 também mostra menor ou uma sétima maior, ou
outra importante faceta do estilo pode cair em algum ponto inter- Melodias específicas, tipos
de canto: pouco do que os canta- mediário. melódicos e tratamento dos tipos
dores fazem acontece em cima do A liberdade de expressão que tal melódicos variam consideravel-
tempo; só raramente uma sílaba fluidez oferece exige cuidado, pre- mente de acordo com os cantadores
não se antecipa, ou ligeiramente se cisão e intimidade proporcionais individuais, grupos e localidades. O
retarda, em relação ao pulso rítmi- entre os parceiros e cantadores, a tratamento dessas variantes e variá-
co. Tempo e metro são claramente fim de atingir o ideal de exatidão do veis será abordado em futuro estu-
expressos pelos instrumentos de estilo. Os cantadores devem agir e do. Um traço melódico recorrente,
percussão, mas, para os cantadores, reagir, em sua apresentação, como todavia, que é identificado e deno-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 125
sa mb a t ra dici onal d a
i l ha , m ar gran de, i lh a
d e itapari ca . foto: lu iz
santos.
minado pelos próprios cantadores Ô, vem a cavalaria da donzela Teodora. (bis) Exemplo 8 vai no sentido contrário.
(caso raro, em contraste com o Cada cavalo uma sela, cada sela uma senhora. O “repicado” do estilo coreo-
extenso vocabulário teórico aplica- Três Maria, três Joana, três tocador de viola. gráfico tradicional de samba está
do à viola e seu uso) é o “baixão” - a Quem me dera aquela roxa pra raiar no colo rapidamente cedendo terreno ao
sensível na oitava inferior sustida dela. “rebolado” do samba de Carnaval
na sílaba final do penúltimo verso, Toca viola, ioiô. Minha santa é virtuosa. (e acrescente-se, dos programas de
como no Exemplo 12. A sustentação Mulher que engana homem é danada de auditório da televisão). O reper-
da sílaba final de cada verso sobre teimosa, ô, iaiá.21 tório dos sapateados - “bate-sola”,
vários tempos é característica do “corta-jaca”, “samba-no-coco” e
estilo de Santo Amaro propriamen- Candeá canta esta chula de duas “charre” (ou “chale”) - está caindo
te dito (cidade sede do município maneiras: numa delas, sustenta a em esquecimento, e os dançado-
do mesmo nome, em contraste com última sílaba da palavra “teimosa”, res mais jovens ignoram também a
seus distritos atuais e os já emanci- deixando fora a palavra “iaiá”; na seqüência apropriada de eventos na
pados, como, por exemplo, Sauba- outra, acrescenta a palavra “iaiá”, e roda. Esta espécie de mudança, que
ra). No estilo “estiva”, essas sílabas sustenta sua sílaba final. De pas- consiste numa diminuição concre-
finais são quase truncadas, mas no sagem, diga-se que ele apresenta ta do repertório, estabelece nítido
verdadeiro estilo santo-amarense as esta chula como uma que “não pega contraste com o processo de mu-
interjeições “Ô ai-ai”, “Ô ah-ah”, relativo”. (“- Por que não pega, dança do passado, no qual o mate-
ou mesmo “Ô iaiá” são acrescen- Sr. Candeá?” “- Não pega. É por rial era reinterpretado em termos
tadas ao fim do texto da chula e isto.”) Esta chula é cantada com do estilo tradicional preexistente, e
estendidas sobre vários compassos, um baixão na palavra “virtuosa”, nele incorporado.
ao invés da sílaba final do texto, tal e demonstra também outro tra- O “charre”, que ainda pode
como nesta chula que Candeá cos- ço comum: com mais freqüência ser encontrado entre os da velha
tumava cantar: repete-se o primeiro verso de uma geração na localidade de Saubara,
chula do que se deixa de fazê-lo. O é claramente o charleston22 executa-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 126
sido aplicado. Tem sido considera- tiva). Uma constante entre todas E assim por diante, sempre
do, como canto e dança, sinônimo essas variáveis é que a forma textual lamentando as tarefas que Maria
ou uma variante do fandango e do do samba chulado é essencialmente não executa por causa de sua indis-
sapateado, populares no século XIX européia. As chulas são de extensões posição. Este corrido só termina
em Portugal, no Rio de Janeiro, diferentes, mas cada chula indivi- quando, após certo tempo, os par-
São Paulo e Rio Grande do Sul.23 dual tem uma extensão e duração ticipantes se cansam, e outro solista
Todos os relatos estão de acordo em específicas. Em contraste, o padrão entra com outro corrido.
que a chula virtualmente se extin- breve do chamado do solo e da res- É difícil criar, de forma sumá-
guiu em todos esses lugares. posta do grupo, e a duração inde- ria, uma idéia geral significativa
No samba do Recôncavo, a terminada do samba “corrido” são de algo tão variado no conteúdo e
chula24 é o texto do canto. Chulas eminentemente africanos, como na forma como a chula. Uma das
são poemas, de extensão variável, neste exemplo. características que as chulas pare-
porém mais comumente de quatro cem compartilhar é um senso de
versos, e ecléticos ao extremo, tanto (Solo) Que é que Maria tem? intimidade - uma proximidade
na forma como no assunto. A chula (Grupo) ‘Tá doente. pessoal entre o cantador e o assun-
pode ter sentido lógico, mensa- Que é que Maria tem? to - expresso em linguagem muito
gem clara, ser narrativa e linear, ‘Tá doente. coloquial. Esta qualidade foi vista
ou pode ser altamente simbólica, Maria não lava roupa. nos exemplos já oferecidos.
parecendo expressar uma livre ‘Tá doente. A chula no Exemplo 8 é um diá-
associação. A chula, como vimos, Maria não varre a casa. logo pastoral em que um vizinho
pode ser seguida por um “relativo”, ‘Tá doente. aparece para pedir emprestado uma
tipicamente de dois versos, que se Maria não vai pra rua. cadela à sua pouco compreensiva
considera adequado para a chula ‘Tá doente. comadre,25 para ajudar a expulsar
que o precede (adequação esta que, Que é que Maria tem? um boi da sua roça. O nome da
na prática, muitas vezes é só rela- ‘Tá doente. cachorra é Caravela: coisas do mar
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 128
são imunes às coisas da terra, como Ô, compadre, que dia você chegou? Cheguei
por exemplo os “bichos do chão” ontem.
(eufemismo para cobras) e a raiva, Fui na guerra dos Canudos, não morri.
razão por que freqüentemente os Dia de fogo cerrado, mataram todo soldado.
cães recebem nomes marítimos.26 Dia de fogo primeiro, mataram Antônio
Na chula, o vizinho chama a ca- Conselheiro.
chorra exatamente como se estivesse Dia de fogo segundo, mataram todo jagunço.
na roça: “Ecô, Caravela!”. A pri- Ô, compadre, que dia você chegou? Cheguei
meira chula citada no texto deste ontem.
trabalho trata com ironia noções
raciais: “Roxo, não. Sou mulatinho A chula pode ser a respeito do
- cabelo crespo, cacheadinho”. O próprio samba, como acontece
cantador decide que uma bebida na com esta conversa (também chula
venda de uma certa “Loriana” pode de “Cobrinha”) entre pai e filho. Ói o velho lá!
resolver os problemas. A segunda O último diz o que se passou no Ô, meu pai, de meia-noite para o dia,
chula citada no texto é uma declara- samba da noite anterior. Faca fora desafia.
ção de amizade fraternal e de união Ói o velho fora de lá!
entre os dois cantadores. Ô, meu pai, ainda ontem fui no samba. Deu
Esse senso de intimidade apa- bom. A mistura de temas e idéias,
rece até nas chulas a respeito de Ói o velho lá! como ocorre na chula referida na
acontecimentos históricos, tal como Deu muito comida, meu pai. nota 21, pode indicar a recomposi-
numa das chulas favoritas de Co- Ói o velho lá! ção a partir de mais de uma fonte,
brinha Verde, também na forma de Tinha muita bebida, meu pai. e isto certamente conviria à natu-
diálogo: Ói o velho lá! reza permissiva da chula em todos
Tinha moça bonita, meu pai. os seus aspectos. Em outros casos,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 129
todavia, esta livre associação parece corrente, e podem ser paródias de mento mesmo, durante o samba,
obedecer a uma coerência impres- outros textos, tal como esta chula de como foi a precedente. Pode então
sionista, expressa na linguagem autoria de Candeá, baseada numa entrar no repertório estabelecido
lírica das imagens vivas do cotidiano cantiga muito ouvida alguns anos e ser cantada por qualquer pessoa,
do Recôncavo, tal como nesta chula atrás nas emissoras baianas. embora seja reconhecida como
freqüentemente cantada por Can- a chula de autor tal. Do mesmo
deá. Quando será modo, uma chula já existente é
O dia da minha sorte? conhecida como a chula do indiví-
Ô, vem do mar, Antes da minha morte, duo que a introduziu no repertório
Do outro lado de lá. Olha eu. Esse dia chegará. de um grupo ou local específicos.
Cabocolinho, venha cá serear. Qualquer um pode então cantá-la,
Que coisa bonita eu acho, Sou filho de Oxum. reconhecendo-se que é a chula de
Banana madura no fundo do cacho. Sou neto de Iemanjá. quem a introduziu, muito embora
Céu de amor. Sou filho de Ogum. este não reclame autoria, como é
Céu de amor é céu de amar. Sou neto de Oxalá. exatamente o caso, por exemplo,
Da forma que o barco anda, meu mano, Antes da minha morte, da chula citada, “Ô, meu pai ...”:
Como o vento leva. Minha sorte vai mudar. Candeá admitia tê-la aprendido
Deus me livre de eu andar, mulher, nos sambas de sua juventude, em
Como o barco anda. A mais notável contribuição de Santo Amaro da Purificação.
Candeá ao texto é o apelo que faz à Uma vaga idéia da idade relativa
Além da possibilidade de uma sua relação com seus orixás, inclu- das chulas no repertório é reconhe-
chula ser refeita de pedaços de sive de parentesco de “santo”. cida pelos que as executam, mas não
outros textos, as chulas são também Embora não seja essencialmente se apresenta nenhuma razão ana-
extraídas intactas de outros reper- um gênero improvisado, às vezes a lítica. O violeiro Crispim Ubaldo
tórios, inclusive da música popular chula pode ser composta no mo- Evangelista, agricultor em Senzala
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 130
S am ba d e R o da Ra í z es
d e Ango la , d e s ã o
franc is c o d o c ond e .
foto : l ui z santo s.
página ao la d o
S e u M undinh o e
S e u J o ã o d e Iaiá, da
Marujada d e Sau bara .
foto : l ui z santo s .
(perto de Oliveira dos Campinhos, pessoas na roda. Um dançador entra na roda; re-
localidade nas proximidades de Diz-se que o “samba amarrado” pete-se a chula acima, e outro entra
Santo Amaro), nascido em 1911,27 se refere, por um lado, a um ritmo na roda. Este ciclo pode acontecer
apresenta como “a primeira chu- um tanto calmo e ao uso refina- várias vezes. O samba é então “de-
la” esta, que se transcreve com um do e reservado de vozes, violas e samarrado”, cantando-se a chula,
relativo. mesmo percussão, em comparação desta vez com os seus versos finais:
com o samba corrido, mais “solto”
(Chula) e demonstrativo. Candeá, todavia, Na Feira de Santana,
Minha sinhá, minha iaiá. (bis) dá uma explicação mais específica Eu vendi meu boi fiado
Quem tem amor tem que dá. do samba amarrado com base numa Por um bom dinheiro, ai, ai.
Quem não tem não pode dá. forma especial de chula. O samba é
Mulata baiana, quero ver a palma zoá. “amarrado” cantando-se os ver- Introduz-se uma nova chula, e o
Chora mulata, chora sos finais da chula somente depois samba continua.
Na prima desta viola. da repetição final desta, como no Nos tempos presentes, associa-
seguinte exemplo. Canta-se inicial- se mais comumente o “partido alto”
(Relativo) mente a chula desta forma: com o samba do Rio de Janeiro,
Ô, vi Amélia namorando. Eu vi Amélia. mas há considerável indicação de
Eu vi Amélia namorando. Namora, Amélia. Garimpeiro, boiadeiro, que o termo e o estilo do samba que
Olha seu gado esparramado. identifica possam ter emigrado da
As chulas podem ter também Sinhazinha mandou me chamar Bahia.28 A palavra partido, já se vê,
sentido imediato. Existem textos Lá de cima do sobrado. significa, entre outras coisas, uma
especiais para começar uma noite Um conto de réis eu dou associação política formal. Parti-
de samba, para permitir a um novo Pela boiada do gado, do é também um extenso campo
cantador se apresentar, e para lou- Tirando tortos e magros de cana-de-açúcar, e deste modo
var ou provocar outros músicos e Que não possam viajar. partido alto pode significar uma
plantação em terreno elevado. A um público não distraído nem por da Purificação e seus arredores o
Prof. Zilda Paim, de Santo Amaro outras dançadeiras, nem por textos samba que apresenta tais elementos
da Purificação, explica que partido cantados. Este aspecto oferece estilísticos. A expressão tem eviden-
alto era o samba que os senhores de também uma explicação da predo- temente mais sentido fora do que
engenho estimulavam para exibir as minância de mulheres nesta espé- dentro de Santo Amaro, e o seu
suas “cabrochas e mucamas” favo- cie de samba. A participação dos sentido, por exemplo, em Salvador
ritas, vale dizer, as suas amantes es- senhores de terra explica o uso de é diferente daquele que tem em Ca-
cravas prediletas.29 Cobrinha Verde um instrumento de origem euro- choeira. Na primeira cidade, centro
afirma que o partido alto é o samba péia (a viola), e de um texto cantado onde muitos estilos regionais se
da “ristrocacia”.30 em língua européia, e de estrutura reuniram, “samba sant’amarense”
Partido alto pode, pois, referir- européia. refere-se em sentido generalizado
se a um discreto refúgio no canavial Raízes etimológicas e históricas ao estilo de samba do Recôncavo,
em terreno alto, assim como ao são de pouco interesse para os mú- exemplificado pelo de Santo Ama-
partido, ou sociedade, dos “barões sicos do Recôncavo. São mais prag- ro. Em outros locais do Recôncavo,
do açúcar” do Recôncavo. A his- máticos, e os informantes definem muitos dos quais têm seus próprios
tória oral falha em especificar qual o partido alto em termos estilísticos estilos bastante semelhantes ao de
dessas é a válida (se alguma delas o claros e simples: é cantado em duas Santo Amaro, o termo refere-se
for), mas esta hipótese proporciona vozes, a “primeira” e a “segun- a detalhes específicos e menores
pelo menos explicações parciais aos da”; só uma mulher entra na roda do repertório, ao uso da viola, à
vários elementos estilísticos desse de cada vez, e só quando a chula maneira de dançar e ao estilo do
gênero de samba. O canto cessa, e (possivelmente com seu relativo) canto.
em contraste com o samba corrido, terminou.
apenas uma mulher de cada vez é Samba “santo-amarense”
admitida na roda, a fim de mostrar refere-se ao fato de que está mais
sua habilidade e seus encantos a associado à cidade de Santo Amaro
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 132
página ao l ado
Caru ru de C os me e
Da mião, em m arag ogipe.
foto: lu iz santos .
de São Braz. Na véspera do dia de santos preferidos no culto domés- Os participantes dão uma salva de
São Roque, gambiarras são esten- tico). A reza é aberta físicamente palmas e respondem, “Viva!”, e
didas entre as duas casas. Na sala e simbolicamente à comunidade, amiúde soltam-se foguetes na rua,
de uma delas, realiza-se uma festa e o grupo participante consiste de diante da casa.
de candomblé em homenagem a todos aqueles que desejam assistir. O estilo musical que prevalece
Obaluaiê, ritual em que o orixá é Este grupo se reúne ao redor do no evento começa gradativamente
chamado com tambores e ciclos de altar e da rezadeira, respondendo, a modificar-se, num processo de
cânticos de origem africana. Simul- também em canto, a suas preces. transformação musical que leva
taneamente, na outra casa, perten- O estilo musical destas preces diretamente ao samba. Dando um
cente ao primo, realiza-se uma reza é europeu. O tempo é lento e o passo da Europa rumo ao Brasil,
e um samba para São Roque.33 ritmo, quadrado. O canto pode ser as mulheres cantam uma roda34
A reza é um ciclo de orações em uníssono, ou às vezes em terças de despedida a São Roque (Exemplo
cantadas em português (com al- paralelas improvisadas. A impressão 13). Toda a assembléia entra com
gumas respostas em latim, às vezes é geralmente de lamento, embora, as palmas em cima do tempo, e o
de memória apenas fonética, “Ora é claro, nada em absoluto exista de andamento se acelera à medida que
pros nobres”, por exemplo) e “ti- lamento no rito. A reza prolon- sucessivamente a roda se repete.
radas” por uma “rezadeira”, pessoa ga-se por aproximadamente meia Alguns dos músicos que acompa-
especializada, na grande maioria hora. Encerra-se com uma ladai- nharão o samba assistiram à reza, e,
dos casos mulher, e trazida de fora nha de despedida para o santo ou a em certo ponto, pode-se ouvir um
pelo dono da casa. Reza ajoelhada - santa, freqüentemente agradecen- timbal que se vem juntar ao con-
ou sentada numa esteira de palha de do-lhe a presença e expressando a junto (Exemplo 14). A roda termina
artesanato local - diante de um altar esperança de que a ocasião se repita quando a rezadeira interrompe com
(chamado às vezes de “pejí”) ornado no ano vindouro. Ao fim da ladai- outra saudação, “Bença, Senhor
com imagens do santo reverenciado nha, a rezadeira saúda o santo três São Roque!”. Quase imediatamen-
(e talvez com imagens dos outros vezes, “Viva Senhor São Roque!” te, as mulheres iniciam uma segun-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 135
Os cantadores podem zom- Ao que outro par poderá res- que, pelas graças de uma mulher da
bar um do outro, ou louvarem-se ponder com este relativo: roda, o ciúme e mesmo a violência
mutuamente, em suas chulas. Um se excitem. Uma forma comum de
par deles pode cantar da seguinte Colega meu, elogio a uma sambadora particular
forma: Vou mandar de relepada. (e também uma forma de partici-
Quando Deus mandar a chuva, pação para quem não está dançan-
Se minha mulher souber Você vai na enxurrada. do) é o grito, “Olhe seu marido,
Que um cantador me venceu, mulher!” (ou, “Marido, olhe sua
Ela jura, bate fé, Não é incomum que dois mulher!”), destinado a provocá-la
“Isto não aconteceu”. cantadores se convidem a sair da ainda mais a caprichar na roda (e,
Arruma a trouxa e vai-se embora. casa “para ver se o corpo agüenta o de passagem, enciumar o compa-
Não quer morar mais eu. que a boca fala”, nem é incomum nheiro dela). De qualquer forma,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 137
S a mb a de Rod a de
P irajuí a. foto: lu iz
san tos.
diz-se que um samba sem pelo me- Em determinado momento da boca, e ele ou ela entra na roda para
nos ameaça de briga “não prestou”. noitada, o samba pode se tornar sambar ao som da seguinte chula
Tal como diz a chula, “De meia- mais lúdico, com a execução de e seu corrido, repetidos enquanto
noite para o dia, faca fora desafia”. “brincadeiras” contendo diálogo a pessoa que dança permanece na
Várias vezes durante a noi- falado e representação, e usando roda:
te, tanto para proporcionar uma adereços e objetos de cena, como
mudança de passo como para dar o “Samba de Severo”. Nesse, um (Chula, solo)
trégua aos violeiros e cantadores mestre de cerimônias pergunta a Quando eu tinha meu Severo,
de chula, os corridos substituem as vários indivíduos (identificados Eu comi de prato cheio.
chulas. O corrido pode ser variante por um chapéu que passa de um Hoje que não tenho Severo,
de uma chula, como neste caso: ao próximo escolhido), os quais Nem bem cheio nem bem meio.
improvisam papéis de forasteiros, (Corrido)
(Chula) porque apareceram no samba sem (Solo) O Severo é bom.
Eu via Maria sentada, serem chamados. O intruso inven- (Grupo) É bom demais.
Sentada no tamborete, ta qualquer pretexto para estar nas (Solo) O Severo é bom.
Cozendo sua costura, vizinhanças e algum grau de paren- (Grupo) É bom rapaz.
Bordando seu ramalhete. tesco, ou outro vínculo freqüen-
Chora, chorei, chora. temente sugestivo, com um certo Quem dança passa o samba ao
Chora, Maria, chora “Severo”. Quem indaga procura próximo “forasteiro”, colocando
Na prima desta viola, paciente porém insistentemente o chapéu em sua cabeça, a música
Chora. saber se o penetra “faz o que Seve- pára, e repete-se o interrogatório.
ro faz”. Este desafia em resposta: É difícil recusar o chapéu, e assim
(Corrido) “Pinique aí pra ver!”. A percussão este samba é usado para provocar a
Ô, chora, Maria, chora, (bis) começa antes, se possível, destas participação dos que se marginali-
Na prima desta viola. palavras terminarem de sair da sua zam, assim como fazer um intervalo
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 138
S am ba e m dia d e Caruru
d e C os m e e Dami ã o .
foto : l ui z santo s .
página ao la d o
L í d er es d o Sam ba d e
Cast r o A lv es . foto : l ui z
san to s.
humorístico, malicioso e até final- (Solo) Porque apanhou violeiros e cantadores às vezes re-
mente gaiato (combinação que aliás Nhem, nhem, nhem. sistem ao cansaço, enquanto exaus-
carateriza o fino senso de humor do Porque não mamou. tos nos seus lugares, continuam a
Recôncavo). De uma forma ou de Nhem, nhem, nhem. cantar e tocar, espichando o pes-
outra, geralmente aumenta a ani- Chora, menino. coço e forçando os olhos para além
mação. O samba de Severo termina Nhem, nhem, nhem. da porta, aguardando “o dia raiar”,
quando alguém, decidindo que se O menino é chorão. para sentirem-se satisfeitos com o
prolongou o suficiente, anuncia Nhem, nhem, nhem. samba. Um bom samba pode muito
que ele ou ela (é indiferente que Chora, menino. bem “entrar no dia seguinte”, e
seja mulher) é Severo em carne e Nhem, nhem, nhem. não é raro ouvir-se que um samba
osso. Entra na roda, e não passa o O menino é chorão. continua diretamente na segunda
chapéu. (...) noite da festa. Mas os tempos estão
Outros sambas com teor de mudando rapidamente, e, nos dias
representação não incluem diálogo Noutro samba, “Coça-quipá”,35 de hoje, é motivo de satisfação en-
falado. Em “Chora, menino”, um quem dança finge ter comichões, contrar-se mesmo uma só noite de
objeto representando um neném e coça as partes do corpo, indo das samba rigorosamente executado.
(pode ser uma boneca mesmo, ou menos às mais provocativas.
uma garrafa, um trapo, um pedaço O valor de um samba é calcu-
de pau, qualquer coisa) passa de lado em boa medida por sua dura-
dançador para dançador, enquanto ção. É lógico que um samba bom,
se canta um corrido sobre o choro “quente”, tende inevitavelmente a
da criança: durar mais do que um samba fraco;
mas parece haver mais do que isto.
(Solo) Chora, menino. Nenhum samba digno de lembran-
(Grupo) Nhem, nhem, nhem. ça termina antes do amanhecer. Os
O GRUPO O “samba” não é certamente, indústria turística, e ainda mais
É inegável que os participantes na Bahia, um grupo ou sociedade quando falam com forasteiros.
de um samba, durante sua efetiva- formal (salvo para fazer apresenta- “Nosso samba”, contudo, pode
ção, formam um grupo. É claro ções). Há, todavia, forte reconheci- também ser usado de referência a
também que o samba tem signi- mento de afinidade com um certo, todos aqueles que são considerados
ficação religiosa e mesmo função e muitas vezes bem específico, competentes para executar o gênero
religiosa direta. No culto domés- grupo de pessoas competentes em com propriedade e da mesma forma
tico, o samba se realiza não apenas um estilo de samba, na maioria dos participar do evento. Admite-se
para um santo, mas diante dele, casos estreitamente identificado, e que o conceito é tênue, e certa-
presente em seu altar. Tanto Souza freqüentemente com fortes cono- mente merece mais estudo, mas não
Carneiro como N’Landu-Longa tações regionais e até micro-regio- há dúvida alguma de que o samba é
sugeriram a natureza religiosa do nais. um importante ponto de referência
samba no passado, quer africano, A relação está implícita na lin- para os seus participantes no seu
quer brasileiro, e o último chega guagem que os participantes usam ambiente social.
a afirmar que o samba remonta a a propósito do gênero. “Nosso
um grupo de iniciação ao qual se samba” pode ser usado para in-
permanece ligado por toda a vida. A dicar aquele grupo de músicos e
questão é saber se o samba da Bahia, dançadores que juntos costumam
presentemente, retém ou não uma realmente executar o gênero. É,
qualidade de identidade com um noutras palavras, o conjunto de
grupo estabelecido - grupo que apresentação (performance). Assim, os
dure além da identidade momen- músicos de samba podem referir-se
tânea assumida enquanto o gênero ao seu “conjunto”, especialmente
se apresenta, e há participação no aqueles que tiveram experiência
evento do samba. com grupos de “folclore” para a
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 140
um epílogo
pessoal
F ui informado da viola do
Recôncavo e do seu samba no
decorrer de um trabalho que fazia
Amaro da Purificação homens, e
mulheres, famosos nas redondezas
por suas proezas como violeiros,
de um instrumento musical cujo
tipo realmente adequado é fabri-
cado por um minúsculo grupo de
em Salvador sobre o repertório como conhecedores de grande nú- artesãos em plena fase de extinção.
musical do jogo de capoeira, e foi mero de chulas, como possuidores Para os herdeiros naturais dessa
através de informantes de capoei- de um “grito” excepcional, como tradição - os descendentes dos
ra, especialmente o saudoso Rafael “bagunceiros”. Conheci um fazedor violeiros, cantadores e sambadeiras
Alves França, o Mestre “Cobrinha de violas. Através de Santo Ama- - muitas vezes este samba antigo
Verde”, que pela primeira vez fui ro, conheci São Braz, e Saubara (e representa um passado de pobre-
apresentado aos violeiros do Alto da lá Marujos, Cristãos e Mouros, e za rural e de imobilidade social
Santa Cruz, em Salvador, entre os França, Oropa, Portugal, e Bahia). e econômica. Na verdade, pouco
quais Antônio “Candeá” Moura e Descobri, afinal, uma tremenda existe nas vidas da maioria dos meus
seus colegas - na sua maioria, como rede de samba e sambas, e uma informantes que indique outra coi-
“Cobrinha”, emigrados do Recôn- arte musical de considerável com- sa. O interesse do estudioso de fora
cavo. Foi Cobrinha o primeiro a plexidade, aparentemente nunca os espanta, o que parece ter tido
insistir em que eu, como músico, antes tratada, salvo de passagem, em pelo menos algum efeito na reava-
precisava conhecer “nosso samba... qualquer espécie de publicação. liação positiva da tradição na mente
samba de viola”, e levou-me a ver A música e a sua rede, todavia, daqueles que a herdaram.
“Candeá”, que morava alí perto. estavam e estão rapidamente desa- A reação da classe média com
Através do samba, conheci o parecendo, como acontece a tanta formação universitária, especial-
Recôncavo. Aos poucos, comecei coisa da cultura tradicional do mente entre indivíduos de meia-
a viajar com os músicos do “Alto” Recôncavo. Talvez o samba de viola idade, e tanto mais “politizados”
para as terras natais deles, nos dias fosse a única que jamais tinha sido melhor, pode ser bem diferente.
de festa ou de “obrigação” de pa- registrada, mesmo pela indústria do Bom número de amigos meus nos
rente ou amigo. Conheci em Santo turismo, e é a única que depende campos profissional, acadêmico,
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 141
S e u Pe dr o Sa m ba d or
e Do na P orc ina , e m
marac angal ha . foto :
l ui z san tos .
exemplos
musicais
As cordas simples são indicadas que são tangidas antes do par uma
nota do exemplo não circunscrita por notas cheias; as revestidas, por oitava mais baixa, pelo movimen-
por parênteses. Todas as alturas nos notas brancas. As “requintas” da to do polegar do violeiro quando
Exemplos 1 e 2 são na prática uma quarta e quinta ordens são indica- avança na direção do indicador. A
quinta e uma sétima menor mais das por hastes. As cordas são repre- afinação “requintada” é outra usada
agudas do que aqui demonstrado, e sentadas na pauta na ordem física em Santo Amaro, mas é menos
as violas que foram discutidas neste segundo a qual estão colocadas no comum que as demais examinadas,
ensaio são afinadas uma sétima instrumento. Isto significa que as e não é descrito no texto.
acima das alturas mostradas nos “requintas” estão numa posição tal
exemplos, dependendo da execu-
ção, isto é, das características dos
instrumentos e das vozes dos canta-
dores presentes.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 143
Exemplo 3: PANDEIRO d’uma nota representa o som agudo Esta é uma transcrição rudimentar
da batida de toda a palma no couro e simplificada da maneira altamen-
Cada semicolcheia representa o do instrumento, comprimido pela te sofisticada que o instrumento é
retinir das rodelas do pandeiro, pressão do polegar da mão direi- tocado. Consegue-se complexidade
produzido pelo movimento do ta sobre o couro moderadamente através da variação dos acentos e
punho da mão esquerda (com o comprimido; as notas entre parên- batidas da mão direita e da tensão
qual mais habitualmente se segura o teses são os sons das rodelas por si aplicada sobre o couro pelo polegar
instrumento). Um círculo (_) acima mesmas, isto é, sem golpes da mão da mão que segura o pandeiro.
d’uma nota representa um som direita sobre o couro do pandeiro.
profundo produzido pela batida
do polegar da mão direita sobre o
couro livre, não comprimido, do
pandeiro; o sinal “mais” (+) acima
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 144
Exemplo 4: PRATO-E-FACA
Exemplo 8: PRATO-E-FACA
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 146
1. Este ensaio foi publicado, na sua qual leva em conta a formação dos terrenos
primeira versão, em inglês, na Revista de e a resultante utilização dos solos. (...)
Música Latinoamericana, Vol. I, N._ 2 (ou- Recôncavo quer dizer açúcar, açúcar e
tubro, 1980), e Vol. II, N._ 2 (outubro, fumo, massapê, (...) casas-grandes caindo
1981) da University of Texas Press (Austin, em ruínas, (...) os grandes navios petro-
Texas, EUA). A “Parte I: Viola de Samba” leiros aportados na entrada do boqueirão,
foi editada em português, em tradução na Ilha de Madre de Deus, bem defronte
Notas de Nélson de Araújo, na série monográ- à igrejinha de Loreto no mais puro estilo
fica Ensaios/Pesquisas, N._ 6 (dezembro, jesuítico seiscentista na Ilha dos Frades.”
1980), do Centro de Estudos Afro-Orien- Machado Nedo, Zahidé. Quadro sociológico da
tais da Universidade Federal da Bahia “civilização” do Recôncavo, pp. 3-4.
(Salvador, Bahia). 5. Anchieta, José de, S.J. Poesias, p.
O estudo que resultou nesta publicação 743, n._ 9.
começou mediante pesquisa subsidiada 6. Os nomes pelos quais as cordas
pelo Social Sciences Research Council do são chamadas no Sul do Brasil são pouco
American Council of Learned Societies, usados na Bahia. Câmara Cascudo, em seu
no decorrer da qual o autor esteve ligado Dicionário do folclore brasileiro, verbete “Viola”,
à University of Illinois, como candidato dá os seguintes nomes: “prima” e “con-
ao Ph.D., e ao Centro de Estudos Afro- traprima” (1._ par); “requinta” e “contra-
Orientais, ao qual deseja apresentar pro- requinta” (2._ par); “turina” e “contratu-
fundos agradecimentos pela cordialidade e rina” (3._ par); “toeira” e “contratoeira”
apoio, durante esses longos anos, dos seus (4._ par); “canotilho” ou “bordão” e
funcionários, alunos, professores e, no- “contracanotilho” (5._ par).
tadamente, dos seus diretores, Guilherme 7. Algumas cerimônias dos cultos dos
de Souza Castro, Nélson de Araújo, Júlio caboclos comportam violas, como as que
Braga e Jeferson Bacelar. envolvem o “Boiadeiro”, sendo o instru-
2. Rafael Alves França, conhecido mento favorito deste.
como “Cobrinha Verde”, é dos mais 8. Diz-se que o “iúna” imita o canto do
renomados dentre os mestres tradicionais pássaro que dá o nome ao toque.
da capoeira. Também fazia curas, segun- 9. N’Totila N’Landu-Longa, em
do suas palavras, “pelas ervas e as águas”. conferência pronunciada no CEAO (10
Foi quem primeiro me abriu caminho de maio de 1978), da qual há uma grava-
ao mundo da viola, dos violeiros e do seu ção depositada na biblioteca deste órgão,
samba, no qual era exímio. sugere que “samba”, como vocábulo e fato,
3. No sertão da Bahia, o gênero pode é descendente do quicongo sáamba, que
ser chamado “coco”, mas o evento recebe o significa o grupo iniciatório no qual uma
nome de “samba”. pessoa se torna habilitada para funções
4. A significação dos termos usados no políticas, sociais e religiosas, passando a
título é o verdadeiro assunto do presen- significar, por analogia, a hierarquia das
te trabalho, sendo conveniente, todavia, divindades. Edison Carneiro, em Fol-
acrescentar a seguinte citação: “O chamado guedos tradicionais (p. 36), sugere que
Recôncavo geográfico, compreendendo “samba” deriva de semba e significa umbi-
a área em torno da Bahia de Todos os gada, através do qual a dança passa de uma
Santos, cuja entrada é a cidade do Salva- pessoa à próxima. Batista Siqueira afirma,
dor, se estende, no conceito fisiográfico, o em A origem do termo “samba” (p. 30), que
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 150
“samba” vem da palavra carirí equivalente 12. O Recôncavo baiano é uma ver- suas parceiras femininas, seu estilo é mais
ao português “cágado”. dadeira civilização, embora regional e já comumente um tanto diferente, caracteri-
Existem diversas outras explicações arcaica (veja Machado Neto, 1971, e Milton zado pelos movimentos de pernas e braços
etimológicas. Há por exemplo em Lu- Santos, 1959). Nesta civilização, como em (conhecidos como “piegas”) mais exube-
anda, Angola, uma rodovia à beira-mar, qualquer outra, as diferenças entre lugares rantes e acrobáticos.
chamada “Estrada da Samba”, usada quase próximos são às vezes nítidas e rigorosa- 14. Existem em todo o Brasil, e mesmo
diariamente pelo autor deste trabalho mente reconhecidas pelos habitantes. em toda a Bahia, vários estilos do “sapate-
quando teve ocasião de passar uns meses Na cidade de Santo Amaro da Purifica- ado”. No Recôncavo “sapatear” significa
de 1996 neste país a serviço da ONU. O ção, sede do município do mesmo nome, dançar nos pequenos e rápidos movimen-
pedido de uma explicação ao povo do lugar não se canta relativo. No lugar de Santa tos do pé característicos do samba. O sa-
recebeu, de um informante amigo, a res- Elisa, do mesmo município, e em Saubara pateado (ou “sapateio”) pode ser executado
posta de que “samba” era “uma espécie de - cidade só recentemente emancipada de facilmente de pés descalços.
braço do mar”, e de outro participante da Santo Amaro -, o relativo entra a rigor. 15. Conheço uma certa sambadora, de
mesma conversação cordial, “qual nada - é Em São Braz, também no município de apelido “Da Véia” (da velha), de Saubara,
um tabuleiro no interior”. Terreno fértil, Santo Amaro, e só uns 18km de Saubara, que samba daquela maneira, segurando a
mas para outra colheita. não entra. O hábito do lugar onde está saia com a mão esquerda e acrescentando
10. Uma exceção é Samba rural paulista de se realizando o samba prevalece naquele sua marca registrada de encostar de leve na
Mário de Andrade, trabalho baseado em samba, mas, já que é comum em qualquer bochecha direita as pontas dos dedos (ou
observação de campo. samba a presença de cantores de lugares apenas a do dedo indicador) da mão direi-
11. O pandeiro tradicional do Re- vizinhos, porém de hábitos divergentes, ta, a palma para cima - olhando para cima
côncavo consta de um aro de madeira são proporcionalmente comuns os choques como se estivesse distraída ou desinteres-
(de preferência jenipapo), com rodelas estilísticos, e não raros os atritos em torno sada. Estas marcas registradas maneiristas
recortadas de folhas de flandres (hoje em deles. [Nota do revisor: a pesquisa realiza- são permitidas, e mesmo estimuladas,
dia, de tampas de garrafa de cerveja ou da em 2004 mostra certas diferenças com entre os participantes. Diversas pessoas
refrigerante, achatadas e desamassadas) e o aqui afirmado neste ponto. O grupo com podem empregar o mesmo maneirismo,
com membrana de pele de cobra, veado ou que trabalhamos em São Braz canta relati- ou semelhante, da mesma forma que cada
bode (e por esta razão esse instrumento é vo, como se percebe na faixa 1 do CD Samba cantador tem sua própria voz e sua pró-
muitas vezes chamado apenas de “bode”). de roda, patrimônio da humanidade]. pria maneira de interpretar, mas sempre
O couro esticado é pregado na orla do aro, 13. Uma vez que esta descrição visa a dentro do estilo. Certos maneirismos não
e é apertado durante o samba, conforme oferecer um modelo, use-se como exem- seriam considerados apropriados ao estilo.
a necessidade, mediante calor gerado pela plo a situação, mais comum, de mulhe- O estilo do samba - tanto coreográfico
queima de papel de embrulho, papel-jor- res que dançam e homens que tocam os quanto musical - reconhece os elementos e
nal ou palha. Recentemente, entraram instrumentos e cantam as chulas. Não o comportamento que nele não cabem.
em uso pandeiros industrializados, com se pretende ignorar a presença de mu- 16. Convida-se o leitor a comparar a
membranas de plástico esticadas por uma lheres como violeiras (o que de resto é descrição do samba que se faz no presente
coroa de ferro e apertadas por tarrachas de muito raro), nem a de homens na roda estudo com a do fado feita por Manuel
ferro. A sonoridade desse instrumento é, de samba. O melhor prato-e-faca que Antônio de Almeida no seu romance
evidentemente, diferente da sonoridade do ouvi no Recôncavo esteve (e continua) nas Memórias de um sargento de milícias (pag. 39 e
seu congênere artesanal, e os músicos mais mãos de Joselita Moreira (a muito querida seg.), que transcorre no Rio de Janeiro
ortodoxos sentem que o pandeiro moder- “Zelita”) de Saubara, e o Exemplo 4 é uma “no tempo do Rei”, quer dizer, na segunda
no é ruidoso demais. Queixam-se também tentativa de transcrever o seu estilo. Os década do século XIX.
- mencione-se de passagem - que a mem- homens, que predominam nas rodas do “Todos sabem o que é o fado, essa dan-
brana de plástico é altamente vulnerável a sertão, são comuns nas do Recôncavo, mas ça tão voluptuosa, tão variada, que parece
derretimento e perfuração pelas brasas dos são secundários, e embora possam dançar filha do mais apurado estudo da arte. Uma
cigarros dos seus tocadores. no mesmo estilo de sapateado, como fazem simples viola serve melhor do que instru-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 151
mento algum para o efeito. quenos Mundos, Tomo I, O Recôncavo, “Bandas pag. 50:
O fado tem diversas formas, cada qual de pífanos na Bahia e em Sergipe”, pag. “O partido alto, que tanto delicia os
mais original. Ora, uma só pessoa, homem 321. veteranos do samba, não se executa para o
ou mulher, dança no meio da casa por A “Donzela Teodora” é, como se sabe, grande público, nem exige a bateria das es-
algum tempo, fazendo passos os mais difi- um dos grandes temas da literatura de colas. Ao som de reco-reco, prato e faca,
cultosos, tomando as mais airosas posições, cordel do Nordeste. A história é compro- chocalho, cavaquinho e de canções tradi-
acompanhando tudo isso com estalos que vadamente de origem árabe-medieval, e cionais, como na Bahia - um estribilho
dá com os dedos, e depois pouco e pouco foi estudada por Luís da Câmara Cascudo sobre o qual o cantador versa ou improvisa
aproximando-se de qualquer que lhe em Cinco Livros do Povo, Vaqueiros e Cantadores, - um único dançarino, homem ou mulher,
agrada; faz-lhe diante algumas negaças e e outras publicações. Introduzida remo- ocupa o centro da roda, passando a vez
viravoltas, e finalmente bate palmas, o que tamente na Península Ibérica, desde 1840 com uma umbigada simulada. Os antigos
quer dizer que a escolheu para substituir o vem sendo publicada no Brasil, na forma relembram assim “os velhos tempos” da
seu lugar. de folhetos em prosa, posteriormente em chegada do samba ao Rio de Janeiro.”
Assim corre a roda até que todos te- versos. Na literatura árabe, aparece em O verbete “Partido Alto” na Enciclopé-
nham dançado.” várias coleções das Mil e Uma Noites. dia da Música Brasileira: Erudita, Folcló-
17. Antônio Moura (“Candeá”), 22. Dança de salão de origem norte- rica e Popular diz o seguinte:
“primeira”, e Henrique Santana da Silva, americana dos anos 1920 (e das boates de “Tipo de samba dançado nos morros
“segunda”. A gravação sobre a qual se fez bebida clandestina da lei seca) que leva cariocas. Trazido da Bahia para a cidade do
esta transcrição foi realizada em 12/4/78, o nome do porto importante do estado Rio de Janeiro em fins do século passa-
na casa de Candeá, no Alto da Santa Cruz, de Carolina do Sul, fundado no tempo do, foi um dos elementos formadores das
bairro de Salvador. Candeá faleceu em colonial inglês e, por sinal, berço de uma escolas de samba. Dançado em roda, carac-
Salvador em 11 de março de 1988. cultura africana-norteamericana de peso. teriza-se por não haver dança enquanto se
18. Antônio Moura, comunicação 23. A semelhança do “sapateado” tira o canto estrófico, sem refrão. Depois
pessoal, 1978. do Rio Grande do Sul e dos “piegas” do de cantada cada estrofe, um dos raiadores
19. Lira? “lundu”, ainda assim conhecido no sertão (dançarinos) sai sambando e, partindo dos
20. Jiquiriçá? da Bahia, certamente merece mais estudo tocadores, dá duas voltas na roda, termi-
21. Os versos desta chula são uma em termos de formas arcaicas e possivel- nando com a umbigada. O que a recebe sai
curiosa incorporação da “Donzela Teo- mente em termos de uma remota formação dançando, depois de cantada outra estrofe,
dora” - velha história popular portuguesa musical e coreográfica do Brasil. e assim sucessivamente. As mulheres mui-
passada para o Brasil - ao folclore musical 24. A palavra “chula” (forma femini- tas vezes dançam o miudinho. Os partici-
do interior baiano. Ainda recentemente, na de “chulo”) significa como se sabe, em pantes batem palmas, marcando o ritmo e
o pesquisador Nélson de Araújo, um dos seu sentido mais geral, “vulgar, rude ou acompanhando os instrumentos: violões,
tradutores deste trabalho, encontrou o rústico”. cavaquinhos, flautas, pandeiros e prato-e-
mesmo tema literário servindo à melodia 25. Por sinal, “comadre” ou “com- faca.”
de um dos “toques” de conhecida banda de padre”, como se sabe, pode significar, 29. Zilda Paim. Comunicação pessoal,
pífanos de Uauá, no sertão baiano de Ca- segundo costume do Recôncavo, amizade 1980.
nudos. A melodia, recolhida por um dos ou título de respeito e afeto mútuos, além 30. Rafael Alves França, “Cobrinha
integrantes da banda no começo do século do relacionamento sacramental. Verde”. Entrevista gravada em 12 de se-
e desde antão fazendo parte do seu reper- 26. Agradece-se ao Prof. Cid Teixeira tembro de 1977.
tório de “toques” fora originariamente por esta elucidação, feita em comunicação 31. Numa conversa de botequim alguns
uma modinha cantada pela população de pessoal. anos atrás no Alto da Santa Cruz, perto
Uauá tal como relata Nélson de Araújo, 27. Falecido no início da década dos da casa de Marcelino, o autor e alguns
primeiro em artigo intitulado “Calumbi, a anos noventa. praticantes do samba de viola, entre eles o
banda baiana de pífanos”, publicado em A 28. Sobre o “partido alto”, escreve Marcelino, estavam trocando idéias sobre
Tarde (edição de 9.12.84) e depois em Pe- Edison Carneiro em Folguedos Tradicionais, o tipo de música que a gente apreciava. O
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 152
autor, quase pedindo desculpas, disse que vezes o samba de um dia emendava com a vital do autor). A música do candomblé
gostava de, entre outras coisas, “música manhã do outro. Hoje o Samba de Oxum, para Omolu na casa do primo-vizinho é
clássica”. Marcelino não vacilou: inter- pelas dificuldades de vida das pessoas que inteiramente audível na gravação, ao fun-
veio com animação, “Eu também gosto da o compõem, mudou. É feito somente com do, assim como se ouve a discreta entrada
música clássica – samba de viola!” atabaques, agogô, o prato-e-faca e as pal- do timbal mencionado vários parágrafos
32. Souza Carneiro (pai de Edison mas, e é realizado num dia só. adiante.
Carneiro), em Os mitos africanos no Brasil (pag. Nesse dia, as expectativas das pessoas na Além disso, e por certo digna de regis-
436 e segs.) afirma que o samba era uma casa ficam voltadas para o Samba de Oxum, tro, é a realização de uma cerimônia muita
“dança dos negros feita sempre em honra que geralmente se inicia à tarde e segue rara, levada a efeito pela última vez depois
aos Orixás, por algum motivo religioso até que se dê a festa por encerrada, com a de muitos anos de cumprimento em São
. . . saindo dos candomblés para o meio saída da cozinha do tradicional bacalhau a Braz por uma senhora, que então a esta
da rua” só após “os primeiros séculos do martelo. parte faleceu.
descobrimento”. As mulheres se arrumam com o traje de Referimos-nós à “comida dos cachor-
Valiosa elucidação de notável caso de ‘crioula’, todas elas muito enfeitadas com ros”. Como foram os cães que, com suas
um samba (de viola, da forma que ve- torço, colares e pulseiras. Estão, na sua lambidas, sararam as feridas de São Lázaro,
remos) que não saiu do candomblé foi maioria, descalças. O samba pode começar oferecia-se todos os anos aos cachorros de
gentilmente fornecida por Márcia Maria no salão, onde se realiza o candomblé, São Baz (começando com sete escolhidos),
de Souza em abril de 1985, em forma de e terminar na cozinha, ou vice-versa. Às em homenagem a esses animais, assim
pequeno manuscrito, aqui publicado pela vezes, ainda arrumando a cozinha após o como ao santo, um banquete completo
primeira vez. almoço, o samba vai começando, até que com vinho (Vinho Composto Jurubeba
O Gantois - um dos terreiros da Bahia surja um tocador de atabaque. Assim, o “Leão do Norte”), seguido por um ciclo de
mais respeitados por sua ortodoxia e a me- samba se arruma e vai para o salão, onde cantos em louvor ao santo. Este costume
ticulosidade com que cumpre as obrigações ficam todos em círculo, batendo palmas. extremamente raro tem sido registrado
da casa - da mãe de santo Maria Escolástica São as próprias mulheres que tiram noutras partes do Brasil. [Espera-se que
Conceição Nazareth, mais conhecida como o samba, uma por uma, horas seguidas Gilberto Sena possa realizar a sua pla-
Mãe Menininha, comemora anualmente sapateando, segurando nos lados da saia, nejada e mais detalhada descrição deste
um Samba de Oxum. levantando-a um pouco em certos mo- banquete de São Braz, a despeito da morte
Os eventos rituais da casa obedecem a mentos. Cada mulher tem suas caracterís- de quem a promovia.]
um calendário de festas móveis começando ticas próprias no uso dos pés e dos braços. 34. A roda é uma dança circular,
na última sexta-feira de setembro com as A mulher na roda escolhe sua sucessora acompanhada de cantos, geralmente
Águas de Oxalá. Este ciclo de festas públi- e a chama, ora com a umbigada, ora com realizada fora de casa, em metro binário
cas continua até festejar todos os orixás, as mãos juntas estiradas e dirigidas para a simples, ritmo quadrado e em andamento
encerrando-se nos fins de novembro ou outra. moderado de marcha.
no início de dezembro. A festa de Oxum, As pessoas no samba vão se revezando 35. Quipá é uma erva que provoca
orixá da mãe de santo, é uma das mais na roda e nos instrumentos musicais, até comichões.
importantes da casa. Realiza-se, geralmen- ser servido o bacalhau a martelo, que ter-
te em novembro, a festa de Oxum num mina o ritual Samba de Oxum.
domingo e, na segunda-feira seguinte, o 33. A reza e o samba aqui usados como
Samba de Oxum. modelos realizaram-se da noite de 15 para
Segundo alguns informantes, esse a manhã de 16 de agosto de 1978, e foram
samba, até mais ou menos 1980, era samba gravados quase na íntegra pelo autor,
de viola, com todos os elementos que com a parceria de Gilberto de Lemos
normalmente compõem esse tipo de ‘brin- Sena (parceiro, aliás, irmão inseparável e
cadeira’: viola, atabaque, prato-e-faca, e indispensável nas investidas de “campo”
as palmas. Eram três dias de samba, e às que produziram este trabalho e esta época
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 153
d e ta l h e d e baiana
d o sa m ba d e r o da
s u er d i e c k . foto :
már c i o vianna.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 154
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Anexo 1
partituras
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 159
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 160
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 161
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 162
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 163
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 164
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 165
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 166
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 167
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 168
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 169
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 170
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{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 173
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S am ba d e R o da
Barquin h a d e Bo m
J es us, d e b o m je su s d os
p o br e s , sau bara. foto :
l ui z santo s.
página 2 1 5
s o lista d o sam ba d e
r o da s u erd i e c k : foto :
már ci o vianna.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 190
Anexo 2
parecer do
relator
De Maria Cecília Londres Fonseca, dades, que a princípio poderiam não definir, no texto do decre-
relatora do Processo de Registro constituir problemas para uma to, um “conceito” de patrimônio
do Samba de Roda do Recôncavo instrução bem fundamentada, na imaterial, remetendo apenas ao
Baiano no Conselho Consultivo do verdade se revelaram desafios que artigo 216 da Constituição Federal
Patrimônio Cultural - Iphan vieram enriquecer o entendimento de 1988, e deixando que o próprio
dessa manifestação em particular processo de aplicação do decreto vá
e da própria noção de patrimô- criando uma jurisprudência a partir
Introdução nio imaterial. O conhecimento da análise dos pedidos apresenta-
O processo de Registro do gerado pela instrução do processo dos.
“Samba de roda no Recôncavo vem, portanto, contribuir para a Com essa estratégia, todas as
baiano” no Livro das Formas de construção dessa noção, formulada informações e análises reunidas em
Expressão é o quarto pedido en- recentemente e ainda pouco ela- instruções, pareceres e documentos
caminhado a este Conselho, e borada, tanto no Brasil como no produzidos no cumprimento das
o segundo a ser indicado para o contexto internacional. exigências burocráticas de anda-
Livro em questão. Perfeitamente Nesse sentido, considero que mento dos processos adquirem
adequado, como os que o antece- a decisão tomada pela Comissão um valor suplementar, na medida
deram, aos termos de decreto n° instituída pelo ministro Francis- em que, uma vez consolidadas em
3.551/2000, apresenta, no entan- co Weffort em 1998 para propor bancos de dados e em trabalhos de
to, particularidades tanto na forma instrumento legal voltado para a caráter analítico e teórico, cons-
de seu encaminhamento quanto à preservação do patrimônio cultural tituem a base para a formulação
própria natureza do objeto, carac- brasileiro tem se mostrado, na prá- de políticas para o setor. E, nesse
terísticas que o singularizam e que tica, o caminho mais frutífero para processo, acredito que o papel do
serão levadas em consideração no a construção desse campo semânti- Conselho Consultivo do Patrimô-
presente parecer. co que é também objeto de política nio Cultural, enquanto representa-
Entendo que essas particulari- pública. Refiro-me à decisão de ção da sociedade, necessariamente
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 191
será, conforme reivindicado por cluindo, como é indispensável no para sua salvaguarda.
vários conselheiros em mais de uma caso de um “patrimônio cultural Tendo como fundamento o
ocasião, e proposto pelo DPI do vivo” , os produtores e transmisso- exame da documentação que me
Iphan, o de parceiro na formula- res dos bens culturais de natureza foi encaminhada, como premissa o
ção e avaliação de políticas, e não imaterial – que certamente contri- estabelecido no decreto n° 3.551, e
apenas de instância decisória no buirá para práticas políticas mais como orientação as considerações
julgamento dos processos caso a ágeis e democráticas. feitas acima, passo à apresentação
caso, como tem ocorrido com os Considero que a instrução do do meu parecer.
tombamentos. processo do “Samba de roda do
Acredito também que a propos- Recôncavo baiano” cumpre ple- Análise do processo
ta de regulamentação do decreto, e namente as exigências de rigor na O pedido de Registro do “Sam-
a sistemática de sugestão de critérios pesquisa etnográfica e de sensibi- ba de roda no Recôncavo baiano”,
e prioridades – já encaminhados a lidade para os aspectos políticos de encaminhado ao Iphan em 13 de
esse Conselho - constituirão baliza- sua motivação. Em um curtíssimo agosto de 2004, foi precedido pelo
mentos sólidos e indispensáveis ao espaço de tempo, a equipe coorde- lançamento da candidatura do sam-
bom andamento de sua aplicação, nada pelo Professor Carlos Sandro- ba à terceira edição do programa
tanto para as instâncias técnicas e ni realizou um trabalho exemplar da Unesco intitulado “Proclamação
decisórias quanto para a sociedade, no sentido de fornecer não só os das Obras-Primas do Patrimônio
no sentido de dar consistência e vi- elementos para uma avaliação da oral e Imaterial da Humanida-
sibilidade a noções ainda nebulosas, pertinência de se registrar o bem de”, amplamente divulgado pela
haja vista a freqüente confusão de em questão como também de esta- imprensa em março e abril deste
“registro” com “tombamento”. belecer desde o início uma relação ano. Essa decisão, apresentada pelo
Com essa dinâmica, cria-se um de diálogo com os grupos de samba próprio Ministro da Cultura, teve
campo de diálogo constante entre as de roda, apresentando, como base grande impacto, provocando um
várias instâncias envolvidas – in- nesse contato, sugestões pertinentes debate em torno da proposta.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 192
A abertura do processo junto do pela antropóloga Dominique – o fato de o samba de roda baiano
ao Iphan, feita em 13 de agosto de Gallois, aqui tratava-se de cir- estar na origem do samba carioca, o
2004, com base em pedido enca- cunscrever no amplíssimo e difuso que é comprovado por várias fontes
minhado por três associações da re- contexto do samba brasileiro uma históricas citadas – vem ao encon-
gião do Recôncavo baiano, é fruto manifestação que fosse espacial- tro do requisito de “continuidade
de um amadurecimento da primei- mente delimitável, culturalmente histórica” mencionado no pará-
ra proposta mencionada acima, e relevante e, sobretudo, cuja distin- grafo 2o. do artigo 1o. do decreto
já no curso da elaboração do dossiê ção, no universo musical e coreo- n° 3.551/2000. Além disso, esse
para a Unesco. Embora o mesmo gráfico tão diversificado do samba, fato é pouquíssimo conhecido pela
tenha ocorrido com o processo de estivesse fundada numa justificativa grande maioria dos brasileiros, e,
Registro da “Arte Kusiwa dos Wa- consistente. Decisão técnica mas sem medo de incorrer em exagero,
jãpi”, nesse caso a situação era bem também política, dada a importân- poderíamos dizer que é quase uma
mais complexa em vários aspectos: cia do samba como “símbolo musical da questão de justiça tornar pública
na definição do objeto, na ne- nacionalidade”(p. 69) na medida em essa informação e conferir a essa
cessária articulação com os grupos que o sentido do termo “samba” foi manifestação o devido reconhe-
envolvidos com o bem em questão, adquirindo uma amplitude e uma cimento enquanto patrimônio
e na elaboração de um plano de polissemia que levam, freqüente- cultural brasileiro. Nesse sentido
salvaguarda. mente, a que seja identificado à – e, no meu entender, muito mais
Se no caso da arte kusiwa dos MPB em suas ricas e inumeráveis apropriadamente do que no caso
Wajãpi, a construção do objeto versões. de um eventual registro do “samba”
do pedido de registro foi bastante A leitura da instrução do pro- – a outorga do Registro ao sam-
facilitada pelo trabalho junto a esse cesso demonstra, no meu entender, ba de roda do Recôncavo baiano
grupo indígena, por muitos anos, o acerto da proposta e a consis- viria cumprir uma das principais
do Núcleo de História Indígena e tência na construção do objeto. O motivações para a criação desse
Indigenismo da USP, coordena- principal argumento apresentado instituto legal: propiciar o de-
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 193
senvolvimento de uma política de que essa última é a “raiz”, uma espécie de parecimento dessas manifestações
patrimônio cultural mais inclusiva sobrevivência anacrônica, na qual a primeira deva-se ao repúdio ou, no mínimo,
e mais representativa da diversidade se inspira e se vivifica.” (p. 61) Esse, ali- à indiferença das novas gerações,
cultural brasileira, privilegiando ás, é um dos maiores desafios para que preferem se identificar com os
aquelas manifestações que, embora as políticas voltadas para o patri- valores veiculados a partir dos gran-
apresentem “relevância nacional mônio imaterial: ir de encontro a des centros urbanos pelos meios de
para a memória, a identidade e a uma conotação de “primitivismo” comunicação de massa. Trabalhar
formação da sociedade brasilei- que se atribui aos bens culturais de no sentido de entender os bens cul-
ra” (art. 1o. par. 2o. do decreto natureza imaterial, que, ao mesmo turais de natureza imaterial como
n° 3.551/2000), não gozam de tempo em que os idealiza como expressões de nossa diversidade cul-
reconhecimento nem de valoriza- resquícios puros de um passado, e tural significa quebrar essa equação
ção por parte da sociedade (o que fonte para a criação contemporâ- de lugares marcados, e contribuir
considero a forma mais eficiente de nea, termina por “aprisioná-los” para que sua produção e transmis-
salvaguarda), nem dos benefícios em determinadas versões e – o que são possam retomar plenamente sua
da proteção via direitos legalmente é mais grave – em determinadas vitalidade.
regulamentados (como o direito de condições de produção, associando Voltando ao caso do samba de
autor, de propriedade intelectual, a criatividade dos produtores às ca- roda, o fato de essa expressão ter
de patente, etc.). rências de seu modo de vida. Essas suas raízes na cultura afro-brasileira
Citando o texto do dossiê, são posturas que costumam estar desenvolvida no contexto da escra-
quando esse reconhecimento se dá, embutidas na exigência de auten- vidão vem reforçar o argumento
expressa “a distância que vai da valorização ticidade, criando-se assim uma cor- da continuidade histórica, assim
nos meios de comunicação de massa a uma relação quase perversa entre valor como a presença de elementos da
valorização no seu contexto original. As idéias cultural e desvalorização social. Não cultura trazida pelos europeus (por
preponderantes sobre as relações entre “música é de surpreender, portanto, que exemplo, o prato e a faca) e mesmo
popular” e “música folclórica” estabelecem um dos principais riscos de desa- de elementos caboclos. Do mesmo
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 194
modo, a pesquisa demonstra que o marcada pelas imagens dos desfiles brasileiro assume por ocasião dos
samba de roda tem um caráter “sin- das escolas de samba no período do desfiles carnavalescos.
crético”, pois é tocado e dançado carnaval. Considero, portanto, que a
tanto em festas religiosas católicas Embora todos esses traços con- construção de um possível objeto
como em cultos de candomblé. tribuam para distinguir o samba de de Registro, tal como formulada na
Ao argumento da “continuidade roda das manifestações contempo- instrução do processo, está bastante
histórica” se soma a caracteriza- râneas mais conhecidas do samba, consistente, a não ser por um deta-
ção do samba de roda como uma há um traço enfatizado no texto da lhe aparentemente irrelevante : em
manifestação singular quanto a sua instrução que, a meu ver, constitui alguns documentos a referência é a
expressão musical e coreográfica. A um dos valores mais significativos “samba de roda do Recôncavo baia-
minuciosa descrição feita na ins- dessa forma de expressão da cultu- no” (pedido de registro, ofício de
trução do processo identifica dois ra nacional, e que é característico encaminhamento do Presidente do
tipos de samba de roda – “chula” também do pagode (em sua versão Iphan); já o título do dossiê refere-
e “corrido” – diferenciando-os a tradicional) e de outras versões do se a “samba de roda no Recôncavo
partir dos instrumentos utilizados, samba brasileiro: a “espontaneida- baiano”. Entendo que a diferença
das peculiaridades rítmicas, mu- de” de sua ocorrência, constituin- não pode ser entendida como uma
sicais e coreográficas, e da codifi- do-se como uma forma de expres- mera variação vocabular: no pri-
cação da participação de homens e são profundamente internalizada meiro caso, o leitor é induzido a
mulheres. A própria utilização do nos indivíduos e grupos que o têm considerar o samba de roda nessa
termo “sambador/a” para desig- como parte de seu repertório cultu- região como um gênero específico,
nar os participantes os diferencia ral. A própria expressão “o samba com características próprias bastan-
dos “sambistas” do samba carioca, acontece” é elucidativa de uma ma- te marcadas; já na segunda redação,
gênero identificado como “samba nifestação não ritualizada do samba, a impressão que fica é de que a re-
brasileiro”, e cuja representação, contribuindo para relativizar o ferência é à ocorrência, na região,
sobretudo no exterior, é muito caráter de espetáculo que o samba de um gênero existente também em
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 195
outras localidades. Conforme pude lado e legitimamente reconhecido sonoro produzido pela pesquisa.
depreender da leitura da documen- pelos indígenas para representá-los Essa conduta distingue a produção
tação, a primeira redação me parece nas negociações junto às outras ins- de uma pesquisa etnográfica com
mais apropriada, na medida em tituições envolvidas no encaminha- fins estritamente acadêmicos do
que o samba de roda tal como foi mento do pedido, inclusive junto compromisso dos pesquisadores
apresentado na instrução do pro- ao Estado nacional. No caso do com o que seriam os primeiros pas-
cesso pode ser considerado como samba de roda, o próprio relatório sos de uma intervenção conduzida e
uma forma de expressão enraizada de pesquisa menciona os inúme- regulamentada pelo poder público,
predominantemente no Recôncavo ros grupos identificados (sendo de que será totalmente inócua sem a
baiano, onde teriam sido desen- supor que possa haver outros ainda adesão dos principais interessados,
volvidas as características que o não identificados) que não estão mesmo se atendida a exigência de
singularizam como gênero musical articulados, em seu conjunto, em anuência prévia. A propósito, a
e coreográfico. É importante que qualquer tipo de organização ou necessidade de envolver os “gru-
essa ambigüidade seja resolvida, associação. Por esse motivo, foi pos, comunidades e indivíduos”
optando-se pela redação que for muito gratificante perceber que o na preservação dos bens culturais
julgada mais adequada. processo de elaboração do dossiê de imateriais foi um ponto bastante
Quanto ao processo de cons- instrução levou esse fato em conta, enfatizado na elaboração da Con-
trução de articulações que viabili- tratando as pessoas contatadas não venção da Unesco para a salvaguarda
zem o registro e posteriormente a apenas como meros informantes, do patrimônio cultural imaterial,
salvaguarda do bem, observo tam- mas como interlocutores e par- preocupação significativa sobretudo
bém uma importante diferença em ceiros na produção do trabalho, se considerarmos que a interlocu-
relação ao caso da arte kusiwa. O lançando inclusive bases para uma ção desse organismo internacional
pedido dos Wajãpi foi encaminha- futura organização ao reuni-los se dá essencialmente com os Estados
do pela APINA – o Conselho de para discutir a proposta e entregan- nacionais.
Aldeias Wajãpi, interlocutor articu- do-lhes cópias do material visual e Finalmente, e no mesmo
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 196
sentido apontado acima, é bastante a vivência do samba de roda em, digamos, quisas. As ações de apoio propostas
positivo o fato de que as propostas Santiago do Iguape (que fica a menos de 50 – e que se enquadram perfeita-
de salvaguarda tenham como base km da casa de dona Edith em Santo Amaaro). mente nos requisitos do Programa
não apenas os dados coletados pela A cadeia de mediações que vai do palco do Nacional do Patrimônio Imaterial
pesquisa como também as reivindi- Festival TIM ao adro da igreja de Santiago – visam a assegurar “condições de
cações dos sambadores e sambado- do Iguape é demasiado complexa. Em todo sustentabilidade” de uma tradição
ras, que freqüentemente expressam caso, se se pode argumentar que tal premiação e envolvem necessariamente con-
“revolta” com o que consideram traz embutida pelo menos a possibilidade de dições materiais e simbólicas de
indiferença do poder público, que um efeito positivo na outra ponta, deve-se sobrevivência da atividade e de seus
prestigiaria formas musicais mais reconhecer que, para que tal efeito se realize, é executantes. As medidas propostas
conhecidas pelo grande público, preciso justamente atuar na referida cadeia de preliminarmente no dossiê são:
favorecidas assim com retorno co- mediações.”(p. 17) • Apoio à fabricação e conser-
mercial. Mas, como se observa mui- vação dos instrumentos (principal-
to apropriadamete no dossiê, essas As medidas de salvaguarda pro- mente do machete)
reivindicações dos grupos, ainda postas no dossiê levam em conta o • Apoio à formação de fabrican-
que perfeitamente legítimas, não interesse de se preservar essa mani- tes de instrumentos e de violeiros
são elemento suficiente para a ela- festação cultural enquanto patri- • Acesso dos grupos ao material
boração de medidas de salvaguarda. mônio dos sambadores e sambado- das pesquisas por meio da criação
Vale citar aqui o texto da pesquisa: ras, agregando-lhe valor enquanto de um espaço, na região, para guar-
“Patrimônio cultural do Brasil”. da e disponibilização do material,
“Neste quadro, a valorização do samba de Essa perspectiva implica, portan- e de um sistema que possibilite o
roda como gênero comercial – manifesta- to, num trabalho extremamente acesso a todos os interessados
da por exemplo na premiação do CD de D. complexo que vai bem além do que • Divulgação ampla para o pú-
Edith do Prato pela TIM em 2004 – pode nos anos 70-80 denominávamos de blico de informações sobre o samba
não ter nenhuma repercussão positiva sobre “devolução” dos resultados das pes- de roda.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 197
Castro Alves
Seu Elmiro Santiago, conhecido
como Seu Bilinho
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 200
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Eu vi conversa de homem
João Saturno (João do Boi): voz, pandei-
Eu vi grito de rapaz ro / Máximo Ferreira Silva (Maçu): voz,
Eu vi conversa de homem pandeiro / José Alves Ferreira (Zé Quer
É assim que homem faz Mamar): voz, pandeiro / Antônio Satur-
no (Alumínio): voz, pandeiro / Augusto
Eu saí pra meu trabalho Lopes (Nininho): viola / Lídio Chagas de
Jesus (Lidião): violão / Carlos Mivaldo
Deixei Luíza em casa Santana (Babau): marcação / José Carlos
dos Santos (Zé dos Santos): marcação.
Luíza se descuidou Coro, palmas e sambadeiras: Catarina
Labareda me roubou Chagas de Jesus (Nildete) / Doralice San-
Luíza, minha nêga tanade Almeida (Dora) / Faustina Ferreira
da Silva / Maria Raimunda de Jesus Satur-
Eu vou ver Labareda no / Raimunda Nonato de Souza (Mundi-
Me leva pra Salvador, Morena nha) e público presente no local.
Me leva pra Salvador, Morena
São Braz é um distrito do município de
Eu saí pra meu trabalho Santo Amaro. O Samba Chula de São Braz
é um dos grupos de samba de roda mais
Deixei Luíza em casa requisitados da região, tendo também
participado de CDs comoTradução/Tradição,
Luíza se descuidou do compositor sant’amarense Roberto
Labareda me roubou Mendes, de um vídeo da série Música do Brasil
(produzida por Hermano Vianna), e de
projetos com Antonio Nóbrega e Maria
Luíza, minha nega
Betânia.
Eu vou ver labareda
2. Filho de Nagô / Rio Paraguaçu Paraguaçu, tu embeleza’ Cachoeira 3. No meu castelo de sonho
(Mário dos Santos) (Zeca Afonso)
BR-OIJ-06-00030 Ó meu Paraguaçu... BR-OIJ-06-00004
Grupo Cultural Filhos de Nagô (São Samba Chula Filhos da Pitangueira (São
Félix) Gravado no dia primeiro de agosto de Francisco do Conde)
2004, no Centro Cultural Dannemann,
São Benedito é negro em São Félix. Ai, iá, lê, ô
Eu sou filho de Ogum Ai, iá, lê, ô
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
No meu castelo de sonho
Evandro César Pereira Lessa (César
Vem mexer, adeus mana, do Samba): voz principal, pandeiro / Meu amor tá na janela
Ó meu pai Senhor Ogum Franklande Leal dos Santos: voz, violão / Onde ela é a rainha
Nelito Bernadino de Souza (Dunga): voz, Ela é somente minha
São Benedito é negro pandeiro / Geovane Matos Santos (Geo E eu sou somente dela
Eu sou filho de nagô Santos): viola / Renivaldo da Silva Neves
(Neto): banjo / Robson Damião Moreira
São Benedito meu pai (Índio): timbal / Genivaldo Ângelo de Je- Lê, lê, ô, lê, lê
Ele é o nosso protetor sus (Geni): timbal / Gilson Lima Moreira: lê, lê, lá, lá
triângulo. Eu cheguei agora
São Benedito é negro Boa noite pessoal
Eu sou filho de nagô Os Filhos de Nagô participaram, com
outros grupos de São Félix e Cachoeira, do
São Benedito meu pai pioneiro CD produzido pela Coordenação Ai, iá, lê, ô
Ele é o nosso protetor de Folclore e Cultura Popular (MinC) em Ai, iá, lê, ô
1994, Samba de Roda no Recôncavo Baia- Se você quiser saber
Tanto tempo eu te falei no. Em 2004, o grupo lançou o Onde é essa morada
Mas não me canso de falar CD Viola velha.
É do Rio Paraguaçu Vá morar na Pitangueira
Ô meu povo, vamos todos abraçar Terra boa abençoada
Se você for lá um dia
Sempre ter o que comer Vá ver a filosofia
Sempre ter o que beber Do sambador da pesada
Paraguaçu, quem te viu e quem te vê
Se a Anália não quiser ir,
Ó meu Paraguaçu, Eu vou só, eu vou só
Ó meu gigante rio,
Teu nome é parte Ai, iá, lê, ô
Da história do Brasil Ai, iá, lê, ô
Jogue o lixo no lixo Sambador da Pitangueira
Vamo’ acabar com essa sujeira É parada muito quente
Precisa ter cachola
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 203
Pra sambar no meio da gente Coro, palmas e sambadeiras: Angelina de 4. Porto de Salvador / Na beira da
Oliveira / Arlinda Cerqueira praia / Cachorro trigueiro
Andrade (Linda) / Celina da Conceição (Chulas tradicionais do Recôncavo, as duas
Você tem que aprender dos Santos /Edvalda da Rocha Gomes (Tu- primeiras com adaptação de Mestre Qua-
Para quando nós morrer dinha) / Heloísa Bispo (Lula) / Hilda da drado, a terceira com adaptação de Mestre
Do Brasil virar semente Rocha (Didi) / Lindaura Rocha Ribeiro Manteguinha)
/ Maria Sofia Lima dos Santos (Sufa) / Ma- BR-OIJ-06-00007
Me leva pra Salvador, Morena ria Vitória Gomes da Cruz (Vicky) / Neuza
Samba Tradicional da Ilha (Mar Grande)
Maria Rocha / Ocleres Demetris / Odete
Me leva pra Salvador, Morena Maria Ferreira Capistrano (Dete) / Raílda
Afonso Gomes. Salvador,
Ê, ê, ê Tem navio americano
Eu cheguei na Cachoeira Porto de Salvador,
Esta faixa e a nº 8, do mesmo grupo, são
Tem navio americano
as únicas deste CD onde se pode ouvir
Feira de Santana a viola conhecida no Recôncavo como
Santana da feira machete. Típico do samba da região de Vou trabalhar,
Ô morena bonita Santo Amaro, o machete tem cinco cordas Que o Ari tá me mandando
Eu moro na Pitangueira duplas, como a maioria das violas brasilei- Botar as caras na parede
ras, mas suas dimensões são excepcional- Vou lá,
Pode peneirar, peneira mente pequenas, sendo pouco maior que
Contramestre tá chamando
um cavaquinho. Aqui ele é tocado por José
Pode peneirar, peneira Vitório dos Reis, o Zé de Lelinha (foto), Ôiá
Pode peneirar nascido em 1932, e uma das poucas pessoas
que hoje domina este instrumento. Com Eu hoje tava na beira da praia
apoio do Iphan, ele vem desenvolvendo Conversando com meu bem
Gravado no dia primeiro de agosto de oficinas para ensinar jovens do Recôncavo
Minha caboclinha me queira bem
2004, na sede do grupo, no bairro da a tocar o machete.
Pitangueira, em São Francisco do Conde.
Que o bem que eu quero a outra,
Eu quero a você também, ah ah.
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
José Afonso Gomes (Zeca Afonso): voz, Vem nego vadiar
pandeiro / Aurino Paciência: voz, pan- Tava na beira da praia
deiro/ Nemésio Isaías da Silva (Demésio):
voz, pandeiro / José Vitório dos Reis (Zé
de Lelinha): machete / Raimundo Capis- Foi agora que eu cheguei
trano (Camarão): violão / Domingos de Conversando com meu bem
Jesus: pandeiro, marcação / José Valberto Minha caboclinha me queira bem
dosSantos Júnior: pandeiro / Edmundo Que o bem que eu quero a outra
da Cruz (Barrigão): marcação / Djalma da
Cruz Gomes: tamborim / Djalma Afonso
Eu quero a você também, ah ah.
Gomes: tamborim / Denivan da Cruz Go-
mes (Deni): tamborim de couro de jibóia Meu cachorro trigueiro
/ Djavan da Cruz Gomes (Ivan):maracá. O meu cachorro trigueiro
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 204
Na porta era mofino (projeto Toques e Trocas, com patrocínio 5. Vinheta: Maria Teresa
E no mato era ligeiro da Petrobras). Gérson Francisco da Anun- (Dalva Damiana de Freitas)
ciação faleceu a 17 de abril de 2005, dia BR-0IJ-06-00008
Ele acuou exato em que foi fundada, em Saubara, a
Lá no pé de formigueiro Associação dos Sambadores e Sambadeiras
Desde baixo, desde cima do Estado da Bahia. Ô Maria Teresa
Matei o tatu verdadeiro Toma lá teus pedaços
Todo mundo tomou
Vem me ver vadiar Mas não teve embaraço
Meu cachorro trigueiro ...
Embaraço que tive
De não ter meu dinheiro
Gravadas em 7 de agosto de 2004 no bar Para comprar uma fita
de Mestre Quadrado e de sua esposa, Dona Para amarrar teu cabelo
Balbina, no Alto do Riachinho, em Mar
Grande, município de Vera Cruz, Ilha de
Itaparica.
Gravado na Casa Paulo Dias Adorno, em
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Cachoeira, em maio de 2001. Canta Dalva
Gérson Francisco da Anunciação (Mestre Damiana de Freitas, acompanhada ao
Quadrado): voz principal (em Na beira violão por José Carlos Pereira Conceição
da praia e Porto de Salvador), pandeiro / (Viana).
Raimundo Rodrigues de Oliveira (Mestre
Manteguinha): voz principal (em Cachor-
ro trigueiro), pandeiro / Claudionor Dalva Damiana de Freitas, nascida em
Correia dos Santos (Rimu): cavaquinho 1927, é uma legenda do samba de Cacho-
/ Carlos Alberto dos Santos (Tatuzinho): eira. Ela trabalhava na antiga fábrica de
pandeiro / Aurinda Raimunda da Anun- charutos Suerdieck, onde com suas com-
ciação (D. Aurinda): prato-e-faca / Ana panheiras de trabalho passou a organizar
Lúcia Francisca da Anunciação: samba- um grupo de samba. A fábrica acabou, mas
deira. o Samba da Suerdieck é hoje um dos mais
tradicionais da cidade. Dona Dalva – como
Mestre Quadrado (1925-2005), além de é carinhosamente conhecida – é também
ter sido na juventude e durante toda vida integrante da Irmandade de Nossa Senhora
um grande capoeirista, era um dos maiores da Boa Morte, uma das mais veneráveis
conhecedores de chulas, que gostava de instituições da cultura afro-brasileira.
cantar, diferentemente do que se faz na
região de Santo Amaro, sem relativo,
emendando uma na outra (tal como se
ouve nesta gravação). Já com mais de se-
tenta anos, gravou os CDs Encanto banto
num recanto da Ilha: capoeira angola e
samba chula (independente) e Aruê Pã
com o grupo Samba Tradicional da Ilha
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 205
6. Eu vi o sol, vi a lua clarear / Eu Que tem perna de urubu Augusto Passos da Costa (1944-2004),
não tenho medo de andar no mar Eu só gosto de mulher gorda conhecido como Dedão, era taxista e foi
(Samba tradicional do Recôncavo, com um dos maiores intérpretes de samba de
Que tem perna de chuchu roda da região de Cachoeira. O apelido,
adaptação do grupo)
BR-OIJ-06-00009 assim como a vocação para o samba, veio
Samba de Roda Amor de Mamãe (Cacho- Eu não tenho medo de criança quando participava dos ajuntó-
eira) De andar no mar rios, mutirões de vizinhos e parentes que,
Eu só tenho medo movidos a samba, construíam suas casas de
adobe (barro). Mestre do “samba antigó-
Eu vi o sol É do vapor virar rio”, era considerado o puxador oficial do
Vi a lua clarear samba da Festa de Nossa Senhora da Boa
Eu vi meu bem Minha mãe chama Maria Morte, anualmente realizada em agosto na
Dentro do canavial Moradora de Nagé cidade.
No meio de tanta Maria
Minha zabelê Eu não sei minha mãe quem é, olha aí
Minha zabelê
Toda meia noite Eu não tenho medo
Eu sonho com você De andar no mar
Eu só tenho medo
Eu não tenho medo É do vapor virar
De andar no mar
Eu só tenho medo Venha cá dona casa
É do vapor virar Traga água pra eu beber
Não é sede não é nada
Eu não tenho medo É vontade de lhe ver
De andar no mar
Eu só tenho medo
Gravado em primeiro de agosto de 2004,
É do vapor virar no Centro Cultural Dannemann, em São
Félix.
E vem a lua saindo
Por detrás da bananeira PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Augusto Passos da Costa (Dedão): voz
Não é lua, não é nada
principal / José Carlos Pereira Conceição
É a bandeira brasileira, olha aí (Viana): viola / Jefferson Ataíde Rodri-
gues Braga (Jerso): violão / João Lima de
Eu não tenho medo Jesus (Rochedo): cavaquinho / Antonio de
De andar no mar Souza Conceição (Caboré): voz, pandei-
ro / Alberto Ferreira dos Santos (Pedro
Eu só tenho medo
Galinha Morta), voz, pandeiro / Ubirajara
É do vapor virar Silva Conceição: voz, timbal / Luiz Reis
Eu não gosto de mulher magra Moreira (Luiz Orelha): voz, timbal.
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 206
7. Arrasta a sandália 8. Roda pião / Olelê, baiana Data, local e participantes da gravação, tais
(Samba tradicional do Recôncavo, (Zeca Afonso) como na faixa 3.
com adaptação do grupo) BR-OIJ-06-00029
BR-OIJ-06-00010 Samba Chula Filhos da Pitangueira (São
Sambadores de Mutá e Pirajuía Francisco do Conde) Os Filhos da Pitangueira se definem
como grupo de samba chula, mas sambas
corridos, como estes que aqui se ouvem,
Arrasta a sandália aí Roda, roda, pião também fazem parte de seu repertório.
Sou eu morena Que não bambeia, pião
9. Vinheta: Dinheiro novo 10. Quem matou meu sabiá Costa (Val) / Águida Pereira de Souza /
(Samba tradicional do Recôncavo, (Samba tradicional do Recôncavo, Maria Cacilda da Cruz Coelho / Maria
com adaptação do grupo) com adaptação do grupo) Terezinha dos Santos (Teço) / Maria Bal-
BR-OIJ-06-00005 BR-OIJ-06-00016 bina dos Santos (Bina) / Maria Hortência
Samba da Capela (Conceição do Almeida) Samba de Roda Raízes de Angola Barbosa.
(São Francisco do Conde)
Eu vou buscar, eu vou buscar
Dinheiro novo na Bahia Quem matou meu sabiá
O governo mandou dar Moça morena,
Dinheiro novo eu vou buscar Vou pra Ribeira sambar
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Marina Santos (Lina): voz principal / Gravado em primeiro de agosto de 2004,
Maria de Fátima Conceição Cruz (Fafá): no Terreiro Angurusema Dya Nzambi,
voz / Jaelson Conceição Cruz: tamborim situado no centro de São Francisco do
/ Benedito Pereira (Bené): pandeiro / Conde.
José Vaz Santos (Zé das Farinhas): surdo /
Cachimbo:timbal. Coro, palmas e samba: PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Antonia Rita Santos (Tonha Preta) / Anto- Alva Célia Medeiros Assis: voz principal
nia Santos (Tonha Moça) / Antonio Mar- / Rozendo Honorato de Paula (Pinto):
cos Nascimento Fonseca (Marquinhos) / cavaquinho, bandolim / Hamilton dos
Antonio Santos (Tonho do Rio) / Roberto Santos (Miltão): cavaquinho / Celso Bahia:
violão de 7 cordas / Gildásio Afonso dos
Santos Rodrigues (Bereço). Santos (Juquinha): pandeiro / Everaldo
dos Santos (Bango): pandeiro / Roque de
Jesus Santos (Boni): pandeiro / Roque
Bispo dos Santos (Sapo): marcação de mão
/ Francisco Paulo dos Santos (Nem): re-
bôlo (tambor de couro) / Valter dos Santos
Machado (Valtinho): tamborim, maracá /
Jocelino Roque Santos (Joka): tamborim,
maracá, meia-lua. Coro, palmas e sam-
badeiras: Valdenice Áurea Medeiros (Mãe
Áurea) / Maria das Graças Bonfim (Gal) /
Jandira Maria dos Santos Franco / Maria
Regina dos Santos de Jesus / Berenice
Borges dos Santos (Biu dos Santos) / Maria
Balbina Silva dos Santos (Baby) / Valnísia
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 208
11. Eu vi a ema lá na lagoa uma das fontes de inspiração de seus pri- 13. Carão tá na lagoa
(Samba tradicional do Recôncavo, com meiros sambas. (Samba tradicional do Recôncavo, com
adaptação do grupo) adaptação do grupo)
BR-OIJ-06-00006 BR-OIJ-06-00019
Samba de Roda Suspiro do Iguape 12. Vinheta: Conversa dos samba- Samba de Roda União Teodorense (
(Santiago do Iguape) dores organizando a gravação em Teodoro Sampaio)
Teodoro Sampaio
Eu vi a ema Dia 31 de julho de 2004 Carão tá na lagoa
BR-OIJ-06-00031 Beliscando o aruá
Lá na lagoa
Segura o tiro, Helena
Ema tem asa Não deixa o carão voar
Dia que não tem vento 14. O carro virou na ladeira 15. Vapor de terra / Meia hora só
Amor, menina (Samba tradicional do Recôncavo, com (Sambas tradicionais do Recôncavo, com
Meu barco não tem carreira adaptação do grupo) adaptação do grupo)
BR-OIJ-06-00018 BR-OIJ-06-00012
Clemente e Sua Gente (Terra Nova) Clemente e Sua Gente (Terra Nova)
Ô iá, iá
Ô mamãe, aê mamãe, Vapor de terra subiu
Eu vou beirar o mar, ê
O carro virou na ladeira Vapor de terra desceu
Eu vou beirar o mar, ê
Virou virou Vapor de terra subiu
Eu vou beirar o mar
Matou, matou Vapor de terra desceu
Morreu, morreu
Gravado no Espaço Cultural Dois de Ju- Ô Horácio do mato
lho, em 31 de julho de 2004. Na roda do meu pandeiro Você é malcriado
Ô iôiô Chegou na Bahia, morreu
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Na roda do meu pandeiro
Carlos Pereira dos Santos (Carlito Car- Ô iáiá Meia hora só
pinteiro): voz, tamborinho de repique
/ Manoel Domingo de Jesus Silva (Du- Meia hora só
zinho): voz, tambor / Aluizio Gonçalves Data, local e participantes da gravação, tais
(Véio): voz, pandeiro / Carlos Bispo dos como na faixa seguinte. Meia hora
Santos (Paião): voz, cavaquinho / Elinaldo Meia hora só
das Mercês Santo (Nal): reco-reco / Luiz
de Anunciação Santos: pandeiro. Coro,
palmas e sambadeiras: Augusta dos Santos
Suêlo / Ana Cristina Reis Silva / Celina Gravado em 8 de agosto de 2004, na sede
Suêlo dos Santos Uzeda / Dilma Ferreira da Associação dos Moradores do Bairro
Alves Santana (Fiita) / Edijane Barbosa Caipe, Terra Nova.
Pereira (Jane) / Ilza dos Santos Suêlo /
PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO
Maria Severina Barreto (Severa) / Maria
das Mercês dos Santos (Nenzinha) / Maria Clemente Eustáquio de Souza: sanfona de
Enedina Bispo / Maria Edelvira da Silva / 8 baixos / José Ivanildo Correia (Pepeto):
Nirete Silva Roseira / Raquel Barbosa. viola, pandeiro, timbal / Domício dos
Santos Brito (Micinho): voz, viola, pan-
Nesta faixa e nas seguintes até a 17, com deiro, ganzá / Miguel Cerqueira: voz,
exceção da 15, estamos de volta ao samba pandeiro / Faustino Pereira: voz, pandei-
chula. ro / César Dantas Pinto: voz, pandeiro /
Eugênio Santos: voz / Raimundo Alves:
voz / Dionízio Correia: voz, bongô / José
Rufino Pereira (Binha): timbal / Már-
cia Marques: triângulo. Coro, palmas e
sambadeiras: Maria Almerinda dos Santos
(Milu) / Maria Domingas / Maria dos
Santos Faleta (Vardinha) / Marinalva
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 210
Ferreira de Jesus (Marlene) / Lúcia de 16. Ai, dendê Data, local e participantes da gravação, tais
Oliveira. (Chula tradicional do Recôncavo, com como na faixa 4. Voz principal de Mestre
adaptação de Mestre Quadrado) Quadrado. Aurinda Raimunda da Anun-
A presença de uma sanfona de oito baixos BR-OIJ-06-00013 ciação: prato-e-faca.
no samba de roda pode surpreender. Mas Samba Tradicional da Ilha
o instrumento não é raro no Recôncavo, (Mar Grande, Vera Cruz) Sendo uma atividade de afro-descenden-
cujos intercâmbios econômicos, demográ- tes, o samba de roda também comporta
ficos e culturais com o sertão da Bahia são elementos trazidos da Europa. Estes no
notórios
Ai dendê, ai dendê entanto foram “apropriados” à sua ma-
Ai dendê, neira. Talvez o caso mais típico seja o do
Tem boca não pode falar prato-e-faca: os utensílios domésticos de
Ouvido não é pra ouvir origem européia foram empregados, de
Nariz não é pra cheirar maneira totalmente inesperada para seus
fabricantes e utilizadores prévios, como
Dedo não é pra apontar instrumento musical. A faca é arranhada
na borda do prato num ritmo contínuo,à
Ô Jorge, maneira de um reco-reco. Ao contrá-
A navalha de Angola rio dos outros instrumentos do samba, o
Oiá, oiá, oiá prato-e-faca é tocado predominantemente
por mulheres. Mas João da Baiana tocava
A navalha de Angola prato-e-faca com Donga e Pixinguinha
Oiá, oiá nas festas de Tia Ciata, e depois em grava-
ções do Grupo da Guarda Velha.
Tem boca não pode falar
Ouvido não é pra ouvir
Nariz não é pra cheirar
Dedo não é pra apontar
Ô Jorge,
A navalha de Angola
Oiá, oiá, oiá
A navalha de Angola
Oiá, oiá
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 211
17. Botei meu barco n´água Gravado em 31 de julho de 2004, no 18. Ó Virgem Santa / Carolina /
(Samba tradicional do Recôncavo, com Terreiro de Oxum, na rua do Taboão, em Coqueiro novo
adaptação do grupo) Saubara. (Cântico e sambas tradicionais do Recôn-
BR-OIJ-06-00017 cavo, com adaptações do grupo)
Samba do Rosário (Saubara) PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO BR-OIJ-06-00028
Joselita Moreira da Cruz Silva (D. Zelita):
Sambadores de Mutá e Pirajuía
voz, palmas / Mário Bispo Barbosa (Mário
Botei meu barco n´água de Nusceço): viola / Euzébio Santos de
Mas não falei com meu mestre Almeida (Zibinho): violão / Rafael do Ó Virgem Santa
Espírito Santo: voz, pandeiro / Gregório Rogai por nós
O vento deu na proa dos Santos (Góia): pandeiro / Antônio Rogai por nós
Carlos dos Santos (Vortinha): pandeiro
Pancada de noroeste Ó Virgem Santa
/ Guilhermino Moreira (Guilherme):
(ê ah ah) tambor / João Antônio das Virgens (João Nós precisamos de paz
de Iáiá): timbal / Maria Gregória Santana
Eu vou m’embora, ô Moreira (Branca): prato-e-faca. Coro, Viemos saudar
Maria minha amada palmas e sambadeiras: Hermínia da Silva Ó meu guia forte
Santos / Maria Ângela Moreira (Deco) /
(Ele é forte)
Maria Anna Moreira do Rosário (D. Anna)
Ainda ontem eu vi meu bem / Maria Emília Moreira (Teteca) / Maria Ó meu Santo Antônio
Inda hoje eu quero ver Leocádia da Cruz (Dodô) / Marta Ferreira É quem nos dá sorte
/ Sônia Regina Barbosa. (Ele é forte)
Não mandei você gostar de mim
O Recôncavo é uma região formada por
Não mandei você de mim gostar Ê, ê, Carolina
mangues, tabuleiros, baixios, ilhotas e vales
Não mandei você olhar pra mim margeando o mar da Baía de Todos os Ê, ê, ê, ê Carolina
Não mandei olhar Santos. Temas marítimos como o desta
faixa são freqüentes nos sambas da região. Ê, ê, Carolina
Ô Luzia, Ê, ê, ê, ê Carolina
Dona Zelita a Dona Anna são duas irmãs
Você é, não sabe com muita tradição de samba de roda
na família.No início dos anos 1980, o Coqueiro novo
Eu lhe conto uma mentira etnomusicólogo Ralph Waddey publicou Coqueiro novo
Você pensa que é verdade uma monografia incluindo o resultado de Na Bahia não tem mais
Eu me chamo flor da noite pesquisas feitas com esta família de Sau- Coqueiro novo
bara. Hoje em dia, o filho de Dona Anna,
Rosildo, é uma das principais lideranças da
Fulô de matar saudade Data, local e participantes da gravação,
Associação de Sambadores e Sambadeiras
tais como na faixa 7.
Ai, ai fundada em 2005.
Esta faixa, assim como a seguinte,
Vou fazer bilu bilu testemunha a profunda conexão do
No seu queixinho samba de roda com a religiosidade do
Eh, pra saber Recôncavo. O cântico em louvor à Virgem
é seguido, sem interrupção, pelos sambas
Se você gosta de carinho
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 212
corridos, tal como tantas vezes acontece 20. Vinheta: Marido, eu vou pro 21. Graças a Deus que as coisa’
nas festas de santos da região. samba melhorou
(Dalva Damiana de Freitas) (Dalva Damiana de Freitas)
BR-OIJ-06-00025 BR-OIJ-06-00023
19. Vamos cantar esse Reis / Samba de Roda da Suerdieck (Cachoeira)
Que bonito Reis de São Cosme - Marido, eu vou pra o samba
(Lôas de reis tradicionais do Recôncavo,
- Mulher eu lá não vou Graças a Deus
com adaptação do grupo)
BR-OIJ-06-00027 Se eu gostasse de zoada Que as coisa’ melhorou
Samba da Capela (Conceição do Almeida) Trabalhava no trator As festas de Cachoeira
Mulher, eu lá não vou Todas elas levantou
Vamos cantar esse Reis - Não vá
Que é a nossa devoção - Eu lá não vou Graças a Deus
Em louvor a Santa Bárbara - Não vá Que as coisa’ melhorou
São Cosme, São Damião - Eu lá não vou As festas de Cachoeira
Mulher Todas elas levantou
Já saiu as três Marias
Todas três a passear Foi chegado o Patrimônio*
Procurando Jesus Cristo Gravado na Casa Paulo Dias Adorno, em Consertando o bangalô
Cachoeira, em maio de 2001. Canta Dalva Me traga de volta o trem
Sem nunca poder achar Damiana de Freitas, acompanhada por José Me traga de volta o vapor
Carlos Pereira Conceição (Viana), violão.
Vamos cantar esse Reis
Que é a nossa devoção Graças a Deus
Em louvor a Santa Bárbara Que as coisa’ melhorou
São Cosme, São Damião As festas de Cachoeira
Todas elas levantou
Que bonito Reis de São Cosme
É coroado, é coroado Nossa Cachoeira é bela
São Cosme é coroado. É jóia, é diamante
Só falta voltar agora
A Festa dos Navegantes
Data, local e participantes da gravação, tais
como na faixa 9. Graças a Deus
Que as coisa’ melhorou
As festas de Reis são um momento privile-
As festas de Cachoeira
giado da cultura popular do Nordeste, e na
Bahia o samba é parte integrante delas. Todas elas levantou
{ Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 213
ISBN - 978-85-7334-041-9
ISBN - 85-7334-041-x