Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Feira de Santana
2012
1
O CORTEJO
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades...
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia - a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção...
Giram homens fracos, baixos, magros...
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar...
INSPIRAÇÃO
A elite burguesa que dominava a cidade de São Paulo foi nominada pelo poeta
como Senectudes Tremulinas de 1920:
Só admiramos os célebres
e os recomendamos também! (...)
Preferimos os coros dos Orientalismos Convencionais! (...)
Alargar as ruas...
E as instituições?
Não pode! Não pode!
Maiores menores
Mas não há quem diga
Maiores menores quem são estes homens
que cantam do chão?
Vá de rumor! Vá de rumor!
Esta gente não nos deixa mais dormir!
Antes “E lucevam le stelle" de Puccini!
Oh! pé de anjo, pé de anjo!
Fora! Fora o que é de despertar!
O autor sabia que a conquista da liberdade teria seu preço, por isso uma ruptura
vanguardista dos primeiros modernistas mostrou-se conturbada, por ter de apresentar
novos caminhos, curvas e desvios, nem sempre perceptíveis, travando uma luta com a
procura, em vez de querer achar a estética definitiva.
4
Costa Lima, por exemplo, lamenta que depois da “Paulicéia” o autor abandona o
estilo “contundente” da poesia entrecortada, fragmentária e visual, em nome de um
prosaísmo diluído, intimista e “cordial”.
A inconsistência estilística do autor se apresenta em seu personagem Arlequim,
como uma forma estética de nunca se deixar delimitar, mantendo a missão de busca
infinita da completude do ser incompleto, mesmo após qualquer conquista. Diz o autor:
“Porque seria então o descanso em vida, parar mais detestável que a morte. Minhas
obras todas na significação verdadeira delas eu as mostro nem mesmo como soluções
possíveis e transitórias. São procuras”.
Walter Benjamin faz uma imagem significativa da obra de Mário de Andrade,
utilizando a figura de um vaso quebrado em pedaços, fragmentado, que mesmo
recomposto, as partes permanecem divididas. E por outro lado, tem elementos que nos
permitem compreender o modernismo brasileiro em todo o seu trajeto.
Por opção literária, o autor acrescenta a harmonia poética subjetiva com que Mário
de Andrade traz o sujeito novamente ao centro da arte, porém o sujeito não mais apenas
um objeto de representação, como mostravam os expressionistas, tendo em vista que no
modernismo a realização da poesia depende tanto do poeta quanto do leitor, na emissão
e a recepção da emoção dentro de si. Buscava-se novos valores horizontais e
experimentais.
O projeto de modernismo brasileiro queria dar autonomia de criação, num projeto de
literatura que ultrapassasse o regionalismo e se tornasse nacional e autêntica, como foi o
caso do romance Macunaíma e do livro de poesias Pauliceia Desvairada, de Mário de
Andrade. A Paulicéia pode ser considerada uma inovação literária do modernismo,
publicado na Semana de Arte Moderna, na busca pela própria identidade.
PRINCIPAL TEMA:
A vida na cidade grande brasileira, registrada com uma estética polifônica, pela falta
de uma unidade formal, pois havia um descompasso entre a realidade objetiva e a
representação do “eu”, tentando escapar do mundo melancólico interior, mostrando as
nossas contradições, para sustentar a opinião do fracasso estético, por tentar e não
conseguir a essência do lirismo em muitos textos da Pauliceia Desvairada, precisando
criar uma sintonia entre a subjetividade e o mundo, fazendo a cidade brilhar no interior do
‘eu’.
Costa Lima reprova alguns poemas do livro, que começam tentando impor a
polifonia, mas depois cedem lugar a versos prosaicos, lineares, nos quais o “eu” lírico
acaba por dominar a cena da cidade, em pinceladas de ironia, usada apenas como
subterfúgio do poeta para disfarçar a melancolia da sua subjetividade poética, gerando
desarmonia com a estética moderna da polifonia. O livro se divide em aspectos de
representação da cidade grande e sua subjetividade, com focos temáticos na cidade
grande e no sujeito e sua representação, sem a preocupação de apenas descrever a vida
exterior e física de carros, casas etc., expondo uma expressão totalmente contrária à
descritiva, sem a preocupação de fornecer ao leitor uma imagem fidedigna da realidade,
pois era imperativo buscar novas formas de expressão para representar as ruas e
multidões, mesmo dentro do lirismo complexo num ambiente hostil, versando por
hipérboles e metáforas, tentando empreender uma nova forma de ver o mundo, sem a
influência das vanguardas europeias, mas tentando entender aquelas tendências para
cantar a sua própria Pauliceia, com o recurso que o poeta chamou de “polifonia poética”.
Em Pauliceia Desvairada o autor se excede em pontuação, reticências e
exclamações, tornando os poemas de aspectos disformes, confusos, incômodos e
incompletos, mas que se mostrou uma nova postura experimentalista na tentativa de
5
abandono da simetria e métrica parnasiana. Buscava-se criar um novo estilo, com uma
aproximação com a musicalidade (polifonia), para que os versos continuassem soando
mesmo depois de novos versos lidos, como o efeito das reticências. Não se pode dizer
que, do ponto de vista estético esse efeito tenha sido exitoso, mas a intenção do poeta foi
explorar novas possibilidades estéticas, focalizando a expressão nas potencialidades
visuais e aditivas (musicalidade) da poesia, explorando a vida e vivências na cidade
grande, nos seus aspectos ásperos e fragmentados, procurando novas formas de sentido
que reflitam o modo de viver numa metrópole moderna.
Vejamos outro exemplo:
PAISAGEM nº 1
MÁSCARAS:
6
A imagem do Arlequim é uma máscara que o poeta utiliza para compor a sua
fragmentação, dualismo, contradição e ambiguidade, de uma cidade que passava por
radicais transformações, deixando de ser uma cidade provinciana para se tornar uma
grande metrópole cosmopolita, por não ser mais possível o parnasianismo traduzir nem
expressar a vivência moderna de uma cidade grande. A imagem arlequinal aparece
frequente para circundar as peculiaridades e ambiguidades no texto. No poema
“Inspiração” aparece os elementos de composição do Arlequim, utilizados para simbolizar
os contrastes, desde os losangos, o dourado e o marrom da roupa, mostrando um
possível jogo de oposições entre a nova e a velha dialética, fragmentada, indecisa e
contraditória.
Os Arlequins poeta, palhaço, louco e o malandro, são as máscaras das personagens
que Mário de Andrade faz protagonizar o espetáculo do sujeito moderno na cidade
grande, que assim como um caleidoscópio, gira formando novas imagens, agora em torno
do capital, do relógio, da máquina. O Arlequim também tem o papel de autocrítica, pois a
criação não pode romper definitivamente com o passado, na tentativa de preservar o local
contra o internacional, na busca da própria identidade nacional.
A máscara do Arlequim pode ser vista pelo lado positivo como a visão do louco ou
brincalhão, para que a sua atitude crítica tenha um aspecto leve. O lado negativo dessa
feição mais leve é que ela pode impedir a arte de corrigir erros que estão sob essas
máscaras. Mário de Andrade trabalha mais as contradições em seus poemas do que faz
apologia de suas realizações. Um louco seria mais aceito para explicar essas
contradições, pelo distanciamento que consegue obter da realidade criticada, cabendo até
a possibilidade do riso.
No poema “Paisagem nº 2” o autor também mistura a técnica da polifonia com a
prosaica, trazendo elementos novos, marcando a oposição entre o inverno, frio, sombrio e
o passado alegre, aquecido e colorido. Há registrada a imagem da sua Pauliceia invernal,
da escuridão, com os estiolados muito brancos e as “primaveras eternas”! :
PAISAGEM nº 2
As casas adormecidas
parecem teatrais gestos dum explorador do pólo
que o gelo parou no frio...
OPUS 1921
Nesse poema, cada estrofe tem uma atmosfera autônoma e ao final, uma triste
constatação da desigualdade que nos faz rir. Desde as primeiras estrofes, as imagens já
brotam das palavras, como um caleidoscópio, mostrando de forma paratática1 em traços
prosaicos, quebrando a linearidade.
No livro há diversas referências a artistas e à arte vanguardistas, tais como o francês
Jean Cocteau; o russo Russolo; o filme de curta-metragem alemão Opus, de 1921; os
bailados russos e os bailarinos Nijinsky (conhecido como “palhaço de Deus”) e Karsavina
(trazida ao poema como alegoria da Morte); o ritmo fox-trot americano, como linhas
cosmopolitas e modernas do mundo no cenário paulista como alegorias e erudição de
quem tem conhecimento das novidades mundiais, associando-as à catástrofe, utilizando
até onomatopeias de um riso louco e escandaloso: “Quá, quá, quá!”, por mostrar o
despreparo da metrópole, com sua dança e música caipira, de querer se igualar a outros
grandes centros.
Na quarta estrofe o lírico do poeta se torna um louco bailarino moderno, numa
cidade que se esqueceu de suas desigualdades dentro dos seus próprios limites, mas
iludida tem os olhos voltados para o espetáculo da modernização cultural e civilizatória do
mundo.
1
A análise sintática é o estudo sobre o que determinada palavra exerce em relação a outros termos da oração. Ao contrário de tentar
explicar essa relação gramatical, escrever de forma paratática é escrever sobre si, sua história e sua vida em relação a outras pessoas.
Em vez de analisar umas palavras em relação às outras, análise paratática faz comparação da sua vida em relação à vida dos outros.
8
Lutar!
O TROVADOR
Percebe-se nesse poema certo tom lírico e até melancólico, onde o “eu” lírico faz
referências ao passado local ou até mesmo internacional, como uma reminiscência
intermitente de um caleidoscópio, que leva desconforto ao leitor, fazendo-o parar para
refletir. Nos versos 8 e 9 “Cantabona! Cantabona! Dlorom...”, traz uma palavra repetida
com sons de onomatopeia, gerando a sensação de redundância e tensão, para encerrar
com uma associação entre a alma indígena como origem da cultura e um alaúde (tipo de
violão medieval), provavelmente para criar um suspense no desfecho do poema, quando
o autor revela sua identidade, como um índio tocando um violão que não domina. Esse
herói com traços rudimentares foi realizado por Mário de Andrade em Macunaíma, “o
herói sem nenhum caráter”. A identidade do poeta é a própria imagem do primitivo de
uma nova era, do mestiço local e do cosmopolita: Como ele mesmo afirma: “Sou um tupi
tangendo um alaúde!”.
No poema “O rebanho” a estética do grotesco é revelada.
“ODE AO BURGUÊS”
2
Aliteração: figura de linguagem que consiste em repetir sons consonantais idênticos ou semelhantes em um verso ou em uma frase.
11
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
“- Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos!!!
- Mas nós morremos de fome!”
A ode é um gênero lírico em tom sublime e nobre e formal, mas o título é apenas um
chamado de Mário de Andrade para que o leitor crie uma expectativa, que logo é frustrada
no primeiro verso agressivo, irônico, sem cerimônia ou respeito. Percebe-se novamente o
recurso da reiteração da expressão. Os insultos ao burguês vão sendo propalados, e aos
poucos o leitor sente na representação sonora que a “ode ao burguês” na realidade quer
dizer mesmo é “ódio ao burguês”. No decorrer dos versos é revelada a construção das
contradições entre a metrópole civilizada e os comportamentos irreverentes do “eu” lírico
rancoroso e imprudente, em total falta de controle emocional.
12
No último verso, onde o poeta exacerba seu “Fora! Fú! Fora o bom burguês!..”, é um
fechamento como se mandasse o burguês para fora da sua poética modernista do “eu”
lírico opositor.
Costa Lima comenta que a “Ode ao burguês” é muito diferente da proposta inicial
polifônica de Mário de Andrade, classificando o poema como iconoclasta3, porque não há
uma preocupação com a linguagem, usada apenas com um simples instrumento de
transmissão do preconceito contra certa classe social.
Um dos elementos importantes que surgem e são destacados no poema a destacar
é, por exemplo, é a cor vermelha. Contrariamente, quando Mário de Andrade utiliza a cor
verde como um fator de perturbação da ordem e do sentido, o vermelho é considerado a
cor das emoções exaltadas, reforçando o ódio e o descontrole do “eu” lírico. Os versos
traduzem raiva e rancor, como sentimentos capazes de levar o sentido ideológico do
poema à dimensão estética das vanguardas, a fim de fixar uma identidade tropical
nacional.
A PONTUAÇÃO
3 Iconoclasta: aquele que ataca crenças estabelecidas ou instituições veneradas ou que é contra qualquer tradição.
13
REFERÊNCIA: