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A LIBERDADE COMO TEMA:

Um Debate italiano

Walquiria D. Leão Rego

Este artigo pretende narrar a história de um O ensaio de Norberto Bobbio intitulado “Nè
longo diálogo político e intelectual travado desde con loro, nè senza di loro” (Nem com eles, nem
os anos de 1920 entre duas tradições políticas: a sem eles) expressa bem o espírito que presidiu a
liberal socialista e a comunista italianas, que, ao retomada daquele debate nos anos de 1950, en-
se influenciarem reciprocamente, permitiram uma volvendo intelectuais de formação liberal-socia-
renovação cívica naquele país, efetuando uma in- lista, como ele próprio, e parte da intelligentzia
teressante experiência de organização de atores comunista, inclusive o secretário geral do Partido
democráticos na sociedade italiana do pós-guer- Comunista Italiano (PCI), Palmiro Togliatti. Se-
ra. A recorrência desse debate talvez explique, gundo Bobbio, as razões de semelhante disposi-
em parte, o fenômeno político da constituição do ção espiritual e política, proveniente das posi-
partido comunista italiano como o maior partido ções liberais-socialistas podem ser expressas nos
de massas do Ocidente, até há muito pouco tem- seguintes termos:
po. Não há novidade alguma em dizer que este
partido sempre se apresentou no cenário mundial Sem nunca ter sido comunista, nem tendo jamais
ostentando diferenças marcantes, organizativas e pensado em me tornar um, eu percebia, no en-
políticas, em relação ao padrão comum imperan- tanto, que o comunismo era o agente de grandes
transformações, de uma verdadeira revolução no
te nos demais partidos comunistas da Europa
sentido clássico da palavra. Ao mesmo tempo, eu
Ocidental. O presente trabalho tenciona simples- me convencera de que nós, azionisti1 precisáva-
mente capturar os momentos mais significativos mos nos diferenciar das posições dos comunistas,
daquela experiência. ainda que reconhecendo as batalhas que comba-

RBCS Vol. 17 no 48 fevereiro/2002


o
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temos lado a lado, porque não esquecemos quais entre liberdade, poder e privilégio.
deviam ser os pressupostos gerais do Estado mo- Convém recordar que, respeitadas as dife-
derno. Assim, eu via nos comunistas (sobretudo renças de época, questões com conteúdo seme-
nos comunistas italianos) não adversários, mas
lhante também haviam polarizado a intelligentzia
interlocutores”.2
da social-democracia alemã e, principalmente, da
austríaca dos anos de 1920 e início dos anos de
Do lado dos comunistas também havia uma
1930. Tome-se, como exemplo, a polêmica reali-
longa história que, apesar de todas as suas diferen-
zada sobre o Estado, o socialismo e a democracia,
ças com os liberais-socialistas, dispunha-os ao diá-
protagonizada durante a experiência da Viena
logo teórico e político. Isto certamente remontava
Vermelha (1919-1934) entre Hans Kelsen, Otto
à formação liberal de sua liderança, ou melhor,
Bauer, Max Adler e Karl Renner. Kelsen criticava a
àquela realizada dentro dos cânones de um certo
teoria política do marxismo e, em particular, a teo-
tipo de liberalismo ético e que se revelara sob di-
ria da extinção do Estado, que considerava anar-
ferentes aspectos, sobretudo por meio das elabo-
quista, mas não o socialismo. Ele queria chamar a
rações originais do marxismo de Antonio Gramsci.
atenção para as mudanças ocorridas nas formas
Agregava-se a esta circunstância, ainda, a ex-
políticas, salientando, entre elas, o Estado. Este
periência de terem sido compagnon de route dos
poderia ser organizado como um “meio de técni-
liberais-socialistas na luta antifascista e, mais tarde,
na formação da resistência italiana. A possibilida- ca social para a consecução de fins políticos, meio
de desta convivência era soldada na filosofia polí- que, como tal, pode ser utilizado de diversas ma-
tica de Benedetto Croce, que fazia da luta pela li- neiras”.3 Do lado dos marxistas austríacos, as con-
berdade um valor moral absoluto. siderações kelsenianas e a própria realidade polí-
Isto posto, importa lembrar que os acionis- tica da Viena daqueles anos impunham uma nova
tas, que formularam teoricamente, e de modo nor- reflexão para as questões relativas ao Estado, à
mativo, a necessidade do socialismo, jamais re- democracia e ao direito. Demonstrativo desta dis-
nunciaram ao corpus teórico do liberalismo e, des- posição são as palavras de Karl Renner, que assi-
tacadamente, às liberdades liberais civis e à teoria nalava “o caráter imprescindível de uma teoria so-
dos limites do poder do Estado. Desse modo, a cialista do Estado e do direito”. Afinal, nestas pa-
polêmica se desenvolverá fundamentalmente na lavras se começava a intuir algo que por anos a
direção da crítica à ausência do Estado de direito fio foi negligenciado por um certo marxismo:
democrático na União Soviética e à crença dos co-
[...] o direito não é somente um fato; também é
munistas de que a verdadeira democracia estava
uma idéia ou concepção e, ademais, é uma medi-
se realizando ali. Isto mostra que o tema das liber- da de valor. Inevitavelmente, possui uma dimen-
dades civis estava fortemente presente naquelas são intelectual e uma moral. [...] Enfim, se supõe
discussões. Entretanto, seu núcleo essencial gravi- que as idéias e os valores do direito têm um cer-
tava em torno da concepção mesma de liberdade, to grau de congruência entre si, mas também com
entendida como liberdade jurídica, que supõe ne- as idéias e valores não jurídicos da comunidade,
cessariamente o garantismo procedimental liberal isto é, com sua ideologia em conjunto.4
do Estado de direito para protegê-la. Nesse senti-
do, de ambos os lados o debate colocava proble- Contudo, o debate sobre o problema estatal
mas difíceis: Bobbio, corretamente, insistia no fato revelava as dificuldades existentes no marxismo
de que algumas conquistas da burguesia revolu- de se reavaliar o que Kelsen chamara de metafísi-
cionária haviam se tornado patrimônio universal ca do Estado no marxismo, na medida em que a
indispensável para a convivência civil de todos os formulação de Marx era retirada do contexto his-
homens, seja qual fosse a sociedade em que vivi- tórico em que foi concebida e transformada em
am. Togliatti, por sua vez, respondia, às vezes de fórmula fixa, eternamente válida para todas as si-
modo canônico, outras apresentando argumentos tuações históricas particulares. A proposta kelse-
contundentes, questionando a fronteira existente niana reforçara a idéia de que as conquistas libe-
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rais sobre a necessidade do rule of law para limi- dessa realidade prática e espiritual as palavras do
tar e controlar o poder do Estado poderiam ser in- líder histórico do sindicalismo comunista italiano,
corporadas na construção do socialismo. O Esta- Luciano Lamas: “havia entrado no partido para fa-
do não deixara de ser percebido como uma asso- zer a revolução, mas o que de fato havia aprendi-
ciação de domínio; no entanto, ele também con- do era a democracia”.7
forma uma ordem jurídica e, como tal, pode ser Nesse sentido, as ligações do partido co-
um sistema de normas perfeitamente adequado à munista com Moscou constituíam uma ambigüi-
realização do socialismo, pois sua força normati- dade muito difícil de ser contornada no debate
va pode impulsionar um modo específico de or- e nas disputas internas da política italiana. De-
ganização das relações de poder entre os homens fender e praticar a democracia no âmbito inter-
de uma dada comunidade política, que poderia no do país, e, do mesmo modo, ser aliado de
ser a sociedade socialista.5 Dessa forma, o ordena- um Estado despótico como o da União Soviéti-
mento estatal, fundado no direito, jamais poderia ca, representara, por vezes, uma certa esquizo-
ser pensado como dispensável; pelo contrário, frenia política. É importante, por isso, que se te-
sua função política se torna intransferível na cons- nha em mente que aqueles foram tempos duros
trução de um socialismo democrático. e extremamente polarizados no cenário interna-
cional, e que, portanto, era muito difícil não se
fundir na bruma geral que embaciava todos os
Valorização da democracia olhares do espectro político. Talvez, por isso, o
procedimental discurso e a prática política do PCI foram impe-
lidos ao resgate das grandes tradições nacionais,
Paolo Spriano, na sua monumental História buscando apontar os caminhos para equacionar
do Partido Comunista Italiano, registra que o com- e resolver, por vias democráticas, os antigos di-
promisso liberal dos comunistas, como partido, se lemas políticos e sociais italianos. Dessa forma,
refez depois da guerra, durante a fundação da pri- defendendo ardorosamente a Constituição repu-
meira república, cujo momento emblemático foi o blicana de 1948, os comunistas tornaram-se uma
encontro entre Togliatti e Croce. Tratou-se de um das forças políticas que mais defenderam o regi-
encontro ao mesmo tempo pessoal e político, por- me democrático. Dentro desse espírito de com-
que realizado em meio à tempestade própria dos promisso com a democracia, Togliatti costumava
grandes momentos da história. Em suma, estavam carregar o texto da constituição por toda a par-
discutindo os modos de edificação do novo orde- te, lendo trechos dele em seus comícios. Sobre
namento estatal, daí a importância de se estabelecer este costume são inúmeras as lendas e piadas
claramente os procedimentos legais para o funcio- nacionais. O anticomunismo referia-se negativa-
namento democrático das instituições. Nas palavras mente àquele “suspeito livrinho” que Togliatti
de Spriano: “É um compromisso em que a parte li- portava junto a si. Ele mesmo dizia que assim
beral oferece a solução formal do impasse institu- como os padres carregam insuspeitadamente
cional e ao qual a iniciativa política togliattiana deu seus livros de orações, um comunista italiano
substância nova [...]”.6 Spriano está se referindo à devia trazer consigo, quando fazia política, o
virada de Salerno (svolta di Salerno), que significa, texto da Constituição. Ao final, foi a prática co-
no léxico político italiano, a proposta de Togliatti munista daquele período, que cumpriu o papel
de democracia progressiva. Em outras palavras, o de nacionalizar em sentido democrático o povo
comunismo italiano aceitava a democracia procedi- italiano, na medida em que o transformou em
mental como um pressuposto do socialismo, ou ator político. Certamente, Piero Gobetti, a quem
seja, aceitava as regras do jogo democrático como faremos referência mais adiante, diria: os comu-
método político de escolha dos governantes, reali- nistas cumpriram uma função liberal na Itália,
zando, assim, na ação concreta a schumpeteriana afinal, foram eles que conferiram ao povo uma
luta de classes democrática. São representativas consciência unitária de Estado-nação.
o
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tradição iniciada nos anos de 1920 de discussão e


O segundo momento da controvérsia: reciprocidade entre comunistas e liberais. Naque-
comunistas & liberais socialistas les anos, o liberal Piero Gobetti, a convite de
Gramsci, desenvolveu no jornal comunista L’Ordi-
O reaparecimento do clima de disputa de ne Nuovo as atividades de crítico de teatro. Em
princípios políticos na década de 1950 conduz 1922, Gobetti publica em seu jornal, La Rivoluzio-
obrigatoriamente à estratégia cultural comunista ne Liberale, em 2 de abril, um ensaio sobre
desenvolvida ainda durante a guerra. A revista Ri- Gramsci e o movimento operário de Turim, sa-
nascita, fundada por Togliatti na cidade de Nápo- lientando a contribuição dos comunistas no de-
les, em junho de 1944, foi pensada como peça de- senvolvimento de uma nova civilização italiana
cisiva na estratégia cultural do PCI e representou o porque, no desdobramento das lutas teóricas e
centro desse debate político. Afinal, os comunistas políticas, mas sobretudo na luta dos conselhos de
deviam, depois de quase vinte anos de marginali- fábrica de Turim (o biênio vermelho), haviam pre-
zação política, apresentar-se aos homens de cultu- parado uma nova e mosqueana elite dirigente,
ra como organizadores de um veículo capaz de uma nova aristocracia que poderia transformar a
conter as mais veementes polêmicas. É claro que a Itália, mesmo que ainda naquele momento fossem
estratégia tinha por finalidade atrair os intelectuais porta-vozes, nas palavras de Gobetti, de uma he-
e os artistas para a formação dos intelectuais orgâ- resia solitária. Gobetti sempre se referiu à expe-
nicos e, dessa maneira, renovar o pensamento riência dos conselhos operários de Turim como
marxista. Nello Ajello, no seu livro Intellettuali e um tesouro que os italianos jamais deveriam per-
PCI (1944-1958), afirma que debate foi a palavra- der como referência
chave desse periódico. Interessa também sublinhar
as observações feitas por Giorgio Bocca, em sua [...] de um dos mais nobres esforços que foram
biografia de Togliatti, de que, na verdade, a revis- realizados para renovar a nossa vida política,
quando a liberdade na esfera pública encarnara-
ta Rinascita havia copiado as publicações oriundas
se em jovens operários que, em torno do jornal
da “melhor tradição liberal italiana”. L’Ordine Nuovo, falavam a linguagem da política
O programa editorial da revista visava a tor- como hegelianos inconscientes.9
ná-la um órgão ideológico do partido e, nas pala-
vras de Togliatti, sobretudo Em janeiro de 1954, Norberto Bobbio escre-
veu um pequeno artigo na revista Nuovi Argo-
[...] abraçar campos de investigação, de polêmica
menti, com o título “Democrazia e Dittatura”, no
e de trabalho onde, no passado, não tínhamos so-
qual discute a confusão que, de um modo geral,
lidez para penetrá-los, além disso, devemos cha-
mar para nos ajudar nesta atividade nova, forças o movimento comunista havia feito entre Estado e
diversas, não regularmente enquadradas em nos- ditadura. Esta questão remonta fundamentalmente
so movimento.8 a Lênin que, principalmente no opúsculo Revolu-
ção proletária e o renegado Kautsky, sustentara a
Assim, o periódico Rinascita, de estampa tese de que todos os Estados, não só o soviético,
gráfica bastante conservadora em um momento mas também as democracias burguesas, são dita-
de grandes inovações formais dos jornais e das re- duras. Além disso, ditadura por ditadura, a sovié-
vistas italianos, cumpriu por quase cinqüenta anos tica era mais democrática do que a assim chama-
o papel de principal veículo dos grandes debates da ditadura ocidental. Hoje nos parece bizantino
travados no interior da esquerda italiana. E foi por alguém falar em uma ditadura mais democrática
meio dele que Galvano Della Volpe e Togliatti do que outra. Em linhas gerais podemos tomar es-
(que assinava seus artigos com o pseudônimo de ses termos apenas como indicativos de que mui-
Roderigo di Castiglia) debateram sobre as questões tos trabalhos e muitas reflexões deverão ser reali-
da liberdade com o acionista e liberal-socialista zados para que se compreendam as possibilida-
Norberto Bobbio, dando então seqüência à velha des contidas na forma Estado. Todo ordenamento
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estatal resume, por assim dizer, as relações de for- dência dos órgãos titulares das três funções fun-
ça que se estabelecem na sociedade por meio da damentais do Estado), não são mais burguesas,
luta social e da institucionalização de suas vitórias ou proletárias: são conquistas civis.11
e derrotas. Como lembram Claus Offe e Volker
Ronge, o Estado, nas sociedades capitalistas, con- Interessante observar que Bobbio, no artigo
figura-se como uma forma institucional de poder supracitado, retoma os argumentos de Kelsen na
público que se reflete e se distribui na política, de polêmica com os austromarxistas, principalmente
forma distinta, nas diferentes sociedades.10 Esta no que tange à função que o direito pode cum-
definição, muito genérica, evidentemente não re- prir, qual seja, de técnica especial de organização
solve as questões das formas de dominação que de um grupo social para a defesa dos seus inte-
existem e que se reproduzem na esfera estatal. De resses. E ainda para Bobbio:
todo o modo, a fórmula leninista, repetida cano-
É importante que se comece a conceber o direito
nicamente durante anos pelo movimento comu-
não mais como fenômeno burguês, mas como um
nista, perdia completamente a capacidade de aná- complexo de normas técnicas que podem ser
lise histórica das transformações que se operavam operadas tanto por burgueses quanto por proletá-
constantemente nos Estados em virtude dos pró- rios para conseguir certos fins que, a uns e outros,
prios conflitos que constituem as sociedades capi- como homens sociais, são comuns. Uma vez des-
talistas. A insistência na repetição da fórmula leni- tacado o direito, como técnica da sociedade civil,
nista dispensava parte dos comunistas do esforço abre-se a estrada ao estudo de todos os aspectos
de análise concreta e real do fenômeno estatal. O desta técnica, assim como foram elaboradas no
curso dos séculos as correções e os aperfeiçoa-
Estado moderno possuiria uma essência enrijeci-
mentos que sofreu e que não se pode evitar de
da que se cristalizara no tempo, imutável às lutas comparar a técnica jurídica de um Estado liberal-
sociais que caracterizaram os novos tempos, con- democrático com aquele ditatorial [...].12
figurando o que Karl Mannheim chamou de demo-
cratização substantiva, para conceituar o apareci- Como se vem demonstrando, o pensamento
mento na arena política pública das grandes forças político e jurídico kelseniano foi amplamente uti-
sociais oriundas do processo de industrialização. lizado por Bobbio na sua discussão com os comu-
Na verdade, Bobbio, ao iniciar a polêmica, relem- nistas italianos, no sentido de que reproduz os
brara que as sociedades capitalistas ocidentais exi- mesmos termos que o próprio Hans Kelsen havia
biram formas ditatoriais de exercício do poder empregado na sua crítica em relação aos austro-
como o fascismo e o nazismo e formas democráti- marxistas. Bobbio adverte ainda que “[...] existem
cas incessantemente mutáveis. Com isto queria dis- razões abundantes e objetivas para que os comu-
cutir o caráter ditatorial com que o Estado Soviético nistas ocidentais, diante das instituições liberais,
exercia o poder, ou seja, “[...] suprimindo as princi- dirijam e desenvolvam diante delas cada vez mais
pais liberdades civis e políticas e concentrando os sua adesão”. Além disso, propõe:
poderes nas mãos de um chefe ou de um pequeno
grupo de homens.” Além disso, continua o autor [...] os comunistas ainda devem, sobretudo depois
da Segunda Grande Guerra, a elaboração de uma
teoria, que até agora faz falta, que contemple a in-
[...] ainda permanece o fato: como o Estado bur-
serção de sua experiência no desenvolvimento da
guês se exprime em regimes liberais e regimes di-
civilização liberal (do qual o comunismo é certa-
tatoriais, de onde não se ver por que o Estado
mente filho, para não dizer ainda, herdeiro, com
proletário só tenha conseguido exprimir-se ditato-
pleno direito).13
rialmente. [...] Tomemos um outro exemplo: a
doutrina da separação dos poderes é historica-
mente uma doutrina de origem burguesa; mas a Mais uma vez, com mais sofisticação, reapa-
exigência que essa exprime, a defesa contra o ab- recem as intuições do jovem liberal Piero Gobetti.
solutismo do poder e a técnica constitucional que Esse artigo será respondido pelo filósofo
essa tem inspirado (relativa e recíproca indepen- marxista Galvano Della Volpe, na mesma revista
o
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Nuovi Argomenti.14 A de Della Volpe é erudita e mos, e que da minha parte procurei colocar em
inteligente. Além do mais, o texto é um magnífico evidência no artigo anterior e que agora é o in-
verso, ou seja, o da liberalização dos regimes de-
exemplar da visão que um típico intelectual de
mocráticos. Toda a democracia desrespeitosa dos
partido comunista possuía sobre o regime soviéti-
princípios clássicos do liberalismo necessariamen-
co nos anos de 1950. Suas respostas a Bobbio ba- te se transforma em regime iliberal e despótico.18
seiam-se em dois eixos: o fundamento da autori-
dade política no Estado soviético e a diferença en- Posteriormente, Bobbio faz uma colocação
tre liberalismo e democracia. Della Volpe é autor interessante, pois admite, ao criticar a afirmação
de interessante livro sobre as relações entre Rous- de Lênin de que a democracia soviética era mil
seau e Marx, em que discute e explora de modo vezes mais democrática do que qualquer demo-
inovador a existência de várias afinidades eletivas cracia burguesa, que as chamadas democracias
entre os dois autores.15 No entanto, as reflexões proletárias
de Della Volpe negam razão a Bobbio quando
este cobra a excessiva concentração de autorida- [...] efetivamente haviam iniciado uma fase de
de da elite dirigente do Estado soviético, argumen- progresso civil em países politicamente atrasados,
tando que o regime não necessita da liberal divi- introduzindo institutos tradicionalmente democrá-
são dos poderes e, portanto, da ação dos contra- ticos de democracia formal, como o sufrágio uni-
pesos montesquianos, porque seu poder executi- versal e a eletividade dos cargos, e de democra-
vo origina-se diretamente do povo, ou seja, o po- cia substancial, como a coletivização dos instru-
mentos de produção. Estes mesmos países não
der se funda na soberania popular, e, mais do que
são liberais.19
isso, realiza as liberdades igualitárias que são mais
que liberdades porque são também justiça.16
Bobbio, como vimos, utiliza a linguagem
Norberto Bobbio responde a Della Volpe em
política da esquerda de seu tempo, à qual conec-
outro longo artigo cujo título, sugestivamente, é
ta sempre o vocábulo democracia com algum
“Della libertà dei moderni comparata a quella dei
tipo de justiça distributiva. Para tanto, acrescenta
posteri”.17 A essência da argumentação bobbiana
o adjetivo substancial para completar o substan-
reside na insistência em demostrar que a teoria
tivo democracia. Esta necessitaria incluir em sua
dos limites do poder, que compõe uma das mais
dinâmica funcional as principais instituições libe-
importantes conquistas do pensamento liberal,
rais, entre as quais “[...] as garantias dos direitos
precisa ser adotada onde quer que os homens se
de liberdade, primeiro entre estes a liberdade de
reúnam para viver uma vida comum. Bobbio se
pensamento, de expressão, a divisão dos pode-
refere, ironicamente, às farpas que Della Volpe
res, a pluralidade dos partidos, a proteção das mi-
havia lançado contra ele, ao dizer que ouvia em
norias políticas”.20 Um intelectual brilhante como
suas considerações teóricas a velha música tocada
Della Volpe, militante na luta antifascista, insiste
pela primeira vez pelo impenitente liberal Benja-
em chamar de liberdade dos burgueses o que
min Constant, no célebre ensaio “De la liberté des
anciens comparée à celle des modernes”. O fio Bobbio denomina respeito aos direitos civis. Vol-
condutor da réplica de Bobbio organiza-se em tor- pe identifica esses direitos com a liberdade de
no do princípio de que democracia moderna pres- apenas uma classe e, portanto, recusa-lhes o va-
supõe liberalismo, o que pode ser resumido pela lor fundamental, duramente conquistado, do uni-
indispensabilidade versalismo moderno. Dessa forma, lança para o
futuro, para a sociedade dos livres, a sociedade
[...] das fundamentais garantias jurídicas de alguns
comunista sem classes – para a qual a União So-
fundamentais direitos de liberdade. [...] O proble- viética estaria se encaminhando –, a dissolução e
ma novo é muito importante – o consideramos a efetiva superação das antinomias das duas liber-
tão importante quanto aquele da democratização dades, a igualitária e a formal de cunho liberal.
dos regimes liberais frente aos quais nos encontra- Della Volpe chega a dizer que:
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As liberdades civis reivindicadas pela doutrina li- berdade de expressão e de imprensa nos Estados
beral pretendiam ser valores universais, como va- Unidos, fazendo o seguinte comentário:
lores de classe, representando a ideologia indivi-
dualista e os interesses econômicos egoístas da
E a liberdade de imprensa? Quando e onde um
classe burguesa. Portanto, acontecendo a dissolu-
grupo de oposição, por mais numeroso e armado
ção das classes, também os valores portados por
das mais nobres idéias, mas privado dos meios
estas não têm mais razões para sobreviver.21
materiais, tem podido publicar um jornal? Esta-
mos aqui, nos perdoe Bobbio, no campo da mais
Esta passagem deixa bastante clara a magnitu- pura hipocrisia. O regime liberal não tem neces-
de dos equívocos, entre os quais o messianismo po- sidade de nenhum abuso de poder para impedir o
lítico, que naqueles tempos acometeram a polêmica exercício de fato daqueles direitos de liberdade
político-teórica no interior do marxismo. Hoje perce- que os seus teóricos proclamam. Basta a normal
bemos que um dos grandes erros contido nessas po- distribuição das riquezas.23
sições em parte se explica pela enorme confusão que
– por mais paradoxal que pareça, ocorreu entre inte- É claro que de ambas as partes envolvidas
lectuais de formação universalista – consiste na não na discussão os argumentos apresentados partem
compreensão de que valores, conquistas históricas, de premissas distintas. O marxismo de Togliatti e
políticas e espirituais, por mais particularistas que Della Volpe, ainda encharcado da visão política da
possam ter sido nos seus motivos originais, podem Terceira Internacional, mobiliza, sem nenhuma
se converter em valores perenes da humanidade, mediação histórica, os velhos petardos antilibe-
portanto, dotados de conteúdos universalistas, nor- rais. Togliatti lembra bem e com pertinência que
malmente não visíveis aos portadores originários. O o liberalismo, na sua realidade prática, transforma
racionalismo moderno, como projeto emancipatório, direitos de liberdade em aviltantes privilégios dos
entre outras coisas, significou a vitória da razão sobre que possuem poder econômico. Bobbio, por sua
o obscurantismo e a intolerância presentes na vida vez, toca nos problemas cruciais que atingiram
dos homens pré-modernos, e por isto se fazia patri- mortalmente toda a experiência do socialismo
mônio político irrenunciável da convivência social. real, principalmente a ausência de procedimentos
Palmiro Togliatti, no artigo “In tema di liber- efetivos de limitação ao poder do Estado.
tà”, participa e saúda o debate, relembrando a Entretanto, o ponto fraco da crítica de Bob-
Bobbio sua condição de “bom militante pela liber- bio reside na absoluta ausência de referência sistê-
dade e que até agora acreditamos continuar a sê- mica em sua obra. Deve-se reconhecer que esta
lo”.22 O tom mais forte que Togliatti emprega é o questão não é de pouca monta; analiticamente, o
de lembrá-lo da pesada atmosfera político-intelec- resultado desta ausência traz lacunas e insuficiên-
tual que se criara com a guerra fria, em que a mar- cias que tornam a análise, ou as prescrições, ca-
ginalização e toda sorte de restrição política aos rentes de substância histórica. O autor centra-se
comunistas era admitida como meio legítimo de sempre na enunciação e na validação dos princí-
impedir-lhes que, supostamente, violassem os di- pios abstratos como tais, examinando sua coerên-
reitos de liberdade. Evidentemente, Togliatti tam- cia interna, remontando à história apenas como
bém está convencido de que na União Soviética história do dever ser normativo, sem preocupação
está se realizando uma forma superior de demo- de percebê-los no contato vivo com o mundo ob-
cracia, pois lá se distribuiu a riqueza, e os operá- jetivo das forças sociais em conflito e a interativi-
rios estão no poder construindo o socialismo. Dian- dade delas no interior de uma dada ordem sistêmi-
te dessas convicções profundamente arraigadas, ca. Desse modo, sem constrangimentos de nenhu-
os aspectos liberais dos ordenamentos democráti- ma ordem, os princípios podem voar muito livres,
cos, como o Estado de direito, a proteção às mi- despreocupados totalmente com as circunstâncias
norias, o desenvolvimento da tolerância etc., eram do tempo onde deverão realizar seu pouso.
sentidos como retóricas ocidentais hipócritas. To- Do lado dos marxistas italianos, na polêmi-
gliatti recorda então a Bobbio sobre o lugar da li- ca dos anos de 1950, a fragilidade revelada nos
o
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argumentos deita raízes, muitas vezes, na visão çou o projeto fascista até o fim do regime, sempre
canônica que possuíam da obra de Marx e na se considerou um liberal, sustentando que o fas-
equivocada percepção sobre o que, de fato, ocor- cismo realizava o Estado Ético.
ria na União Soviética. Isto se somava à concep- O que deve ser afirmado é que, de fato, a
ção, muito comum à época, de que o liberalismo, sintaxe liberal serviu em muitos casos como ideo-
indistintamente, resumia-se apenas a uma ideolo- logia orgânica de legitimação da desigualdade so-
gia burguesa com temporalidade definida e, por- cial, e, por vezes, de regimes ditatoriais. As ver-
tanto, já esgotada nos seus impulsos renovadores. sões para isto foram revestidas de sofisticação,
A burguesia havia vencido o absolutismo fazendo lembre-se da fúria com que um Hayek combateu
dele sua ideologia orgânica e, no presente, mobi- a Declaração Universal dos Direitos do Homem
lizava-o apenas como corpo de idéias para defen- da ONU, em 1948, acusando-a de puro bolchevis-
der seus interesses particulares de classe, não mo. Deste modo, na ausência de distinções mais
precisando mais cumprir suas premissas libertá- refinadas, os valores políticos e éticos do liberalis-
rias. Os princípios políticos e jurídicos liberais mo acabaram arrastados de roldão na luta cega
agora cumpriam somente funções de ocultamen- dos princípios ideológicos.
to do mundo real das relações sociais, desempe- O fato positivo a ser assinalado na polêmica
nhando o papel das névoas perenes do Deserto relatada anteriormente consiste no fato de que, de
dos Tártaros, do romancista Dino Buzzatti, que certo modo, na Itália, este debate jamais se inter-
entre tantas outras penetrantes reflexões sobre a rompeu, sendo retomado em diversos momentos.
condição humana, também pode ser percebido Pode-se dizer sem exagero que as críticas prove-
como uma grande alegoria das cegueiras e fanta- nientes do liberal-socialismo às práticas comunistas
sias do poder. Do alto da fortaleza militar, o For- acompanharam toda a experiência dos comunistas
te Bastiani, jamais se podia ter uma visão clara do italianos do pós-guerra, funcionando assim, como
tamanho da planície desértica, sempre envolta uma espécie de seu ombudsman. Os últimos deba-
em neblina. Esta obscuridade da natureza propor- tes registrados encontram o mesmo Bobbio, nova-
cionava aos soldados toda sorte de visões fanta- mente questionando a teoria marxista do Estado.
siosas a respeito da realidade do deserto. Estes se desenvolveram nas páginas do jornal socia-
Os fascismos e todas as ditaduras sempre re- lista Mondo Operario, no outono de 1975, e publi-
correram à supressão das liberdades, em nome de cadas no livro Quale socialismo?24 É importante re-
sua defesa contra os comunistas que queriam ex- cordar que o conteúdo do debate, em essência, foi
terminá-las. Este foi o recorrente mote ideológico mais uma vez semelhante àquele já mencionado,
das ditaduras no século XX para exterminar opo- realizado entre Hans Kelsen e Otto Bauer, Karl Ren-
sitores de esquerda. Os erros teóricos de Togliatti ner e Max Adler; Bobbio, que sempre se definiu ju-
e Della Volpe não derivam exclusivamente de sua ridicamente como kelseniano, conhecia bem aque-
falta de visão, possuíam também razões históricas la polêmica e a retomou sempre que pôde. O de-
muito amplas e complexas. Não se pode esquecer bate dos anos de 1950 encontrara os comunistas
que, muitas vezes, as instituições liberais negavam muito auto-suficientes, afinal, o fantasma da revolu-
seus pressupostos de fundação e, verdadeiramente, ção rondava mais uma vez a Europa. A fé de que
funcionaram como as névoas perenes de Buzatti, a construção do socialismo realmente estava em
obscurecendo e legitimando as maiores explora- marcha animara muitos militantes pelo mundo afo-
ções e ignomínias que os poderes constituídos co- ra, gerando uma capacidade de renúncia e sacrifí-
metiam contra os cidadãos e, desta feita, fazendo cio pessoal por parte de centenas de homens e mu-
da retórica seu refúgio preferido. O descrédito nas lheres poucas vezes vista na história. Esta explosão
instituições liberais não se deve apenas à miopia de paixões cívicas explica, em parte, as razões das
política, ou ainda, à ignorância teórica dos comu- restrições feitas por Bobbio, no fundo, vistas como
nistas. Na Itália mesmo, o filósofo Giovanni Gen- implicâncias inofensivas de um liberal. Somava-se a
tile, ministro da cultura sob Mussolini, e que abra- isto o fato de que os comunistas italianos possuíam
A LIBERDADE COMO TEMA: UM DEBATE ITALIANO 57

força política e intelectual, e estavam a caminho da no comunismo italiano. Como bem expressou To-
hegemonia, da construção de amplos e fortes con- gliatti: “Direitos de liberdade e direitos sociais se
sensos. O impulso que animara o debate estava tornaram e são nossos patrimônios.26
dado pelo deslocamento espacial do mesmo. Afinal,
discutia-se e denunciava-se o fato de o Estado so-
viético não se organizar como um Estado de direi- Conclusão
to. Vimos o núcleo do argumento comunista na de-
fesa da União Soviética. E nunca é demais ressaltar Em 1989, no jornal L’Unità, na época dirigi-
o paradoxo dramático dos comunistas italianos, do por Massimo D’Alema, o antigo debate é revi-
qual seja, a posse de duas políticas: defenderem, vido por meio de longa entrevista com Norberto
com os liberais-socialistas, a médio prazo, as mes- Bobbio, realizada por Giancarlo Bosetti. Posterior-
mas bandeiras políticas e civis para o povo italiano; mente, Umberto Cerroni responderá às questões
e, em um nível mais geral, como utopia, admitirem colocadas por Bobbio, escrevendo um ensaio in-
acriticamente que o modelo soviético de socialismo titulado “Liberalismo e socialismo: investigação
realizava a democracia mais verdadeira. Note-se sobre uma nova perspectiva”27. Cerroni fez uma
que esta postulação foi se transformando bastante abordagem histórica do problema, centralizando
ao longo do tempo rumando progressivamente sua análise na importância, para a ampliação e
para uma independência cada vez maior em relação
aprofundamento da cidadania liberal e sua trans-
a Moscou, até chegar à quase ruptura total nos anos
formação em cidadania democrática, das lutas his-
de 1970, quando Enrico Berlinguer, então secretário
tóricas do movimento socialista, desde as existen-
geral do PCI, lançou o tema da Democracia como
tes para a conquista do sufrágio universal, às rea-
valor universal, no âmbito do movimento que deu
lizadas pelo movimento operário e que trouxeram
origem ao chamado eurocomunismo, última tenta-
para a agenda política pública a exigência de se
tiva de diferenciação radical do chamado socialismo
substancializar a própria noção de direitos huma-
real. Na verdade, semelhante postulação germinara
nos. Foram progressivamente rompidas as cláusu-
ainda ao tempo de Gramsci, que nos anos de 1930
manifestara mais de uma vez suas desconfianças em las excludentes do liberalismo clássico que limita-
relação ao que chamou de “perigo de um governo vam o universo dos cidadãos. Nesse sentido, o
de funcionários burocráticos”. conceito de cidadania iniciara, no plano histórico,
De qualquer modo, essa discussão situava-se seu caminho em direção à cidadania universal, ou
fora de lugar, pois a famosa virada de Salerno seja, ao direito ao bem-estar social e moral que to-
(1944)25 tornara evidente que o caminho soviético dos os homens têm como cidadãos do mundo.
para o socialismo não podia ser imitado. Em Naquela entrevista ao jornal L’Unità, Bobbio rea-
suma, a invenção togliattiana da via italiana para firma suas críticas aos modelos governativos do
o socialismo não significou o reconhecimento das chamado socialismo real, acentuando os malefí-
especificidades nacionais que se tem de levar em cios da ausência de controle exigida pelo Estado
conta na elaboração das estratégias políticas revo- de direito. Naquele momento, as chagas profun-
lucionárias, infundindo sentido à diferença entre das do totalitarismo se expunham de modo ine-
Oriente e Ocidente em política? quívoco. As deformações existentes no seu orga-
O ponto crucial que dividia os autores no nismo social se exibiam duramente. O projeto so-
debate, finalmente, era a confusão entre liberalis- cialista, carente de democracia, caíra por terra
mo e democracia. Bobbio reclamava a ausência manchado com o sangue de todos os dissidentes.
de Estado de direito na União Soviética, quando Todavia, nas suas respostas sobre a questão de-
para os comunistas não se podia falar em direitos mocrática no plano interno à sociedade italiana,
de liberdade na presença da desigualdade e da Bobbio não deixa de anotar a contribuição do
miséria. Portanto, democracia, como se anotou Partido Comunista Italiano para a democratização
anteriormente, possuía um significado inequívoco do país, afirmando que
o
58 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

[...] o PCI sempre agiu nestes anos como um par- vras de Bobbio, escritas numa carta a Perry Ander-
tido democrático que respeita as regras funda- son de 3 de novembro de 1988, “o liberal-socialis-
mentais da democracia. Sobre as quais, insisto, mo é somente uma fórmula, sou o primeiro a re-
vale dizer a regra que se pode criticar, que se
conhecê-lo, mas indica uma direção.30
pode mostrar de todas as formas possíveis o dis-
senso, mas sem romper o pacto que exclui o uso
da violência. É necessário relembrar historicamen-
te sobre isto ao PCI, um partido que em 1948 im- NOTAS
pediu que o atentado a Togliatti (que foi um ato
de violência, conformando uma ruptura do pacto 1 O termo azionista (acionistas) refere-se aos militan-
de não agressão da parte dos adversários) se tor- tes políticos do Partido da Ação (Partito d’Azione),
nasse ocasião para uma resposta violenta. Então fundado em 1942 pelos liberais socialistas italianos
eu digo que o PCI não somente professou a de- e que, juntamente com os comunistas, organizaram
mocracia, mas agiu lealmente em relação a ela a resistência armada ao nazi-fascismo.
nestes anos de vida democrática.28 2 Norberto Bobbio, 1998, p. 98.
3 Hans Kelsen, 1982, p. 45. O texto de Kelsen é pre-
Diante da pergunta formulada por L’Unità cedido nesta edição por um excelente e esclarece-
sobre as razões por que não falava com entusias- dor ensaio de Roberto Racinaro: “Hans Kelsen y el
mo de social-democracia, preferindo falar conjun- debate sobre democracia y parlamentarismo en los
tamente de socialismo e liberalismo, Bobbio res- anos veinte y treinta”. Sobre o austromarxismo e a
experiência da chamada Viena Vermelha (1919-
ponde: “A minha inspiração é socialista e partici-
1934), a bibliografia em língua não-alemã ainda é
pei dos primeiros movimentos antifascistas através relativamente escassa. Sobre esse assunto ver Anson
do liberal-socialismo de Guido Calogero”. Indaga- Rabinbach (1983); David Sassoon (1996); Raimond
do como via hoje os debates dos anos de 1950 Loew, “The Politics of Austro-Marxism”, New Left Re-
com os comunistas, afirma: view, 118 e Giacomo Marramao (1977).
4 Harold. J. Berman, 1996, pp. 584-585.
Na realidade, sobre aqueles temas fundamentais
5 Hans Kelsen, L’essence de L’État, em P. H. Mou-
dos direitos de liberdade nenhum dos comunistas
naïm,1991, p. 19.
de hoje sustentaria as teses que foram afirmadas
naqueles anos cinqüenta (também devo dizer que 6 Paolo Spriano, 1975, vol. II, p. 327.
a polêmica de Togliatti não foi desdenhosa e ain-
7 Luciano Lamas, “Gli comunisti italiani e la democra-
da em 1957 Della Volpe corrigiu seu juízo, reco- zia”, L’Unità, 11 de maio de 1992. Lamas presidiu,
nhecendo-me algumas razões). Posso dizer sem nos anos de 1970, década marcada por grandes
parecer presunçoso que mudaram os comunistas conquistas operárias, a CGIL – maior central sindi-
mais do que eu mudei. A discussão dizia respeito cal da Itália.
substantivamente aos direitos fundamentais do in-
divíduo, que devem ser válidos nas suas relações 8 Citado por Nello Ajello, “Le strade dell’egemonia”,
em Nello Ajello, 1949, p. 47.
com qualquer Estado.29
9 Piero Gobetti, 1995, pp. 101-112.
Ouve-se aqui, nitidamente, ainda uma vez, o 10 Claus Offe, 1984, pp. 123 e ss.
eco das fortes vozes da polêmica dos anos de
11 Norberto Bobbio, 1998, p. 7.
1920 entre Kelsen e os austromarxistas.
Creio que se pode dizer que, na cultura po- 12 Idem, pp. 10-11.
lítica italiana, Togliatti e Bobbio representam, nas 13 Idem, p. 14, grifos meus.
suas profundas diferenças, o cumprimento fiel da 14 Cf. Rivista Nuovi Argomenti, n. 7, mar.-abr. 1954.
tradição do realismo maquiaveliano do país. Am-
15 Galvano Della Volpe, 1982.
bos aprenderam com Gaetano Mosca, de quem
foram alunos em Turin, entre outras coisas, o va- 16 Galvano Della Volpe, “Comunismo e democrazia
lor político e moral das fórmulas: socialismo como moderna”. Rivista Nuovi Argomenti, 1954, p. 138.
democracia progressiva, em Togliatti, e nas pala- 17 Cf. Rivista Nuovi Argomenti, n. 11, nov.-dez. 1954.
A LIBERDADE COMO TEMA: UM DEBATE ITALIANO 59

18 Norberto Bobbio, 1998, p. 57, grifos meus. KELSEN, Hans. (1982), Socialismo y Estado:
19 Idem, p. 57, grifos meus. una investigación sobre la teoria políti-
ca del marxismo. México, Siglo Veintiu-
20 Idem, p. 58.
no Editores.
21 Citado por Norberto Bobbio, 1998, p. 58.
_________. (1991), “L’essence de L’État” (trad. P.
22 Palmiro Togliatti, “In tema di libertà”, Rinascita, n.
H. Mounaïm), in P. H. Mounaïm, La pen-
11/12, nov./dez. 1954.
sée politique de Hans Kelsen, L’Université
23 Idem, p. 735. de Caen, p. 19 (Cahiers de Philosophie
24 Norberto Bobbio, 1976. Politique, 17).
25 Svolta di Salerno refere-se ao retorno de Togliatti de LAMAS, Luciano. (1992), “Gli comunisti italiani e
Moscou em 1944, desembarcando na cidade de Sa-
la democrazia”. L’Unità, 11 de maio.
lerno ao sul de Nápoles. Pouco depois pronunciou
um discurso bastante herético, no qual dizia que a LOEW, Raimond. “The politics of Austro-mar-
Itália teria de encontrar seu caminho nacional para xism”. New Left Review, 118.
o socialismo (a via italiana para o socialismo). Nes-
ta proposta estava praticamente excluída a revolu- L’UNITÀ (Documenti) (1989), “Socialismo liberale:
ção violenta de tipo bolchevique. Ali Togliatti criou il dialogo con Norberto Bobbio oggi”.
o conceito de “democracia progressiva”.
Roma.
26 Ver em L’Unità (Documenti), “Socialismo liberale: il
dialogo con Norberto Bobbio oggi”, 1989. MARRAMAO, Giacomo. (1977), Socialismo di Si-
nistra e Austro marxismo fra le due guer-
27 Idem, p. 98.
re. Roma, La Pietra.
28 Idem, p. 96.
OFFE, Claus. (1984), Problemas estruturais do Es-
29 Idem, p. 82, grifos meus.
tado capitalista. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro.

BIBLIOGRAFIA RABINBACH, Anson. (1983), The crisis of Austrian


socialism: from red Vienna to civil war
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GOBETTI, Piero. (1995), La rivoluzione liberale:
saggio sulla lotta politica in Italia. Torino,
Einaudi.
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 225

A LIBERDADE COMO TEMA: FREEDOM AS A THEME: LA LIBERTÉ COMME SUJET:


UM DEBATE ITALIANO AN ITALIAN DEBATE UN DÉBAT ITALIEN

Walquiria D. Leão Rego Walquiria D. Leão Rego Walquiria D. Leão Rego

Palavras-chave Keywords Mots-clés


Liberalismo; Democracia; Socialismo; Liberalism, Democracy, Socialism, Libéralisme; Démocratie; Socialisme;
direitos de liberdade; Estado rights of freedom, modern State droits de liberté; État Moderne.
Moderno

O presente trabalho rememora e The article rethinks and analyzes the Ce travail rappelle et analyse les ter-
analisa os termos e as categorias terms and categories mobilized in mes et les catégories mobilisées
mobilizadas no debate teórico e the theoretical and political debate, dans le débat théorique et politique
político, sobre a questão da liber- on the subject of freedom, accom- sur la question de la liberté, qui a eu
dade, realizado entre liberais-socia- plished by liberal-socialists and lieu entre les libéraux socialistes et
listas e comunistas italianos ocorrido Italian communists during the 1920s les communistes italiens au cours
nos anos vinte e trinta do século XX. and 1930s. In a certain way, the con- des années 20 et 30 du XXe siècle.
De certo modo, a polêmica esteve troversy can be noticed during the D’une certaine manière, la
presente na fundação mesma do foundation of the Italian Communist polémique a été présente lors de la
Partido Comunista Italiano, através Party, through the theoretical won- fondation du Parti Communiste
das reflexões teóricas e da colabo- derings and the narrow collabora- Italien, par des réflexions théoriques
ração estreita existente entre o libe- tion between the liberal, Piero et de l’étroite collaboration existante
ral, Piero Gobetti e o marxista, Gobetti and the Marxist, Antonio entre le libéral, Piero Gobetti et le
Antonio Gramsci. O diálogo acom- Gramsci. Such a dialogue accompa- marxiste, Antonio Gramsci. Le dia-
panhou a vida do PCI nos mais nied the P.C.I. trajectory in several logue accompagna la vie du P.C.I.
diversos momentos de sua história, moments: when sharing civic dans les moments les plus divers de
tanto nos momentos de comparti- moments, as the antifascist fight and son histoire, aussi bien dans des
lhamento cívico, como o da luta the organization of the resistance, or moments civiques confraternels que
antifascista e a organização da at the moment of the reconstruction lors de la lutte antifasciste et de l’or-
resistência, como nos tempos de of Italy in the 1950s. The controver- ganisation de la résistance, ainsi que
reconstrução da Itália nos anos de sy, on the liberal-socialist side, is dans les temps de la reconstruction
1950. Polemizaram assim, pelo lado headed by Norberto Bobbio and on de l’Italie dans les années cinquante.
liberal socialista, Norberto Bobbio, e the communist side, headed by the La polémique a été menée par, d’un
pelo comunista, o então secretário then general secretary of the P.C.I., côté, le libéral socialiste, Norberto
geral do P.C.I., Palmiro Togliatti. Palmiro Togliatti. Bobbio et, de l’autre, par le commu-
niste Palmiro Togliatti qui, à
l’époque, était le secrétaire général
du P.C.I..

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