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pandemia na quebrada

“TENTE MAIS TARDE”


Enquanto contas se acumulam, obstáculos para receber os R$ 600 do governo federal levam ao desespero
moradores da periferia de São Paulo
LUANA ALMEIDA
01maio2020_17h22

Ilustração: Raphael Borges, a partir de reprodução de internet

A
população na periferia de São Paulo vive o desespero com a
dificuldade de acesso ao auxílio emergencial de R$ 600 prometido
pelo governo. Na União de Vila Nova, bairro no extremo leste da
capital paulista, os moradores tentam se ajudar para não passar fome. A
produtora cultural Luana Almeida, de 24 anos, achava que não teria
dificuldade para receber, por ser beneficiária da ID Jovem, programa
voltado a pessoas com 15 a 29 anos cuja família tem renda mensal de até
dois salários mínimos e estão inscritas no CadÚnico, o Cadastro Único,
do governo federal. O governo anunciou que os registrados no Cadastro
Único seriam beneficiados primeiro, já que seus dados estão em posse da
administração federal. Mas não foi isso o que aconteceu. A seguir, Luana
conta a saga para receber o primeiro repasse e os sacrifícios para ajudar a
família e os amigos.

(Em depoimento a Thais Bilenky)

*
Por aqui está complicado. A gente se sente humilhado. É horrível,
péssimo, desumano. As pessoas estão se submetendo a umas coisas …
tipo acessar o aplicativo 300 vezes para ver a mesma coisa. Esperar
alguma resposta que não seja "em análise". As primeiras pessoas que
deveriam ser atendidas são as que têm o CadÚnico. Eu tenho ID Jovem,
imaginei que seria mais fácil. Imagina... Além de não considerarem meus
dados no CadÚnico, nem os meus nem os do meu pai, que atualizei em
novembro, ignoraram que eu já tinha conta na Caixa. Meu pai é pedreiro.
Ignoraram que a gente já tem poupança na Caixa, onde eu recebo todos
os meus pagamentos, é a única conta que tenho. Abriram uma no Caixa
Tem [aplicativo do banco federal destinado às transações do auxílio
emergencial]. Que é Caixa Não Tem, né?

Primeiro você faz o cadastro. Depois de mais ou menos vinte dias em


análise, aprovam ou recusam. Minha tia aguardou e foi reprovada.
Depois de muitos dias me aprovaram. Aí você pensa, bom, agora está na
conta. Imagina... Abriram uma conta Caixa Tem pra mim. Você tem que
baixar outro aplicativo. Lembrando que tudo isso eu estava fazendo para
mim e para o meu pai num mesmo celular. Você baixa outro aplicativo
para essa conta que eles abriram. Quando você entra nesse aplicativo a
mensagem que aparece é: "Esse acesso é exclusivo para beneficiários do
auxílio emergencial. Tente mais tarde". Isso ficou mais ou menos uns
quatro dias até eu pegar outro telefone emprestado e conseguir acessar.

Quando você acessa, é outra espera. Você foi aprovado, mas, no Caixa
Tem, aparece que a conta está zerada. Aí você espera mais uns três dias
até aparecerem os R$ 600. Depois você espera mais uns três ou quatro
dias para poder transferir para uma outra conta. Lembrando que você
não pode transferir do aplicativo Caixa Tem para uma conta em seu
nome. Você tem que obrigatoriamente informar outra conta, de outra
pessoa. Você que se vire para encontrar alguém que passe os dados da
conta, seja confiável e que você possa cadastrar no aplicativo. Coloquei os
dados da minha mãe, porque ela não tem direito, ela é registrada [tem
carteira assinada como auxiliar de limpeza]. Mandei para a conta dela e,
no outro dia, porque o dinheiro não cai na mesma hora, ela sacou. Nisso
tudo foi um mês. Eu fui uma das primeiras a cadastrar e o dinheiro só
saiu na última terça-feira [28 de abril].

O auxílio do meu pai, fiz pelo celular da minha mãe. Teve gente que teve
a conta bloqueada quando tentou fazer dois pelo mesmo aparelho. Como
se todo mundo tivesse um telefone, um para cada um... E não fui só eu
não. Coloquei no Facebook uma mensagem perguntando como estava a
situação do auxílio emergencial, e as respostas mostraram todas essas
dificuldades.

Além de eu ter que resolver o meu problema, tem outras pessoas, as que
não têm celular, as que não sabem usar o aplicativo, os mais velhos,
amigos precisando de grana. Pessoas que pagam aluguel. Que precisam
desses R$ 600. Tem uma família bem necessitada, um casal de idosos
doentes, dona Luíza e seu Luís, que estão me pedindo ajuda. Toda vez
que vou lá meu coração parte. Essa semana ela falou: “Luana, conseguiu
alguma coisa?” Eu falei: “Não, dona Luiza, dei o nome da senhora. Onde
estou sabendo que está distribuindo cesta básica eu estou falando, mas é
muita gente…” Aproveitei que caiu uma grana, minha amiga tem VR
[Vale-Refeição], fomos dar um pulo no mercado, fazer uma comprinha
para a dona Luíza. O mercado estava lotado. Não fiquei. A gente
preferiu passar na quitanda da Vila e deixar como crédito para as
pessoas, pelo menos R$ 25 para quatro famílias. Uma cesta básica custa
R$ 98 e só contempla uma família. Amanhã a gente vai comprar mais
uma cesta, que dá para dividir para duas famílias pequenas.

Ontem saí de casa de máscara. Eu, assim como várias pessoas, precisava
de dinheiro na mão, fui na Caixa Econômica em São Miguel. Estava
lotada. Não cheguei perto, tive pavor. Como falar para o povo não ir para
a Caixa, sendo que não tem outra forma? Não tem outro jeito. Não não
dão alternativa. Aplicativo sai do ar, aplicativo volta, as pessoas seguem
em análise. Pior são as aprovadas que não sabem onde retirar o dinheiro.
Aprovado mas onde? Aprovado como? Tá muita desinformação....

Por que eu estou tão cansada? Com tudo isso, ainda tenho que alertar, é a
minha obrigação alertar a minha família, minhas tias, vizinhas e amigas
para que não caiam em fake news. Mandam no celular das pessoas
mensagens tipo "governo federal está doando cesta básica". [Dizem as
mensagens enganosas:] "Clique aqui para não sei o quê..." As pessoas vão
clicar, as pessoas vão acreditar, as pessoas vão compartilhar. Porque as
pessoas estão em estado de desespero.

“Ah, não conte com os 600 contos”, dizem. Como não contar? Estou
contando. A gente está falando de contas que precisam ser pagas agora,
de pessoas que precisam comer agora. Uma tia de Guaianases [distrito na
periferia na zona leste de São Paulo] está tentando acessar o benefício do
meu primo, que não tem celular. Quando entra no aplicativo fala que está
liberado, e o dinheiro está na conta. Minha tia tem idade, não pode sair
de casa, ela é de risco. Me manda mensagem: “Lu, como faz? A gente está
precisando de dinheiro, preciso de arroz.”

Você começa a olhar para as dívidas e escolher o que pode esperar. A


gente já está vivendo com o básico, mas quando você coloca o básico para
esperar... A conta de luz veio zerada, realmente [governo isentou
cobrança da população de baixa renda durante a pandemia], só que,
como não sou desinformada, sei que essa conta vai chegar. É bem
desanimador. No final são R$ 600. Tudo o que se fala de economia, na
quebrada, nada mais é do que a miséria.

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