Você está na página 1de 8

3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU
ENGLISH | FRANÇAIS | ESPAÑOL | ITALIANO 

O TEMA | Textos de orientação


O ser, é o desejo *
Jacques-Alain Miller

A metafísica da ação analítica.


Do reconhecimento à causa do
desejo.
O gozo, causa da realidade psíquica.
Fui formado pelo ensino de Lacan para conceber o
sujeito como uma falta-a-ser, não substancial, o que
tem uma incidência radical na prática da análise. No
último ensino de Lacan – em suas indicações cada vez
mais parcelares, enigmáticas, requerendo que se
ponha nelas muito de si -, a visada do sujeito como
falta-a-ser desvanece. No lugar dessa categoria
ontológica – para falar com propriedade, já que se
trata de ser – vem a do furo, que não é sem relação
com a falta-a-ser, embora seja de um outro registro
que não o ontológico.

Isso me obriga a pensar a relação, a liação e, no


entanto, a diferença entre a falta-a-ser e o furo, por meio do qual Lacan queria, em seu último
ensino, de nir o próprio simbólico. A recorrência ao nó não fez senão tornar essa categoria mais

https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 1/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU uma vez que cada um dos aros de barbante dos quais ele se valia foi tecido em torno de
insistente,
um furo. A renúncia à ontologia o levou da falta-a-ser ao furo. E isso resta a ser pensado.

Minha primeira prática foi pautada pelo desejo, entendido como o que se trata de interpretar, sem
por isso desconhecer que se trata também de fazê-lo ser. Nesse sentido, a interpretação é
criacionista. Ela institui uma certa potência da fala que, sem dúvida, é preciso aprender a adquirir,
tal como se ensina nas supervisões.

Nesse ensino, o essencial não é a arte do diagnóstico, mesmo que seja essa a preocupação do
debutante que quer saber com qual tipo de sujeito ele terá de lidar. O que se visa a transmitir-lhe é
o método que permita à sua fala adquirir potência. Esse método se resume a isto: é preciso
aprender a calar-se. A fala só atrai e só retém a atenção do paciente com a condição de ser escassa,
mesmo que ela o conduza ao lado das formações do inconsciente. Como o diz Lacan em seu último
texto publicado nos Outros Escritos, página 567: “ [...] basta prestar atenção para que se saia disso
[do inconsciente]”. No entanto, isso é o que se trata de obter por meio da interpretação. Há um
termo do qual vocês não podem se prevalecer de fazer ser : trata-se do termo gozo. Aqui, vocês
devem desistir de toda intenção criacionista e tornar-se mais humildes.

1
Interpretar, palavra que, aqui, desfalece e seria preciso substituí-la por uma outra como cingir,
constatar. Não estou satisfeito com esse vocabulário e gostaria de encontrar um que dissesse
melhor o de que se trata para o analista, no que concerne ao que ultrapassa a ontologia. “ [...] tenho
minha ontologia”, diz Lacan, e acrescenta “ — por que não ? — como todo mundo tem uma, ingênua
ou elaborada.” Cito aqui o Seminário: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, página 73. O
ensino de Lacan se mantinha no nível da ontologia e, quando ele desistiu dela, perdemos as
estribeiras ! Por essa razão, quero alongar-me sobre esse ponto antes de tentar avançar.

Lacan inscreveu sua ontologia na tentativa de Freud de dar corpo à realidade psíquica sem
substantivá-la. Não substantivar a realidade psíquica é, precisamente, não psicologizá-la. Nenhum
dos esquemas propostos por Freud para articular a realidade psíquica – inclusive o esquema em
ovo que ilustra sua segunda tópica – deve se prestar a uma diferenciação de aparelho. A ideia de
que aqui não se trata de substância, ou seja, de aparelho diferenciado no organismo, nos leva a
recusar as tentativas de assentar a teoria freudiana em uma investigação do funcionamento do
cérebro. Hoje, não faltam pesquisadores para tentar validar as intuições de Freud buscando situar
as instâncias distinguidas por ele, graças à imagética à qual têm acesso por meio da tecnologia
desenvolvida nesses dez últimos anos. Trata-se de uma tentativa de dar corpo à realidade psíquica
substantivando-a.

Em seu primeiro ensino Lacan, pelo contrário, tentou elaborar um ser sem substância. O que quero
dizer com essa expressão ? Designo um ser que não postula nenhuma existência. Como não é
seguro que o termo existência seja mais claro que o termo substância, precisemos que se trata de
um ser sem real, aquele do sujeito que só se inscreve diferenciando-se do real e se pondo no nível
do sentido. É nesse nível que se mantém a ontologia de Lacan, que é uma ontologia semântica.
https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 2/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENUfoi buscar em Freud como sustentar o termo ser. Ele teve de pesquisar a obra de Freud,
Lacan
pouco pródiga nessas referências, e a encontrou na Tramdeutung, capítulo sete - quando Freud
trata, na parte E, do processo primário, do processo secundário e do recalque -, sob a forma da
expressão Kern unseres Wesen, o núcleo de nosso ser. Lacan se apossou desse hápax - que, até onde
eu saiba, só foi dito uma única vez por Freud -, para dizer que a ação do analista vai ao coração do
ser e, por isso, ele próprio está nela implicado.

Reportemo-nos à passagem de Freud, que vocês encontrarão na página 631 da última tradução
publicada da Tramdeutung, realizada por Jean-Pierre Lefebvre, que acho eminentemente
recomendável. Onde se inscreve exatamente essa expressão ? Ela está inscrita na diferença entre
os dois processos psíquicos distinguidos por Freud, a saber : primário e secundário. Ele reconhece
o caráter ctício de sua construção, indicando que um aparelho psíquico que só possuísse o
processo primário não existiria. Esse caráter de cção não impede pensar que os processos
secundários – se diz no plural – se desenvolvem posteriormente. Há a ideia de uma orientação
temporal : há um primeiro e um seguinte. Entre os dois há uma lacuna, uma distância. Os processos
secundários inibem, corrigem, dominam os processos primários. Guardemos a ideia de que há o
primário e que, em seguida, vem implantar-se um aparelho que opera sobre ele. Isso explica que o
inconsciente não é um livro aberto.

Nesse momento, Freud introduz a expressão o núcleo de nosso ser e o situa no nível primário, ou
seja, antes da intervenção de um aparelho ou de uma con guração suscetível de reter esses
processos, desviá-los, orientá-los. Segundo Freud, esse núcleo deve ser situado no nível primário,
no sentido em que este seria constituído de movimentos desejantes inconscientes – seguindo a
tradução de Lefebvre -, sobre os quais Freud especi cará que eles surgiram do infantil. Podemos
situar uma ontologia freudiana nestes termos : o núcleo de nosso ser é da ordem do desejo, de um
desejo impossível de se apreender e de conter, apesar do secundário. A realidade psíquica é,
portanto, obrigada a se dobrar diante do desejo inconsciente.

Há ali uma espécie de mestria impossível, que Lacan repercutirá inclusive em seus quatro
discursos, onde ele inscreverá o signi cante-mestre como impotente para dominar o saber
inconsciente. Mestria impossível, só é permitido ao processo secundário desviar os processos
primários para o que Freud chama de objetivos mais elevados, o que mais tarde ele designará como
sublimação. Mantenho apenas isto: para Freud, o núcleo de nosso ser está no nível do desejo
inconsciente, desejo que nunca pode ser dominado, nem anulado, mas apenas dirigido. Era ao que
Lacan visava quando pensou sua prática sob o título “A direção do tratamento...”.

O primeiro ensino de Lacan - o que marcou as mentes com “Função e campo da fala e da
linguagem...” - culmina com o desejo constituindo o ser do sujeito. Como tento precisamente abalar
essa ontologia lacaniana - tal como o próprio Lacan foi levado a ultrapassá-la -, extrairei dessas
considerações uma de nição ontológica segundo a qual o ser, é o desejo.

Por essa razão, ao pontuar a expressão de Freud o núcleo de nosso ser, Lacan pôde dizer, como
num inciso, que ninguém se inquiete “com o pensamento de que aqui me ofereço ainda a
adversários sempre felizes de me remeterem à minha metafísica”.

https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 3/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

 MENU

2
Lacan enfrenta esses adversários pavoneando-se com sua metafísica. Reencontro a mesma
expressão, mostrando que ele a assume, no discurso por meio do qual ele apresentava seu
“Relatório de Roma”. Ele, então, evocava o analista iniciante cuja “análise pessoal [ele empregava
essa expressão] não o facilita, mais do que a qualquer outro, a fazer a metafísica de sua própria
ação […]”. É preciso ouvir, aqui, o enunciado de sua ambição, a saber: fazer a metafísica da ação
analítica, ou seja, designar o ser sobre o qual incide essa ação. Diria até que, aqui, o termo ação
implica o de causa. A partir do que faço como analista, como posso ser causa de uma transformação
que toque no núcleo do ser? E, de saída, ele prevenia de que se abster de fazer a metafísica da ação
analítica seria escabroso, pois isso equivaleria fazê-la, apesar de tudo, sem o saber. Isso evoca o
argumento segundo o qual é preciso losofar, pois, caso contrário, é ainda preciso losofar para
mostrar que não se deve losofar. Assim, no começo mesmo de seu ensino, Lacan concebia que não
se pode não fazer a metafísica da psicanálise. Como entendê-lo ? Qual é o ser sobre o qual
pretendemos agir por meio da análise ? É no o dessa interrogação que encontramos a função da
fala, meio da psicanálise. A intensidade com a qual Lacan promoveu a função da fala e o campo da
linguagem se deve ao fato de que, para ele, essa atribuição da linguística estava inscrita no âmbito
da metafísica da psicanálise.

Quiseram reduzi-la a uma exploração da linguística, ao passo que a questão que animava Lacan era
metafísica: qual é o ser sobre o qual essa operação pretende agir?

Ele então aplica um axioma segundo o qual não pode haver ação de um termo sobre um outro se
não forem homogêneos. Deve haver homogeneidade entre a ação do analista e o ser ao qual ela se
aplica, a realidade deles é da mesma ordem ontológica.

Qual é essa ação? Lacan a centra e até mesmo a reduz à interpretação, ou seja, a dar um outro
sentido ao que é dito. Se isolarmos a interpretação como o núcleo da ação analítica, devemos então
considerar que ela opera na ordem do sentido. A metafísica analítica implica o fato de que o ser é
sentido. Em outras palavras, a psicanálise implica uma ontologia semântica. O que Lacan chama de
sujeito é precisamente este correlato da interpretação: um sujeito que só tem ser por meio dela,
um ser variável em função do sentido. Não há nada aqui que seja da ordem da substância, nada que
tenha sua permanência.

Como pensar a ordem do sentido senão como distinta da ordem do real ? Falarei em termos de
intuição, tal como ele o formula nos Outros escritos, página 142: há “uma distância entre o real e o
sentido que lhe é dado”. É a distância que reside entre duas ordens: a ordem do real e a do sentido,
que Lacan comentará incessantemente. Para utilizar um termo de Saussure, há aqui uma maneira
arbitrária na qual Lacan quererá, por vezes, ver uma liberdade do sujeito. De todo modo, o real não
decide sobre o sentido, nem o sentido sobre o real, essas duas dimensões não se comunicam entre
si. Se Descartes distinguia a alma e o corpo e formulava sua união, Lacan separava o real e o
sentido, mas sem nunca uni-los.

https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 4/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU
O pivô da ação analítica é dar sentido, o que requer, em primeiro lugar, estar atento às modalidades
semânticas por meio das quais o analisante lhes comunica o que vive. A interpretação também dá
sentido, mas para permitir um advento ao ser, fazer ser o que não era, o que permite inferir que
isso quer ser, mesmo se o sujeito não o confessa. O analista seria, de algum modo, o parteiro do ser
não acontecido! Lacan encontrava ali os poderes poéticos e criacionistas da fala contrastando com
seu valor realista. De saída, Lacan evocava o ser como preso nas engrenagens das leis do blábláblá
que, em seguida, ele grafou com o esquematismo da metáfora e da metonímia, a arborescência de
se grafo do desejo, etc. Mas a doutrina do inconsciente que ali está subjacente faz dele um
fenômeno de sentido. Em seu discurso inicial, Lacan emprega o termo fenômeno a respeito do
inconsciente. Acrescento, semântico. Passei muito tempo articulando, desarticulando as
construções de Lacan concernentes às suas engrenagens linguísticas, mas, aqui, viso a um nível
mais elementar daquilo que, na prática, as sustenta : o inconsciente, assim como o sujeito, deve ser.

Trata-se, evidentemente, de uma intuição muito restrita, mas própria para sustentar a experiência
analítica em sua sucessão, na sequência material das sessões. O desejo freudiano quali cando o
núcleo de nosso ser toma, assim, um alcance ontológico.

O que pode conferir o ser ao desejo de ser ? A primeira resposta dada por Lacan é : o
reconhecimento. O desejo como desejo de ser é um desejo de reconhecimento, pois apenas este
pode conferir o ser. Reconhecimento signi ca ser endossado por aquele a quem alguém se
endereça e que o interpreta. Esse reconhecimento – termo herdado de Hegel – é a satisfação do
desejo. Nesse sentido, uma vez obtido o reconhecimento, a análise pode terminar na satisfação do
reconhecimento. Bem mais tarde, em seu último escrito publicado, Lacan dirá também que o nal
da análise é uma questão de satisfação, mas muito distante daquela que aponto aqui.

3
Já no primeiro ensino de Lacan se produz uma ultrapassagem para um mais além do
reconhecimento, situável em seu escrito “A direção do tratamento....”. Ele a faz no momento em que
distingue desejo e demanda. Ele se dá conta de que reconhecimento é o que o desejo demanda,
mas como o desejo alcança também mais além da demanda, nenhuma satisfação da demanda,
inclusive a de reconhecimento, é suscetível de satisfazer o desejo.

Produziu-se então um deslocamento que vai do reconhecimento do desejo à sua causa. O termo
causa vem no lugar do termo reconhecimento. É o momento em que Lacan já não mais se satisfaz
em de nir o núcleo de nosso ser por meio do desejo inconsciente, a contrapelo do que ele havia
pescado num dos primeiros grandes escritos de Freud, a Traumdeutung. Para falar com
propriedade, trata-se de um deslocamento ontológico. Ele advém quando o desejo aparece como
não sendo a ultima ratio do ser, mas sim um efeito de signi cante preso na conexão do signi cante
com o signi cante, ou seja, preso nos trilhos da metonímia. O texto “A instância da letra...”, com sua
de nição do desejo, põe em questão a dialética do reconhecimento.

Essa construção inscreve o desejo no nível da signi cação com seu valor de reenvio, o que Lacan
transcreveu na seguinte fórmula : S (-) s, ou, entre signi cante e signi cado não há a emergência de
https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 5/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU
um novo sentido. O signi cado, ali, é retido, o que Lacan escreve por meio de um signo menos entre
parênteses. Nesse efeito metonímico – a ser distinguido do efeito metafórico que se escreve do
mesmo modo, mas com o sinal mais indicando a emergência de um sentido S (+) s -, Lacan
reencontra a falta-a-ser por meio da qual ele de nia o desejo. Mas, aqui, trata-se de um desejo
incompatível com a fala pelo fato de ele correr sob todos os ditos, o qual nenhum reconhecimento
poderá apagar. É um desejo que não se pode interromper confessando-o, é um fantasma (fantôme)
da fala.

Passando do reconhecimento para a causa, Lacan desloca também o ponto de aplicação da prática
analítica do desejo ao gozo.

O primeiro ensino se assentava sobre o desejo de ser e prescrevia um certo regime da


interpretação: a interpretação de reconhecimento. É a interpretação que reconhece o desejo
subentendido e o exibe: cada vez que nos esforçamos para interpretar um sonho praticamos a
interpretação de reconhecimento. Mas há um outro regime da interpretação que incide não sobre
o desejo, mas sobre a causa do desejo. É uma interpretação que trata o desejo como defesa, trata a
falta-a-ser como uma defesa contra o que existe. E o que existe, ao contrário do desejo que é falta-
a-ser, é o que Freud abordou por meio das pulsões e que Lacan nomeou de gozo.

Freud atribuiu às pulsões uma existência problemática quali cando-as de míticas, termo traduzido
abusivamente como irreal, mas que Lacan desmente ao interpretar Freud. Dizer que as pulsões são
míticas é, antes, considerar que elas são um mito do real. Há real sob o mito e esse real é o gozo.
Lacan deu a essa ruptura a seguinte fórmula: o desejo vem do Outro, o gozo está do lado da Coisa.
O desejo está ligado à linguagem e faz apelo ao Outro. A Coisa não é a verdade freudiana tagarela,
mas o real ao qual se dá sentido. Mais além de seu primeiro ensino, Lacan chegou ao seguinte : o
primeiro real sobre o qual se exerce a doação de sentido é o gozo. Essa vertente da Coisa, onde se
inscreve o gozo, é o sintoma, ou seja, o que resta quando a análise termina, no sentido de Freud. É
também o que resta no passe, de Lacan, isto é, depois do desenodamento do sentido.

A metafísica da ação do analista, ou seja, sua ontologia semântica, visa ao desejo como núcleo do
ser, isto é, um sentido. Esse núcleo, alcançado pelo passe, é essencialmente designado pela
aparição de uma falta-a-ser, chamada por Lacan de castração. Mesmo quando Lacan indicava que
esse núcleo era suscetível de uma notação positiva, pequeno a, esta só tomava para ele sua função
a partir da falta-a-ser, como um obturador da falta-a-ser. Aqui, o passe é ainda dominado pela
questão da falta-a-ser, mas separado da visada ao reconhecimento, uma vez que com o desejo
concebido como uma metonímia seu reconhecimento se desvaloriza.

No lugar do reconhecimento de um desejo vindo a ser, Lacan instalava, com o passe, o


reconhecimento da falta-a-ser e, em especial, o reconhecimento da falta-a-ser do desejo. Por essa
razão, ele notava, no passe, uma de ação do desejo, na qual acabamos por cingir esse menos entre
parênteses (-) e por lhe dar valor de castração. Cingimos também o que permitiu fazer a solda
entre signi cante e signi cado, a saber : o objeto a.

O que Lacan chamava de passe permanece aprisionado em sua ontologia. Somente em seu último
ensino é que haverá uma renúncia a essa metafísica. Lacan ultrapassará os limites dessa ontologia

https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 6/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU
no momento em que ele diz: Yad’lun, que não é da ordem da falta-a-ser nem do ser. Ele buscará suas
referências bem aquém de Descartes e da metafísica moderna, em Platão e nos neoplatônicos. Ele
se abstém de dizer o Um é (l ‘Un est), tal como eles mesmos o fazem. Ele diz y’a (há) fazendo a
apócope do ele (il). Essa jaculatória designa uma posição de existência e, se quisermos, um redizer a
função da fala e do campo da linguagem reduzidos à sua raiz, ao fato puro do signi cante pensado
fora dos efeitos de signi cado e do sentido do ser.

Trata-se de algo enorme, pois aprendemos, com Lacan, a reconstituir a história do sujeito a partir
das aventuras do sentido de seu ser. Não estou dizendo, agora, que, na prática, podemos nos abster
disso, mas sim que, mais além, há um há (y’a). Há o primado do Um, ao passo que o que acreditamos
ter aprendido de Lacan é o primado do Outro da fala. O desejo passa para o segundo plano, uma
vez que o desejo é o desejo do Outro. A verdade do passe dá a chave da de ação do desejo, a saber:
o desejo nunca foi senão o desejo do Outro. Assim, esse Outro, que nunca foi senão suposto, se
esvazia com a consistência do desejo.

Vimo-nos forçados a constatar que o sujeito estava às voltas com o Yad’lun, uma vez que ele
desinvestiu seu desejo. Esse Yad’lun, tal como o tomo aqui, é precisamente o nome do que Freud
isolou como os restos sintomáticos. Com o primado do Um, o gozo vem em primeiro plano, o gozo
do corpo que chamamos de o corpo próprio e que é o corpo do Um.

Trata-se de um gozo primário no sentido em que apenas secundariamente ele é objeto de uma
interdição. Lacan chegou até mesmo a sugerir que a religião projetava sobre o gozo uma interdição
rati cada por Freud. Ele também chegou a pensar que a loso a entrara em pânico diante desse
gozo, por falta de pensar sua permanência, sua existência rebelde à dialética. Para Lacan, cabia à
psicanálise cingir essa substância gozante.

Lacan escreveu uma frase que só consigo me explicar agora. Está nos Outros escritos, à página 506 :
“[...] o gozo vem a causar o que se lê como mundo [...]”. Isso signi ca que o gozo é o segredo da
ontologia, a causa última da ordem simbólica da qual a loso a fez o mundo.

Há uma oposição entre ontologia e gozo. A ontologia dá lugar àquilo que quer ser e implica
também o possível, ao passo que o gozo é do registro do existente. Por essa razão, Lacan pôde
dizer, em seu último ensino, está nos Outros escritos, página 561,que a psicanálise contradiz a
fantasia da metafísica – talvez tenha sido eu que acrescentei isso! –, que consiste em fazer passar o
ser antes do ter, uma vez que o ter é, em primeiro lugar, ter um corpo.

É possível dizer que o sujeito lacaniano até então não tinha corpo? Não, mas ele só tinha um corpo
visível, reduzido à pregância de sua forma. Será que, com a pulsão, com a castração, com o objeto a,
o sujeito encontrava um corpo? Sim, mas um corpo sublimado, transcendentalizado pelo
signi cante.

É completamente diferente a partir da jaculatória Yad’lun, pois o corpo aparece, desde então, como
o Outro do signi cante, uma vez que o signi cante nele faz acontecimento. O acontecimento de
corpo que é o gozo aparece como a verdadeira causa da realidade psíquica. Uso essa expressão não
sem me perguntar desde quando temos uma realidade psíquica. Não é evidente que Pitágoras,
Platão, Plotino, referências do Yad’lun, de Lacan, tenham tido uma. Os escolásticos se interessavam
https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 7/8
3/26/2020 O tema | Textos de orientação | Congreso AMP 2020

MENU
principalmente no Outro divino e foi apenas a partir de Descartes e de seu cogito que começaram a
existir.

Isso deixa em suspenso a de nição do desejo do analista. Lacan o invocava para fazer passar o ser
inconsciente, ou seja, recalcado, ao estado de realizado. O recalcado, como o que quer ser, fazia
apelo ao desejo do analista para vir a existir. A posição do analista, quando ele se confronta com o
Yad’lun no ultrapasse, não é mais marcada pelo desejo do analista, mas por uma outra função que
deveremos elaborar em seguida.

* Lição de 11 de maio de 2011 do curso de Jacques-Alain Miller: O Ser e o Um (inédito).


Texto estabelecido por Christiane Alberti e Philippe Hellebois
Tradução: Vera Avellar Ribeiro

Secretaria do Congresso
Ancón 5201 • Ciudad de Buenos Aires, Argentina Tel/Fax: +54 11 4773-5440 Int 1 • inscripciones@congresoamp2020.com

https://congresoamp2020.com/pt/articulos.php?sec=el-tema&sub=textos-de-orientacion&file=el-tema/textos-de-orientacion/el-ser-es-el-deseo.html 8/8

Você também pode gostar