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NARRATIVAS MIDIÁTICAS

Jornalismo
comunitário: uma
reinterpretação
da mídia
(pela construção
de um jornalismo
pragmático e não
dogmático) A PRIMEIRA COISA a se observar é que o jorna-
lismo assumiu um lugar definitivo como
RESUMO formulador da narrativa universal do “atu-
O presente trabalho é o resumo de uma pesquisa de mais de dez al” em nossa civilização. Essa narrativa,
anos, onde inicialmente nos preocupamos em des-cortinar o quotidianamente composta, é tecida por
lugar da comunicação a partir do viés do compromisso social. critérios e postulados paradigmáticos que
Em seguida, a pesquisa concentrou-se na tentativa de compre- tentam definir de um modo bastante amplo
ensão do papel do jornalismo atual, bem como a análise de sua o perfil da atualidade. Desta maneira, a
produção enquanto narrativa da atualidade. Finalmente, en- partir de uma detida análise da produção
saia-se uma proposta de atuação e produção jornalística para o jornalística podemos não apenas saber o
terceiro milênio. que de presumidamente importante acon-
tece, mas também porque e como assume
ABSTRACT este patamar o fato histórico que acontece
This text outlines a ten year-long research, wherein we first no nosso dia-a-dia. Para o bem e para o
tried to focus communication from the angle of its social mal, esse lugar alcançado pelo jornalismo
commitment. Then we fixed our attention on the role of define quem somos – e não apenas por
existing journalism, as well as on its production as a meio daqueles que produzem a informação
narrative of the present time. Finally we propose a new kind jornalística, mas basicamente por meio de
of news-making practice for the third millennium. todos os participantes desse processo, ou
seja, seus meros consumidores.
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) Se, por outro lado, podemos olhar cri-
- Jornalismo (journalism) ticamente – e isso temos exaustivamente
- Narrativa (narrative) feito, ainda que com focos bem limitados -
- Jornalismo comunitário (communitary journalism) para as nossas ações, muito raramente po-
demos fazer o mesmo com a produção jor-
nalística, pelo menos não sem antes se
levantarem centenas de ardorosos defenso-
res. Ao lado deles, quase sempre, uma es-
pécie de “dogmatismo liberal”. Todo o
aparato de defesa e de crítica aparece con-
taminado pelo espectro dogmático.
Por dogma, compreende-se uma idéia
Raquel Paiva calcada diretamente na crença. Dogma é
ECO/UFRJ um princípio absoluto, que assume o posto

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de verdade indiscutível. Para as religiões dar uma guinada mais eficaz. Dentre elas,
monoteístas, como o cristianismo e o isla- é possível destacar o jornalismo investiga-
mismo, o dogma é o conteúdo de uma re- tivo, jornalismo gonzo, o new journalism, o
velação divina e constitui parte do patri- civic journalism, a partir dos Estados Uni-
mônio doutrinário definitivo. É algo que dos, principalmente, mas com reflexos nas
nunca se põe em discussão, diferentemente coberturas em todo o mundo. Por esta ra-
das opiniões teológicas, que não possuem zão, a decisão de base neste trabalho ––
o lastro de terem sido formuladas por auto- que não deixa de ter como referência as
ridade divina. análises das produções jornalísticas, algu-
Na verdade, todos os sistemas religio- mas observações puramente aleatórias e
sos possuem seus pontos fundamentais e outras com recursos científicos –– parte em
indiscutíveis aos quais chamamos de dog- direção a uma proposta de jornalismo vol-
mas, porque constituem verdades aceitas tado para a produção de um modelo inclu-
sem discussão, apenas pela fé. É de se ob- sivo, de comunicação interativa e reflexiva.
servar que muito freqüentemente uma Nosso pressuposto é de que, diante
idéia ou postura dogmática ultrapassa os da superestrutura produzida pelo jornalis-
limites teológicos, ou então alguns projetos mo comercial/industrial como gerador da
laicos chegam mesmo a assumir o patamar narrativa da sociedade atual, e conseqüen-
de dogma em determinados períodos da temente promotor e gerenciador de uma
civilização. Isto porque se impõem de tal estrutura do pensamento público vigente,
maneira como definitivos e impedem tão concebe-se que se trata de uma ordem ex-
fortemente seu questionamento que sua clusivista, concentracionista e correlaciona-
adoção toma vulto de verdade absoluta e da de maneira fulcral aos propósitos con-
única, contra a qual não cabe, nem se per- sumistas da atualidade. Desta maneira,
mitem objeções. pode-se acrescentar ainda, no intuito de
Um dos aspectos mais característicos mapeamento do jornalismo na atualidade,
desse tipo de movimento é o sentimento a ênfase excessiva na espetacularização, no
que une os seus seguidores/fiéis, tamanha baixo investimento do esforço cognitivo
a convicção nos princípios. E é exatamente dos indivíduos, na frágil capacidade inter-
neste ambiente de impossibilidade de pretativa da sociedade como um todo para
qualquer questionamento que se constro- com os fenômenos sociais, além do descar-
em argumentos quanto à produção jorna- te dos processos contextualizatorios e his-
lística atual. toricizantes. É neste ambiente que se conce-
Sendo assim, optamos por uma outra be como expressamente necessárias a pes-
via crítica, que abre mão de argumentos quisa e a experimentação em direção a um
crítico-contraditórios. Não que tenhamos jornalismo relacional, interativo com a rea-
deixado de lado a perspectiva das análises lidade atual e em benefício da agregação
de conteúdo, qualitativas e quantitativas de valor humano à ordem social..
da produção jornalística, mas preferimos O aspecto inovador desta proposta
concentrar o foco agora na produção de talvez esteja na sua disposição em traba-
uma proposta objetiva de jornalismo, lhar com as “vísceras”, ou seja, com o ins-
adaptado à realidade social, econômica, trumental próprio da prática jornalística.
política, cultural, afetiva da cidade do Rio Seu aparato metodológico não será busca-
de Janeiro. Se ela pode adaptar-se a outras do nas ciências sociais, biológicas ou mate-
realidades, é empreendimento a ser reali- máticas, e sim no que é próprio do jornalis-
zado posteriormente. mo: a sua pauta, suas rotinas de apuração.
Há registros de que nos momentos em Além disso, em primeira instância e ao con-
que se voltou a atenção para propostas es- trário do que tem se feito até hoje, somente
pecíficas, a produção jornalística conseguiu em última instância e apenas para efeitos

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confirmatórios, a análise da sua redação. puche, etnia originária do vale central chile-
Mesmo o olhar analítico sobre a construção no. A idéia é que, “uma vez escritas, as pa-
da narrativa jornalística não se concentrará lavras perdem o valor que a boca lhes
no seu texto, mas no encadeamento que deu”. Em seguida, “somente uma narrativa
traz das temáticas, em linhas bastante defi- de acontecimentos (nutran) ou uma narrati-
nidas, daquilo que efetivamente define a va de ficções, contos e fábulas (epeu) não
narrativa: o seu enredo. Este enredo – que serão perdidas. As coisas escritas se per-
dia a dia compõe a tessitura da narrativa dem, a palavra ouvida fica sempre”1 . Ford
da sociedade atual, seus intestinos, suas ma- lembra ainda que o mundo é composto de
zelas e relacionamentos – será percorrido ba- muitas mensagens e que a preocupação
sicamente a partir das pautas e apurações. com o registro escrito parece não ser capaz
de comportar toda a multiplicidade cultu-
ral existente.
A narrativa e seu lugar social Um regime comunicativo é considera-
do textualizado quando privilegia a estória
Antes de mais nada, é preciso fixar o lugar sobre o conto, e o fabulativo sobre o de-
social da narrativa. monstrativo, – os seus valores serão ex-
Seguramente, todas as sociedades em pressos em mitos e não em tratados filosó-
todos os tempos sempre produziram as ficos ou científicos. Tanto a oralidade quan-
formas de narrar sua presença – origem, to os meios baseados em imagens, como a
atualidade e futuro – no mundo. As narrati- tevê o cinema, são propensos à textualiza-
vas tradicionais, ou seja, aquelas que pos- ção. Por outro lado, um regime comunicati-
suíam uma intrínseca relação do indivíduo vo é caracteristicamente gramaticalizado
com o seu quotidiano e o mundo à sua vol- quando exprime as próprias regras e os
ta possuíam um formato já bastante verifi- próprios conteúdos na forma explícita dos
cado. Sua estrutura pressupunha algumas discursos, códigos, sistemas gramaticais,
etapas características, bem como consolida antes que em sistemas paradigmáticos.
o entendimento de que possuía, de fato, Todos os ensaios de entendimento da
uma estreita relação com a coletividade. As estrutura narrativa convergem para a cons-
narrativas assumem aí um lugar de força tatação de que se as sociedades sempre
aglutinadora, reguladora e normatizadora. produziram formas de se relatarem e que
Por esta razão, é bastante freqüente a estes relatos sempre foram expressão in-
observação de que suas temáticas desen- trínseca do ethos social. Roland Barthes
volvem-se no âmbito da pedagogia dos chegou mesmo a afiançar o caráter domi-
costumes do grupo, através das quais se nante da narrativa para uma sociedade,
consegue inclusive ter acesso à estrutura uma vez que, qualquer que seja a estrutura
do seu dia-a-dia. Essas narrativas inscre- do grupo social ou o seu período histórico,
vem-se no lugar da mediação social de não existe um povo sem relatos. As varia-
muitas sociedades, transportando para as ções que se interpõem dizem respeito a
histórias míticas seres comuns e ideais, ter- perfil, características e configurações das
ríveis, monstruosos e bondosos, marcados narrativas, uma vez definida a sua intrínseca
sempre por enredos que contêm projetos e relação com o quotidiano e práticas sociais.
angústias sociais. Aníbal Ford argumenta Antes, porém, torna-se necessário re-
em Navegações que as sociedades em crise fletir sobre a observação de Ford, a partir
são mais “textualizadas” do que “gramati- dos estudos empreendidos por Mieke Bal2 ,
calizadas”, caindo sempre por terra as quanto ao fato de que a noção de narrativa
grandes classificações para se tornarem encontra-se visceralmente associada à
mais corporais e narrativas. Exemplifica questão temporal, ao tempo que avança e
isto a partir de um registro da cultura ma- que transcorre. A potencialização desse as-

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pecto possivelmente constitui o diferencial A narrativa como estrutura
maior entre as narrativas tradicionais e
aquelas produzidas pela atualidade e cer- A busca pela definição do padrão narrativo
tamente constituirá a marca maior na confi- atual necessariamente deve passar por uma
guração da narrativa jornalística. pesquisa em torno do que a constitui. Sen-
A estreita vinculação com o tempo, se do assim, impõe-se como prerrogativa o
por um lado define a existência da narrati- conhecimento da estrutura narrativa, recor-
va, por outro, na medida em que se priori- dando que os conteúdos da comunicação
za fortemente este aspecto (um dos baluar- são organizados segundo duas grandes
tes da modernidade), certamente cria uma modalidades. Ou seja, podem ser discursos,
nova estrutura narrativa. A valorização da que são descrições de um conteúdo mais
velocidade na sociedade moderna é res- ou menos abstrato, mais ou menos sistemá-
ponsável pela vigência de uma ordem soci- tico, mais ou menos organizado, mas de-
al calcada na recusa do ócio, do tempo li- senvolvido de uma maneira não narrativa e
vre, que deve ser imediata e totalmente sem personagens. Ou podem ser estórias,
preenchido. que são narrações nas quais os fatos são
Neste sentido, cabe a investigação em organizados segundo uma ordem cronoló-
torno do perfil que as estruturas narrativas gica ou causal, e atribuídos a personagens.
atuais possam assumir, principalmente Entretanto, é importante considerar que
considerando-se que, além da valorização este formato deve ser expandido, tomando-
do aspecto temporal (com uma aceleração se outras variáveis. Apesar de se alterna-
das partes da “história”), também se passa rem as terminologias, é possível contrapor
a registrar uma indisponibilidade – natural os dois pólos, como sendo um o fabulativo –
nas sociedades tradicionais – para a audi- que são as histórias completamente inven-
ção ou leitura dos relatos. Assim, a acele- tadas, próprias da dimensão narrativa – e o
ração temporal torna-se a maior e mais outro, o demonstrativo, que seria a “realida-
influente característica da narrativa na de concreta”, não-narrativa. De uma ma-
atualidade. neira geral, todas as comunicações podem
A pesquisa do jornalismo como a ser classificadas entre esses dois pólos.
grande narrativa da atualidade impõe-se Outra caracteristica necessária quando
como uma hipótese que insere a compreen- se percorre o caminho da definição da es-
são de outras variáveis, a exemplo do for- trutura narrativa é a distinção entre dimen-
mato jornalístico nos dias atuais, suas são factual – aquilo tido como consensual-
questões mais prementes e, como não po- mente verdadeiro – da discursiva – que é
deria deixar de ser, a influência das novas modo de contar. Porém, cada evento de co-
tecnologias na sua produção. Desdobram- municação apresenta também um entrela-
se duas certezas metodológicas e desafia- çamento entre discursivo e factual, ou seja,
doras, sendo a primeira a tentativa de confi- demonstra alguma coisa em que uma par-
guração da narrativa da atualidade/jorna- te provém dos fatos, e a outra das exigên-
lística e a segunda a de tentar programar, cias da comunicação. Violette Morin, em a
como projeto, uma narrativa efetivamente Retórica da Ambivalencia, distingue quatro
inclusiva e adequada à sociedade do tercei- possibilidades3 :
ro milênio.
Uma narrativa jornalística que não 1. O factual depende do discursivo – as his-
tente conflitar-se com os dogmas da profis- tórias são reconstruídas a partir da sua co-
são e sua produção na atualidade, mas municação e por isto parecem conclusivas,
que, colocando-se para além dele, possa, a racionais, asseguradoras. Este é o modo
partir do seu vigor interpretativo, ser ca- que se usa para contar uma investigação
paz de gerar novos formatos. policial, uma descoberta científica, ou ain-

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da um livro de memórias. cos, que descrevem uma ação, e motivos di-
2. O factual é diferente do discursivo – nâmicos, que representam uma ação capaz
existe uma distância notável entre o evento de modificar a situação dada.
e o discurso que se fala. É o caso das notíci- A estrutura cronológico-causal (domi-
as televisivas ilustradas por imagens do re- nante no conto e não no discurso) constitui
pertório, ou do modo pelo qual um tipo de a fábula de uma narração. Ela pode funcio-
filme apresenta uma situação de aparência nar com uma determinação cronológica, so-
normal, mas que assume um significado bre a qual incidem as ações do conto, e por
importantíssimo naquele contexto narrati- esta razão compreende somente os motivos
vo – uma modalidade particularmente viva ligados. Por outro lado, o enredo – o plano
e mobilizadora da comunicação. de desenvolvimento da obra – é diferente
3. O factual fica separado do discursivo – da fábula. Provavelmente ele é mais im-
existe contradição entre os dois, a comici- portante que a fábula, já que é o objeto
dade nasce freqüentemente deste efeito. mesmo da comunicação narrativa. Para
4. O factual é complementar ao discursivo – compreendê-lo integralmente é necessário
os eventos são apresentados aqui como em entender o que constitui a fábula: não era
curso, porém, ao mesmo tempo, possuem outro o motivo pelo qual os formalistas de-
uma lógica, um início e um final. É o dis- nominavam enredo como siuzet ou seja, o
curso funcional, o regime normal utilizado modo pelo qual a fábula é contada – seus
pela maioria dos meios de comunicação. saltos, antecipações, atrasos, flash backs.
Dentre as muitas teorias e proposições,
São muitas as teorias que buscam con- destaca-se a formulada por Umberto Eco,
ceituar a estrutura narrativa, principalmen- que oferece um esquema segundo o qual
te aquelas dos conhecidos “formalistas rus- cada texto narrativo – cujo conteúdo é com-
sos”, autores como Sklovskij e Tomase- posto por fábula e enredo – deve realizar-
vskij, dos quais parte a moderna teoria do se como uma expressão discursiva5.
conto. Em linhas gerais, um conto é uma Finalmente, o encontro entre os perso-
combinação de frases em torno de uma nagens ou grupos de personagens é conhe-
idéia comum, tida como tema. Uma signifi- cido por intriga, que não se deve confundir
cativa contribuição neste sentido foi a de com enredo. Freqüentemente, a situação
Greimas, com a sua Semântica Estrutural, inicial e final são estáticas, porém a primei-
em 1966, quando a idéia de tema fica mais ra é caracterizada pela presença de uma in-
precisa ao se inserir a noção de isotopia, isto triga complexa, com elementos potencial-
é “um conjunto de categorias semânticas mente instáveis, enquanto aquela final é
redundantes que tornam possível a leitura mais simples e sólida. Entre as duas situa-
uniforme de uma estória” 4 . Num texto, ções estáticas, a intriga desenvolve-se
pode-se encontrar também mais de uma numa série de peripécias dos personagens.
isotopia, capaz de indicar outros percursos Este é um aspecto da narratividade que se
de leitura possíveis; neste caso, fica-se di- apresenta de uma maneira quase universal.
ante de uma ambigüidade textual.
No que se refere aos conteúdos, o
tema pode ser analisado em uma série de Jornalismo como narrativa da atuali-
elementos menores, os motivos, unidos por dade
uma relação que pode ser cronológico-cau-
sal. Estes podem ser subdivididos ainda A tentativa de entender a estrutura da pro-
como motivos ligados, necessários para o dução jornalística a partir da teoria da nar-
prosseguimento da ação; motivos livres, uma rativa, tentando compor uma narratologia
vez que podem ser omitidos sem prejuízos jornalística, tem sido implementada por al-
para a ação geral; e ainda os motivos estáti- guns pesquisadores. Freqüentemente, a

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discussão trafega nos eixos da análise de preensiva, diferentemente daquela de or-
conteúdo e da forma discursiva, em especi- dem mais estrutural e cognitiva. Impercep-
al da investigação calcada nas teorias textu- tível para uma grande maioria de consumi-
ais (dentre elas a análise de discurso). dores, ela é negada com variável veemên-
Aqui, entretanto, a preocupação central cia pelos seus produtores e parece aterrori-
está direcionada inicialmente para a confir- zadora aos olhos de uma diminuta minoria.
mação de que o jornalismo constitui a gran- O que aqui estamos pretendendo é,
de narrativa da atualidade. Por grande nar- sobretudo, contemplar a pressuposição de
rativa, pretende-se entender uma narrativa que por si, pela sua natureza, o jornalismo
coesa, monolítica, nos moldes das narrati- é a narrativa da atualidade, e sua estrutura
vas tradicionais, principalmente no que narrativa está dada no seu próprio fazer, na
tange à sua influência e sintonia com a vida sua própria existência. O jornalismo é nar-
comum da sociedade, ou seja, sobre tudo rativa por si mesmo. Esta é a hipótese que
em seu caráter paradigmático. se pretende demonstrar tomando como me-
Este é um patamar singular para a in- todologia os instrumentos da prática jorna-
clusão da narrativa na atualidade, princi- lística, sejam pauta, apuração, produção. É
palmente após Lyotard ter sustentado (em na seqüencialidade da sua produção que a
1979, sob o título A Condição Pós Moderna) narrativa se apresenta e existe.
que uma das características da pós-moder- Estas considerações se fazem a partir
nidade seria exatamente o fim das grandes da análise de algumas conclusões em torno
narrativas e a profusão de narrativas espar- do formato atual do jornalismo. Inicialmen-
sas e fragmentadas. Para ele6 , a função da te, é preciso considerar a redução do núme-
narrativa é a transmissão do conhecimento, ro de leitores. Isto porque continua crítica a
do saber, que nas sociedades tradicionais situação dos jornais diários, apesar de no
possui um significado bastante diferente ano de 2005 os jornais brasileiros terem co-
da atualidade, onde se colocam questões memorado um aumento de 4,1% na circula-
como as aliadas ao argumento da verdade, ção. A situação dos grandes jornais exige
da funcionalidade e instrumentalidade. uma reflexão sobre o futuro do jornalismo
Aqui não se pretende fazer juízo de valor impresso. Basta ver que os três grandes jor-
sobre o caráter fragmentário e diversificado nais do país (em vendagem e prestigio), O
das transmissões atuais, apenas reconhecer Globo, O Estado de São Paulo e a Folha de São
este perfil como parte do cenário de profusão Paulo vendiam juntos, em 2000, uma média
de falas, discursos, enunciados e enunciado- diária de 1,162 milhões de jornais e, em
res em que se desenvolve a cada dia, de ma- 2005, este número ficou em 813,7 mil.
neira inexorável, a convergência das mídias. Esta queda, que não se restringe ao
Por outro lado, conceber o jornalismo Brasil, tem produzido numerosas discus-
como pertencente ao rol das grandes narra- sões e talvez, dentre elas, a pergunta cen-
tivas não significa também valorar sua pro- tral deva se concentrar na necessidade atu-
dução e inserção social. O jornalismo é as- al de jornal impresso diário. Isto porque o
sim hipoteticamente reconhecido na medi- jornalismo on-line, que caminha lado a
da em que se consolida a vigência de um lado com o rádio-jornalismo, em termos de
cenário global e da profusão cada vez mai- suprimento de informação, tem cumprido
or das micro-narrativas (estas passam a vi- com razoável competência a tarefa da noti-
gorar em formas ainda a serem estudadas). cialidade. É inegável que na última década
Esse patamar consolida-se cada vez mais o jornalismo on-line tem se especializado,
diante da necessidade de ordenar os inú- produzindo, além do enorme fluxo infor-
meros dados e informações a serem dispo- mativo, espaços de interatividade entre os
nibilizadas diariamente. Esta é uma de leitores. As discussões realistas sobre o fu-
suas facetas, de maior acessibilidade com- turo do papel do jornalismo impresso não

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podem passar por cima deste lugar de in- formação e o fantasma da padronização
formação que o on-line assumiu, uma vez global. Em 1997, quando publiquei O Espí-
que a sua instantaneidade parece suprir as rito Comum, tentava retraçar a trajetória con-
demandas de informação curta e rápida, ceitual em torno da temática da comunida-
deixando para o jornalismo impresso a di- de para então recuperar a proposta da co-
mensão analítica e interpretativa. Desta ma- municação comunitária, não sem antes ave-
neira, possivelmente até mesmo o critério riguar os resquícios de sua existência na
industrial da circulação diária pode vir a sociedade. Descobri naquele momento que
ser discutido em favor de produções sema- muitas práticas estavam em curso, em es-
nais e com perfil destinado a um público pecial no continente europeu, embora for-
leitor que, já devidamente atendido pelo malmente desvinculadas, ao menos apa-
noticiário on-line, busca informações de es- rentemente, da noção de comunitarismo.
trutura e de maior apuração. Esta configu- Tal fato parecia explicável em função de
ração certamente pode continuar a gerar toda a experiência moderna da Europa em
produções calcadas em todos os dogmas e matéria de nacionalismos exacerbados, es-
máximas jornalísticos, como a objetividade, pecialmente o caso do nazi-fascismo. Na
verdade, imparcialidade, mas que certa- América Latina, também o ambiente era de
mente terão de ser mais inclusivas. Neste desalento, uma vez desmobilizadas as co-
aspecto, tendem a confluir para um perfil munidades eclesiais de base, responsáveis
comunitarista, já que o olhar sobre o outro em grande parte, juntamente com movimen-
é a prerrogativa maior. tos outros movimentos populares e de cunho
religioso, pela prática do comunitarismo.
Se por um lado identificavam-se res-
Narrativas inclusivas: o lugar do co- quícios da prática, por outro, no que tange
munitário à pesquisa, este era definitivamente um
tema a ser deixado de lado. Pelo menos era
Há exatamente 10 anos, a temática da co- o que parecia, mas aconteceu exatamente o
municação comunitária encontrava-se em- contrário: hoje, a questão do comunitaris-
poeirada e jogada no rol dos temas esque- mo e da comunicação comunitária despon-
cidos e superados. Alguns estudos haviam ta como uma das mais citadas em todo o
sido iniciados no país, principalmente a mundo e, de maneira bastante intensa, no
partir de professores e pesquisadores que Brasil. São vários os trabalhos que tratam
tiveram alguma relação mais intensa com diretamente da questão e um sem-número
estudos e práticas de comunicação desen- de outros que tangenciam a temática. A
volvidos na América Latina nas décadas de questão é que muito poucas vezes se con-
60 e 70. E eram muito poucos os que trata- segue um esforço metodológico propositi-
ram diretamente do tema, já que a questão vo, o que tem produzido um ambiente
do impacto da mídia e a discussão sobre as mais propício à elaboração de textos ensa-
teorias de Frankfurt estavam na ordem do ísticos, mas pouco esforço no sentido de se
dia. Pode-se citar, sem medo, Peruzzo, sistematizar o que afinal efetivamente cons-
Marques de Melo, Festa, Marcondes, Palá- titui uma comunicação comunitária. Isto é,
cios, Machado e Gonzaga Motta, como ex- algo reivindicado principalmente por estu-
poentes desse período. dantes, sequiosos de comprovação científi-
Entre o final dos anos 80 e os anos 90, ca, demonstração e sistematização catalo-
a temática caiu no mais profundo ostracis- gráfica. Talvez, superado o primeiro mo-
mo, certamente suplantada pela preocupa- mento – já que se passaram 10 anos – de
ção com o advento das novas tecnologias e investigação sobre sua pertinência temáti-
seu impacto nas populações, além da ques- ca, sobre suas potencialidades epistemoló-
tão premente da intensa circulação de in- gicas, tenha-se chegado ao momento do ne-

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cessário empenho demonstrativo, assim derando principalmente a necessidade de
como de definições. E este é exatamente o acoplar à visão local a existência dos de-
esforço que se pretende iniciar. mais lugares, dos centros de decisão, das
Inicialmente, é preciso definir os luga- particularidades de outros lugares do pla-
res da comunicação comunitária e da pro- neta. A proposta que se desenha para o for-
dução midiática. Isto porque não é possível mato desta cobertura, entretanto, está longe
imaginar que sejam capazes de se contra- do atual enfoque das editorias internacio-
por. Por este motivo, a proposta aqui é que nais ou mesmo nacionais. Os eventos e
se acentue a relação existente, em especial acontecimentos internacionais assumem
potencializando as facetas positivas dessa três possibilidades de enfoque: a primeira,
interrelação, que são para a grande mídia a interpretativa e contextualizada historica-
inegável proximidade com a existência mente, portanto distante de meros informes
concreta das populações, mais bem apreen- generalistas; a segunda, conectada com a
dida pelos veículos comunitários. Esta ca- realidade local e nacional, portanto ainda
racterística pode ser extremamente útil – e pautada pela historicização do aconteci-
já o tem sido – quando o propósito é seleci- mento; e finalmente, a terceira hipótese, a
onar pautas e assuntos que envolvam dire- das pílulas informativas, destinadas a su-
tamente a coletividade. plementar os informativos on-line.
Por outro lado, para os veículos co- O exterior desta caracterização dá
munitários, o acesso às técnicas de produ- margem a especulações sobre formas de
ção é um legado de incomensurável valor. cobertura para o jornalismo comunitário
Este seria o primeiro motivo para o escam- atual ou, como se começa a sugerir, para o
bo entre estas duas ordens, mas certamente próprio futuro do jornalismo, compreen-
muitas outras devem ser incentivadas e dendo que este futuro define-se como co-
executadas. O importante é a compreensão munitário. O traço mais marcante deste jor-
da necessária sinergia entre ambas. Não de- nalismo –– reiteramos –– é a sua estreita
vem constituir-se como forças contrárias, conexão com a realidade e interesses da co-
mas pólos opostos que dialogam entre si. letividade específica, perdendo completa-
O jornalismo comunitário insere-se, mente campo à mera espetacularização da
assim, na própria discussão sobre os desti- informação. Se um acontecimento possui
nos do jornalismo a partir da perspectiva interesse direto para uma coletividade, tor-
sugerida pelo sociólogo inglês Anthony Gid- na-se fato jornalístico e, para tanto, recebe o
dens7 de ser imprescindível para a atuali- tratamento que o caracterizará definitiva-
dade a busca de alternativas particulares mente como assunto pertinente e parte da
para cada questão e a necessária revisão agenda temática da coletividade, portanto,
abrangente das posturas até então adota- pauta do jornal impresso. Caso contrário,
das. Esta é, aliás, uma faceta da teoria que reúne-se ao caos dos fatos e notícias carac-
notabilizou a Terceira Via. Esta perspectiva teríscos do informativo on-line.
analítica abrangente e aplicada deve ser Nesta abordagem, o fundamental para
ainda analisada à luz da tendência atual de um jornalismo inclusivo ou o comunitário,
busca do local, do particular, sem a perda enquanto horizonte político-social do jor-
da visão macro. A proposta do pensamento nalismo, é que não se perca de vista o seu
mais específico tem se revelado uma ten- aspecto principal, ou seja, a capacidade de
dência cada vez mais marcante, especial- produzir novos e inclusivos olhares sobre
mente no ambiente em que se consolida a as coletividades, sobre o outro. Esta pers-
visão globalizada do mundo. pectiva instaura-se como decisória a partir
Neste contexto, o jornalismo voltado da proposição do filósofo pragmatista ame-
para o quotidiano de coletividades especí- ricano Richard Rorty no sentido da imple-
ficas encara uma nova perspectiva, consi- mentação de novas formas de narrativa, su-

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pondo que este expediente será capaz de 3 Morin, Viollete. in L’ attualità in TV, Torino, Italia, 19776
produzir um olhar mais detido sobre o ou-
tro. A perspectiva rortiana parte da com- 4 GREIMAS, A. Semântica Estrutural, 1966, p.53.
preensão de que a solidariedade impõe-se
como um sentimento-ação fundamental 5 ECO,U. Sei passegiate nei boschi narrativi, Milano,
para a coexistência no mundo globalizado. Bompiani, 1994, p.43
Como não é um sentimento inato no ser hu-
mano, define-se como algo a ser gestado.. 6 LYOTARD,J.F. 2002, P.45
A produção de narrativas inclusivas tem
como pressuposto que o conhecimento do 7 Jornal Folha de São Paulo, 05.03.2006, A-8.
quotidiano do outro é capaz de produzir
um reconhecimento de identidade entre os
indivíduos. A narrativa inclusiva deve ser Referências
estruturada a partir da presença de uma
apuração ampliada dos atores envolvidos. PAIVA, Raquel. O espírito comum – comunidade, mídia e globalismo.
Uma apuração que redunde numa redação Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
em que seja possível reconhecer o mínimo
de pré-juízos, pré-conceitos, pré-idéias, pa- PAIVA,R e Sodré, Muniz Cidade dos artistas - cartografia da
ralelamente a uma abertura sobre o que se televisão e fama no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
apresenta como o outro e seu quotidiano. Mauad, 20004.
A partir desta atenta, cuidada e vigiada
produção, seria possível orquestrar as mais SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho – uma teoria da co-
diversificadas falas e opiniões sobre os fa- municação linear e em rede. Petrópolis, Vozes: 2000.
tos em foco.
A narrativa jornalística trafega, então, ESPÓSITO, Roberto. Communitas- origine e destino della
do eixo meramente informativo ou espeta- comunitá, Torino: Einaudi, 1999.
cular para o da composição de discursos
ancorados em realidades quotidianas, obje- ___. Immunitas .Torino: Einaudi, 1998.
tivando uma existência mais integrada en-
tre os indivíduos e o seu real histórico. VATTIMO, Gianni Etica dell’interpretazione. Torino: Rosemberg
Este formato de visibilidade altera de & Selier, 1991.
modo profundo a composição da produção
jornalística em seus mínimos detalhes, da RORTY, Richard e Vattimo, Gianni. Il futuro della religione –
titulação à fotografia, passando pela pro- solidarietá, caritá e ironia. Milano: Garganzi, 2005.
gramação visual, redação e apuração. O
próprio conceito do que constitui uma notí- ___. Pragmatismo e política.. São Paulo: Martins, 2005.
cia ou do que deve ser noticiado tem seu
eixo central reconfigurado. E esta nova pos- DERRIDA, Jacques. L’ecriture et la différence. Paris: Seuil, 1967
sibilidade faz-se tão-somente a partir do lu-
gar, papel e objetivos claros e fundamenta-
dos do que seja o jornalismo na atualidade .

Notas

1 Ford.A. 1999, p. 51.

2 BAL, Mieke Teoria de la narrativa, Madrid, Catedra, 1998

70 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 30 • agosto 2006 • quadrimestral

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