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Capítulo I
Ela não chegou a suas mãos facilmente.
Aprendera a conhecer as curvas daquele corpo aos
poucos nas longas noites e dias roubados. Os
mínimos e os mais primorosos detalhes o
escravizaram assim que os conhecera com precisão:
a cavidade delicada aconchegada à base do pescoço,
a curva dos seios altos e firmes, a sombra de um
entalhe que se estirava das costelas até o umbigo. e
muito mais.
As mãos e os pés o fascinavam não menos que
as partes íntimas. As mãos eram longas e graciosas,
próprias para executar tarefas difíceis e precisas. Os
pés exibiam uma fragilidade ilusória. Quando a
inverteu, foi para estudar a linha forte e esbelta das
costas, desde a cintura até os quadris. As nádegas
eram redondas, firmes, um pouco musculosas, com
um par de covinhas gêmeas que o fizeram sorrir.
Não tentara dominá-la. Jamais cometeria o erro de
pensar tal coisa. A face feminina o desafiava, e
ainda não a conhecia totalmente. A boca era muito
inconstante para ser capturada, e os olhos
inspiravam segredos.
Isso não era o suficiente, a mulher que Atreus
segurava nas mãos, que esculpira com tanta
precisão a partir de um bloco de mármore rosa,
permanecera durante muito tempo sem um nome.
Mas agora possuía um, pensou, enquanto colocava a
estátua de volta na caixa forrada de veludo, feita
sob medida para acondicioná-la. Em breve, a caixa
seria guardada no último dos baús que seriam
retirados da sua cabina. Depois de uma quinzena no
mar, a viagem havia se tornado mais longa que o
habitual. Um vento forte se formara ao longo da
costa da Inglaterra, fazendo com que a velocidade
do navio mudasse, quando tinha entrado no Tâmisa.
Havia um cheiro estranho no ar, não desagradável,
mas uma lembrança constante de que sua terra
ficara mais de mil milhas atrás.
Parecia uma grande distância, porém ele já
viajara para mais longe, não neste mundo, mas na
passagem para o outro. Seis meses antes, estivera
muito perto de morrer, num ato de deslealdade e
violência. A lembrança desse fato ainda o
atormentava. Isso apenas fortaleceu uma resolução,
criando dentro dele certa impaciência. Queria que
aquela viagem chegasse ao fim, que seus propósitos
fossem alcançados. Só então poderia seguir na
direção que sabia que deveria tomar.
— Este é o último, Castor — disse, entregando a
pequena caixa de madeira ao criado que esperava
os baús.
— Ótimo. Parece que vamos aportar em breve.
— Então, suponho que seja por isso que já estou
vestido. — Ele olhou para baixo e conteve um
sorriso. — Estou vestido, não estou?
Castor o inspecionou cuidadosamente.
— Creio que sim, senhor. Isso significa que as
instruções de príncipe Alexandros foram cumpridas e
tudo parece estar no seu devido lugar.
Atreus acenou com a cabeça. Seu meio-irmão,
que era meio inglês, lhe fornecera artigos de
vestuário e orientação sobre como usá-los. Não
duvidava da habilidade de Alex em tal seara. A
quantidade e a variedade de peças o deixaram
atônito.
A proteção contra o frio húmido poderia ter sido
alcançada com mais simplicidade. Não era apenas
pelo fato de estar usando mais roupas do que algum
dia usara na vida, mas se sentia como um pacote
comicamente embrulhado para ser dado a uma
criança no dia do seu aniversário.
— Não está tão ruim, Atreus. No treinamento de
guerreiro, aprendemos a nos adaptar aos trajes da
zona rural circunvizinha para nos esconder. Talvez
se sinta mais à vontade se pensar dessa maneira.
— Talvez eu faça isso. Obrigado, Castor. Subirei
daqui a pouco.
Quando voltou a ficar só, Atreus permaneceu no
centro da cabina. Era um homem alto e com a força
flexível de um guerreiro, achava o movimento e a
ação mais naturais que a quietude. Mas havia vezes
em que.
Fechou os olhos e respirou lenta e
profundamente. A habilidade para se desligar das
distrações do mundo era uma prática antiga,
primeiro em criança, seguindo um caminho que só
ele podia ver. Depois quando jovem, sofrendo os
rigores do treinamento que Castor mencionara, e
por fim no auge da virilidade, quando descobriu que
a tranquilidade continha grandes presentes de
renovação e sabedoria.
— Volte.
A voz dela era macia, angustiada, indistinta pelas
lágrimas. Ele queria responder, mas não podia. O
corpo não atendia aos seus comandos, parecia ter
se tornado uma coisa à parte, vagueando numa
corrente que o levava cada vez para mais longe.
— Não nas deixe. — Ele fez uma carranca. Não
me deixe. Era isso o que ele queria que ela dissesse.
— Maldito Deilos! — Era tarde quando despertou
novamente, sentindo a dor que lhe dizia que ainda
estava vivo. Dor e a raiva dela contra o homem que
fizera aquilo com ele. Deilos. Nenhum amigo de
juventude, mas um companheiro traidor que
pretendia se tornar um assassino. Deilos, para quem
deveria haver justiça. Ela cheirava a madressilva
que tanto o agradava. Ele respirou fundo mais uma
vez e sentiu o.
O baque do navio batendo suavemente contra a
doca fê-lo voltar ao presente. O passado escapuliu,
mas as lembranças inevitáveis o envolviam.
Olhou uma última vez ao redor da cabina e saiu.
Do lado de fora, subiu os degraus estreitos que
levavam ao convés, onde os homens se
encontravam reunidos, também vestindo trajes
estranhos, porém mais simples e práticos. Olhos
atentos, mãos descansando nos cabos das espadas,
caminharam na sua direção. Nesse instante, ouviu-
se uma agitação de sons além do cais. Havia uma
banda tocando uma melodia que envolvia tambores
e o estrondo dos címbalos, mas que foi abafada pelo
rugido dos aplausos quando ele emergiu. Parou e
absorveu a força completa daquela onda de ex-
citação e prazer pela chegada de um homem que a
multidão não conhecia e pelo qual não podia se
interessar, salvo pela diversão que ele oferecia.
Entendia bem isso, mas, ainda assim, era
surpreendente.
E no meio da massa de pessoas anônimas, ele
captou algumas faces familiares localizadas à parte
da multidão. Seu espírito se iluminou.
— Atreus! Atreus!— Era Kassandra, sua meio-
irmã. Casada havia apenas alguns meses,
profundamente apaixonada pelo louro alto a seu
lado, luzia de felicidade. Os homens formavam uma
guarda de honra ao fundo da prancha. Caminhou
entre eles e foi envolvido no abraço apertado do
meio-irmão, Alex, que sorriu e bateu-lhe nas costas
com força o bastante para derrubar um homem mais
fraco.
— Muito bem — falou Alex. — Você aparece e
imediatamente é o homem mais popular de Londres.
Eu já devia esperar por isso.
— Também poderia ter me advertido — rebateu
Atreus. — Eu esperava uma tranquila recepção
familiar.
— Para o rei de Akora na sua primeira visita
oficial à Inglaterra? Nenhuma chance de isso
acontecer. Bem-vindo, irmão. É bom revê-lo.
— Também estou feliz por tê-lo aqui connosco,
Alex.
— Então, ele se virou e abriu os braços para a
jovem que pulava de felicidade. — Kassandra, minha
doce irmã.
— Joanna está arrasada por não poder estar aqui
— disse ela, abraçando-o. — É que Amélia estava
com um pouco de tosse, e ela não podia deixá-la.
Mas não se preocupe. Sua sobrinha já melhorou
muito.
— Temos instruções rígidas para levá-lo para
casa sem demora — informou Alex com o ar
tolerante de um homem bem casado. — Joanna está
impaciente para lhe dar as boas-vindas.
— Também estou ansioso para revê-la. — Atreus
olhou para o lado e cumprimentou o cunhado. — É
um prazer vê-lo — disse.
— O prazer é meu, Majestade — respondeu
Royce.
O rei de Akora, venerado pelas pessoas,
estremeceu.
— Majestade? Não é muito cedo para
formalidades? Esperava evitar isso um pouco mais.
Royce dirigiu o olhar para o homem alto e forte
que os fitava.
— Infelizmente não. O príncipe regente está
indisposto e envia seus pesares. Mas lorde Liverpool,
o primeiro-ministro, nos acompanhou.
Atreus olhou para o homem que havia assumido
o cargo vago quando seu antecessor fora
assassinado um ano antes. Liverpool parecia ser o
que a reputação lhe exigia ser: britânico sólido,
prosaico e dependente do trabalho. Para ser mais
preciso, um desses de que Atreus precisava. Para
que mesmo?
Impressionar, persuadir, entender? Sim, para
aquilo tudo e muito mais. Impulsionada pelas
máquinas novas e fábricas que se alastravam pelo
país, a Inglaterra estava conquistando riqueza e
poder sem precedentes na história. Em guerra
contra Napoleão e suas próprias colônias
americanas, enfrentando desafios em casa que
suscitavam revoluções sangrentas a outras nações,
a ilha seguia adiante, sem se deixar atingir por
qualquer interesse a não ser o próprio.
Tal determinação devia ser admirada, mas
também ser encarada com grande cautela. Atreus
acenou com a cabeça.
— Lorde Liverpool estava ansioso para conhecê-
lo.
O primeiro-ministro inclinou a cabeça num gesto
solene.
— Majestade, seja muito bem-vindo. Sua Alteza
o príncipe regente, e todos nós do governo
ansiávamos avidamente por sua chegada.
— Eu também. A despeito de todas as outras
considerações, vim ver o que tenta tantos membros
da minha família a fazer da Inglaterra a terra deles,
pelo menos por uma temporada a cada ano. Espero
que me perdoe, mas, aparentemente, não pode ser
o clima.
O primeiro-ministro riu. Atreus ficou contente.
Era sempre melhor manter os adversários,
potenciais ou não, desequilibrados, Poderia ter
continuado um pouco mais, se não fosse Kassandra
a distraí-lo.
— Lembra-se de Brianna, não é, Atreus? — A
irmã puxou uma jovem de vinte e poucos anos, alta,
esbelta, com cabelos avermelhados. Sua pele era
cremosa, perfeita e suave, e os olhos, verde-claros
com nuances dourados.
E lá devia estar o par de covinhas escondido sob
o reservado e elegante traje.
— Brianna, adorável como sempre! — Não vendo
nenhuma razão para não dizer, o rei de Akora
acrescentou: — Ficou muito tempo longe de nós.
Ela corou e baixou o olhar, mas um momento
depois, ergueu o rosto e o fitou.
— Também estou feliz em revê-lo, Majestade.
A voz era como ele se lembrava: baixa e suave,
porém com a firmeza de uma força verdadeira.
Estavam falando em inglês, mas Atreus recordou de
que quando ela falava em akoreano, seu sotaque
era encantador. E continuava cheirando a
madressilva.
— As carruagens estão ali — disse Alex, elevando
uma sobrancelha. Atreus percebeu e sorriu. O irmão
acharia seu comportamento estranho, mas muito
em breve entenderia. Num impulso, virou-se e
acenou para a multidão.
O reconhecimento incitou uma ligeira efusão que
só silenciou quando ele entrou na carruagem. Como
exigia o protocolo, o rei viajou ao lado de lorde
Liverpool. Alex os acompanhou, enquanto Royce
escoltou as senhoras numa segunda carruagem.
Misericordiosamente, o primeiro-ministro não se
sentia inclinado a conversar ou apenas não tinha
nada a dizer. Atreus estava livre para se concentrar
na cidade que de imediato o chocou e o
surpreendeu.
Se ela pudesse impedir as mãos de tremer, já
seria uma dádiva. Só isso, nada mais, apenas as
mãos. Precisava ser capaz de conseguir.
Sentada na carruagem em frente a Royce e
Kassandra, Brianna tentou aparentar calma. Ele
estava ali. Bem, claro que estava. Sabia havia
meses que Atreus viria. Tudo fora organizado. O rei
de Akora, o governante escolhido pelo povo, faria
uma visita ao tribunal real do príncipe regente. Os
líderes se encontrariam para fins de compreensão
mútua e amizade. As dificuldades entre os reinos,
surgidas pelas tentativas de alguns membros da
Inglaterra provocarem uma invasão de Akora no ano
anterior, seriam amenizadas.
Mas agora Atreus se encontrava ali, e as mãos
dela tremiam.
Apertou-as firmemente, ao mesmo tempo em
que sua mente girava pelo impacto da presença do
rei. A última vez em que o vira, ele ainda estava se
recuperando do ataque que quase o tinha levado à
morte. Mesmo debilitado, destituído das suas forças,
ainda a intimidava. Claro que Atreus desconhecia tal
fato. Não podia ter consciência daquilo. Ou podia? A
simples possibilidade a deixou tonta.
— Brianna. você se sente bem? — Kassandra a
fitou preocupada. — Está tão pálida!
— Estou bem. Não há razão para não estar.
— Atreus parece muito bem, não acha? — Royce
observou com um leve sorriso.
— Sim — Kassandra concordou. — Para meu
alívio. Quando lembro de quão perto ele esteve.
— Não pense nisso. — Royce, carinhoso,
envolveu a mão da esposa com a sua. — Isso tudo
ficou no passado. Relembrar essas coisas não faz
bem para você nem para o nosso bebê.
Kassandra retribuiu o sorriso. Estava nos
primeiros meses de gravidez e extremamente feliz.
— Sei que esta visita tem um propósito muito
sério, mas espero que Atreus disponha de algum
tempo para desfrutar sua estadia aqui — disse ela.
— Ele tem tão pouca oportunidade de fazer algo,
além de trabalhar. Às vezes penso que ele preferia
levar um tipo de vida diferente.
— Atreus não precisava se tornar rei — Brianna
declarou num tom tranquilo. — Submeteu-se à
seleção por livre e espontânea vontade.
— Bem, isso é verdade. Mas acho que meu irmão
não tinha escolha. Sabia que seria chamado.
Atreus saberia? perguntou-se Brianna. Talvez de
alguma maneira, mas era cética quanto ao
misterioso processo pelo qual o governante de Akora
havia sido escolhido. Permanecia oculto em lendas e
mitos, envolto em segredos e sussurros. Muito
poder estava envolvido: o controle quase total sobre
as vidas e destinos de todos os akoreanos. Contudo,
quase ninguém sabia algo a respeito da seleção.
— Temos que fazê-lo empregar um pouco de
tempo para si mesmo, enquanto estiver aqui —
anunciou Kassandra. — Mas será muito difícil.
Joanna e eu desistimos de contar os convites, que
continuam chegando aos montes. A recepção na
Carlton House é amanhã à noite, e depois vem um
dilúvio de compromissos. Brianna, seu vestido para
o evento de amanhã é magnífico. Madame Duprès
se excedeu.
Brianna estremeceu. Era extremamente grata a
ambos os casais por tornarem possível sua estadia
na Inglaterra. Apesar de ter nascido inglesa,
considerava-se uma akoreana até ter a chance de
vir visitar sua terra natal.
— Madame Duprès é uma tirana. Mas quando se
trata de manusear seda e cetim, a mulher é um
gênio.
— É verdade que você a espetou com um dos
seus próprios alfinetes? — perguntou Kassandra.
Brianna assumiu um olhar de absoluta inocência.
— Terá de perguntar ao alfinete.
Royce riu, e ela notou que ele a fitava com
atenção. O inglês não deixava passar nada. Royce e
Alex eram ambos grandes e hábeis e se moviam
rápida e silenciosamente, alcançando suas metas
com pouca discussão.
E então havia Atreus.
O rei, governante do seu povo e, embora Brianna
detestasse admitir tal coisa, dela também. Devia
pensar nele de outra forma, não importando os
anseios do seu coração traiçoeiro. Os três homens
pareciam irmãos. Assemelhavam-se em tamanho e
força. Na verdade, Atreus e Alex eram meios-
irmãos, partilhando como mãe uma princesa
akoreana. Mas Atreus era akoreano e herdeiro da
família que traçara sua herança havia mais de três
mil anos. E se Brianna acreditasse nas lendas, ele
seria bem mais que isso. Estava unido à terra, ao
mar e ao ar de Akora de algum modo que ia além da
compreensão dos meros mortais.
Não era de admirar que sua palavra fosse
considerada lei, e seu mais leve capricho, satisfeito
com reverência.
Naquele instante, as carruagens ultrapassaram
os portões que guardavam a graciosa residência
ocupada por Alex, Kassandra e ela. E enquanto
Atreus permanecesse ali, seria sua residência
também. Em reconhecimento a tal fato, a bandeira
real de Akora tremulava ao sabor da brisa sobre os
largos degraus de mármore.
Ao descer da carruagem, Brianna ergueu o olhar
e contemplou o tecido carmesim brasonado com o
símbolo do touro dourado da casa real. Tinha visto
aquela bandeira diariamente por boa parte da sua
vida, desde que fora trazida pela tempestade, uma
criança náufraga e órfã, até a costa lendária de
Akora. O reino escondido além das Colunas de
Hércules, onde os guerreiros regiam, e as mulheres
serviam. Custara a considerar Akora sua casa, mas
nos últimos tempos não tinha tanta certeza. Era de
fato uma akoreana. ou inglesa? Ou ambas? Ou
nenhuma das duas?
Os próximos dias e semanas poderiam lhe trazer
a reposta.
— Um bom começo, não acha? — perguntou Alex
depois que a porta da sala de estar se fechou atrás
de lorde Liverpool. O primeiro-ministro demorara
uns vinte minutos antes de partir. Juntamente com
os gracejos habituais, levara com ele uma
declaração clara da vontade de Atreus. Como uma
nação soberana e independente, Akora daria boas-
vindas às relações diplomáticas com a Grã-
Bretanha. Também, os akoreanos defenderiam suas
águas, terras e navios, onde quer que pudessem
navegar. Nenhuma interferência da Grã-Bretanha ou
de qualquer outro país seria tolerada. Duvidar disso
seria se defrontar com o poder dos lendários
guerreiros de Akora, conhecidos por serem os mais
ferozes do mundo.
— Bastante — concordou Atreus. — Liverpool
tem tanta falta de imaginação quanto parece?
— Sim. Levará todas as suas palavras ao príncipe
regente, mas não espere que ele comunique o sabor
delas. Isso você terá de fazer.
— É o que pretendo. A noite de hoje será livre?
— Sim, só que poderá ser sua última
oportunidade de liberdade durante algum tempo.
Depois da recepção na Carlton House, haverá um
baile aqui na sua homenagem. Mas além de tudo
isso, a sociedade clama pela sua presença.
— Aceite apenas os convites que julgar
necessários, porém não pretendo ficar disponível
demais. Acho melhor deixar algo do mistério sobre
Akora intato.
— Pensei que essa seria a sua preferência. A
sociedade tem sua utilidade, mas pode ser deveras
entediante.
Após acompanhar lorde Liverpool até lá fora,
Royce voltou a tempo de participar do restante da
conversa.
— Dentro de uma semana será Natal.
Combinamos passá-lo em Hawkforte, se isso for do
seu agrado.
— Será que o clima estará melhor em Hawkforte?
— perguntou Atreus com um sorriso.
— Receio que não — respondeu o cunhado com
igual humor. — Temos uma boa chance de ver neve.
— Neve? Eu gostaria de ver, é claro. E ouvi falar
muito bem de Hawkforte. Terei prazer em ir,
obrigado.
Royce assentiu com a cabeça.
— Ótimo!
— Brianna também irá?
Alex e Royce trocaram olhares.
— Brianna? — repetiu Alex.
Atreus se aproximou um pouco mais da lareira.
Estava bastante acostumado ao desconforto físico,
após experimentá-lo com frequência durante o
rigoroso treinamento que fazia parte da educação de
todos os homens de Akora, mas aquele frio húmido
era novidade para ele.
— Espero que uma semana seja suficiente para
concluir meus negócios aqui em Londres —
comentou. — Terá de ser, porque não me sinto
inclinado a permanecer por mais tempo. Há muitos
assuntos em Akora a serem resolvidos.
Nenhum dos outros dois homens ousou
perguntar a que ele se referia. Sabiam muito bem
que a determinação de Atreus em modernizar o
Reino Fortificado enfrentava a oposição de dois
lados: os homens de Hélios, os Sunshine, que
desejavam mudanças maiores e mais rápidas, e os
seguidores do traidor Deilos, que se opunham a toda
e qualquer mudança e estavam dispostos até a
matar Atreus para impedir que isso acontecesse. O
pior de tudo era que havia rumores de que os dois
grupos, ou pelo menos alguns dos seus membros,
haviam juntado forças na tentativa de matá-lo, seis
meses antes. Mas a tentativa de Deilos e dos
homens de Hélios fracassara, face à recuperação de
Atreus, conferindo-lhes mais tempo para esfriar os
ânimos. Contudo, a confrontação de Akora com a
divergência, dentro da sua própria sociedade não
podia se prolongar por mais tempo.
— Depois do Natal, nós iremos de Hawkforte
diretamente para Akora — disse Atreus. — Diante do
olhar de surpresa de ambos os homens, ele
acrescentou: — Hawkforte fica na costa, não é?
— Claro — respondeu Royce. — Quando você diz
"nós iremos".
— Brianna e eu. Ela voltará a Akora comigo.
Houve um silêncio momentâneo antes de Alex se
manifestar:
— Ela não mencionou isso.
Atreus deu de ombros.
— Não é de admirar, Brianna não sabe de nada.
— Há alguma razão particular para levá-la de
volta? — indagou Royce. — As cartas que Brianna
trocou com a família indicam que eles sentem falta
dela, mas entendem o seu desejo de permanecer
aqui. Mas, se lhe pediram para levá-la.
— Não, não é isso. Está na hora de Brianna voltar
para casa. — Bem consciente da sensação que
estava a ponto de provocar, Atreus acrescentou: —
E está na hora de nos casarmos.
Alex e Royce o encararam surpresos. O inglês
falou primeiro:
— Não sabia que estava pretendendo se casar.
— Nem eu — completou Alex, olhando
atentamente para o irmão. — Não nos contou nada.
— E era necessário? Por certo, sempre foi do
conhecimento de todos que um dia eu me casaria.
— Sim, claro. Mas considerando a extraordinária
quantidade de mulheres encantadoras de Akora que
estão se esforçando para atraí-lo para o matrimônio,
e considerando também o fracasso delas em
conseguir. digamos que esta é uma notícia
surpreendente.
— Assustadora — acrescentou Royce. — Em
especial, porque a jovem em questão nem
desconfia.
— Atreus — começou Alex. — Brianna sabe que
pretende desposá-la, não é?
— Não consigo imaginar como. Nunca falamos
sobre isso.
Os dois homens se olharam.
— Nunca falaram sobre casamento? — inquiriu
Royce. — Mas algum relacionamento se desenvolveu
entre vocês dois quando ela ajudou a recuperá-lo do
ataque de Deilos?
— Não — respondeu Atreus. — Não se lembra
que Brianna deixou Akora para vir para cá, logo
depois de eu recuperar a consciência.
Um silêncio pesado reinou no recinto por vários
momentos.
— Ela é uma jovem adorável, mas não seria
conveniente vocês se conhecerem melhor antes de
pensar em casamento? — indagou Alex.
Atreus encolheu os ombros.
— Não há necessidade de pensar. Sei que
Brianna está destinada a ser minha esposa.
— Sabe? — repetiu Alex, lentamente e olhou
mais de perto para o irmão. — Como pode saber?
Atreus hesitou antes de responder. Não
costumava falar sobre o evento central da sua vida,
aquele que o havia transformado do homem feliz no
governante do seu povo. Entretanto, Alex e Royce
eram duas das pessoas em que mais confiava, desse
modo devia-lhes honestidade.
Na quietude da graciosa sala da casa de Londres,
Atreus invocou as lembranças de um ritual antigo
num litoral distante.
— Quando passei pelo processo de seleção para
me tornar rei, muito me foi revelado. Entre outras
coisas, vi a mulher que agora sei que é Brianna e
soube que ela seria minha esposa.
Tão raramente se falava a respeito do processo
que a mera menção dessa atividade surpreendeu
Royce e Alex.
— Você não tem nenhuma dúvida sobre o que
viu? — questionou Alex.
— Não. Se não me casar com Brianna, falharei no
meu dever para com Akora. Naturalmente, não
posso permitir que isso aconteça.
— Você citou a mulher que agora você sabe que
é Brianna — disse Royce. — Não sabia quem ela é,
então?
— Vi sua face, seu vulto. — Atreus não estava
disposto a revelar como a vira tão completamente,
com toda a intimidade de um amante. — Mas não
sabia seu nome. Não tinha a menor ideia de quem
ela era, até alguns meses atrás, quando recuperei a
consciência depois do ataque e a descobri cuidando
de mim.
Alex respirou fundo e deixou o ar sair devagar.
— Deve ter sido uma surpresa.
— Para ser franco, houve tempos em que pensei
que jamais a encontraria.
Com a sinceridade de um irmão que também era
um amigo, Alex acrescentou:
— Brianna pode não partilhar da sua convicção.
— Foi o que pensei — argumentou Royce. — As
mulheres preferem ser atraídas por amor, não por
dever.
— Isso é só uma parte do problema — concordou
Alex. — Brianna não é uma akoreana de nascença.
Suas origens permanecem um mistério, mas tenho a
nítida impressão de que ela quer descobrir mais
sobre isso. Esse desejo influenciou sua decisão de
voltar à Inglaterra junto comigo e Joanna.
— Eu sabia que havia um certo risco envolvido
quando permiti que ela os acompanhasse — falou
Atreus. — Mas enquanto me recuperava do ataque,
não estava em condições de solucionar tais
assuntos. Felizmente, não é mais o caso.
— Então pretende. persuadi-la? — indagou
Royce.
— Sim — Atreus respondeu. — Já esperei tempo
demais e há questões em Akora que
##exigências/solicitar/requerer/desejar<<
demandam a minha atenção. De uma maneira ou de
outra, Brianna voltará comigo e nós nos casaremos.
E, é claro, vocês serão todos convidados para as
bodas.
— E se ela não concordar? — quis saber Royce.
— Isso seria lamentável — atalhou Atreus. — Mas
todos nós temos de cumprir o nosso dever.
Dizendo isso, aceitou o conhaque que o irmão lhe
oferecia e uniu-se ao brinde que se seguiu. O vento
de inverno soprou através da chaminé, erguendo
uma nuvem de faíscas. Atreus as contemplou,
notando que os lampejos de fogo que brilhavam
com delicadeza não se extinguiram facilmente.
Na verdade, quanto mais forte o vento soprava,
mais as chamas se avivavam.
Capítulo II
***
Ela estava preocupada. Atreus podia sentir. Se
fosse livre o suficiente, a teria seguido sem hesitar.
Não importava o que se interpunha entre ambos,
ainda se achava no direito de confortá-la e protegê-
la.
A questão é que não era um homem livre e
nunca o seria. O dever exigia que permanecesse ali
e escutasse as fanfarrices de Deilos.
O homem possuía o dom da oratória, tinha de
reconhecer, mas parte dele provinha da prática da
própria profissão. Quando fazia parte do conselho,
Deilos discursava com grande eloquência. No
momento, alegava ter sido ignorado, mas aquilo,
como todo o resto, não passava de uma mentira.
E Deilos fazia soar como verdadeiro. Para todos
que não estivessem diretamente envolvidos nos
eventos do ano anterior, o cenário era crível e talvez
persuasivo.
As pessoas o escutavam. Muitos franziam o
cenho e meneavam a cabeça em negativa, mas, de
qualquer forma, prestavam atenção.
— Paguei um preço alto pelas minhas ações —
continuava Deilos, erguendo o braço que terminava
num coto para que todos o vissem. — Por elas, fui
mutilado. Essa é a justiça dos Atreides, meus
amigos. Então que seja. Aceitei o preço que paguei
e, juro-lhes, pagaria um ainda maior, até mesma
com minha própria vida. Tudo o que peço e quero é
a segurança de Akora!
Deilos deixou cair o braço ao lado do corpo e
baixou a cabeça: a imagem fidedigna de um homem
leal a suas convicções e destemido diante de todas
as adversidades.
A multidão permaneceu em silêncio. Não houve
aplausos, embora Atreus pudesse identificar alguns
que se mostravam bastante inclinados a fazê-lo. A
grande maioria parecia simplesmente preocupada e
abismada.
Atreus se ergueu e todos os olhos se fixaram nele
com grande alívio. Não havia dúvidas de que
esperavam que ele refutasse as alegações de Deilos,
mas ficariam desapontados.
— A sessão está adiada até amanhã de manhã —
anunciou antes de se retirar.
Dentro do palácio, parou por um instante e se
forçou a respirar fundo. O simples esforço de
permanecer sentado e escutar Deilos levara seu
autocontrole ao limite. Era um artista, bem como
um rei, mas também era um guerreiro, e aquela
parte da sua natureza fora instada a acabar com
Deilos naquele momento. A tentação de traspassá-lo
com uma espada e vê-lo sangrar até a morte havia
sido quase irresistível. Royce dissera-lhe uma vez
que Deilos precisava ser eliminado, e ele não via
nada que refutasse tal afirmação, exceto que para o
bem de Akora, era necessário deixá-lo vivo, julgá-lo
e dar ao povo uma demonstração de justiça.
O mesmo povo que escutara Deilos.
Exasperado, Atreus meneou a cabeça. Devia
deixar de lado aqueles pensamentos e não se sentir
desapontado com pessoas, exigindo delas o que não
tinham para dar.
Acima de tudo, precisava conservar a fé. Havia
momentos em que a fé era como as águas geladas
de um ##ribeiro/rio<< córrego para uma garganta
seca: uma bênção bem-vinda que se recebia sem
questionamentos. Mas, noutras ocasiões, a clareza
da fé era mais elusiva, ainda que a sua presença
constante e inabalável fosse sentida.
Deilos incitava tal ressentimento sem pelo menos
perceber. Ou talvez percebesse, já que parecia
possuir um gênio diabólico. Sabia exatamente como
manusear as alavancas da dúvida e do medo a seu
favor.
Ainda assim, todas as suas tramas, desvairadas
conspirações e esforços extremos não o haviam
levado à gloria que buscava, mas ao precipício da
derrota. Seria bom, concluiu, não perder a
consciência daquilo.
Em breve a família o seguiria, ansiosa por
conversar, o que ele compreendia perfeitamente. No
entanto não estava com paciência para fazê-lo no
momento. Cruzou os corredores sombrios, deixando
que a calma e a frieza retornassem.
Nunca seria livre. Tal pensamento havia lhe
ocorrido antes, mas não com tanta nitidez.
Nunca. Não enquanto vivesse. E depois? Talvez
até mesmo após a morte. Jamais refletira tanto
sobre liberdade. O dever sempre fora sua principal
preocupação. No presente, porém, não conseguia
ocupar a mente com outra coisa além de Brianna.
Precisava vê-la. Diabos! Necessitava mais do que
isso, mas se contentaria com o que pudesse ter.
Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la.
Ela não estava nos seus aposentos. Por um
instante, considerou a possibilidade de Brianna ter
retornado às cavernas, mas a descartou de
imediato. Ela não procuraria o lugar onde havia sido
confrontada com tão desagradável descoberta.
Aonde poderia ter ido? Para a Inglaterra, pensou
Atreus. Então, recordou-se de que Brianna tinha
adorado alimentar as aves do jardim na casa de
Joanna e Alex, em Londres. Havia muitas aves por
toda Akora, mas no palácio existia um lugar em
particular onde elas costumavam pousar.
E foi para lá que se dirigiu. O pequeno jardim
abrigado do lado externo de uma das paredes do
palácio, com vista para o porto. Era aberto a
qualquer um que desejasse visitá-lo, mas apesar de
datar de mais de cem anos, poucos pareciam
prestar atenção a ele.
Brianna estava sentada num banco de pedra ao
lado de uma pequena fonte, cujas águas caíam
dentro de um laguinho repleto de peixes. Atreus
sorriu ao vê-la fazer o que imaginara.
Até mesmo os pombos, com seu arruinar
lamentoso, eram persuadidos a se juntar aos
agitados melros, tordos e aos gaviões de penugem
brilhante que eram nativos de Akora.
Brianna ergueu o olhar quando Atreus entrou o
jardim e ficou visivelmente tensa. Por um instante,
ele pensou que ela fosse se levantar e ir embora,
mas permaneceu sentada. Em seguida recomeçou a
alimentar as aves.
Ele se sentou ao seu lado, porém não tão perto
para tocá-la. Agora que a tinha encontrado, não
sabia ao certo o que dizer dentre as centenas de
possibilidades que pululavam na sua mente. Por fim,
optou por ir devagar e escolheu um assunto quase
impessoal.
— O que achou do julgamento?
Brianna ergueu o olhar para fitá-lo, parecendo
indecisa sobre o que lhe dizer. Ele a viu inspirar
fundo e expirar devagar.
— Como você disse que seria. Justo.
O fato de ela haver respondido e soado
concordante era uma vitória maior do que Atreus
esperara.
— E Deilos, o que pensa dele? — perguntou,
cauteloso.
— Eu me retirei antes que ele acabasse de falar,
mas ouvi o suficiente. É como uma cobra rastejando
na grama, inteligente, persuasivo e perigoso.
— Deilos tem o dom da oratória. Brianna franziu
o cenho.
— Ele mente bem. O que mais me impressionou
é que o povo o ouviu com atenção.
— É importante para eles ouvir o que Deilos tem
a dizer.
— Mesmo que estejam sendo manipulados por
ele?
— Ainda assim — replicou Atreus. — Embora eu
pense não existir essa possibilidade.
Uma sombra perpassou os olhos verdes.
— Como pode estar tão seguro quanto a isso?
— Quando um homem discursa bem como Deilos,
lança vários encantamentos. Durante um tempo, as
pessoas podem parecer sob o efeito deles. Mas ao
voltarem as suas rotinas, vêem tudo por um prisma
diferente. Deilos se apresentou diante de todos e
acusou minha família e a mim em particular de trair
Akora. Tentou fazer parecer que cedemos à
influência da Grã-Bretanha a ponto de permitir que
Akora fosse conquistada. O que é um absurdo. Além
disso, tentou passar o conceito de que é admissível
matar simplesmente por não sermos escutados.
Disse que tudo o que lhe importa é a segurança de
Akora, mas foi ele a violar as leis, ameaçar a
estabilidade e colocar a todos em risco.
— E acha que o povo vai chegar a essa conclusão
sozinho?
— Estou contando com isso.
— Deposita muita confiança em homens e
mulheres simplórios.
— Tenho de fazê-lo — retrucou Atreus. — Não há
outra forma de governar. Sem fé na bondade das
pessoas simples, eu teria de lançar mão da tirania
para forçá-las a agir como acho que deveriam. Esta
nunca foi a nossa filosofia.
Brianna atirou o último punhado de migalhas às
aves e esfregou as mãos para limpá-las.
— Deve saber que Deilos tem seguidores. Alguns
estão no julgamento.
Atreus anuiu.
— Deve haver um pouco mais agora. Aqueles que
não conseguiram enxergar através da névoa ilusória
do seu discurso.
— Eles podem ser perigosos.
— Está preocupada comigo?
— Eu. — Brianna o encarou. — Sim, estou
preocupada. Como não poderia estar? Eu me
preocuparia com qualquer pessoa que estivesse
numa situação como essa. Mas, Atreus, procure
entender. Viajei para a Inglaterra com o intuito de
descobrir a criança que fui. E isso não quer dizer que
estivesse rejeitando a pessoa que me tornei. Tenho
orgulho de ser akoreana. Ser lady Brianna Wilcox
não muda isso, mas descobrir a verdade sobre a
morte dos meus pais sim.
— Pensei que ficaria aliviada por saber que não
teve culpa. Foi por isso que lhe contei.
— Talvez algum dia me sinta aliviada, mas no
momento, tudo o que consigo enxergar é que vivi na
mentira por dezasseis anos. Aqueles que amei e em
quem confiei me parecem agora estranhos, como se
nunca os tivesse conhecido.
— Não percebe que o que fizemos foi para o seu
bem?
— Não percebe que mentir não é correto? —
contrapôs Brianna. — Que as feridas advindas da
mentira podem ser demasiado profundas para ser
curadas?
O sol rumava para o oeste. À luz dourada, os
reflexos ruivos dos cabelos de Brianna brilhavam.
Atreus se ergueu, baixando o olhar para fitar as
feições que esculpira com tanta exatidão quando ela
era para ele apenas uma visão. Embora queimasse
de desejo de tomá-la nos braços, foi apenas sua voz
profunda que a tocou.
— Não são as mentiras que a aborrecem, e sim a
verdade. O fato de o poder de Akora ser real e ter
de ser protegido até mesmo enquanto nos protege:
O fato de eu e você estarmos destinados a ser
marido e mulher. A evidência de que não há
nenhum espectro de culpa pairando sobre você para
assombrá-la com um medo injusto e infundado.
Brianna se levantou, esbelta e magnífica, com a
cabeça erguida num gesto de desafio.
— Sim. Vamos falar sobre verdade. A verdade é
que você deseja que eu esqueça como e porque
meus pais morreram. Que deixe tudo isso de lado e
sirva à mesma nação que lhes tirou a vida. Você
poderia fazer isso, Atreus? Se as nossas posições
estivessem trocadas e fossem os seus entes
queridos que tivessem morrido na mão dos
britânicos, conseguiria relevar tudo isso, amar e
servir a Grã-Bretanha?
Ele hesitou e, no silêncio que se seguiu, Brianna
percebeu a verdade que não podia ser negada.
— Não pode se imaginar fazendo isso — declarou
ela por fim. — Talvez nunca tenha pensado por esse
aspecto. Ainda assim, espera que eu o faça.
— Eu pedi que o fizesse — corrigiu Atreus,
estendendo a mão para lhe tocar a face, — Talvez
tenha pedido muito.
Afastou a mão e partiu, caminhando pelo jardim
iluminado pelo sol poente, de volta ao labirinto do
palácio, que o envolveu com seu impiedoso abraço.
Depois que o rei deixou o jardim, Brianna
permaneceu por mais algum tempo, sentada num
banco ao lado da fonte. A distância, ouvia o
gorgolejar da água e o cantar das aves noturnas,
mas o cenário bucólico lhe passava despercebido.
Sua mente voltava, inexorável, para Atreus. Pois,
enfim, era aquele o rumo constante dos seus
pensamentos desde que o vira sair do navio que o
tinha levado à Inglaterra.
Atreus havia falado sobre verdades e a desafiado
a aceitá-las, mas, ao mesmo tempo, afastara-se
como se a estivesse libertando.
A questão era: desejava ser libertada? Onde
existia o amor, a liberdade seria possível?
Amava-o verdadeiramente, não tinha dúvidas.
Ainda mais depois de tomar conhecimento da
enormidade que envolvia ser o escolhido. A essência
de Atreus estava interligada de forma intrínseca com
a nação à qual servia. Ambas nunca poderiam ser
separadas.
Seria ela capaz de amar Akora como o fizera
antes? Poderia viver aquele amor todos os dias pelo
resto da sua vida? A despeito da morte dos pais, das
mentiras e de toda a dor?
Enquanto se julgara responsável pela morte de
Delphine e Edward, tinha sido incapaz de sofrer por
eles de maneira apropriada. Mas, no presente,
podia, e a dor que sentia era aguda e recente.
Baixou a cabeça e observou as lágrimas caírem
sobre as próprias mãos.
No dia seguinte, Atreus proferiria a sentença.
Condenaria Deilos à morte? Era um guerreiro
soberbo. Não duvidava de que ele fosse capaz de
matar em batalha, porém mandar um homem para
a morte por execução era outra questão. Seria ele
capaz de fazer aquilo?
A morte assombrara a ambos. As que
aconteceram e as que estavam por vir. Não havia
nada que pudesse ser feito quanto ao passado, mas
o futuro não devia ser encarado sozinho.
Ergueu-se e enxugou as lágrimas. Enquanto os
últimos raios de luz do dia se extinguiam e as
estrelas reivindicavam o céu, ela deixou o jardim.
Atreus devia ter procurado a reclusão e, nesse
caso, por certo, estaria recolhido no seu estúdio. Por
mais que ele amasse a família, Brianna duvidava de
que estivesse disposto a desfrutar a companhia dela
naquele momento. Talvez tivesse procurado o
refúgio dos próprios aposentos, mas ela achava
pouco provável.
Dirigiu-se aos seus aposentos, vestiu uma túnica
limpa e escovou os cabelos. Jogou uma echarpe de
seda sobre a cabeça e saiu.
Demorou-se de propósito no caminho, andando
vagarosamente e passando pelas janelas altas e
arqueadas até alcançar o pátio. Lá, fez uma pausa
para inspirar o ar da noite que trazia consigo uma
miríade de aromas. Da madeira queimando nas
lareiras da cidade que se estendia baixo, das flores e
do jasmim que enchiam os arbustos encostados nas
paredes do palácio, e do mar.
Uma suave brisa fazia prazerosas carícias no seu
rosto. Brianna evitou as amplas salas de cerimonial
e optou por uma escada estreita, conhecida apenas
pelos residentes do palácio, fossem criados, guardas
ou os próprios Atreides. Os degraus levavam ao
pórtico que dava vista para o pátio, próximo à
escada para o telhado.
Pouco depois de chegar ao palácio, ela descobrira
aquele lugar. Era como um mundo à parte,
estendendo-se sobre os vários hectares do palácio,
plantado com seu próprio jardim, cruzado por
exclusivos caminhos e que, na maioria das vezes,
era o modo mais eficiente de ir de um lugar para
outro. Ostentava ainda um observatório, onde as
estrelas eram estudas havia séculos.
O telhado constituía a desculpa perfeita para ela
se deter um pouco mais, pôr os pensamentos em
ordem e reunir a coragem de que precisava.
No entanto, antes de seguir em frente, avistou
um homem cruzando o pátio. Parecia apressado e
um tanto furtivo. Quando ele saiu das sombras,
Brianna conseguiu divisar-lhe a face.
Polônio.
Vira-o pela última vez durante o julgamento. O
que estaria fazendo ali àquela hora? Curiosa e um
tanto preocupada, mudou de direção e resolveu
seguir o irmão.
Ele caminhava rapidamente, o que a obrigou a
apressar o passo para não perdê-lo de vista. Quando
virou uma das esquinas do palácio, Polônio
desapareceu por uma porta estreita. Brianna se
precipitou atrás dele, mas, ao transpor a porta, não
avistou sinal do irmão. Encontrava-se numa parte
da centenária construção que não conhecia. Um
longo corredor se estendia a sua frente e se
ramificava em várias passagens. Estacou e apurou
os ouvidos, porém não escutava nenhum som que
denunciasse o paradeiro de Polônio.
Enquanto caminhava ao longo do corredor, ela
espiava cada passagem sem lograr êxito. O caminho
foi dar num amplo aposento, com telhado de pedra
alto e arqueado. No centro, o solo sofria uma
depressão, onde havia bancos de pedra com anéis
de metal. Pareciam destinados a prender algo. ou
alguém? De repente, um murmúrio de vozes vindas
de algum lugar além do aposento de pedra fê-la
parar.
Ao se aproximar, distinguiu o som de vozes
masculinas, somadas a gemidos lancinantes de dor.
Caminhando um pouco mais, deparou com uma
fileira de celas ao longo de uma parede de pedra,
isoladas por grades. Entre elas, existia um posto de
guarda. Era lá que três guerreiros akoreanos
conversavam.
Naquele instante, um dos guardas correu na
direção oposta de onde Brianna se encontrava, e os
outros dois se viraram para ver o que estava
acontecendo nas celas. Ela os seguiu e logo desejou
não tê-lo feito. Cada cela abrigava um ocupante. De
pronto, reconheceu os homens que haviam sido
julgados no dia anterior. No extremo oposto,
encontrava-se Deilos. Todos pareciam bastante
doentes. Debatiam-se no chão, gemiam de dor e
vomitavam.
Deixando de lado a cautela, ela deu um passo à
frente. Não tinha nenhum dote de curandeira, mas
aprendera alguma coisa com tia Helena, e aqueles
homens pareciam ter sido envenenados.
— Lady — chamou um dos guardas ao notar sua
presença. — Não deveria estar aqui.
— Mandou buscar socorro?
— Sim, mas. — O guarda se calou quando
Brianna retirou a echarpe da cabeça, revelando sua
identidade. De imediato, ele se inclinou numa
reverência. Era conhecida com uma das que
cuidaram do rei e sua presença não devia ser
questionada. — Lady Brianna, sem dúvida sua ajuda
seria bem-vinda.
— Abra as portas das celas, por favor. — E
quando percebeu o guarda hesitar: — Não acredita
que um homem nessas condições oferecerá qualquer
resistência, não é?
O guarda pareceu concordar e se apressou em
obedecer.
— Quando isso começou? — indagou Brianna,
curvando-se sobre um dos prisioneiros.
O homem não apresentava qualquer sinal de
febre, embora revirasse os olhos e gemesse
incessantemente.
— Há poucos minutos, lady — informou um dos
guardas.
— Quando comeram pela última vez?
— Há meia hora. Eles receberam pão, assado de
cordeiro, queijo e vinho.
Brianna se ergueu e fitou os guardas.
— Vocês comeram a mesma coisa?
— Comeremos quando deixarmos o turno.
— Não há dúvida de que havia algo errado na
refeição que foi servida a eles.
Mal Brianna acabou de pronunciar a frase e o
terceiro guarda se aproximou, trazendo consigo tia
Helena. Uma mulher alta e de meia-idade, cujos
traços marcantes eram emoldurados por cabelos
grisalhos.
A tia dirigiu-se a ela.
— É bom que esteja aqui. Precisarei da sua
ajuda. — E voltando-se para os guardas: — Estes
homens têm de ser transferidos para a enfermaria.
— Lady, eles são prisioneiros — argumentou um
dos guardas.
— E doentes! — rebateu Helena de modo brusco.
— Portanto, têm direito a um tratamento apropriado
que eu não posso lhes dispensar aqui. — E olhando
ao redor: — Providencie para que todo este local
seja limpo depois que eles forem removidos. Pedirei
que me enviem macas.
Dentro de pouco tempo, vários ajudantes de
Helena apareceram trazendo as maças, onde os
cinco homens foram colocados e levados à ala
médica, escoltados pelos guardas.
No caminho, Brianna contou à tia que os
prisioneiros haviam passado mal depois de comer, o
que muito as admirava, pois não havia relatos de
intoxicação alimentar em Akora.
Ainda assim, os homens se encontravam
bastante doentes, vomitando e tremendo enquanto
eram acomodados nos leitos da ala médica do
palácio, uma série de salas destinadas ao uso de
Helena, cujos aposentos ficavam próximos dali.
No momento, as doze camas da ala médica se
encontravam vazias. No ânsia de auxiliar Helena no
tratamento dos doentes, Brianna não percebeu que
havia algo errado. Só quando ouviu uma pancada e,
ao virar-se, ver um dos guardas cair no chão, é que
se deu conta do que estava por vir.
No mesmo instante, outro guarda foi nocauteado.
Helena teve a presença de espírito de correr até um
dos armários onde guardava seus instrumentos
cirúrgicos, alguns bastante afiados. Mas antes que
conseguisse alcançá-lo, Polônio emergiu das
sombras e a dominou.
— Não faça isso! Não quero machucá-la.
— Você!
Helena estacou, estupefata, porém não mais do
que Brianna. Mesmo suspeitando de que o irmão
estivesse no caminho errado, não pôde evitar o
espanto.
— Polônio, o que está.
Ele não lhe respondeu, mas não era necessário. A
sala se encontrava repleta de homens,
aproximadamente uma dúzia. Alguns se incumbiam
dos guardas, enquanto outros ajudavam Deilos e os
demais prisioneiros.
— Rápido! — Ofegou Deilos, erguendo-se com
dificuldade e aceitando um copo de água que um
dos homens lhe oferecia.
— O que utilizou? — indagou Helena.
— Emetina. Do seu suprimento.
— Arriscou-se — retrucou a tia de Brianna num
tom calmo. — Algumas gotas a mais e poderia
morrer.
— Com a minha vida por um fio como se
encontra, não me preocupei:
E quanto à vida dos demais? perguntou-se
Brianna. Acreditara na culpa daqueles homens ao
ouvir as evidências relatadas no julgamento do dia
anterior. E a disposição que eles mostravam em
seguir Deilos provava que estava certa, mas não
pensara que Atreus os sentenciaria à morte.
— Funcionou — interveio Polônio. — Está livre.
— Ainda não — disse Deilos, empunhando a
espada que um dos homens lhe entregara. — Traga-
a connosco — ordenou, gesticulando em direção a
Brianna. — E mate o restante.
— Matar? — Polônio ficou tenso. Toda a
##arrogância/orgulho/vaidade/convencido<<
empáfia que exibia se extinguiu de pronto. — Deus!
Os guardas estão inconscientes, e minha tia.
Deilos se voltou para encará-lo.
— Sua tia dará o alarme em breve. Não temos
necessidade dela, mas esta aqui. — Apontou para
Brianna. — Poderá nos ser útil. — E ante a hesitação
de Polônio: — Ou você está comigo, ou contra mim.
É hora de decidir.
— Não! — gritou Brianna, enquanto um dos
homens a arrastava consigo. A última visão que teve
foi a de Polônio se aproximando da tia com a mão
no cabo da espada.
Brianna não podia crer no que estava
acontecendo. A tia. os outros guardas. sendo mortos
pelas mãos do seu irmão!
Ainda se debatendo, foi arrastada ao longo de
um corredor em direção à escada. Quando
conseguiu libertar um dos braços, arremessou o
punho fechado contra o queixo do seu algoz. O
homem xingou, irritado, e bateu com a cabeça de
Brianna contra a parede.
No mesmo instante a escuridão a
##engasgou/sufucou<<engolfou.
— Atreus?
Atreus desviou o olhar do bloco maciço de
quartzo rosa que Brianna lhe dera de presente e
deparou com Alex e Royce parados à porta do
estúdio.
Antes que eles lhe dissessem qualquer coisa,
sabia que algo grave havia acontecido.
— O que houve? — indagou, aproximando-se dos
dois. Ambos estavam armados de espadas, e Alex
empunhava a de Atreus, que a tomou, embainhou e
ouviu o que eles tinham a lhe dizer.
— Não temos certeza do que aconteceu —
começou Alex. — Mas os cinco prisioneiros
escaparam. Há vômito por todas as celas. Ao que
parece, foram levados à ala médica. Helena, seus
ajudantes e os guardas.
Atreus escutava, certo de que o pior ainda estava
por vir.
— Brianna não se encontra nos seus aposentos —
acrescentou Royce ao final do relato de Alex. — O
que pode não significar nada ou. muito.
— O que mais?
Os dois homens se entreolharam.
— O irmão de Brianna, Polônio, foi visto há pouco
percorrendo o corredor próximo ao calabouço. O que
também pode não significar nada.
— Para onde acham que ele irá? — indagou
Atreus, enquanto deixavam, apressados, o estúdio.
— Para Deimatos — sugeriu Royce. — A ilha que
pertence à família de Deilos há gerações. Polônio a
utilizou antes.
— Sem sucesso — rebateu Atreus. — Por duas
vezes. Além disso, ele sabe que era o primeiro lugar
onde iríamos procurá-lo. Deilos não se refugiará lá.
Alex assentiu.
— Então, para onde? — Alex indagou.
— A questão é: o que ele planea? — retrucou
Royce. — Apenas escapar? Voltar e lutar algum dia?
— Aquele homem é insano. Não há lógica nas
suas atitudes.
— Sempre há uma lógica — rebateu o rei. —
Mesmo nas profundezas da loucura. Uma lógica
distorcida, mas ainda assim, uma lógica.
— Então, temos de pensar como ele — sugeriu
Royce num tom calmo. — Prever o que Deilos
deseja.
Os três transpuseram as portas que levavam ao
pátio. Alex e Royce haviam dado ordens antes de
irem procurá-lo. O mais forte e bravo exército de
Akora os aguardava. Homens aos quais Atreus
confiaria a própria vida.
Quando os soldados o avistaram, gritaram em
ovação. As vozes se elevando acima do vento que
começava a soprar com inusitada violência.
***
Atreus movia-se com rapidez pela paisagem
queimada levando seus homens consigo. Atravessar
um lugar como aquele exigia cuidado, porém cautela
lhes custaria tempo, e a urgência o guiava. O
caminho fazia uma curva na margem da caverna
antes de se aprofundar nela, mas havia uma
passagem mais curta, cruzando o centro, onde o
que parecia ser solo íntegro poderia facilmente se
revelar uma crosta em ebulição.
— Vão por ali — ordenou aos homens. —
Encontro-os do outro lado.
— Rei. — Atreus nunca tinha de repetir uma
ordem, mas, em tais circunstâncias, não poderia
culpar o guarda.
— Vão em frente — ordenou num tom firme. Sem
esperar para ver o comando obedecido, saltou uma
rachadura e tomou o próprio rumo.
Havia dado algumas passadas, quando deu um
passo em falso e pisou no que julgava ser solo
íntegro, mas se enganou. O fogo lhe lambeu o
solado da sandália, que ele conseguiu erguer antes
de saltar. Mais adiante, uma língua de fogo lhe
chamuscou o braço, porém ele nem sequer notou.
Encontrava-se no meio do caminho dentro da cova,
quando avistou um reflexo branco contra o cenário
preto e vermelho.
Conseguiu alcançar o objeto, mas não sem antes
quase afundar no fogo por duas vezes. Levou a
echarpe à face e inspirou profundamente.
Brianna estava viva! Uma alegria imensa o
invadiu, mas apenas por instantes. Deilos estava
com ela. Com um xingamento baixo, Atreus
continuou em frente.
Minutos mais tarde, conseguiu avistá-los. Deilos
trazia consigo uma dúzia de homens, além de
Polônio, que se encontrava próximo a Brianna, a
qual aparentava estar pálida e zonza. Naquele
instante, Deilos chamou e Polônio levou a irmã para
onde ele estava.
— Idiota! — murmurou Atreus por entre os
dentes. Não tinha ideia do que se passava na mente
daquele jovem, mas não lhe importava. No
momento, nada tinha importância além de Brianna.
E de Deilos, que a tomara pela mão e se
aprofundava na caverna.
— O caminho mudou — anunciou Deilos. — O
solo aqui é inconstante. O que antes era seguro não
é mais — dizendo isso, empurrou Brianna. — Você,
mulher, vá na frente. Nós a seguiremos.
— Senhor. — começou Polônio.
— Não argumente comigo, garoto! O
sentimentalismo é uma fraqueza que um homem de
verdade não tolerará.
Brianna engoliu em seco o terror que sentia,
agarrando-se à esperança. Tudo o que podia divisar
era uma fina crosta e o fogo borbulhante. Tentar
seguir em frente era loucura. Mas se recusasse.
Polônio se postou entre ela e Deilos.
— Senhor, eu vou na frente.
— Você? Presumo que saiba lutar. Não estou
disposto a perdê-lo.
— Ela é minha irmã.
— O que eu lhe disse? Não fui claro o bastante? É
tolo o suficiente para se opor a mim?
— Como mulher, deve ser protegida.
— É mulher para servir e assim o fará!
Sem mais delongas, Deilos empurrou Brianna
para a frente. No mesmo instante, o fogo lambeu a
bainha da sua túnica. Ela soltou um grito e puxou o
tecido, mas não a tempo de evitar que ficasse
chamuscado.
— Vá! — ordenou Deilos. — Ou morrerá onde
está! A mão de Polônio voou para o cabo da espada.
— Senhor.
— Deilos!
Atreus se encontrava parado a uns doze metros
de distância, com a espada desembainhada. Estava
sozinho, cercado pelo fogo e fumaça como se tivesse
emergido das profundezas da terra. O coração de
Brianna pareceu perder uma batida, mas, em
seguida, o medo a assolou.
— Atreus, não!
Ele a ignorou e continuou a caminhar, através da
fumaça, em direção a eles.
— Solte-a, Deilos!
— Que tocante — retrucou Deilos, com sarcasmo.
— O que acabei de lhe falar sobre sentimentalismo,
Polônio? Veja um homem morrer por ele.
— Atreus, volte! — Brianna não permitiria que
Atreus fizesse aquilo. Akora precisava dele.
Recordava-se muito bem do desânimo que se
abatera sobre a população nos dias que se seguiram
ao atentado contra o rei.
Com um movimento instintivo, ela fez menção de
caminhar na direção de Atreus, mas Deilos a
segurou. O braço direito desfigurado, apertando-lhe
o pescoço. Com a mão esquerda segurava uma faca.
— Largue a espada ou ela morre!
— Não! — gritou Brianna, mas era tarde. Sem
hesitar em demonstrar qualquer sinal de dúvida,
Atreus abriu a mão e deixou a espada cair sobre o
chão e se postou diante de Deilos, desarmado e sem
a proteção de uma armadura.
O bandida soltou uma gargalhada de triunfo e
chamou por seus homens.
— Levem-no!
Todos correram, obedientes, porém antes que
pudessem alcançá-lo, os homens de Atreus surgiram
da escuridão empunhando espadas. Os de Deilos
eram em maior número, mas não tinham sequer um
milésimo da habilidade ou ferocidade dos guardas do
palácio.
Deilos rosnou de raiva e recuou, levando Brianna
consigo. Não havia caminho livre de fogo.
— Mande seus homens recuarem! — gritou ele.
— Para que possam vê-lo escondido atrás de
uma mulher? — indagou Atreus, que se aproximou,
desarmado e parecendo despreocupado. Não
arriscava sequer um olhar para onde pisava, mas o
chão sob seus pés se apresentava firme, e o fogo se
mantinha à margem. — Solte-a, Deilos!
— Para que ela viva e eu morra? Acho que não.
A faca resvalou no pescoço de Brianna, que
fechou os olhos, erguendo uma prece aos céus.
— Não!
Outra voz, que não a de Atreus, fez-se ouvir. E
de repente, Brianna foi arrancada das mãos de
Deilos, rolou de encontro ao fogo, conseguindo parar
apenas quando cravou os dedos no solo.
Deilos gritava outra vez. Polônio o segurava. O
irmão havia perdido a espada, mas parecia ter a
intenção de estrangular o homem que ele estava
disposto a seguir até as profundezas do inferno.
— Não vai matar minha irmã! — Polônio
intercalava as palavras com as batidas da cabeça de
Deilos contra o chão.
Brianna cambaleou, conseguindo se erguer,
enquanto Atreus saltava a distância que os separava
e quase chegou a tempo. Deilos empurrou Polônio,
conseguiu pegar a faca e a enfiou no corpo dele.
— Polônio! — exclamou Brianna. Todo o amor
que sentia pelo pobre e desencaminhado irmão
expresso no nome que chamava. Precipitou-se em
direção ao jovem, sem levar em conta quanto Deilos
estava próximo. Tudo o que tinha em mente era
estancar o sangue que já se espalhava pelo chão. A
faca estava cravada no peito de Polônio, acima do
abdômen. As mãos do rapaz agarravam o cabo.
Com expressão de incredulidade, ele baixou o olhar
para a grande mancha de sangue que se alastrava
pela túnica.
— Brianna.
Ela teria respondido. Feito qualquer coisa para
ajudá-lo, não obstante seus crimes. Porém, no ânsia
do desespero, subestimou Deilos, que se aproximou
com impressionante rapidez e fê-la refém outra vez.
— Para trás, Atreus! — ordenou. — Não preciso
de uma faca para matá-la. Vou jogá-la ao fogo antes
que você pense em salvá-la.
Atreus estacou, mas seus olhos não deixaram os
de Brianna. Seus homens lutavam com os que
haviam sobrado do lado de Deilos. Polônio
convulsionava aos pés da irmã. Uma labareda de
fogo saltou alto.
E se apagou contra o vento.
Ele estava chegando. Brianna sentia-o crescer
dentro dela e, pela primeira vez na sua vida, ficou
grata por aquilo. O dom que fora a maldição e a
vergonha da sua infância, o terror que a assombrara
chegava glorioso e triunfante para socorrê-la
naquele momento de desespero.
— O vento. — sussurrou ela, e o som da sua voz
reverberou pelas paredes da caverna, através das
passagens e pelas rachaduras no chão chamuscado.
O vento. O sopro da terra. As chamas se
curvavam diante dele, fagulhas se espalhando em
grandes tufãos que se elevavam como anjos ao céu.
— Brianna.
Ela viu Atreus pronunciar seu nome, mas não o
escutava. Havia apenas o vento a sua volta. Os
cabelos vermelhos eram como as chamas em si, se
agitando atrás dela. A túnica que trajava estava
colada ao seu corpo. Não conseguia respirar. Se
desse um passo, o vento a levaria.
— Brianna, desça! — Atreus falou na sua mente e
coração. O homem que ela amava com toda a força
da sua alma.
Estendeu a mão, ansiando tocá-lo pela última
vez.
— Desça!
O comando, nascido do amor e repleto de
confiança, atravessou a fenda do vento e penetrou
nela.
E então Brianna caiu, separada de Deilos, no
chão que a recebeu com o calor aconchegante de
uma mãe.
Atreus se moveu, voando como o vento, e atacou
Deilos, que lutava com a força de dez homens e
gritava como um louco. Rolaram no meio ao fogo e
à fumaça.
Atreus era de longe mais alto e forte, o que
parecia lhe dar vantagem. Mas Deilos, sempre
esperto, enfiou a mão por debaixo da túnica e
retirou um punhal.
— Morra — disse, sorrindo.
O punhal teria atingido Atreus diretamente no
coração se o vento não tivesse soprado ainda mais
forte, fazendo Deilos se desequilibrar e errar a
pontaria.
O punhal feriu o ombro de Atreus. Deilos recuou.
— Ao inferno com você!
— Você não pode vencer — declarou Atreus num
tom calmo. — Acabou, Deilos, aceite isso.
— E deixar que decida o meu destino? Acho que
não.
O assassino olhou para as labaredas atrás dele e,
em seguida, dirigiu o olhar aos seus homens que
morriam nas mãos dos guardas do palácio.
E então fitou Brianna.
— Que emocionante ele ter vindo salvá-la — ele
pronunciava as palavras dominado pela insanidade
causada pela proximidade da derrota. — O que o rei
lhe contou sobre a sua chegada a Akora,
estrangeira? — E soltando uma gargalhada histérica:
— Disse-lhe que estávamos lá no dia em que seus
pais morreram? — Mesmo no meio ao calor
sufocante, Brianna sentiu um frio lhe percorrer o
corpo. — O almirante francês foi um tolo — declarou
Deilos. — Buscava a glória, mas não tinha meios de
alcançá-la. Mas foi uma batalha honrada que muito
nos agradou.
— O que está dizendo? — indagou Brianna, sem
poder conter a pergunta.
— Eu e Atreus estávamos juntos no treinamento
de guerreiros. Fazíamos parte do mesmo
destacamento. Ele não lhe contou isso? Que
negligente da sua parte, Atreus! Talvez tenha sido a
modéstia que o calou. — E voltando-se para
Brianna: — Ele foi o herói do dia. Aclamado por
todos. Algum jovem, ainda em treinamento, algum
dia se provou tão capaz? Ou disparou tiros de
canhão com tanta precisão? É verdade que era o
neto do rei e talvez todos estivessem dispostos a ver
o melhor dele, mas devo admitir que Atreus
mereceu o louvor. no meio à batalha, quando o
vento se ergueu, o almirante francês teria tido a
chance de recuar, não agisse Atreus com tanta
habilidade. — Deilos sorriu, deleitando-se com o
horror visível na face de Brianna. — Ele matou seus
pais, doce menina. Foi pelas mãos de Atreus que
eles encontraram a morte. Ainda consegue ouvir os
gritos?
Sim, ela conseguia.
Deilos viu a resposta estampada no rosto
delicado. Inclinou a cabeça para trás e soltou uma
gargalhada fantasmagórica.
Ainda rindo, virou-se e se atirou no meio das
chamas.
FIM