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Brumas de Akora

Castle in the Mist


Josie Litton
Castelos na Bruma
Criada na fortaleza de Akora, as lembranças de
Brianna da sua vida antes da morte trágica dos pais
são obscuras e fugazes. Embora acolhida pela elite
de Akora, Brianna quer conhecer sua verdadeira
identidade, e a verdade sobre o pavor que ela tem
de ser culpada pela morte dos pais. No entanto,
enquanto a busca por respostas a leva até os confins
da Inglaterra, uma paixão arrebatadora, que ela não
sabia ser possível existir, poderá mantê-la em Akora
para sempre.
Forte e bonito, Atreus é um guerreiro poderoso,
cujo clã governa Akora há séculos. Um ritual secreto
o elegeu o rei do seu povo, e lhe revelou uma visão
da encantadora Brianna como a mulher com quem
ele deverá se casar. Temendo que ela nunca retorne
da sua jornada, Atreus iça velas para ir à sua
procura. Porém, um inimigo traiçoeiro está à
espreita, e em breve o corajoso casal terá de unir
seus corações e partilhar seus mais sombrios
segredos para salvar, não só a sua pátria, como o
amor intenso que começou a florescer entre ambos!
Prólogo
O mundo parecia envolto numa atmosfera de
sonho, quando uma figura solitária passou
despercebida na biblioteca da casa de Londres,
Brianna bateu a porta devagar e se certificou de que
estava fechada, antes de pegar a tocha para
acender um dos lampiões e, com sua luz,
esquadrinhou as estantes. Ao encontrar o que
buscava, retirou o livro e o colocou sobre uma mesa
próxima.
A capa era de couro marroquino, com o título em
relevo: A História de Essex. Brianna conhecia a
obra, que achara logo após sua chegada à Inglaterra
meses antes. Depois, havia acompanhado a tia para
ajudar no nascimento do filho de Alex e Joanna.
Agora estava de volta para o seu próprio bem. e por
causa do livro.
Lentamente, ela o abriu. Era um livro pesado e
grosso com reis, rainhas, batalhas e, com
frequência, remontava à época de Alfred, o Grande.
Contava muito sobre Hawkforte e a poderosa família
que o governava. Mas também falava sobre outros
lugares, incluindo o chamado Holyhood.
Havia uma pintura do solar de Holyhood, um
desenho de linhas simples que descrevia uma casa
graciosa. Brianna o examinou, enquanto fragmentos
de memória lhe vinham à mente.
Estivera naquela casa, em algum lugar perdido
no tempo, antes da terrível tempestade que levara a
vida dos seus pais, deixando-a órfã, sem nome,
atirada pelas ondas na costa de Akora.
Se fechasse os olhos e pensasse na casa, ouviria
o som distante de vozes chamando.
De repente, sentiu muito frio, mas o frio
enraizado no seu coração continha uma minúscula
faísca de luz. Seu espírito se apegou a isso, sentindo
a faísca crescer e o calor voltar a aquecê-la. Tinha
os braços apertados ao redor do peito, porém eles
pareciam estranhos, como se fossem os braços de
outra pessoa, mais fortes, tornando-a poderosa.
Naquele abraço havia proteção e muito mais,
entretanto na casa. A casa guardava um segredo, a
chave para desvendar um mistério que a apavorava
e ao mesmo tempo a tentava. Olhou o desenho mais
uma vez e sentiu dentro de si o peso da decisão.

Ele podia senti-la novamente, quase como


quando a sentira na estrada entre aquele mundo e o
outro. Era a mulher que flutuava no ar, chamando
seu nome, reduzindo a velocidade da sua jornada
em direção à morte e ao além.
Ele a reconhecera. Ela havia estado ao seu lado
antes, no fundo das cavernas durante o processo de
seleção, quando muito, lhe fora revelado. Fitara-a
apenas de relance, mas jamais a tinha esquecido.
Sim, conhecia, conhecia sua face e sua voz, seu
cheiro e seu toque, sabia como ela se sentia naquele
exato momento, quase como se a estivesse
abraçando.
Mas não sabia seu nome. Até que despertou e viu
o brilho prateado das suas lágrimas e a glória ígnea
dos seus cabelos.
Ela era sua. Disso tinha certeza. Mas ela não
sabia. não ainda.
No telhado do palácio, em baixo das estrelas, o
rei de Akora olhou em direção ao norte e viu com o
seu coração de guerreiro o prêmio que o aguardava.

Capítulo I
Ela não chegou a suas mãos facilmente.
Aprendera a conhecer as curvas daquele corpo aos
poucos nas longas noites e dias roubados. Os
mínimos e os mais primorosos detalhes o
escravizaram assim que os conhecera com precisão:
a cavidade delicada aconchegada à base do pescoço,
a curva dos seios altos e firmes, a sombra de um
entalhe que se estirava das costelas até o umbigo. e
muito mais.
As mãos e os pés o fascinavam não menos que
as partes íntimas. As mãos eram longas e graciosas,
próprias para executar tarefas difíceis e precisas. Os
pés exibiam uma fragilidade ilusória. Quando a
inverteu, foi para estudar a linha forte e esbelta das
costas, desde a cintura até os quadris. As nádegas
eram redondas, firmes, um pouco musculosas, com
um par de covinhas gêmeas que o fizeram sorrir.
Não tentara dominá-la. Jamais cometeria o erro de
pensar tal coisa. A face feminina o desafiava, e
ainda não a conhecia totalmente. A boca era muito
inconstante para ser capturada, e os olhos
inspiravam segredos.
Isso não era o suficiente, a mulher que Atreus
segurava nas mãos, que esculpira com tanta
precisão a partir de um bloco de mármore rosa,
permanecera durante muito tempo sem um nome.
Mas agora possuía um, pensou, enquanto colocava a
estátua de volta na caixa forrada de veludo, feita
sob medida para acondicioná-la. Em breve, a caixa
seria guardada no último dos baús que seriam
retirados da sua cabina. Depois de uma quinzena no
mar, a viagem havia se tornado mais longa que o
habitual. Um vento forte se formara ao longo da
costa da Inglaterra, fazendo com que a velocidade
do navio mudasse, quando tinha entrado no Tâmisa.
Havia um cheiro estranho no ar, não desagradável,
mas uma lembrança constante de que sua terra
ficara mais de mil milhas atrás.
Parecia uma grande distância, porém ele já
viajara para mais longe, não neste mundo, mas na
passagem para o outro. Seis meses antes, estivera
muito perto de morrer, num ato de deslealdade e
violência. A lembrança desse fato ainda o
atormentava. Isso apenas fortaleceu uma resolução,
criando dentro dele certa impaciência. Queria que
aquela viagem chegasse ao fim, que seus propósitos
fossem alcançados. Só então poderia seguir na
direção que sabia que deveria tomar.
— Este é o último, Castor — disse, entregando a
pequena caixa de madeira ao criado que esperava
os baús.
— Ótimo. Parece que vamos aportar em breve.
— Então, suponho que seja por isso que já estou
vestido. — Ele olhou para baixo e conteve um
sorriso. — Estou vestido, não estou?
Castor o inspecionou cuidadosamente.
— Creio que sim, senhor. Isso significa que as
instruções de príncipe Alexandros foram cumpridas e
tudo parece estar no seu devido lugar.
Atreus acenou com a cabeça. Seu meio-irmão,
que era meio inglês, lhe fornecera artigos de
vestuário e orientação sobre como usá-los. Não
duvidava da habilidade de Alex em tal seara. A
quantidade e a variedade de peças o deixaram
atônito.
A proteção contra o frio húmido poderia ter sido
alcançada com mais simplicidade. Não era apenas
pelo fato de estar usando mais roupas do que algum
dia usara na vida, mas se sentia como um pacote
comicamente embrulhado para ser dado a uma
criança no dia do seu aniversário.
— Não está tão ruim, Atreus. No treinamento de
guerreiro, aprendemos a nos adaptar aos trajes da
zona rural circunvizinha para nos esconder. Talvez
se sinta mais à vontade se pensar dessa maneira.
— Talvez eu faça isso. Obrigado, Castor. Subirei
daqui a pouco.
Quando voltou a ficar só, Atreus permaneceu no
centro da cabina. Era um homem alto e com a força
flexível de um guerreiro, achava o movimento e a
ação mais naturais que a quietude. Mas havia vezes
em que.
Fechou os olhos e respirou lenta e
profundamente. A habilidade para se desligar das
distrações do mundo era uma prática antiga,
primeiro em criança, seguindo um caminho que só
ele podia ver. Depois quando jovem, sofrendo os
rigores do treinamento que Castor mencionara, e
por fim no auge da virilidade, quando descobriu que
a tranquilidade continha grandes presentes de
renovação e sabedoria.
— Volte.
A voz dela era macia, angustiada, indistinta pelas
lágrimas. Ele queria responder, mas não podia. O
corpo não atendia aos seus comandos, parecia ter
se tornado uma coisa à parte, vagueando numa
corrente que o levava cada vez para mais longe.
— Não nas deixe. — Ele fez uma carranca. Não
me deixe. Era isso o que ele queria que ela dissesse.
— Maldito Deilos! — Era tarde quando despertou
novamente, sentindo a dor que lhe dizia que ainda
estava vivo. Dor e a raiva dela contra o homem que
fizera aquilo com ele. Deilos. Nenhum amigo de
juventude, mas um companheiro traidor que
pretendia se tornar um assassino. Deilos, para quem
deveria haver justiça. Ela cheirava a madressilva
que tanto o agradava. Ele respirou fundo mais uma
vez e sentiu o.
O baque do navio batendo suavemente contra a
doca fê-lo voltar ao presente. O passado escapuliu,
mas as lembranças inevitáveis o envolviam.
Olhou uma última vez ao redor da cabina e saiu.
Do lado de fora, subiu os degraus estreitos que
levavam ao convés, onde os homens se
encontravam reunidos, também vestindo trajes
estranhos, porém mais simples e práticos. Olhos
atentos, mãos descansando nos cabos das espadas,
caminharam na sua direção. Nesse instante, ouviu-
se uma agitação de sons além do cais. Havia uma
banda tocando uma melodia que envolvia tambores
e o estrondo dos címbalos, mas que foi abafada pelo
rugido dos aplausos quando ele emergiu. Parou e
absorveu a força completa daquela onda de ex-
citação e prazer pela chegada de um homem que a
multidão não conhecia e pelo qual não podia se
interessar, salvo pela diversão que ele oferecia.
Entendia bem isso, mas, ainda assim, era
surpreendente.
E no meio da massa de pessoas anônimas, ele
captou algumas faces familiares localizadas à parte
da multidão. Seu espírito se iluminou.
— Atreus! Atreus!— Era Kassandra, sua meio-
irmã. Casada havia apenas alguns meses,
profundamente apaixonada pelo louro alto a seu
lado, luzia de felicidade. Os homens formavam uma
guarda de honra ao fundo da prancha. Caminhou
entre eles e foi envolvido no abraço apertado do
meio-irmão, Alex, que sorriu e bateu-lhe nas costas
com força o bastante para derrubar um homem mais
fraco.
— Muito bem — falou Alex. — Você aparece e
imediatamente é o homem mais popular de Londres.
Eu já devia esperar por isso.
— Também poderia ter me advertido — rebateu
Atreus. — Eu esperava uma tranquila recepção
familiar.
— Para o rei de Akora na sua primeira visita
oficial à Inglaterra? Nenhuma chance de isso
acontecer. Bem-vindo, irmão. É bom revê-lo.
— Também estou feliz por tê-lo aqui connosco,
Alex.
— Então, ele se virou e abriu os braços para a
jovem que pulava de felicidade. — Kassandra, minha
doce irmã.
— Joanna está arrasada por não poder estar aqui
— disse ela, abraçando-o. — É que Amélia estava
com um pouco de tosse, e ela não podia deixá-la.
Mas não se preocupe. Sua sobrinha já melhorou
muito.
— Temos instruções rígidas para levá-lo para
casa sem demora — informou Alex com o ar
tolerante de um homem bem casado. — Joanna está
impaciente para lhe dar as boas-vindas.
— Também estou ansioso para revê-la. — Atreus
olhou para o lado e cumprimentou o cunhado. — É
um prazer vê-lo — disse.
— O prazer é meu, Majestade — respondeu
Royce.
O rei de Akora, venerado pelas pessoas,
estremeceu.
— Majestade? Não é muito cedo para
formalidades? Esperava evitar isso um pouco mais.
Royce dirigiu o olhar para o homem alto e forte
que os fitava.
— Infelizmente não. O príncipe regente está
indisposto e envia seus pesares. Mas lorde Liverpool,
o primeiro-ministro, nos acompanhou.
Atreus olhou para o homem que havia assumido
o cargo vago quando seu antecessor fora
assassinado um ano antes. Liverpool parecia ser o
que a reputação lhe exigia ser: britânico sólido,
prosaico e dependente do trabalho. Para ser mais
preciso, um desses de que Atreus precisava. Para
que mesmo?
Impressionar, persuadir, entender? Sim, para
aquilo tudo e muito mais. Impulsionada pelas
máquinas novas e fábricas que se alastravam pelo
país, a Inglaterra estava conquistando riqueza e
poder sem precedentes na história. Em guerra
contra Napoleão e suas próprias colônias
americanas, enfrentando desafios em casa que
suscitavam revoluções sangrentas a outras nações,
a ilha seguia adiante, sem se deixar atingir por
qualquer interesse a não ser o próprio.
Tal determinação devia ser admirada, mas
também ser encarada com grande cautela. Atreus
acenou com a cabeça.
— Lorde Liverpool estava ansioso para conhecê-
lo.
O primeiro-ministro inclinou a cabeça num gesto
solene.
— Majestade, seja muito bem-vindo. Sua Alteza
o príncipe regente, e todos nós do governo
ansiávamos avidamente por sua chegada.
— Eu também. A despeito de todas as outras
considerações, vim ver o que tenta tantos membros
da minha família a fazer da Inglaterra a terra deles,
pelo menos por uma temporada a cada ano. Espero
que me perdoe, mas, aparentemente, não pode ser
o clima.
O primeiro-ministro riu. Atreus ficou contente.
Era sempre melhor manter os adversários,
potenciais ou não, desequilibrados, Poderia ter
continuado um pouco mais, se não fosse Kassandra
a distraí-lo.
— Lembra-se de Brianna, não é, Atreus? — A
irmã puxou uma jovem de vinte e poucos anos, alta,
esbelta, com cabelos avermelhados. Sua pele era
cremosa, perfeita e suave, e os olhos, verde-claros
com nuances dourados.
E lá devia estar o par de covinhas escondido sob
o reservado e elegante traje.
— Brianna, adorável como sempre! — Não vendo
nenhuma razão para não dizer, o rei de Akora
acrescentou: — Ficou muito tempo longe de nós.
Ela corou e baixou o olhar, mas um momento
depois, ergueu o rosto e o fitou.
— Também estou feliz em revê-lo, Majestade.
A voz era como ele se lembrava: baixa e suave,
porém com a firmeza de uma força verdadeira.
Estavam falando em inglês, mas Atreus recordou de
que quando ela falava em akoreano, seu sotaque
era encantador. E continuava cheirando a
madressilva.
— As carruagens estão ali — disse Alex, elevando
uma sobrancelha. Atreus percebeu e sorriu. O irmão
acharia seu comportamento estranho, mas muito
em breve entenderia. Num impulso, virou-se e
acenou para a multidão.
O reconhecimento incitou uma ligeira efusão que
só silenciou quando ele entrou na carruagem. Como
exigia o protocolo, o rei viajou ao lado de lorde
Liverpool. Alex os acompanhou, enquanto Royce
escoltou as senhoras numa segunda carruagem.
Misericordiosamente, o primeiro-ministro não se
sentia inclinado a conversar ou apenas não tinha
nada a dizer. Atreus estava livre para se concentrar
na cidade que de imediato o chocou e o
surpreendeu.
Se ela pudesse impedir as mãos de tremer, já
seria uma dádiva. Só isso, nada mais, apenas as
mãos. Precisava ser capaz de conseguir.
Sentada na carruagem em frente a Royce e
Kassandra, Brianna tentou aparentar calma. Ele
estava ali. Bem, claro que estava. Sabia havia
meses que Atreus viria. Tudo fora organizado. O rei
de Akora, o governante escolhido pelo povo, faria
uma visita ao tribunal real do príncipe regente. Os
líderes se encontrariam para fins de compreensão
mútua e amizade. As dificuldades entre os reinos,
surgidas pelas tentativas de alguns membros da
Inglaterra provocarem uma invasão de Akora no ano
anterior, seriam amenizadas.
Mas agora Atreus se encontrava ali, e as mãos
dela tremiam.
Apertou-as firmemente, ao mesmo tempo em
que sua mente girava pelo impacto da presença do
rei. A última vez em que o vira, ele ainda estava se
recuperando do ataque que quase o tinha levado à
morte. Mesmo debilitado, destituído das suas forças,
ainda a intimidava. Claro que Atreus desconhecia tal
fato. Não podia ter consciência daquilo. Ou podia? A
simples possibilidade a deixou tonta.
— Brianna. você se sente bem? — Kassandra a
fitou preocupada. — Está tão pálida!
— Estou bem. Não há razão para não estar.
— Atreus parece muito bem, não acha? — Royce
observou com um leve sorriso.
— Sim — Kassandra concordou. — Para meu
alívio. Quando lembro de quão perto ele esteve.
— Não pense nisso. — Royce, carinhoso,
envolveu a mão da esposa com a sua. — Isso tudo
ficou no passado. Relembrar essas coisas não faz
bem para você nem para o nosso bebê.
Kassandra retribuiu o sorriso. Estava nos
primeiros meses de gravidez e extremamente feliz.
— Sei que esta visita tem um propósito muito
sério, mas espero que Atreus disponha de algum
tempo para desfrutar sua estadia aqui — disse ela.
— Ele tem tão pouca oportunidade de fazer algo,
além de trabalhar. Às vezes penso que ele preferia
levar um tipo de vida diferente.
— Atreus não precisava se tornar rei — Brianna
declarou num tom tranquilo. — Submeteu-se à
seleção por livre e espontânea vontade.
— Bem, isso é verdade. Mas acho que meu irmão
não tinha escolha. Sabia que seria chamado.
Atreus saberia? perguntou-se Brianna. Talvez de
alguma maneira, mas era cética quanto ao
misterioso processo pelo qual o governante de Akora
havia sido escolhido. Permanecia oculto em lendas e
mitos, envolto em segredos e sussurros. Muito
poder estava envolvido: o controle quase total sobre
as vidas e destinos de todos os akoreanos. Contudo,
quase ninguém sabia algo a respeito da seleção.
— Temos que fazê-lo empregar um pouco de
tempo para si mesmo, enquanto estiver aqui —
anunciou Kassandra. — Mas será muito difícil.
Joanna e eu desistimos de contar os convites, que
continuam chegando aos montes. A recepção na
Carlton House é amanhã à noite, e depois vem um
dilúvio de compromissos. Brianna, seu vestido para
o evento de amanhã é magnífico. Madame Duprès
se excedeu.
Brianna estremeceu. Era extremamente grata a
ambos os casais por tornarem possível sua estadia
na Inglaterra. Apesar de ter nascido inglesa,
considerava-se uma akoreana até ter a chance de
vir visitar sua terra natal.
— Madame Duprès é uma tirana. Mas quando se
trata de manusear seda e cetim, a mulher é um
gênio.
— É verdade que você a espetou com um dos
seus próprios alfinetes? — perguntou Kassandra.
Brianna assumiu um olhar de absoluta inocência.
— Terá de perguntar ao alfinete.
Royce riu, e ela notou que ele a fitava com
atenção. O inglês não deixava passar nada. Royce e
Alex eram ambos grandes e hábeis e se moviam
rápida e silenciosamente, alcançando suas metas
com pouca discussão.
E então havia Atreus.
O rei, governante do seu povo e, embora Brianna
detestasse admitir tal coisa, dela também. Devia
pensar nele de outra forma, não importando os
anseios do seu coração traiçoeiro. Os três homens
pareciam irmãos. Assemelhavam-se em tamanho e
força. Na verdade, Atreus e Alex eram meios-
irmãos, partilhando como mãe uma princesa
akoreana. Mas Atreus era akoreano e herdeiro da
família que traçara sua herança havia mais de três
mil anos. E se Brianna acreditasse nas lendas, ele
seria bem mais que isso. Estava unido à terra, ao
mar e ao ar de Akora de algum modo que ia além da
compreensão dos meros mortais.
Não era de admirar que sua palavra fosse
considerada lei, e seu mais leve capricho, satisfeito
com reverência.
Naquele instante, as carruagens ultrapassaram
os portões que guardavam a graciosa residência
ocupada por Alex, Kassandra e ela. E enquanto
Atreus permanecesse ali, seria sua residência
também. Em reconhecimento a tal fato, a bandeira
real de Akora tremulava ao sabor da brisa sobre os
largos degraus de mármore.
Ao descer da carruagem, Brianna ergueu o olhar
e contemplou o tecido carmesim brasonado com o
símbolo do touro dourado da casa real. Tinha visto
aquela bandeira diariamente por boa parte da sua
vida, desde que fora trazida pela tempestade, uma
criança náufraga e órfã, até a costa lendária de
Akora. O reino escondido além das Colunas de
Hércules, onde os guerreiros regiam, e as mulheres
serviam. Custara a considerar Akora sua casa, mas
nos últimos tempos não tinha tanta certeza. Era de
fato uma akoreana. ou inglesa? Ou ambas? Ou
nenhuma das duas?
Os próximos dias e semanas poderiam lhe trazer
a reposta.
— Um bom começo, não acha? — perguntou Alex
depois que a porta da sala de estar se fechou atrás
de lorde Liverpool. O primeiro-ministro demorara
uns vinte minutos antes de partir. Juntamente com
os gracejos habituais, levara com ele uma
declaração clara da vontade de Atreus. Como uma
nação soberana e independente, Akora daria boas-
vindas às relações diplomáticas com a Grã-
Bretanha. Também, os akoreanos defenderiam suas
águas, terras e navios, onde quer que pudessem
navegar. Nenhuma interferência da Grã-Bretanha ou
de qualquer outro país seria tolerada. Duvidar disso
seria se defrontar com o poder dos lendários
guerreiros de Akora, conhecidos por serem os mais
ferozes do mundo.
— Bastante — concordou Atreus. — Liverpool
tem tanta falta de imaginação quanto parece?
— Sim. Levará todas as suas palavras ao príncipe
regente, mas não espere que ele comunique o sabor
delas. Isso você terá de fazer.
— É o que pretendo. A noite de hoje será livre?
— Sim, só que poderá ser sua última
oportunidade de liberdade durante algum tempo.
Depois da recepção na Carlton House, haverá um
baile aqui na sua homenagem. Mas além de tudo
isso, a sociedade clama pela sua presença.
— Aceite apenas os convites que julgar
necessários, porém não pretendo ficar disponível
demais. Acho melhor deixar algo do mistério sobre
Akora intato.
— Pensei que essa seria a sua preferência. A
sociedade tem sua utilidade, mas pode ser deveras
entediante.
Após acompanhar lorde Liverpool até lá fora,
Royce voltou a tempo de participar do restante da
conversa.
— Dentro de uma semana será Natal.
Combinamos passá-lo em Hawkforte, se isso for do
seu agrado.
— Será que o clima estará melhor em Hawkforte?
— perguntou Atreus com um sorriso.
— Receio que não — respondeu o cunhado com
igual humor. — Temos uma boa chance de ver neve.
— Neve? Eu gostaria de ver, é claro. E ouvi falar
muito bem de Hawkforte. Terei prazer em ir,
obrigado.
Royce assentiu com a cabeça.
— Ótimo!
— Brianna também irá?
Alex e Royce trocaram olhares.
— Brianna? — repetiu Alex.
Atreus se aproximou um pouco mais da lareira.
Estava bastante acostumado ao desconforto físico,
após experimentá-lo com frequência durante o
rigoroso treinamento que fazia parte da educação de
todos os homens de Akora, mas aquele frio húmido
era novidade para ele.
— Espero que uma semana seja suficiente para
concluir meus negócios aqui em Londres —
comentou. — Terá de ser, porque não me sinto
inclinado a permanecer por mais tempo. Há muitos
assuntos em Akora a serem resolvidos.
Nenhum dos outros dois homens ousou
perguntar a que ele se referia. Sabiam muito bem
que a determinação de Atreus em modernizar o
Reino Fortificado enfrentava a oposição de dois
lados: os homens de Hélios, os Sunshine, que
desejavam mudanças maiores e mais rápidas, e os
seguidores do traidor Deilos, que se opunham a toda
e qualquer mudança e estavam dispostos até a
matar Atreus para impedir que isso acontecesse. O
pior de tudo era que havia rumores de que os dois
grupos, ou pelo menos alguns dos seus membros,
haviam juntado forças na tentativa de matá-lo, seis
meses antes. Mas a tentativa de Deilos e dos
homens de Hélios fracassara, face à recuperação de
Atreus, conferindo-lhes mais tempo para esfriar os
ânimos. Contudo, a confrontação de Akora com a
divergência, dentro da sua própria sociedade não
podia se prolongar por mais tempo.
— Depois do Natal, nós iremos de Hawkforte
diretamente para Akora — disse Atreus. — Diante do
olhar de surpresa de ambos os homens, ele
acrescentou: — Hawkforte fica na costa, não é?
— Claro — respondeu Royce. — Quando você diz
"nós iremos".
— Brianna e eu. Ela voltará a Akora comigo.
Houve um silêncio momentâneo antes de Alex se
manifestar:
— Ela não mencionou isso.
Atreus deu de ombros.
— Não é de admirar, Brianna não sabe de nada.
— Há alguma razão particular para levá-la de
volta? — indagou Royce. — As cartas que Brianna
trocou com a família indicam que eles sentem falta
dela, mas entendem o seu desejo de permanecer
aqui. Mas, se lhe pediram para levá-la.
— Não, não é isso. Está na hora de Brianna voltar
para casa. — Bem consciente da sensação que
estava a ponto de provocar, Atreus acrescentou: —
E está na hora de nos casarmos.
Alex e Royce o encararam surpresos. O inglês
falou primeiro:
— Não sabia que estava pretendendo se casar.
— Nem eu — completou Alex, olhando
atentamente para o irmão. — Não nos contou nada.
— E era necessário? Por certo, sempre foi do
conhecimento de todos que um dia eu me casaria.
— Sim, claro. Mas considerando a extraordinária
quantidade de mulheres encantadoras de Akora que
estão se esforçando para atraí-lo para o matrimônio,
e considerando também o fracasso delas em
conseguir. digamos que esta é uma notícia
surpreendente.
— Assustadora — acrescentou Royce. — Em
especial, porque a jovem em questão nem
desconfia.
— Atreus — começou Alex. — Brianna sabe que
pretende desposá-la, não é?
— Não consigo imaginar como. Nunca falamos
sobre isso.
Os dois homens se olharam.
— Nunca falaram sobre casamento? — inquiriu
Royce. — Mas algum relacionamento se desenvolveu
entre vocês dois quando ela ajudou a recuperá-lo do
ataque de Deilos?
— Não — respondeu Atreus. — Não se lembra
que Brianna deixou Akora para vir para cá, logo
depois de eu recuperar a consciência.
Um silêncio pesado reinou no recinto por vários
momentos.
— Ela é uma jovem adorável, mas não seria
conveniente vocês se conhecerem melhor antes de
pensar em casamento? — indagou Alex.
Atreus encolheu os ombros.
— Não há necessidade de pensar. Sei que
Brianna está destinada a ser minha esposa.
— Sabe? — repetiu Alex, lentamente e olhou
mais de perto para o irmão. — Como pode saber?
Atreus hesitou antes de responder. Não
costumava falar sobre o evento central da sua vida,
aquele que o havia transformado do homem feliz no
governante do seu povo. Entretanto, Alex e Royce
eram duas das pessoas em que mais confiava, desse
modo devia-lhes honestidade.
Na quietude da graciosa sala da casa de Londres,
Atreus invocou as lembranças de um ritual antigo
num litoral distante.
— Quando passei pelo processo de seleção para
me tornar rei, muito me foi revelado. Entre outras
coisas, vi a mulher que agora sei que é Brianna e
soube que ela seria minha esposa.
Tão raramente se falava a respeito do processo
que a mera menção dessa atividade surpreendeu
Royce e Alex.
— Você não tem nenhuma dúvida sobre o que
viu? — questionou Alex.
— Não. Se não me casar com Brianna, falharei no
meu dever para com Akora. Naturalmente, não
posso permitir que isso aconteça.
— Você citou a mulher que agora você sabe que
é Brianna — disse Royce. — Não sabia quem ela é,
então?
— Vi sua face, seu vulto. — Atreus não estava
disposto a revelar como a vira tão completamente,
com toda a intimidade de um amante. — Mas não
sabia seu nome. Não tinha a menor ideia de quem
ela era, até alguns meses atrás, quando recuperei a
consciência depois do ataque e a descobri cuidando
de mim.
Alex respirou fundo e deixou o ar sair devagar.
— Deve ter sido uma surpresa.
— Para ser franco, houve tempos em que pensei
que jamais a encontraria.
Com a sinceridade de um irmão que também era
um amigo, Alex acrescentou:
— Brianna pode não partilhar da sua convicção.
— Foi o que pensei — argumentou Royce. — As
mulheres preferem ser atraídas por amor, não por
dever.
— Isso é só uma parte do problema — concordou
Alex. — Brianna não é uma akoreana de nascença.
Suas origens permanecem um mistério, mas tenho a
nítida impressão de que ela quer descobrir mais
sobre isso. Esse desejo influenciou sua decisão de
voltar à Inglaterra junto comigo e Joanna.
— Eu sabia que havia um certo risco envolvido
quando permiti que ela os acompanhasse — falou
Atreus. — Mas enquanto me recuperava do ataque,
não estava em condições de solucionar tais
assuntos. Felizmente, não é mais o caso.
— Então pretende. persuadi-la? — indagou
Royce.
— Sim — Atreus respondeu. — Já esperei tempo
demais e há questões em Akora que
##exigências/solicitar/requerer/desejar<<
demandam a minha atenção. De uma maneira ou de
outra, Brianna voltará comigo e nós nos casaremos.
E, é claro, vocês serão todos convidados para as
bodas.
— E se ela não concordar? — quis saber Royce.
— Isso seria lamentável — atalhou Atreus. — Mas
todos nós temos de cumprir o nosso dever.
Dizendo isso, aceitou o conhaque que o irmão lhe
oferecia e uniu-se ao brinde que se seguiu. O vento
de inverno soprou através da chaminé, erguendo
uma nuvem de faíscas. Atreus as contemplou,
notando que os lampejos de fogo que brilhavam
com delicadeza não se extinguiram facilmente.
Na verdade, quanto mais forte o vento soprava,
mais as chamas se avivavam.

— Ontem à noite você estava muito quieta no


jantar — falou Joanna, olhando para Brianna, que
passava manteiga num pedaço de pão, à mesa do
café da manhã. As três mulheres se encontravam
sentadas na sala de desjejum da residência de Alex
e Joanna. Para além das altas janelas, o dia do mês
de dezembro começava a nascer.
— Estava apenas um pouco cansada —
respondeu ela. Embora apreciasse a preocupação
das amigas, manteve sua atenção voltada ao que
fazia.
— O navio trouxe cartas para você — comentou
Joanna. — Boas notícias?
Brianna ergueu a cabeça e sorriu para a amiga.
— Excelentes. Meu pai contou que temos cinco
potros novos.
— Marcus deve estar feliz — opinou Kassandra.
— Sua família cria os melhores cavalos de Akora.
— Quando lhe responder, contarei a ele que você
disse isso. na sua carta, minha mãe contou que
papai está trabalhando duro, mas não parecia muito
preocupada. Eles estão todos bem, inclusive Polônio,
que também escreveu.
— Ele é o seu irmão mais novo, não é? —
perguntou Joanna.
Brianna assentiu com a cabeça.
— Dois anos mais jovem. E muito inquieto. —
Não pretendia dizer aquilo, mas lendo a carta de
Polônio na noite anterior, tivera a impressão de que
o irmão, por tudo o que relatara, estava com a
mente repleta de ideias.
— Talvez você também esteja um pouco
apreensiva por hoje à noite? — arriscou Kassandra.
— Nesse caso, não tem motivo. Está mais do que
preparada para debutar na sociedade.
— Eu sei. E agradeço tudo o que vocês fizeram
para me ajudar a encontrar meu lugar na terra onde
nasci. Mas não posso deixar de pensar que esta
noite não é a ocasião certa. Afinal, eu não quero
atrapalhar a presença de Atreus.
— Oh, isso não vai acontecer — garantiu Joanna.
— É bem provável que muitos membros da
sociedade não tenham olhos para outra pessoa. Para
falar a verdade, acho que vão negligenciar o próprio
Prinny.
— isso será uma experiência nova para ele —
murmurou Kassandra. — A propósito, onde os
homens estão?
— Levantaram cedo. — Joanna riu. — Pelo
menos, Alex. — O sorriso se aprofundou. — Ele não
saiu tão silencioso quanto esperava, mas acredito
que tinham planos.
Kassandra revirou os olhos.
— Se voltarem sangrando e sujos, acho que
teremos todo o direito de protestar.
— Porque aconteceria tal coisa? — perguntou
Brianna.
— Eles são homens — refletiu Joanna,
encolhendo os ombros. Sua expressão desanuviou-
se com a chegada de uma criada com Amélia no
colo.
— Minhas desculpas, senhora, mas a pequena
não sossega.
— Jamais se desculpe por trazê-la para mim —
declarou Joanna pegando a menina. — Venha,
querida. O que está acontecendo?
Nada, pelo que Brianna pôde perceber, porque o
bebê se acalmou assim que sentiu o toque da mãe.
Em vez de chorar, Amélia se distraiu, olhando para
tudo ao redor.
— Ela é mesmo uma criança fascinante —
murmurou Kassandra.
— É natural que pense assim, afinal é sua
afilhada. —Joanna riu.
— Não é só por isso. Tenho a estranha impressão
de que ela enxerga. mais profundamente. as coisas.
Os braços de Joanna se fecharam em volta da
criança.
— O que está querendo dizer?
— Você sabe muito bem — respondeu Kassandra
num tom gentil. — É raro não haver mulheres nesta
família com habilidades especiais.
— Amélia é apenas um bebê — protestou a mãe,
embora olhasse preocupada para a filha. — É claro
que é muito cedo para sabermos algo desse tipo.
Amélia emitiu um pequeno som que parecia um
risinho.
— Está com cólicas — falou Joanna, convicta. —
Ela não entende uma palavra do que dizemos e está
com cólicas.
— Parece muito alegre para um bebê com cólicas
— observou Kassandra. — Sabe do que estou
falando? — perguntou, virando-se para Brianna:
— Sei que vocês duas têm poderes incomuns —
respondeu Brianna. — Joanna consegue encontrar o
que está sumido, e você. — Hesitou antes de dizer:
— Sempre achei que esse seu dom natural, como
deveria de fato ser chamado, às vezes parece mais
uma maldição. Prever o futuro.
— Possíveis futuros — corrigiu-a Kassandra. —
Tal visão foi de grande valia quando Akora foi
ameaçada, mas agora, graças a Deus, o futuro é tão
misterioso para mim quanto para qualquer pessoa.
— Mas esses dons são imprevisíveis, não são? —
indagou Brianna. — E em muitas gerações não
estiveram presentes.
— Isso é verdade — concordou Joanna. —
Parecem surgir quando são necessários. De qualquer
modo, Amélia será o que tiver de ser.
Brianna sorriu para o bebê.
— Ela parece sonolenta.
Em resposta, a menina bocejou. Alguns
momentos depois, a cabeçinha tombou contra o
ombro da mãe. Joanna se ergueu a fim de levá-la
para o quarto.
— Não está mesmo preocupada sobre hoje à
noite, está? — perguntou Kassandra quando as duas
ficaram sozinhas.
— Um pouco — admitiu Brianna, embora não
fosse pelo motivo que a amiga imaginava. Enfrentar
a sociedade britânica não lhe causava nenhuma
apreensão. Porém uma noite na presença de Atreus.
Isso era outra questão. Havia conseguido passar
pelo jantar da noite anterior, embora com muita
dificuldade. O que aquele homem tinha que fazia-a
tremer tanto?
Era bonito, sem dúvida, mas ela vivera a maior
parte da vida entre homens akoreanos que também
eram muito atraentes e viris.
Atreus quase tinha morrido alguns meses antes.
A tia dela, Helena, a mais talentosa das curandeiras
de Akora, travara uma árdua batalha para salvá-lo.
Brianna a ajudara, embora considerasse sua própria
contribuição muito pequena. Mas também teria se
empenhado e se preocupado tanto por qualquer
outra pessoa. Não teria?
O modo como ele a olhava. Um calafrio
percorreu-lhe a espinha, trazendo consigo a
verdade. Havia algo no modo como ele a olhava que
a deixava inquieta, como se a conhecesse de algum
modo que não era possível.
Deus, era óbvio que ela precisava de diversão, e
depressa, pensou.
— Não quer dar um passeio? — perguntou a
Kassandra.
Lembrando-se da gravidez da amiga,
acrescentou: — Podemos fazer isso de modo
agradável e suave.
— Não muito suave. Estou tensa feito as cordas
de um violino. Se pelo menos Royce entendesse isso
e parasse de se preocupar comigo.
— Ouvi falar algo sobre um passeio? — Joanna
quis saber, retornando do quarto de Amélia.
Brianna assentiu com a cabeça.
— Está um dia perfeito. Se vamos ficar
confinadas durante a noite toda, podemos sair agora
e aproveitar a natureza.
— Concordo inteiramente — afirmou Kassandra
com um sorriso. — Preciso apenas de meia hora
para trocar de roupa.
Joanna balançou a sineta. Uma jovem criada
surgiu de imediato.
— Sarah, por favor, diga a Bolkum que
precisamos de cavalos selados.
Uma hora depois as três amigas saíram. Foram
acompanhadas por uma escolta de meia dúzia de
guardas, que permaneciam distante o bastante para
permitir a ilusão de privacidade, mas perto o
suficiente para alcançá-las ao menor sinal de perigo.
— Tentei convencer Alex de que isso não era
necessário. — Joanna suspirou. — Mas ele não se
deixou influenciar pela minha opinião.
— Royce teria feito o mesmo — comentou
Kassandra.
— Se um deles não tivesse insistido, o outro o
faria, e o resultado no final seria o mesmo.
— Eles têm razão para se preocupar — disse
Brianna. — Há um grande desassossego na
Inglaterra.
— Isso não precisava estar acontecendo —
opinou Joanna. — Se o príncipe regente mostrasse
mais interesse pelo bem-estar dos seus súditos.
— Acho que ele não se interessa por nada —
declarou Kassandra.
— É verdade. O descaso da alta sociedade com
os menos privilegiados é notável. Embora haja
pessoas que de fato tentam melhorar as coisas.
— Que Deus os ajude — murmurou Kassandra. —
Fico feliz por termos a bênção de governantes sábios
em Akora.
Brianna hesitou. Valorizava sua amizade com as
duas mulheres e jamais desejaria causar-lhes
angústia. Além do mais, discrição era uma
característica da sua personalidade. Entretanto, o
desejo de responder se revelou irresistível.
— Há semelhanças entre Akora e a Inglaterra —
ponderou ela.
Um vento leve soprou, quando um momento
antes estava tudo tranquilo. Brianna apertou as
rédeas. Não gostava de vento.
As três mulheres estavam contornando o Hyde
Park, na curva do longo lago chamado Serpentine,
que brilhava refletindo a luminosidade do sol de
inverno. Ali perto se encontravam as velhas e
retorcidas árvores que ladeavam a Rotten Row. A
larga alameda de terra, onde as pessoas elegantes
vinham ver e ser vistas, estava inesperadamente
abarrotada àquela hora da manhã. Brianna
estranhava o fato, quando Joanna perguntou:
— Que semelhanças?
— O quê? Oh, semelhanças. Bem, Akora e a
Inglaterra têm monarquias hereditárias.
Kassandra puxou o cavalo ao redor de um
agrupamento de cavaleiros e disse: — Não de fato.
Ninguém pode se tornar rei sem se submeter ao
processo de seleção, não importa a que família
pertença.
— Bem, é o que parece — reconheceu Brianna. —
Mas nunca alguém se tornou rei sem estar ligado
diretamente à família Atreides.
— Pensei que a explicação para isso se devesse
ao fato de que apenas os membros da família
Atreides pudessem sobreviver ao processo de
seleção. Não houve outros que tentaram tal feito? —
indagou Joanna.
— Dez, pelo menos. É o que sei sobre a nossa
história — respondeu Kassandra. — Mas é claro que
deve ter havido mais.
Dessa vez Brianna se manteve calada, mas
pensou que ninguém realmente sabia como aqueles
dez ou mais homens haviam morrido. O poder
permanecera com a família Atreides, poder absoluto
que agora repousava nas mãos de Atreus.
— Não parece uma frequência extraordinária
para esta hora? — perguntou Kassandra.
Brianna assentiu com a cabeça.
— Eu estava pensando nisso, imaginando qual
seria o motivo.
— Santo Deus! — murmurou Joanna. — Vejam,
lady Melbourne. — Ela fez um aceno com a cabeça
em direção a uma figura elegante e robusta, usando
um bonito traje cinza. A senhora inclinou a cabeça
em reconhecimento e conduziu a montaria até as
três.
Kassandra se permitiu um pequeno gemido.
— Viu o que você fez? Lá vem ela, pode ter
certeza.
— Eu sei, é que fiquei tão surpresa ao vê-la. Lady
Melbourne nunca se levanta antes de meio-dia, mas
aqui está ela e não está sozinha. Parece que a
maioria dos membros da sociedade resolveu
cavalgar agora de manhã.
— Querida Joanna. — A anfitriã mais renomada
de Londres se aproximou. —E querida princesa
Kassandra. É um prazer vê-las.
O olhar da mulher vagueou até Brianna, mas
apenas de relance. Sem título, sem fortuna e
desconhecida, Brianna sabia que não despertava
nenhum interesse e se sentia imensamente grata
por isso.
— Estamos todas ansiosas pelo grande evento de
amanhã — declarou lady Melbourne. — Soube que
muita gente foi convidada, o que é maravilhoso. Mas
me contem, vieram se unir aos cavalheiros?
Joanna, talvez se sentindo responsável pelo
encontro, perguntou:
— Os cavalheiros?
— Os maridos e, é claro, seu convidado, Sua
Alteza o rei de Akora. Um título impressionante,
suponho, e um cavalheiro impressionante por tudo o
que tenho ouvido falar. Eu soube que as pessoas
que estavam nas docas ontem para lhe dar as boas-
vindas ficaram impressionadas com ele.
— Que bom — murmurou Kassandra. — Não,
estamos aqui apenas para cavalgar. Mas com
respeito a meu marido e irmão.
— Oh, por favor, não me diga que não sabia que
eles se encontravam aqui! A notícia se espalhou
várias horas atrás. É claro que ninguém os viu de
fato, embora todos os estejam procurando.
Brianna lutou para conter o riso, porém não
conseguiu e, discretamente, virou a cabeça para
disfarçar. Mesmo assim, teve de se segurar para não
cair na gargalhada quando Joanna disse:
— Já procuraram no alojamento do jardineiro?
— Porque eles estariam lá? — indagou lady
Melbourne.
— É uma tradição dos akoreanos — explicou
Joanna num tom solene. — Não é, Kassandra?
— O quê? Oh. sim. claro. Uma tradição. para.
para.
— Para retribuir uma visita — sugeriu Brianna.
Kassandra olhou agradecida para a amiga.
— Sim, é isso, para retribuir uma visita. As
pessoas são responsáveis por aquilo que cativam. É
isso. Uma cortesia.
— Está querendo dizer que o rei de Akora foi
visitar o jardineiro, antes mesmo de se encontrar
com o próprio príncipe regente? — Lady Melbourne
parecia bastante confusa pela possibilidade.
— Oh, sim — respondeu Kassandra. — Meu irmão
faria tal coisa. Atreus sempre foi adepto das
tradições. — Ela olhou para as companheiras. — Não
é verdade?
Ambas assentiram vigorosamente com a cabeça.
— Queridas senhoras, muito obrigada!
Sem demonstrar interesse em passar mais tempo
em companhia delas, lady Melbourne cravou os
saltos das botas nos flancos da montaria e seguiu
num trote ligeiro, além da capacidade da maioria
das mulheres da sua idade. Apreciando o galope
veloz da mulher, outros cavaleiros, estimulados, a
seguiram. Logo a área circunvizinha de Rotten Row
estava quase deserta, salvo por Brianna e suas
amigas.
— Isso foi muita maldade da nossa parte — falou
Kassandra, rindo.
— É uma questão de autopreservação — insistiu
Joanna.
— Acha que há alguma possibilidade de eles
estarem em algum lugar por aqui? — perguntou
Brianna.
— Santo Deus, não! — assegurou Kassandra. —
Atreus é a imagem da cortesia, e tenho certeza de
que adoraria conhecer o jardineiro. Na realidade,
tenho certeza de que ele o preferiria a muitas das
pessoas que vai conhecer. Mas não há nenhuma
chance de os três estarem aqui. Royce teria
percebido o espalhafato que isso causaria, e Alex
também. Não, eles devem ter ido a outro lugar.
— E deixaram uma pista falsa. — Joanna
percebeu o olhar confuso de Brianna e acrescentou:
— Posso apostar que esses rumores não começaram
por acaso. Aqueles três queriam fazer algo, sem ser
notados, então enviaram todos para a direção
errada.
— Mas por quê? — Brianna estava curiosa.
— É isso que pretendemos descobrir —
respondeu Kassandra, concordando com Joanna.

Risadas masculinas e cheiro de excelente tabaco


as saudaram quando as três retornaram para casa.
Enquanto tiravam os casacos no saguão de entrada,
Joanna perguntou:
— Os cavalheiros chegaram há muito tempo,
Mulridge?
A criada, vestida de preto, que viera recebê-las
meneou a cabeça.
— Há mais ou menos uma hora, milady. — A
mulher olhou para Kassandra. — Lorde Royce não
ficou muito satisfeito ao saber que a senhora foi
cavalgar.
Mais uma vez foram ouvidas gargalhadas
masculinas vindas do escritório de Alex. Kassandra
sorriu.
— Bem, ele não parece infeliz. — Dito isso,
contornou a escadaria de mármore que conduzia ao
escritório do irmão. Mal o havia alcançado, quando a
porta foi aberta por seu querido marido.
— Tive a impressão de ouvir a sua voz — disse
Royce, que a observou da cabeça aos pés,
parecendo satisfeito com o que, via. Em seguida,
ergueu a mão da esposa e a levou aos lábios. — Fez
um passeio agradável?
— Bastante agradável, apesar do aglomerado de
gente no parque. Parecia que toda a sociedade
resolveu cavalgar esta manhã. Pode imaginar o que
incitou tal coisa?
Royce riu e se afastou, de modo que as mulheres
pudessem entrar. Alex e Atreus se ergueram,
apagando os charutos que estavam desfrutando.
Embora se esforçasse para não agir daquela
maneira, Brianna se viu incapaz de desviar os olhos
de Atreus. Ele estava de pé, alto, ombros largos,
trajando uma camisa de seda branca e larga, aberta
no peito, comprimida sob o cós da calça amarela de
equitação. Os bastos cabelos, negros como um céu
sem luar, pareciam desalinhados pelo vento. A pele
esticada das maçãs do rosto brilhava. O perfil
lembrava o de um deus grego, e o queixo lhe
conferia um ar imponente.
Era esplendoroso na sua masculinidade, um
desafio para qualquer mulher que cruzasse seu
caminho. Mas não era apenas isso. Brianna sabia
que havia pessoas que o veneravam por sua
inteligência sem paralelo. Ela não partilhava esse
ponto de vista, mas admitia que Atreus possuía uma
extraordinária coragem. Segundo os rumores,
jamais vacilara diante de um inimigo ou desafio.
Olhando-o, não era difícil de acreditar.
— Brianna — chamou ele num tom suave,
embora sua voz parecesse possuir uma estranha
ressonância que ecoava fundo dentro dela. Atreus
caminhou na sua direção, sem deixar de fitá-la nos
olhos. — Gostou do passeio?
Respire. Precisa respirar. Mas quando ela o fez,
sentiu o ar impregnado com o cheiro atordoante de
tabaco e homem. O que não ajudou em nada.
— Muito — respondeu, rezando para não parecer
tão tonta quanto se sentia.
— Ótimo. — Os lábios sensuais se curvaram
ligeiramente, como se algo o divertisse. Tinha a
boca mais fascinante que Brianna já vira. E desejou
saber como seria beijá-la.
— O parque estava muito cheio?
— O quê? Oh. sim. havia muita gente.
— Até agora não entendi porque — Kassandra
atalhou.
— O que será que tirou os membros da sociedade
da cama antes do meio-dia?
— Talvez rumores de que o rei de Akora estaria
cavalgando por lá? — sugeriu Royce. — Uma palavra
escapa aqui e ali por meninos de recado, que não se
incomodam em ganhar um ou dois xelins extras.
— Pensamos nisso! — exclamou Joanna. —
Enquanto todos procuravam lá, onde vocês três
estavam de fato?
— Em Moors Field — respondeu Atreus. — E
minhas desculpas, senhoras. Se soubéssemos que
pretendiam ir ao Hyde Park esta manhã, teríamos
desviado a sociedade para outra direção.
— Não tem importância — disse Kassandra. —
Conte-nos porque foram para Moors Field. Não é um
lugar bastante ermo depois de Bishopsgate.
— Qualquer lugar é ermo quando utilizado para a
prática de artilharia — observou Alex. Ele gesticulou
para o serviço de chá prateado sobre uma mesa
próxima. — Querem que eu peça mais?
— Oh, sim, por favor — aceitou Joanna. —
Tomaremos um gole de chá, descansaremos nossos
pés e ouviremos tudo o que vocês três viram.
— Nada que não tenhamos visto antes — disse
Atreus.
— E, claro, esse era o objetivo.
Brianna sentou-se no sofá. Um pouco de chá lhe
faria bem. Com sorte, colocaria em ordem seus
pensamentos confusos.
— Pensei que a ameaça de uma invasão britânica
fosse coisa do passado.
Foi a vez de Atreus ficar surpreso. Acomodando-
se no assento ao lado dela, perguntou:
— O que sabe sobre esse assunto?
Antes que Brianna pudesse responder, Kassandra
interveio.
— Está esquecendo, meu irmão, de que Brianna
estava connosco durante aquelas semanas terríveis,
quando não sabíamos se você viveria ou morreria.
Na verdade, é justo dizer que não teríamos
administrado tudo tão bem sem a ajuda dela.
Naturalmente, Brianna se tornou quase um membro
da família.
Atreus fez um gesto de assentimento com a
cabeça.
— Quase. Então, presumo que posso contar com
a sua discrição — disse ele.
Brianna clareou a garganta.
— Não deseja alarmar as pessoas.
— Não desejo preocupá-las com uma ameaça
que não existe — Atreus a corrigiu. — Fomos a
Moors Fields porque os britânicos são mestres na
arte da artilharia. São amáveis o bastante para
demonstrar tal habilidade na frente de qualquer um
que esteja interessado em apreciá-los.
— Acho uma imprudência da parte deles.
— Talvez, mas considerando o número de
espiões franceses na Inglaterra, há um certo sentido
nisso. As informações que esses cavalheiros
mandam para Napoleão podem ser no mínimo
desmoralizantes.
— Você disse que os akoreanos têm tudo o que
os britânicos têm. Que também somos mestres na
arte da artilharia?
Atreus sorriu.
— Somos mestres do nosso destino, como
sempre fomos. O que é útil para o nosso povo, nós
construímos ou conquistamos. Sempre entendemos
que o poder, especialmente o poder que intimida, é
a garantia mais segura de paz.
— Akora sempre viveu em paz.
— E acredita que continuará vivendo?
— Não sei — admitiu Brianna. — Para ser franca,
nunca pensei muito nesse assunto. — A verdade
sobre tal hipótese a assustava. Passara muito tempo
pensando na necessidade de mudanças, mas as
virtudes da estabilidade. era outra questão muito
diferente. — Akora é tão isolada do mundo.
— O mundo está mudando. Por certo, você está
aqui tempo suficiente para comprovar tal fato.
— Akora não é a Inglaterra.
— Akora faz parte do mesmo mundo — rebateu
Atreus. — Seria o pior tipo de erro se nos
imaginássemos imunes do tumulto evidente nos
outros lugares.
— Então, porque você não. — Brianna se
interrompeu, horrorizando-se de repente ao
perceber o quão próxima estivera de dizer
bruscamente a verdade.
— Porque eu não. o quê?
— Nada. Apenas fiquei. surpresa pelo que disse.
— Mas não alarmada, espero. Você sabe que
Akora ficará bem.
Como não sabia nada a respeito do assunto e não
conseguia mentir, ela limitou-se a dizer:
— Espero que sim.
Brianna ficou feliz quando Joanna verteu o chá, e
orgulhosa porque a mão com que aceitou a xícara e
o pires não parecia trêmula. Orgulhosa e um pouco
surpresa.
Pouco tempo depois, as senhoras pediram licença
a fim de começar os preparativos para o evento
daquela noite.
— Não é justo — disse Kassandra, enquanto
saíam. — Passaremos horas nos penteando, nos
enfeitando, enquanto vocês, homens, deixarão para
se arrumar no último momento possível.
Royce ergueu a xícara em saudação.
— Mas passaremos a noite inteira apreciando a
sua formosura.
— Oh, então, suponho que valha a pena —
murmurou Joanna. — Venham, senhoras. — Mal
haviam alcançado os degraus, ela comentou: —
Muito bem, Brianna!
— Muito bem, o quê? — indagou ela, confusa.
Não fazia a mínima ideia ao que a amiga se referia.
— Enfrentar Atreus como fez — explicou
Kassandra. — Não concordando de imediato com
ele. Poucos ousam desafiá-lo de fato ou até mesmo.
discordar das suas palavras.
— Eu não quis ser descortês.
— Claro que não — falou Joanna. — E ninguém
encararia isso desse modo. Atreus gosta de pessoas
que têm ideias próprias.
— Só que, no final das contas, apenas as dele
prevalecem — concluiu Brianna.
— É verdade. Uma vez tomada uma decisão,
Atreus não aceita contestações — declarou
Kassandra. — Mas ele pensa bastante antes de
tomá-la. Sempre está aberto a um argumento
inteligente baseado em fatos. Em mais de uma
ocasião, mudou sua opinião inicial, quando tal
argumento o persuadiu a apreciar a questão por um
anglo diferente.
Brianna parou no topo da escada. Podia ir
embora sem dizer mais nada. Mas aquelas mulheres
eram suas amigas de verdade.
— É bom saber que o rei tem uma mente aberta.
Mas existem algumas pessoas que acreditam que a
sociedade dos akoreanos deveria ser mais aberta.
— Refere-se ao povo de Hélios? — questionou
Joanna. — O povo do sol?
— O nome significa "luz do sol" — disse Brianna.
— A. questão parece ser que a luz deveria brilhar
em deliberações que, em vez disso, permanecem
em sigilo.
— É muito espalhafato por nada, se quer saber —
declarou Kassandra. — Não se pode abrir tudo a
debate. Sempre há questões delicadas que devem
ser resolvidas de modo reservado.
— Hélios parece bastante inofensivo — sugeriu
Joanna. Kassandra encolheu os ombros.
— Talvez, mas não nos esqueçamos de que ainda
há vários membros de Hélios na prisão por causa do
possível envolvimento no atentado contra Atreus.
— Não há nenhuma evidência contra eles —
afirmou Brianna.
Joanna sacudiu a cabeça.
— Na verdade, há. Apenas ainda não veio a
público.
— Há evidências — concordou Kassandra. — E
serão do conhecimento de todos quando o inquérito
for concluído.
— Entendo. Você tem alguma ideia de quando
isso vai acontecer?
As mãos de Brianna se apertaram firmemente
nas dobras do traje de equitação, onde as amigas
não podiam ver.
— Em breve, acredito — respondeu Kassandra. —
Atreus quer dar tempo para o clamor público contra
Hélios se acalmar, e também precisava fazer esta
viagem. Imagino que agirá quando retornar a Akora.
As três mulheres se separaram pouco tempo
depois, cada uma indo se submeter aos cuidados da
sua criada particular. Mas enquanto Brianna era
perfumada, escovada e vestida, sua mente
permanecia noutro lugar, enfatizando as
implicâncias de tudo o que fora dito e o encontro
com o homem que imaginava conhecer, mas que
agora suspeitava estar enganada.

Milhares de cristais incrustados em ouro refletiam


as luzes das muitas velas dispostas nos imensos
lustres que pendiam do teto e das paredes entre as
janelas altas do salão de baile. Brilhavam tanto que
a noite parecia ter se transformado em dia.
— Surpreendente! — exclamou Brianna, embora
tivessem lhe dito que poderia escolher qualquer
outra palavra para descrever tal extravagância
desenfreada. A vontade do príncipe regente em
gastar verdadeiras fortunas com seus caprichos
pessoais, enquanto muitos dos seus súditos lutavam
para colocar comida na boca, era inconcebível.
— Não é? — disse Joanna. — Alex e eu nos
conhecemos aqui, no ano passado, durante a
inauguração desta mais recente encarnação da
Carlton House. Prinny está muito orgulhoso, sem
dúvida.
Brianna olhou para a fila da recepção na qual se
encontrava, observando o homem rotundo que
parecia um querubim cansado e devasso, mas que
era, na realidade, o regente da Inglaterra, ocupando
o lugar do pai louco. O contraste entre o príncipe e a
figura viril a seu lado não podia ser maior. Não
apenas pelo fato de Atreus ser muito mais alto, mas
também por exibir uma magnífica forma física. Sua
presença irradiava inteligência, charme e genuíno
interesse.
O fato de o rei conseguir manter tal cordialidade,
a desnorteava. Estavam na fila de recepção havia
quase uma hora e a nata da sociedade britânica
ainda continuava chegando, gloriosamente vestida,
exultante e ansiosa por alguns preciosos segundos
com o homem que deixava a todos impacientes. Os
cavalheiros eram discretos na sua admiração, mas
as damas. Os modos de muitas delas eram
escandalosos. Não podiam ser mais óbvias sobre a
vontade de oferecer ao governante de Akora
entretenimento particular.
Não que isso a preocupasse. Não era da sua
conta. Pelo contrário, quanto mais Atreus estivesse
ocupado, menos a perturbaria com aqueles olhares
penetrantes.
— E você é? — Uma senhora a fitou de modo
inquisitivo.
Brianna suspirou. Tentara se afastar da linha de
cumprimentos, porém as outras não lhe deram
ouvidos. Apreciava os esforços das amigas, mas
também estava consciente de que ninguém tinha o
mínimo interesse em conhecê-la.
— Nossa querida amiga Brianna — informou
Joanna, com um sorriso gelado.
— Que agradável — murmurou a senhora com
uma falta de sinceridade total e se apressou,
olhando Atreus com uma ânsia que só podia ser
chamada de alarmante.
Misericordiosamente, pouco tempo depois, o
príncipe regente declarou que já era o bastante.
— Santo Deus! Já é o suficiente! Muitos já
passaram por aqui duas vezes. Maldição! — O
príncipe acenou para o restante da fila, que se
estendia até onde a vista não alcançava, e olhou
ansioso para o mordomo. — Música. E alegre! Não
há espaço para dançar, como sempre, mas podemos
improvisar. Devo isso a milorde — disse, virando-se
para Atreus. — Conseguiu atrair alguns dos meus
semelhantes que eu não via desde criança. Até
pensei que já estivessem mortos! Que vergonha!
— Estou certo de que é a companhia que eles
buscam, Vossa Alteza — respondeu Atreus num tom
diplomático.
— É pouco provável. Já vivenciou este tipo de
coisa em Akora?
— De certo modo. Temos um ditado que diz que
se você quiser ver alguém, procure-o no palácio,
porque todos estarão lá.
— Palácio, é? Achei que fossem mais rudes, mais
primitivos. Por favor, não me leve a mal, mas
percebo agora que estava errado.
Atreus curvou os lábios num débil sorriso.
— Foi em parte para corrigir tal concepção
errônea que eu vim à Inglaterra, Vossa Alteza.
— Muito sábio. Deixar as coisas claras evita
dificuldades no futuro. — Nesse instante, um gongo
soou. — O jantar! — anunciou o príncipe com a
primeira real demonstração de entusiasmo. — E
antes que me esqueça: nós o alimentaremos bem,
posso lhe garantir.
— Ouvi falar no grande esplendor da sua mesa,
Vossa Alteza — respondeu Atreus, unindo-se ao
príncipe a fim de descer a escadaria que conduzia
aos jardins, onde o jantar seria servido.
A pouca distância dali, perto o bastante para ficar
atenta ao que estava sendo dito, Brianna mordeu o
lábio inferior. Certamente Atreus ouvira os mesmos
comentários sobre as refeições na Carlton House.
Eram extravagantes a ponto de serem grotescas.
Também eram verdadeiros exercícios de resistência,
incluindo dúzias e dúzias de iguarias, cada uma mais
rica e mais elaborada que a anterior. Alguns pratos
estavam dispostos sobre a mesa, de modo que os
convidados podiam se servir das suas comidas
favoritas.
Brianna provou um pouco de cada: massas, um
pedaço de cordeiro com geleia, lagosta untada com
manteiga e batatas com salsa, que estavam uma
delícia. A mesa estava sendo preparada para a
sobremesa, quando ela percebeu um cavalheiro
sentado no lado oposto, que não tirava os olhos
dela. Como não era capaz de imaginar nenhuma
razão para tal comportamento, tentou se convencer
de que estava enganada. No entanto, algum tempo
depois, tornou a olhar e teve a mesma impressão.
O homem aparentava ter entre quarenta e
cinquenta anos, era bastante atraente, com cabelos
avermelhados penteados para trás, o que lhe
salientava a testa alta. A expressão era insistente,
mas não ofensiva. Parecia bastante chocado, de
forma que ignorou os pratos dispostos à sua frente,
e até mesmo negligenciou ao responder a uma
observação feita pela pessoa que sentava à sua
esquerda.
Incerta sobre se deveria tomar alguma atitude,
Brianna foi atraída pela conversa na cabeceira da
mesa, mas sua atenção foi desviada para o rei.
Jamais iria imaginar que Atreus fosse tomar
conhecimento da sua presença. Porém estava
errada. O príncipe regente tinha a boca ocupada
com compota de laranja, quando o rei disse:
— Não sou o único novato na Carlton House,
Vossa Alteza. Creio que também seja a primeira vez
de Brianna.
Quando se sentiu capaz, Prinny respondeu:
— É verdade? E o que está achando, minha
jovem?
Surpresa por Atreus ter atraído deliberadamente
a atenção do regente para tal fato, Brianna
comentou:
— Extraordinário, Vossa Alteza. Jamais imaginei
um lugar como este.
O príncipe sorriu, presumindo tratar-se de um
elogio.
— Foi um árduo trabalho para se chegar a este
resultado, posso lhe assegurar. Os arquitetos são
um bando de esquisitos. Se deixar por conta deles,
não fazem nada que você quer. Depois de muito
falar, acabaram me escutando, mas devo lhe dizer
que outro homem teria desistido.
— Mas não Vossa Alteza — murmurou Brianna.
— Não, não eu. — O príncipe fez cara de enfado
e se virou para Atreus. — Não acredito que tenha
esse tipo de problema, não é? Não tem um
Parlamento para combatê-lo, pelo menos foi o que
Hawkforte me disse.
— Não é tudo assim tão simples em Akora —
rebateu Atreus. Ele percebeu o olhar de Royce e
ergueu uma sobrancelha.
— Eu estava respondendo às perguntas da sua
Alteza sobre a natureza do governo de Akora —
explicou Royce, virando-se para o príncipe. — Como
bem pode se recordar, Majestade, eu disse que não
há nenhum Parlamento formal, mas os akoreanos
têm um processo de consulta aos mais velhos e
compromissos que seguem mais ou menos
continuamente.
— Deve ser bastante cansativo — observou o
príncipe, após pensar no assunto por alguns
momentos.
— Torna-se comum depois de um certo tempo —
assegurou seu convidado real.
O teor da conversa mudou, mas Brianna
permanecia atenta ao fato de que, vez ou outra, a
atenção de Atreus se voltava para ela, embora ela
se recusasse a encará-lo.
Estava tão absorvida naquele esforço que ficou
chocada ao perceber que o cavalheiro sentado do
lado oposto da mesa continuava a fitá-la. Na
verdade, continuou até a farta refeição terminar.
Quando todos se ergueram da mesa, ele
desapareceu no meio à multidão. Brianna não voltou
a vê-lo durante toda a noite.
Foi quando voltaram à residência de Alex e
Joanna, que a noite provou ainda lhe reservar mais
uma surpresa. Atreus desceu da carruagem e lhe
ofereceu a mão. Brianna aceitou comum gesto
instintivo e sentiu a força dos dedos dele ao redor
dos seus. Um arrepio de prazer percorreu-lhe a
espinha, alarmando-a.
— A noite foi agradável? — perguntou ele.
Brianna ouviu a pergunta, mas teve alguma
dificuldade em se concentrar, porque em vez de
simplesmente soltá-la, Atreus apoiou a mão dela no
seu antebraço e caminhou em direção aos degraus
de pedra que conduziam às portas largas.
— Muito interessante — ela respondeu.
Atreus riu, um som rico e profundo que em nada
contribuiu para lhe aliviar a mente.
— Você é uma diplomata.
— Não. Apenas tento ter um pouco de
consideração pelos sentimentos dos outros.
— Isso é a essência da diplomacia. Conhecer a
outra pessoa, saber o que ela responderá, positiva
ou negativamente, e agir de acordo.
— Tenho certeza de que não deve ser apenas
isso.
— O restante é pura elaboração. O seu vestido é
bastante atraente. Suponho que o estilo inglês tenha
sido uma mudança bem-vinda depois daquele tempo
todo usando branco.
Branco era a cor para as virgens em Akora.
Brianna havia decidido que não usaria nenhuma
outra até se casar. Mas a vinda à Inglaterra a levara
a se adaptar a um modo de vida diferente. Na
verdade adorava o vestido azul que, mesmo com
toda a modéstia, sabia que combinava muito bem
com seus cabelos e olhos.
— Obrigada. — As portas foram abertas pelos
guardas akoreanos, que se curvaram diante da
presença do rei. Atreus acenou com a cabeça e
olhou para Brianna.
— Seu casaco — disse.
Envergonhada por ser pega tão distraída, lutou
contra o nó que lhe apertava a garganta. Por fim,
conseguiu se livrar do casaco e o passou às mãos
dele.
— Uma bebida antes de deitar? — sugeriu Alex.
— Não para mim — respondeu Joanna com um
sorriso.
— Logo o dia vai amanhecer e com ele, Amélia.
Mas você três podem ir em frente.
— Peço licença para subir — murmurou Brianna.
— Estou cansada.
— Saiu-se muito bem esta noite — comentou
Atreus. — É compreensível que esteja cansada.
Ela o olhou durante alguns instantes.
— Não fiz nada.
Atreus se aproximou para responder, mas antes
que pudesse alcançá-la, Joanna interveio:
— Já basta. Venha, Brianna, hora de ir para a
cama. Alex, meu querido, eu o espero lá em cima.
— Não é necessário, meu bem — respondeu o
marido.
— É necessário, sim —: ela rebateu enquanto
subia levando Brianna consigo. — Precisamos ter
uma conversinha, meu marido. Boa noite, Atreus. É
muito bom tê-lo aqui connosco.
Desejando saber o que Joanna queria falar com
Alex, Brianna tentou encontrar um modo discreto de
lhe perguntar. Estava de fato cansada, mas sentia a
mente estimulada. Após se separar da amiga,
dispensou a criada e se deitou na enorme cama de
dossel. Seus pensamentos continuavam voltados
para Atreus. Ele a atraía e a enchia de desejos,
deixando-a um pouco assustada.
O rei apreciava pessoas com ideias próprias?
Estava começando a acreditar que talvez isso fosse
verdade. Gostara do vestido dela. e da sua
aparência. Era um homem notavelmente paciente e
disciplinado. Atreus, o regente de Akora,
descendente dos Atreides, queria algo dela. Não
imaginava o que poderia ser, mas à medida que o
sono a envolveu, teve certeza de que descobriria, e
muito em breve.

O primeiro feixe de luz de uma manhã cinzenta


de inverno ainda não desafiava as estrelas quando
Atreus despertou. Tendo aprendido o valor de
despender algum tempo para si, antes de ser
tragado pelos afazeres do dia, ele sempre acordava
cedo. Também tinha o costume de passar os
primeiros minutos da manhã meditando.
Como vinha acontecendo com bastante
frequência nos últimos dias, pensou em Brianna.
Alguns desses pensamentos eram agradáveis.
Outros não. Ela era uma órfã. Ele precisava aceitar
esse fato e decidir o que fazer sobre isso.
Contudo, naquela manhã não estava disposto a
tomar qualquer decisão. Após se banhar e se vestir,
continuava frustrado e focou os pensamentos no que
poderia ser realizado nas horas seguintes.
Os irmãos tomavam café da manhã na sala de
desjejum, discutindo sobre a noite anterior e, em
particular, a respeito do príncipe regente, quando
um guarda os interrompeu.
— Perdoe-me, príncipe Alexandros, mas há um
cavalheiro inglês lá fora que insiste em vê-los.
— A esta hora? — indagou Alex. Então pegou o
cartão que lhe fora entregue e o estudou. — William,
conde de Hollister. O nome me é familiar, mas não
posso afirmar que o conheço.
— Aqui não se costuma retribuir visitas a esta
hora? — perguntou Atreus.
— Claro que não. Hollister talvez não tenha muito
apreço pelo decoro ou acredita ter um assunto de
grande urgência a tratar.
— Vamos descobrir qual dos dois — sugeriu
Atreus. Momentos depois, o conde de Hollister foi
conduzido até a sala de desjejum. Parecia tranquilo,
mas no fundo estava um pouco tenso. Ao ver
Atreus, que se ergueu junto com Alex para recebê-
lo, o ruivo esbelto também pareceu surpreso.
— Vossa Alteza. Não imaginei que o estivesse
incomodando. Minhas desculpas.
— Não se preocupe — respondeu Atreus.
— Sente-se, por favor — ofereceu Alex. — A esta
hora, não levamos em conta as formalidades.
— É cedo — reconheceu Hollister acomodando-se
à mesa. Os outros dois homens retomaram seus
assentos. — Sinto muito. Para ser franco, passei a
noite em claro, ponderando sobre o que fazer.
Obviamente, poderia ter esperado para vir mais
tarde, mas sabendo o quanto o senhor é ocupado,
temi não encontrá-lo.
— O assunto que o traz aqui é tão urgente
assim? Hollister sorriu.
— Sim e não. Na verdade, já esperou dezasseis
anos, embora eu pense que não deva esperar nem
mais um dia sequer.
Os irmãos trocaram olhares.
— Dezasseis anos? — perguntou Atreus num tom
sereno.
— Há dezasseis anos, minha prima, lady Delphine
Wilcox, nascida Hollister, desapareceu juntamente
com o marido, Edward Wilcox, e a filha do casal, que
devia contar oito anos na ocasião. Supõe-se que
todos tenham morrido no mar.
— Uma suposição que o senhor não aceita,
obviamente. — concluiu Alex.
— Não posso mais aceitá-la. Ontem à noite fiquei
chocado. Vi-me sentado à mesa diante de uma
jovem dama que possui uma incrível semelhança,
com minha prima. De fato, a semelhança é tão
grande que tive a impressão de estar olhando para
um fantasma.
— Brianna — murmurou Atreus. Sua futura
esposa, fantasma da sua própria memória. E sua
própria culpa.
O conde assentiu com a cabeça.
— Disseram-me que era esse o seu nome, que é
o mesmo nome da filha da minha prima. A jovem
me foi descrita como uma dama akoreana e amiga
da sua família, mas, na realidade, é lady Brianna
Wilcox, título herdado da mãe. Ela tem uma família
aqui na Inglaterra. Uma família ansiosa para recebê-
la, devo acrescentar. — Incapaz de esconder sua
agitação, Hollister olhou para seus anfitriões e
continuou: — Não consigo entender como isso
aconteceu. É claro que somos gratos por Brianna
estar viva e bem, mas o fato de o povo de Akora ser
tão hostil com estranhos, como vocês não se
empenharam em devolvê-la à legítima família?
Alex permaneceu calado, no entanto Atreus
explicou:
— Nós tentamos. Dezasseis anos atrás, quando
Brianna chegou a Akora, estava gravemente ferida.
Recuperou-se, mas ficou com lapsos de memória
que jamais se curaram. Ela sabia que seu nome era
Brianna Wilcox e ficou óbvio quando ela começou a
falar que era inglesa. Porém não se lembrava de
muita coisa. Foram feitas várias investigações aqui
na Inglaterra, mas sem êxito. Não parecia haver
ninguém procurando um casal e uma criança de
sobrenome Wilcox. — Ele se reclinou para trás no
assento e encarou Hollister. — E agora talvez o
senhor possa explicar como isso pôde acontecer.
Como uma família perde uma filha e uma neta e
esconde esse fato tão efetivamente, que os nossos
agentes não conseguiram descobrir nada a respeito?
— Vossa Alteza.
— Explique, por favor — cortou Atreus. — Ou
este assunto morre aqui. Como rei, sou responsável
pelo bem-estar de todos os akoreanos, inclusive o
de Brianna. Não há nenhuma possibilidade de eu
permitir que ela tome conhecimento de uma família
que não está sendo completamente verdadeira
sobre o que aconteceu a ela.
Apesar de pálido, Hollister permaneceu resoluto.
— É lamentável. Meu tio, de quem herdei o título,
desaprovou a escolha do marido da minha prima.
Seguiu-se, então, uma grande desavença entre pai e
filha. Ele era um homem muito autoritário,
acostumado a ser obedecido. Tornou a situação do
casal na Inglaterra insustentável, forçando-os a fugir
para o continente. Jamais ouvimos falar de Delphine
novamente. Depois da morte do meu tio, encontrei
evidências nos seus documentos de que ele tinha
consciência do desaparecimento da filha, e que fez
várias investigações no esforço de descobrir o que
havia acontecido. Mas não contou a ninguém sobre
isso e não admitia que se falasse o nome dela.
Imagino que tenha sido por esse motivo que os seus
agentes não descobriram nada.
— Que desperdício terrível — murmurou Alex.
— Sim, foi — Hollister concordou. — Mas tenho
intenção de corrigir os erros do passado. — O conde
olhou para Atreus. — E posso lhe garantir, Vossa
Alteza, que Brianna será recebida na nossa família
com verdadeira alegria e consideração. Terá uma
casa, uma família e, posso lhe afirmar, excelentes
perspectivas para o futuro.
— Ela tem uma casa e uma família agora —
rebateu Atreus num tom calmo. — Quanto às
perspectivas para o futuro. — Fez uma pausa. Se
Brianna não tomasse conhecimento das suas
origens, jamais conheceria a verdadeira paz. Isso
seria prejudicial a sua vida. Se fosse informada das
possibilidades que se abriam para ela na Inglaterra,
poderia desejar uma vida que ele não lhe permitiria,
para não falhar com seu dever preeminente com
Akora. — Vou considerar o assunto — disse,
erguendo-se da cadeira. — Até eu tomar uma
decisão, não se aproxime de Brianna de maneira
alguma. Entendido?
Hollister também se levantou e assentiu com a
cabeça.
— Tudo bem, Vossa Alteza. Mas espero
fervorosamente que tome a decisão certa. Não
corrigir uma velha injustiça pode não beneficiar
ninguém.
Quando o conde partiu, Alex se virou para o
irmão.
— Mas que situação!
— Gostaria que você colhesse todas as
informações possíveis sobre os Hollister. Quero
saber tudo sobre sua história, reputação e riqueza.
— Então está considerando a hipótese de revelar
a verdade a Brianna?
Atreus hesitou.
— Sim, estou. Quais são as chances de Hollister
não respeitar as minhas instruções e tentar se
aproximar dela?
— É pouco provável, pelo menos durante os
próximos dias — respondeu Alex depois de um
momento. — Mais tarde, talvez. Ele me pareceu um
homem determinado a corrigir um velho erro do
passado.
— E talvez cometa outro contra uma terra sobre
a qual nada sabe e com a qual não tem nenhuma
razão para se preocupar,
— E uma questão delicada — Alex opinou. —
Tenho duas recomendações: que nós informemos
Royce o mais rápido possível e recrutemos sua
ajuda. É possível que ele já saiba alguma coisa
sobre os Hollister. Também que informe Brianna
sobre suas intenções. Como suspeitei que poderia
acontecer, Joanna e Kassandra pressentiram algo no
ar. Joanna perguntou-me diretamente ontem à noite
se você tem algum interesse pessoal em Brianna.
— Fui tão óbvio assim? — indagou Atreus com
um meio sorriso.
— Eu não diria, mas as mulheres. Bem, digamos
que elas têm instintos superiores aos nossos.
— aceite a primeira recomendação — disse
Atreus de pronto. Após um momento, acrescentou:
— Mas a segunda, não. Quando informar a Brianna
que nós nos casaremos, não desejo estar distraído
com outros assuntos. Uma vez que o meu negócio
esteja concluído aqui.
— Estará livre para dirigir suas habilidades de
persuasão na direção dela — completou Alex com
um sorriso nos lábios.
— Algo dessa natureza. Vamos para Hawkforte
na próxima semana. Isso deverá nos proporcionar
uma oportunidade para resolver esse assunto.
— É um lugar oportuno. Há algo em Hawkforte.
— Lembro-me que foi lá que você propôs
casamento a Joanna.
— Sim, e foi lá também que Royce e Kassandra
solucionaram suas diferenças e decidiram se casar.
— Bem, então, não posso esperar lugar melhor.
Tendo determinado como os eventos deveriam se
suceder, Atreus desviou sua atenção para outro
foco. Tinha uma reunião aquela manhã com lorde
Liverpool e vários outros ministros do governo. À
tarde, receberia meia dúzia de homens de negócios
mais ricos e mais poderosos da Inglaterra, todos
ansiosos pela oportunidade de negociar com Akora.
Naquela noite, compareceria ao baile que Alex e
Joanna realizariam na sua homenagem. Prometia
ser um dia cheio.
Mas, apesar de tudo, seus pensamentos
continuaram se voltando para Brianna, lembrando a
precaução que vira nos seus olhos, a graça natural
dos seus movimentos, o corpo ligeiramente
enrijecido quando ele se aproximara, a reserva
profunda que percebia nela.
De pé junto à janela, ele contemplava o jardim,
não pensava em lorde Liverpool ou no príncipe
regente. Na verdade, nem mesmo em Akora.
Pensava na luz daqueles olhos verdes, na cor de
fogo daqueles cabelos vermelhos, no timbre
cristalino da voz de Brianna.
Assustado com a direção que sua mente,
normalmente tão disciplinada, tomara de repente,
ele se afastou da janela e não viu o pássaro que se
precipitou para bicar as migalhas de pão que lhe
foram atiradas.
Da janela do seu quarto, apreciando o jardim,
Brianna esmigalhou um pouco mais do bolinho de
aveia na bandeja de café da manhã e lançou ao
pássaro. O ar que entrava pela janela aberta era
frio, o que fê-la estremecer um pouco. Porém seus
pensamentos a mantinham preocupada demais para
se permitir perceber o próprio desconforto.
Em pé junto à janela, viu quando o cavalheiro
ruivo partiu. A fisionomia dele deixava claro que
estava com problemas.
Quem era ele? Porque viera até ali tão cedo?
Ela não se encontrava à janela quando o
cavalheiro tinha chegado, logo não podia saber se
ele fora recebido ou despachado. Mas de qualquer
maneira, o homem viera. Devia haver um propósito
por trás daquela visita, uma razão para aqueles
olhares dirigidos a ela na noite anterior.
Uma esperança, tentadora e frágil, surgiu na sua
mente. Havia perdido tanta coisa. família, casa e,
em grande parte, sua identidade. Embora tivesse
ganhado muita coisa também: uma nova casa, uma
nova família e uma nova vida. Muitas vezes desejara
descobrir a verdade sobre si mesma e ser honesta
com a pessoa na qual se transformara.
Lançou mais um punhado de migalhas e fechou a
janela. O pássaro continuou subindo e descendo por
mais algum tempo, mas ela não o observou. Outros
assuntos exigiam sua atenção.

— Eu não sei — disse Joanna com uma carranca.


— Confesso que não vi nenhum homem ruivo em
Carlton House ontem. Kassandra, a descrição lhe
parece familiar?
Aproximando o pé um pouco mais perto do fogo,
a princesa respondeu:
— Há algo muito vago no fundo da minha mente,
mas não consigo lembrar. A que horas você disse
que ele veio?
— Passava um pouco das sete da manhã quando
o vi partir — respondeu Brianna.
— Quem faz uma visita a essa hora? —
perguntou Joanna, olhando para a cunhada.
Kassandra deu de ombros.
— Não ouvi falar. Alex estava acordado?
— Sim, e já de pé.
Lembrando-se dos hábitos dos irmãos quando
estavam em Akora, Kassandra acrescentou:
— Talvez ele e Atreus estivessem tomando o
desjejum juntos. Eles costumam acordar cedo para
revisar os negócios.
— Pode ser — concordou Joanna. — Vou tentar
descobrir alguma coisa.
— Seja discreta, por favor — pediu Brianna. As
duas mulheres riram.
— Não se preocupe — disse Kassandra.
Após um toque com o sininho e uma breve
espera, Mulridge veio até elas. A criada não se
mostrava surpresa ao ser chamada. Ao contrário,
parecia estar esperando por aquilo.
— O cavalheiro ruivo chegou um pouco antes das
sete da manhã — informou ao ser questionada. —
Apresentou seu cartão a um dos guardas de Akora
que o conduziu até a sala de desjejum, onde os
cavalheiros tomavam o café da manhã. Alguns
momentos depois, foi recebido e permaneceu
durante aproximadamente dez minutos.
— Sempre fico impressionada com a sua
eficiência, Mulridge — Kassandra murmurou num
tom sincero.
— Obrigada, senhora.
— Você lembra do nome dele? — perguntou
Joanna. Mulridge hesitou durante alguns instantes.
— Bem, não tenho muita certeza, mas acho que
ele era um dos Hollister.
— Os Hollister? — indagou Joanna. — Eles
moram em Holyhood, não é? Não fica muito longe
de Hawkforte. Que interessante. Brianna, você está
bem?
À menção da possível identidade do cavalheiro
ruivo, Brianna não tivera nenhuma reação. Mas ao
ouvir o nome Holyhood.
Meses antes, ela havia estado na biblioteca,
observando um desenho do solar chamado
Holyhood, e preciosos lampejos de memória
surgiram num canto obscuro da sua mente. Tinha
poucas recordações, pelo menos dos primeiros oito
anos da sua vida. Todo fragmento, por minúsculo
que fosse, era apreciado.
Conhecia aquela casa. Havia estado lá.
E agora, alguém de Holyhood parecia estar
procurando por ela.
Tinha vivido por dezasseis anos em Akora.
Passara a juventude naquele lugar. Entendia o
delicado equilíbrio entre a condição dos guerreiros e
a das mulheres. Fora bem-educada na arte de tirar
o melhor dos homens.
Treinamento e instinto, ambos a ensinaram a ser
suave, paciente e tolerante. Mas o treinamento e o
instinto que fossem para inferno.
— Onde está Atreus? — perguntou, decidida.
— Ele tem uma reunião esta manhã com
auxiliares do governo e reuniões à tarde com líderes
empresariais — respondeu Joanna. — E o baile à
noite, é claro.
O baile. O evento para o qual a casa inteira havia
se preparado durante a última quinzena.
— Gostaria de ficar um pouco mais sentada aqui
— disse Kassandra.
Joanna suspirou e se ergueu.
— Venha, Brianna.
— O quê? Oh, sim, claro. — Sentia-se contente
em poder ajudar, mas no fundo da sua mente havia
o pensamento de que o baile não duraria para
sempre. Por fim, confrontaria Atreus.
Contudo, um pouco antes de meio-dia, parecia
que os preparativos para o baile jamais
terminariam. Os pisos recebiam uma última camada
de cera, e as janelas, um tratamento final. Toda
mobília estava sendo espanada e polida, e os
tapetes, escovados. E tinha-se a impressão de que
todas as flores existentes numa área de três
quilômetros haviam sido colocadas no interior da
casa. Aromas deliciosos impregnavam o ar. Criados
e criadas se apressavam de um lado para o outro,
seus passos cada vez mais rápidos à medida que o
dia ia passando. As lareiras tinham sido acesas em
todos os cômodos para espantar o frio do inverno,
proteger as flores e prevenir qualquer traço de
humidade.
Em meio a aquilo tudo, madame Duprès
apareceu para dar os retoques finais nos vestidos
das mulheres, e sua visita foi muito breve.
Após sua partida, ocorreu uma avalanche de
emergências.
— Leite nunca falha — murmurou Joanna,
tentando acalmar uma criada histérica, que havia
chamuscado um das toalhas de mesa de linho. —
Ponha um pouco de leite nisso.
— Os músicos chegaram — informou Mulridge a
Brianna, que era a única das três que se encontrava
no hall de entrada. — Mas a menos que eu esteja
enganada, um dos violinistas está bêbado.
— A cozinheira informou que os limões são
poucos — disse Kassandra ao sair da cozinha. — E
que não há salsa suficiente.
— Pelo amor de Deus, não diga nada a Joanna —
pediu Brianna. — A pobre criatura já tem coisas
demais com que se preocupar e subiu para cuidar de
Amélia.
— Joanna quis revisar os lugares à mesa mais
uma vez, para não haver desavenças e rivalidades.
Estou levando para ela a lista de convidados.
— Acha que foi uma boa ideia? — perguntou
Brianna enquanto subia os.degraus com Kassandra.
— Convidar os Partido liberal e os Torie? Se é
uma ideia boa ou não, eu não sei, mas há muito
tempo ninguém ousa fazer isso. Alex e Joanna,
provavelmente, são os únicos capazes de tal feito.
— Mesmo assim, está prometendo ser uma noite
interessante.
— Eu não a perderia por nada neste mundo.
Joanna pôs a cabeça para fora da porta do quarto
e, ao ver a lista de convidados na mão de
Kassandra, suspirou aliviada.
— Oh, que bom que você a trouxe. Soube há
pouco que lorde Bromley e lorde Duchemps
descobriram esta manhã que dividiram a mesma
amante durante o último ano e nenhum dos dois
está satisfeito com isso.
— Mas — disse Kassandra —, o fato
proporcionará a lady Bromley e lady Duchemps algo
para rir.
— Tudo parece maravilhoso lá embaixo —
comentou Brianna.
Joanna deu um sorriso de alívio.
— Graças a Deus! Ainda assim, receber os
Prinny, os Partido liberal e os Torie é um pouco
assustador. Não me imagino fazendo isso por outra
pessoa que não fosse Atreus.
Ah, sim, Atreus, que não saíra da mente de
Brianna durante todo o dia. Atreus e Hollister.
Hollister e Atreus. E Holyhood, o misterioso
Holyhood, envolto num sonho fragmentado.
Só houve tempo para um banho quente, antes de
a criada chegar para ajudá-la a se arrumar. Brianna
sentou-se em frente ao toucador enquanto seus
cabelos eram escovados e presos numa coroa de
cachos que pendiam do alto da cabeça até a altura
dos ombros. Ombros, pensou ela, expostos pelo
decote do vestido, criação de madame Duprès.
— Considerando que o baile é em homenagem ao
rei — decretara a costureira. — Seria melhor vestir-
se no estilo grego, n'est-ce pas?
— Não seria melhor se fosse no estilo akoreano?
— aventurara-se Brianna.
— Há alguma diferença?
— Em Akora, nos vestimos com mais
simplicidade.
— Oh, non. Simplicidade é para ordenhadeiras.
Quando Brianna se olhou no espelho achou o
vestido bonito, embora bastante ousado. Talvez
devesse ter prestado mais atenção.
Usar os ombros descobertos e um decote tão
profundo que expunha boa parte dos seios seria
apropriado?
— Oh, milady — disse Sarah. — Está
absolutamente divina!
— Sinto-me exposta demais. — Brianna deu uma
última olhadela no espelho e decidiu que não havia
nada a fazer em relação àquilo. O relógio marcava
nove horas e os convidados chegariam a qualquer
momento.
Agradecendo à criada, apressou-se em deixar o
quarto. Ao alcançar o meio do corredor, uma porta
se abriu. Atreus saiu e, ao vê-la, estacou.
— Brianna! — Os olhos escuros se prenderam
nos dela. — Ontem à noite achei que não pudesse
estar mais bonita, mas acho que estava enganado.
Brianna ouviu aquelas palavras como se tivessem
sido ditas ao longe. Toda a sua atenção se focava na
figura do rei. O corredor era largo e longo, o teto,
alto, contudo ele parecia dominá-lo. Vestia-se à
moda britânica, como na Carlton House, mas com
um colete vermelho-escuro que lhe emprestava um
esplendor primitivo ao que deveria ser uma
elegância simples.
Era deliberado, supôs ela, como tudo o que ele
fazia. Uma lembrança sutil do mundo exótico ao
qual pertencia. E para o qual ela tinha certeza de
que Atreus desejava voltar o mais breve possível.
Esperara o dia todo e não estava disposta a
esperar mais, no entanto antes que pudesse dizer
alguma coisa, Atreus tomou-lhe a mão e a levou aos
lábios.
— Está maravilhosa!
— Você também. — Sua voz soou bastante firme.
Disso, podia se orgulhar.
Ele sorriu e durante um momento procurou uma
sombra de vergonha no rosto dela.
— Acho que o colete é um pouco extravagante.
— Oh, não, fica-lhe muito bem.
Atreus a segurou pela mão enquanto desciam os
degraus.
— Os britânicos gostam de espalhafato — disse
ele. — Acho que a maior ofensa que eu poderia
causar ao príncipe regente seria aparecer em trajes
simples.
— Ele se importa bastante com aparências. —
Brianna estava assustada pela intimidade com que
Atreus a tocava e pela sua própria incapacidade de
contestar.
— Suponho que a aparência dos Partido liberal e
dos Torie esta noite será de suma importância.
— É o que penso. Embora, para ser franca, a rixa
entre eles me pareça bastante infantil.
— Os Partido liberal têm sido grandes amigos do
príncipe há muitos anos — Atreus começou. —
Encorajam os excessos do regente, elogiam suas
pretensões e, em geral, se esforçam ao extremo
para cultivar amizades, baseados na suposição de
que se e quando o rei louco for deposto, Prinny
tirará o poder dos Torie, colocando-o nas mãos
deles. Mas, como parece tão frequentemente
acontecer, suposições feitas quando o poder é
apenas um sonho tendem a mudar ao se tornarem
realidade.
— O príncipe decidiu que o desejo dos Partido
liberal de negociar a paz com Napoleão debilitaria o
trono britânico, o trono dele? — indagou Brianna.
— É o que parece. Royce e Alex acham que
Prinny vive apavorado com a possibilidade de uma
revolução e dizem que ele tem sonhos nos quais a
plebe grita, pedindo a sua cabeça.
— Menos conhaque e mais exercícios poderiam
aliviá-lo de tais pesadelos — Brianna completou num
tom mordaz.
— Sem dúvida, mas autodomínio não faz parte
da natureza do príncipe. No início deste ano, pelo
que soube, ele pediu a Royce que empreendesse
uma aproximação entre os Partido liberal e os Torie.
Isso é impossível, porque eles são inimigos políticos
há muito tempo e governados pela ambição. No
entanto, a reunião desta noite sob o mesmo teto
dará uma aparência de unidade, e é esse o desejo
de Prinny.
Brianna o fitou enquanto desciam os degraus.
— Isso jamais aconteceria sem a sua vinda à
Inglaterra. Nada mais
##contranger/forçar/obrigar/necessitar<<compeliri
a ambos os lados a se tolerarem, nem que fosse por
apenas algumas horas.
— Então, eu devo me sentir honrado?
— Não — ela respondeu, convicta, quando
chegaram ao último degrau. Joanna, Alex,
Kassandra e Royce os observavam com genuíno
interesse. — São os britânicos que deveriam se
sentir honrados — concluiu afastando a mão
suavemente.
Os britânicos estavam extremamente excitados
com as honras que lhes fora concedida, como ficou
mais do que evidente dentro do curtíssimo espaço
de tempo em que chegaram os primeiros
convidados. Embora Atreus e Alex se trajassem à
moda inglesa, haviam tomado o cuidado de dispor
uma fila de guerreiros akoreanos, com túnicas e
espadas, ao longo do hall de entrada do imenso
salão de baile.
Prinny entrou com o ar expectante de uma
criança antecipando delícias. Dirigiu-se diretamente
a Atreus e o cumprimentou com entusiasmo.
— Excelente noite para um baile, não acha?
Atreus concordou.
— Em Akora, só temos noites como esta nas
montanhas. Acho-as simplesmente revigorantes.
— Devo dizer que já estou sentindo uma dose
desse vigor. Lady Joanna, ouvi dizer que teremos
dança esta noite. É verdade?
— Se for do agrado de Vossa Alteza — respondeu
Joanna num tom cordial. Brianna jamais a ouvira
tratar o príncipe de outro modo, e ele parecia
apreciar o tratamento formal.
— Claro que é do meu agrado — declarou Prinny.
— Salões de baile espaçosos sem os tumultos
habituais.
— Ah, mas foi por isso que convidamos apenas
um grupo seleto — disse Alex, que se encontrava ao
lado da esposa.
— Já posso ouvir dentes rangendo aqui dentro —
declarou o príncipe, parecendo bastante satisfeito
com o fato.
Houve um certo clamor na entrada, quando
alguns dos que pretendiam chegar antes do príncipe
se apressaram para entrar. Prinny era conhecido por
não ver com bons olhos os que se atrasavam, ou
seja, aqueles que chegavam depois dele.
Lorde Liverpool fazia parte desse aglomerado,
bem como um homem de estatura baixa, chamado
Charles, segundo conde de Grey. E assim foi que o
líder dos Torie e o líder dos Partido liberal se
encontraram, apertados um contra o outro como
sardinhas no mesmo barril, o que, por certo,
significou alguns momentos bem incômodos para
ambos.
Separaram-se logo que foi possível e cada um
dos cavalheiros endireitou o traje e lançou um olhar
de desprezo ao outro. Mas Prinny percebeu e não
pôde deixar de rir.
— O mérito é seu, Royce. Suspeito de que tenha
sido ideia sua.
— Vossa Alteza me pediu para fazer o possível
para reunir ambos os lados — Royce apressou-se
em dizer.
O príncipe riu novamente, incitando os
convidados um pouco ofuscados ao seu redor a
fazerem o mesmo.
Joanna havia providenciado um cardápio bem
mais simples do que o servido na Carlton House.
Porém tivera também o cuidado de mandar prepará-
lo com os melhores e mais frescos ingredientes.
Prinny ficou surpreso a princípio, e depois, intrigado.
— Meu Deus! — exclamou depois de abocanhar
um pedaço de salmão defumado servido em folhas
verdes. — Não me lembro de ter comido nada mais
saboroso! Costumam servir isto em Akora?
— Somos um povo simples — respondeu Atreus.
— Oh, não — disse Prinny, agora saboreando um
pedaço de carne de boi ao molho de vinho tinto. —
Não vou cometer o erro de pensar tal coisa
novamente. Não, você é um homem refinado, isso
sim.
Sentada a poucas cadeiras do par real, Brianna
ergueu uma sobrancelha. Geralmente, o príncipe
regente concentrava-se tanto nas próprias
reclamações e temores, que não era capaz de ver
muito além. Mas agora, sua mente, que ainda era
surpreendentemente afiada, parecia ter voltado à
vida.
A noite seguiu seu curso num clima festivo. Lorde
Liverpool esforçou-se para fazer um aceno cordial na
direção do conde de Grey, que respondeu do mesmo
modo. Os dois cavalheiros não se falaram, mas não
chegaram às vias de fato. Isso devia ser considerado
uma vitória.
Lady Melbourne, mais conhecida como Aranha
por causa do instinto de tecer teias de intriga, por
certo pensaria assim.
— Que noite adorável! — disse ela a Brianna.
Tudo o que nós precisávamos.
O jantar terminou e a multidão se reuniu no
imenso salão de baile, onde os músicos,
aparentemente sóbrios, estavam acomodados numa
varanda. Começaram tocando um minueto, seguido
por um cotilhão. O príncipe concedeu a primeira
dança a Joanna, o que era correto, uma vez que era
a anfitriã. A segunda a Kassandra. Atreus convidou
lady Liverpool, que ficou extasiada com a honra.
Houve uma pausa, seguida por um burburinho de
vozes excitadas à espera da próxima música, que foi
uma valsa. Alex e Royce não hesitaram e se
moveram apressados para desencorajar qualquer
cavalheiro que tivesse a intenção de dançar com
Joanna ou Kassandra. Brianna desejava conseguir
um par, pois amava dançar valsa. E Atreus surgiu à
sua frente.
— Importa-se de me ajudar?
Não podia recusar, podia? Não depois de se
tornar cativa daquele olhar encantador. E, sem se
dar conta, sua mão já estava na dele. Atreus a
conduziu no meio aos olhares e murmúrios da
multidão. O último pensamento de Brianna, antes de
se ver envolvida por aqueles braços fortes, foi que
lady Melbourne e o restante dos convidados a
estariam avaliando e a invejando. Não se sentia
confortável com isso.
A mão de Atreus repousava firme na sua cintura,
segurando-a com precisão e a uma distância
apropriada. Movia-se com uma graça que nenhum
homem tinha o direito de possuir.
De repente, o salão e todos ao seu redor
desapareceram. Naquele instante, Brianna desejou
que o tempo parasse, que o dia jamais
amanhecesse, e que ela nunca saísse daqueles
braços que a mantinham distante do resto do
mundo.

O dia estava quase amanhecendo quando o


último convidado partiu. Uma densa neblina se
erguera rio acima e as colunas de vapor se
intensificaram continuamente, apenas permitindo
que as carruagens partissem escoltadas pelas luzes
das tochas empunhadas pelos cocheiros. Era o fim
apropriado para um dia que julgara se arrastar,
pensou Atreus. Mas que, apesar de tudo, tinha lhe
reservado algumas surpresas maravilhosas.
Uma dessas surpresas foi Brianna, cujo encanto
era insuperável. Sabia que ela era bonita, porém sua
força e doçura de espírito haviam sido uma
descoberta deveras feliz.
Quanto ao restante. Liverpool e os ministros do
governo eram homens com mentes lentas,
trabalhadoras, mas uma vez adeptos de uma ideia,
não a abandonavam facilmente. O fato de ele usar o
cansativo traje britânico e falar inglês, os fizeram
lembrar que a família do rei estava unida por
intermédio de dois matrimônios com duas das
famílias mais antigas e conceituadas das Ilhas
Britânicas. Levaram-nos a vê-lo não como um
bárbaro exótico, mas quase como um deles.
Ao mesmo tempo, Atreus procurara deixar bem
claro que Akora era uma nação orgulhosa, poderosa
e inabalável no propósito de defender sua soberania.
Desde a hora em que o evento começara até
terminar, o humor havia mudado de suspeita para
aceitação social.
Os poderosos homens de negócios eram outra
questão. Se os ministros exibiam mentes inflexíveis
como rochas, os cits, como eram chamados,
assemelhavam-se ao fogo, arremessando para aqui
e para acolá numa insaciável busca por combustível.
Seriam bem capazes de marchar através de
continentes inteiros, remodelando-os para que se
ajustassem as suas necessidades.
Mas não iriam a Akora, disso Atreus tinha
certeza. O reino fortificado não lhes daria as boas-
vindas. No entanto Akora viria até eles como já
fizera antes, pagando bem por seus interesses e
com perspectivas de bons negócios no futuro.
Poderiam ficar contentes com isso ou.
Para tais cavalheiros inteligentes, nada mais
precisaria ser dito. Se conhecessem o número exato
de navios estrangeiros que haviam desaparecido nas
águas de Akora nos últimos anos, poderiam fazer
uma estimativa aproximada e tirar as próprias
conclusões sobre a loucura de desafiar guerreiros
com reputação de estarem entre os mais valentes
do mundo.
Enfim, restava o príncipe regente.
Atreus exalou um longo suspiro. Como qualquer
homem nascido com tal privilégio e oportunidade, o
príncipe desperdiçava seu tempo na perseguição
insensata de prazeres.
Ao atravessar o hall de entrada, Atreus acenou
com a cabeça para os guardas.
— O príncipe Alexandros já se retirou, rei — disse
um dos oficiais. — Mas deixou instruções para
despertá-lo se desejar falar com ele.
— Não há necessidade. Já vou subir também.
— Deseja algo mais, senhor?
— Não, obrigado. — Desejando boa noite aos
guardas, caminhou pelo corredor que conduzia à
biblioteca. Um fogo acolhedor ainda ardia na lareira,
o que o deixou satisfeito. Aquecendo as mãos diante
das chamas, considerou se servir de um gole de
conhaque.
Mas o pensamento se evaporou quando um som
frouxo, quase imperceptível, alertou seus instintos
de guerreiro, que jamais adormeciam. Atreus virou-
se, deu três passadas largas e rápidas pela
biblioteca e agarrou com força uma figura que
espreitava nas sombras junto às janelas.
Sua primeira reação foi de choque ao se dar
conta de que estava segurando uma mulher. A
segunda, uma resposta puramente masculina, ao
perceber que ela era bonita. E então veio o
reconhecimento.
— Brianna?
A surpresa o enrijeceu. Ficou preocupado pelo
fato de que poderia tê-la machucado. O que ela
fazia ali na biblioteca àquela hora? Estaria sem sono
e à procura de distração? Mas ainda se encontrava
completamente vestida com o traje de baile, que lhe
enfatizava as curvas altas dos seios e a cintura
esbelta. Os cabelos permaneciam presos por uma
tiara, e uma cascata de cachos caía-lhe sobre os
ombros. Algumas mechas haviam se soltado e
emolduravam-lhe a face de camafeu. O delicado
perfume feminino, madressilva, era profundamente
perturbador.
— Pensei que já tivesse ido se deitar — disse ele,
libertando-a enquanto falava,
Brianna o fitou ao mesmo tempo em que
esfregava o pulso que Atreus apertara.
— Gostaria de falar com o senhor, meu soberano.
Não tive tempo antes, mas agora acho que devo.
A seriedade das suas maneiras e o emprego
formal do seu título o deixaram em alerta.
— Claro, mas não podia esperar até manhã?
— Prefiro que não.
— Entendo. — Ele indicou o gabinete junto às
janelas.
— Quer um conhaque?
— Não, obrigada. — Brianna respirou fundo.
Atreus suspeitou de que ela estivesse tomando
coragem para falar. Um momento depois, teve a
certeza.
— Gostaria de saber o que o conde de Hollister
veio fazer aqui.
Atreus se surpreendeu. No momento em que a
havia reconhecido, percebera que o assunto de fato
devia ser sério para Brianna procurá-lo em tais
circunstâncias. Ainda assim, não estava
completamente preparado para o que considerou
tratar-se de uma grande audácia da parte dela.
— Posso lhe perguntar como tomou
conhecimento disso?
— Eu o vi partir esta manhã. — Brianna olhou
para o relógio sobre o toalha e se corrigiu. — Ontem
de manhã. Reconheci-o como sendo o homem que
ficou me encarando o tempo todo à mesa de jantar
da Carlton House. Fiz algumas perguntas e descobri
seu nome.
— E concluiu que a visita teve algo a ver com
você?
— O solar dos Hollister é Holyhood, certo?
— Acredito que sim.
— Eu estive em Holyhood.
Aquilo era de fato inesperado e, durante um
momento, Atreus não soube como lidar com aquela
declaração.
— Como pode saber uma coisa dessas? —
perguntou por fim.
Brianna fez um breve relato. Sua voz soava baixa
e tensa, enquanto descrevia ter achado o desenho
de Holyhood e percebido que o reconhecia.
— Estive lá — repetiu. — Não sei exatamente
quando ou por que, mas tenho certeza disso.
William Hollister agiu de modo estranho quando me
viu e então veio aqui. Quero saber por quê.
— Hollister acha que você se parece demais com
uma prima dele.
— Prima? Quem era ela?
— Seu nome era sra. Delphine Hollister. Casou-
se com um homem chamado Edward Wilcox. E
tiveram uma filha chamada Brianna.
— Oh, meu Deus! — Levando a mão à boca, ela
cambaleou para trás, apenas um passo, antes de se
equilibrar. Atreus correu a fim de ampará-la.
— Sinto muito. Não deveria ter-lhe falado desse
modo. Sente-se aqui.
Brianna permitiu que ele a conduzisse até o sofá
e se sentasse a seu lado. Podia senti-la tremendo e
foi dominado pela necessidade de acalmá-la. Parecia
tão inesperadamente frágil nos seus braços. Ou
assim pensou até que ela se endireitou de repente e
o repeliu.
— Quando pretendia me contar?
— Contar.
Brianna se virou para encará-lo, os olhos
brilhando de raiva.
— Hollister veio procurá-lo porque me
reconheceu. Deve saber aquilo que eu por dezasseis
anos tentei descobrir. Quando pretendia me contar?
— acrescentou, irritada. — Ou não era essa a sua
intenção?
O vento sacudiu as janelas. Atreus se ergueu e a
fitou.
— Brianna, não ouse falar comigo nesse tom.
Em um piscar de olhos, ela também se pôs de
pé.
— Porque não? Porque é o rei? O todo-poderoso?
Não tem o direito de decidir a vida dos outros!
— Tenho todo o direito e responsabilidade. Agora
se acalme e sente-se.
Furiosa, Brianna o fitou por mais um longo
momento, então recuperou o controle. No entanto,
não se sentou.
— Prefiro ficar de pé.
Atreus lhe permitiu aquela pequena vitória,
porém agora estava em alerta, atento ao fato de ela
não ser tão ##sensata/prudente<< cordata quanto
ele esperava. Mas desejava uma esposa
##sensata/prudente<< cordata? Não se recordava
de ter pensado sobre isso e se deu conta de que
havia presumido que sua esposa simplesmente
aceitaria sua autoridade em todos os assuntos. O
problema era que Brianna parecia que não.
— Depois de ouvir o que o conde tinha a dizer,
decidi descobrir algumas coisas sobre os Hollister.
Queria saber o que você encontraria, se deveria
entrar em contato com eles ou não.
— Quis me proteger? — O tom deixava claro o
que ela pensava sobre aquilo.
— É tão difícil de aceitar?
— Não quero ser protegida. Quero a verdade! —
Deu um suspiro profundo, expelindo um pouco da
raiva que sentia. — Não pode imaginar o quanto isso
é importante para mim. Durante toda a sua vida
soube a quem pertencia. Nunca teve dúvidas com
relação a sua identidade. Mas para mim. sempre
houve perguntas ou pelo menos desde quando
consigo me lembrar. Amo minha família. Meus pais
são pessoas maravilhosas, bem como meus irmãos,
minha tia, todos eles. E amo Akora. Agradeço a
Deus por ter ido parar naquele lugar maravilhoso.
Mas isso não é o bastante. Preciso descobrir a
verdade.
Tinha que lhe contar, pensou Atreus. Brianna mal
havia acabado de proferir a frase, quando ele
percebeu tal fato. Todos os pensamentos de negar
as informações se esvaíram. Não podia agir daquele
modo.
— Sente-se — repetiu ele e, dessa vez, Brianna
obedeceu.
— Porque ele desaprovava o casamento —
explicou Atreus pouco tempo depois. — Seu avô
repudiou sua mãe. Pelo que o conde sabe, não
houve outro contato entre eles.
Brianna tomou um gole do conhaque que lhe fora
oferecido. O líquido ardente espantou o frio que a
atingia enquanto ouvia a história.
— Hollister está enganado. Deve ter havido pelo
menos um último encontro entre eles e deve ter sido
em Holyhood, caso contrário, eu não poderia me
lembrar de ter estado lá.
— Parece que sim — concordou Atreus. Ele se
mostrava sério, os olhos sombreados pela
preocupação.
E também estava devastadoramente bonito e
másculo. Os ombros largos e a inclinação altiva da
cabeça atraíam e prendiam o olhar de Brianna. Uma
mecha dos cabelos cor de ébano caiu sobre a
sobrancelha grossa. Ela crispou os dedos para lutar
contra o desejo irresistível de tocá-la.
Conhecia os detalhes daquele corpo masculino,
ajudara a cuidar dele quando fora ferido. Mas isso
parecia ter acontecido numa outra vida. Conhecia a
sombra daqueles pestanas de encontro às faces
esguias, a curva do queixo anguloso, as várias
cicatrizes que acentuavam, mais do que arruinavam,
sua beleza. Era incrivelmente bonito, embora ele
não tivesse noção desse fato. Ruborizava ao ouvir
um elogio.
Um homem capaz de virar a cabeça de qualquer
mulher, contudo alheio ao seu poder de atração.
A mente de Brianna se tornou teimosa de
repente e não conseguia mantê-la sob controle.
Tampouco podia acreditar que ousara desafiá-lo da
maneira como havia feito.
Passara o dia todo fortalecendo aquela resolução.
Iria confrontá-lo. Exigiria que ele lhe dissesse a
verdade. Não se intimidaria diante do seu poder, da
sua presença. do seu impacto devastador.
E assim o fizera, e como por milagre, ele tinha
lhe contado o que ela queria saber. E agora estava
sentado a seu lado, a mão sobre a sua, oferecendo-
lhe apoio.
— Meus pais morreram. — disse Brianna,
procurando repelir a terrível dor, tão viva e real, a
sombra que pairava sobre sua vida.
Lá fora, além das janelas altas, a névoa
começava a se dissipar levada pelo vento.
— Mas você sobreviveu — Atreus murmurou num
tom suave. — Esse com certeza devia ser o desejo
dos seus pais.
— Quase não me lembro deles. Eram meus pais,
me deram a vida e, com toda a certeza, me amaram
durante oito anos. Mas não tenho quase nada dos
dois.
— Do que você se lembra? — perguntou Atreus,
apertando-lhe a mão.
— Muito pouco. Alguns fragmentos de uma voz
que cantava. Minha mãe, suponho. Um momento
maravilhoso. virando no espaço. Acho que devia ser
meu pai me erguendo nos ombros. Muito pouco.
— Nem tanto. Você tem a si mesma. Brianna o
encarou.
— O que quer dizer?
— Percebo que sua família em Akora a ajudou a
crescer e a se tornar a pessoa que é. Mas muito de
você vem dos seus pais biológicos. Se olhar para
dentro de si, por certo vai achar algo deles.
Não costumava para dentro de si mesma, pensou
ela. Pelo menos não com muita frequência. Porque
achava que poderia ser assustador.
— Nunca pensei nisso.
— Então faça-o agora. Pense no que a faz
diferente da sua família de Akora. Não
necessariamente algo muito grande ou óbvio, mas
pequenas coisas.
Pequenas coisas era algo seguro. Poderia encará-
las.
— Prefiro ficar sozinha a ter a companhia de
qualquer um deles, que são sociáveis, enquanto eu,
não.
— Aí está. Talvez você tenha nascido desse
modo. O que mais?
— Não posso comer morangos, me dão urticária.
Ninguém lá em casa reage desse modo.
— Morangos? Terei que me lembrar disso.
Ela poderia ter perguntado por que, mas a
possível resposta a alarmava.
— Atreus. — Ele estava tão próximo que sua
força e seu calor a atraíam.
— Sim?
— Você quer me dizer alguma coisa?
— Não é. tão simples assim. Pensei em esperar
um pouco. — disse ele, deixando-a mais confusa.
Conaquilo tudo não importava mais, pois naquele
momento a boca de Atreus tomou posse da sua, não
com suavidade como ela havia imaginado, mas
faminta e exigente. E maravilhosa, total e
completamente maravilhosa, satisfazendo um pouco
da necessidade que existia dentro dela, até então
desconhecida.
Santo Deus, o homem sabia beijar! Não
importava que nunca tivesse sido beijada antes,
pelo menos não daquele jeito.
Brianna era uma jovem com um bom nível de
educação, o que significava dizer que possuía um
vasto arsenal de informações teóricas sobre o
relacionamento entre um homem e uma mulher.
Ninguém em Akora cometia o erro de acreditar que
ignorância e inocência caminhavam lado a lado.
Mas, nada daquilo a havia preparado para a
realidade total e opressiva de Atreus.
De repente, viu-se tomada por um desejo tão
ardente, tão poderoso. Não podia pensar, não era
capaz de respirar e nada mais importava. Nada
importava a não ser aquela boca, a força daqueles
braços ao seu redor e uma súbita e perturbadora
sensação de bem-estar.
Naquele momento suspenso no tempo, nada
mais existia. Transformara-se em alguém que ela
mal se reconhecia.
Até que Atreus se afastou abruptamente, os
olhos muito escuros a encarando.
— Vá para a cama — disse ele num tom áspero.
— O quê?
Ele se ergueu, caminhou apressado até as
janelas, colocando um pouco de distância entre os
dois. Com as mãos apoiadas nos quadris,
permaneceu de costas para Brianna.
— Vá para a cama.
Estava sendo repudiada. Recebendo ordens de ir
para a cama como se fosse uma criança
desobediente.
Um misto de fúria e embaraço surgiu dentro dela,
mas durou apenas um breve momento.
— Atreus.
— Meu. autocontrole não se mostrou tão
poderoso quanto deveria — admitiu ele. A relutância
para reconhecer tal fato era quase palpável. — Sinto
muito. Você deve se recolher.
A fúria desapareceu. Bem como o embaraço, pelo
menos a maior parte. Brianna estava atordoada,
confusa e apreensiva. Que estranha reviravolta de
eventos! Que complicação inesperada surgira na sua
vida, justo quando se preparava para enfrentar a
questão já bastante complicada sobre sua
identidade.
Na realidade, não podia haver nada entre ela e o
rei de Akora. Mas, mesmo assim.
Santo Deus, o homem era um mestre na arte de
beijar!
— Boa noite. Atreus.
Ele não a encarou, mas Brianna o viu acenar com
a cabeça. A voz máscula soou profunda e
estranhamente suave quando ele murmurou:
— Tenha sonhos agradáveis, Brianna.
Para surpresa de Brianna seus sonhos foram
bastante agradáveis. Despertou com a sensação de
que tudo havia sido um sonho. Aquilo não podia ter
acontecido, nem sua ousadia nem as consequências
que resultaram e, em especial, aquele beijo.
Mas havia um langor bem fundo dentro dela,
contrastando com a excitação que fê-la se levantar
da cama e caminhar até as janelas para contemplar
o novo dia.
A névoa se dissipara totalmente. A geada cobria
a relva e um vento cortante de inverno circulava
entre os galhos das árvores despidas no jardim. O
céu cinzento e carregado indicava que o tempo
poderia piorar.
Uma das eficientes criadas já havia acendido a
lareira e colocado água aquecida no jarro de
porcelana. Grata por ambos, Brianna se vestiu.
Escolheu um vestido com cintura alta, amarelo-
claro, com bordados ao redor da bainha e flores
minúsculas. O traje era um desafio ao dia cinzento.
Soltou os cabelos e forçou-se a permanecer
desperta o bastante para poder trançá-los. Em
seguida, prendeu-os na altura da nuca com uma tira
de seda verde que combinava com os sapatos.
Colocou um manto rendilhado da mesma cor verde
sobre os ombros e saiu para o corredor.
O silêncio reinava no recinto. Em algum lugar da
casa, os criados cumpriam seus deveres. Brianna
não viu ninguém até descer os degraus que levavam
ao saguão de entrada. Como sempre, os guardas de
Akora estavam nos seus postos. Os homens fizeram
um aceno cordial com a cabeça ao vê-la passar.
Apenas quando alcançou a sala de estar, ela
percebeu que devia ser mais tarde do que supunha.
Tendo madrugado durante a vida toda, pensou a
princípio que o relógio sobre o toalha estava
adiantado. Não podiam ser duas horas da tarde!
Indecisa, tocou o sininho bem perto da porta.
A criada apareceu quase de imediato.
— Boa tarde, milady.
Com um olho no relógio, Brianna perguntou.
— Dormi até tão tarde assim?
— Parece que sim. Lady Joanna estava bastante
preocupada, mas pensou que milady necessitasse de
descanso. Pediu-me para avisá-la que ela e a
princesa Kassandra foram até a Bond Street fazer
compras de Natal. E que seria bem-vinda se
quisesse pegar uma das carruagens e se unir a elas.
Embora apreciasse a companhia das amigas,
fazer compras não era um dos seus passatempos
prediletos. Em vez disso, pensou em ir até a
biblioteca, ler um bom livro, aquecida por um fogo
acolhedor. No mesmo instante, pensou em Atreus.
De imediato, a lembrança obscureceu todas as
outras considerações, incluindo o que Sarah estava
dizendo.
— Chá, milady? — repetiu a criada. — E algo
para acompanhar? Vai ajudá-la a despertar
completamente. A cozinheira está experimentando
uma nova receita de crepes franceses. Acho que é
assim que se chamam. Oh, e há torta de morangos
que foram enviados pelo jardineiro de Hawkforte.
Não pode deixar de provar.
— Nada de morangos — declarou uma voz grave
vinda da porta.
Brianna virou-se e deparou com Atreus. Mas não
com a figura do rei que se acostumara a ver. A
barba crescida de uma noite sombreava-lhe o
maxilar, os cabelos caíam-lhe desalinhados sobre a
testa, e a camisa, aberta no colarinho, não estava
enfiada por dentro da calça. Apoiado no batente da
porta, tinha os braços cruzados sobre o tórax e
exibia um brilho nos olhos que.
— Sarah — saudou-a com um sorriso — Poderia
me trazer um pouco de café?
A criada ruborizou e assentiu com a cabeça.
— Claro, Vossa Alteza. Café. imediatamente. Oh,
esqueci. Milady quer algo mais?
— Acho que não, obrigada.
— Por certo milady irá mudar de ideia, Sarah.
Traga crepes, mas sem morangos. Brianna é
alérgica a eles.
— Oh, imaginei. — A criada tomou fôlego, com as
faces ainda mais vermelhas. Apressou-se em direção
à cozinha, mas não sem lançar um último olhar ao
casal.
O tique-taque do relógio soava ruidosamente.
Talvez de fato houvesse algo errado com o aparelho.
Relógios não deviam soar tão alto, deviam?
— Seu vestido é lindo como um dia de primavera
— Atreus elogiou.
O relógio foi esquecido, Brianna procurou
recuperar sua compostura, a qual parecia ter
perdido.
— Obrigada. — Ele estava sendo encantador,
mas não era correto lhe dizer tal coisa. Ainda lhe
restava um senso de certo e errado. — Você não foi
para a cama? — Oh, que brilhante! Mostrar
preocupação por uma questão tão pessoal, e o que
era pior, falar de cama! Ela censurou-se em
pensamento.
— Não — respondeu Atreus com um sorriso. —
Decidi que o restante da noite seria adequado para
ler do princípio ao fim os relatórios que Alex e Royce
prepararam sobre todos os possíveis detalhes da
situação atual na Inglaterra. Quando o dia por fim
amanheceu, acabei cochilando na biblioteca.
— Todos os possíveis detalhes? — Brianna
indagou, apenas porque não tinha nenhuma ideia do
que dizer. Aquele novo Atreus, aparentemente
relaxado, era ainda mais sensual do que o homem
que ela encontrara na noite anterior. E bem mais
atraente.
— Interessa-se por tais assuntos? Quer saber
porque os camponeses e os trabalhadores são
contra a industrialização? As queixas deles parecem
mais do que justificadas, mas os objetivos são
totalmente irreais. — Atreus contornou a mesa,
parando para brincar com um jogo de facas. Virando
o utensílio à toa, ele a fitou. — Ou quer saber sobre
a perspectiva de guerra contra Napoleão? Houve
tantos retrocessos que os britânicos poderiam ser
perdoados por pensarem que não são capazes de
ganhar. E a situação militar está oscilando a favor
deles.
— E a América? — Brianna quis saber. — Eles
estão em guerra lá também.
— Isso é uma questão diferente. Alex e Royce
pensam que a Inglaterra vai perder novamente, e
eu concordo. De qualquer modo. — Atreus pousou a
faca e a encarou mais uma vez. — Perdoe-me, não
imaginei que se interessasse por tais assuntos. O
que acha do poeta Byron?
— Poesia me entedia. Mas acho as ações das
nações interessantes.
— Estou fadado a subestimá-la?
Brianna foi impedida de responder pelo retorno
de Sarah. A criada parecia um pouco esbaforida, o
que era bastante compreensível, considerando que
voltara com o café em tempo recorde.
— Seu café, Vossa Alteza — disse ela, pousando
a bandeja. — E seu chá, milady. Os crepes logo,
logo ficarão prontos. Mas a cozinheira enviou estes
bolinhos de aveia redondos, uma cesta de fruta,
chá, geleia e um pouco de bolo de limão, para
comerem enquanto esperam.
— Excelente ideia da cozinheira — declarou
Atreus.
— Também há ovos, se desejar, bastante bacon
do bom, mas a cozinheira não recomenda o
presunto porque está muito salgado.
— Os crepes e tudo isto já é o suficiente.
— Sim, senhor. Direi a ela.
— Você realmente prefere chá? — perguntou
Atreus quando Sarah saiu apressada.
— Desenvolvi um gosto pela bebida ou talvez
porque o sabor me traga lembranças — respondeu
Brianna, sentando-se.
Atreus acomodou-se no assento oposto e
assentiu com a cabeça.
— Lembrou-se de algo mais?
— Não que eu esteja ciente. Há alguma razão
particular que o levou a pensar dessa maneira?
— Sua tia Helena me disse que às vezes um
choque súbito restabelece a memória. Descobrir
sobre seus pais poderia ter contribuído para tal.
Em vez de enfatizar o fato que havia recebido um
segundo choque na noite anterior quando ele a
beijara, Brianna perguntou:
— Como foi discutir esse assunto com minha tia?
Atreus hesitou. Brianna estava destinada a ser
sua esposa. Esperava poder falar com ela sobre
assuntos que não discutiria com nenhuma outra
pessoa.
— Quando recuperei a consciência depois do
atentado contra a minha vida, fiquei com alguns
lapsos de memória. Helena acreditou que se
curariam com o tempo e ela tinha razão. Mas
também disse que às vezes um choque restabelece
a memória.
— Minha tia tentou durante anos me ajudar a
recuperar a minha — disse Brianna num tom suave.
Atreus esperou até que ela tivesse tomado um
gole do chá.
— Helena também me disse que em certos casos
pode haver uma razão para a memória não voltar.
Brianna pousou a xícara com ruído.
— É? Que interessante!
Naquela ocasião, Atreus desejara saber se Helena
poderia esclarecer algo a respeito da sobrinha, mas
isso fazia pouco sentido. O que, possivelmente,
Brianna não desejaria lembrar?
— Crepes, Vossa Alteza — anunciou Sarah,
entrando na sala. — Deliciosos e quentinhos, com
recheio de maçã. — Sorrindo para Brianna, ela
acrescentou: — Nada de morangos.
— Excelente — disse Atreus.
— Obrigada, Sarah.
A criada terminou de servi-los e saiu apressada,
sem dúvida para contar aos outros criados que o rei
de Akora era tão cortês quanto bonito, pensou
Brianna.
— Hoje à noite temos um evento no teatro, não é
mesmo? — observou Atreus.
— Acho que sim.
Ele bocejou de repente, incitando-a a perguntar.
— Conseguirá ficar acordado?
— Oh, sim — assegurou Atreus com um sorriso.
— No treinamento para guerreiros, ficamos dias sem
dormir. — Seu sorriso se alargou. Realmente era um
sorriso bastante devastador, muito injusto dado as
circunstâncias. Ele tinha a barba por fazer, usava
roupas amassadas por ter dormido literalmente em
cima delas e os olhos avermelhados de fadiga. E
ainda assim era o homem mais atraente que Brianna
já vira em toda sua vida. Completamente injusto.
— Na ocasião — Atreus continuou —, desejei
saber se havia alguma necessidade particular para
aquela experiência.
— Você questionou a utilidade de algum dos
aspectos do seu treinamento?
— Questionei vários. Porque isso a deixa
surpresa?
— Imaginei que fosse mais enraizado à tradição,
que não a questionasse — falou com sinceridade.
— Embora vivendo no palácio, deve estar alheia
às mudanças que estou tentando fazer em Akora.
Cuidado, sussurrou a mente de Brianna. Tenha
muito cuidado.
— Sei que aceitará a aquisição de armas
modernas, porque, caso contrário, ficaríamos muito
vulneráveis. Mas todo rei ao longo da história teve
certeza de que os nossos guerreiros seriam capazes
de nos defender corretamente contra qualquer
inimigo. Não há nada de novo nisso.
— Há muito mais coisas envolvidas do que meras
armas — disse Atreus. — Há um novo modo de
pensar já aplicado em vários lugares, como a
Inglaterra e América. As pessoas perceberam que
podem fazer mais, aspirar mais, que não têm
simplesmente de aceitar o que sempre foi. Estão
achando soluções novas para velhos problemas, e a
cada passo que dão, ganham mais confiança nas
próprias habilidades. É uma espécie de revolução.
— Soa como se você aprovasse isso. — Brianna
não pôde esconder sua surpresa.
— Nem aprovo nem desaprovo. aceite a realidade
do que está acontecendo e suas implicações para
Akora. Algumas coisas que virão serão boas, e
outras, ruins, o que é inevitável sempre que os
seres humanos fazem qualquer coisa. Mas, acima de
tudo, é uma realidade e temos que lidar com ela.
— Você precisa perceber que a Inglaterra e a
América têm algo em comum além da vontade de
abraçar modos novos.
Atreus a fitou, muito de perto.
— E o que seria isso? — inquiriu ele.
— Eles concedem mais liberdade ao povo e há
uma maior franqueza por parte do governo do que
em qualquer outro lugar do mundo.
— É verdade — concordou Atreus. — Mas de um
modo limitado — acrescentou. — Akora é muito
mais libertal.
— Como pode dizer tal coisa? Os akoreanos nem
mesmo podem votar.
— Nem a maioria dos ingleses ou americanos.
Apenas uma pequena porcentagem pode opinar
sobre o governo. Mas em Akora é completamente
diferente. Todo mundo pode ir até o palácio.
Homens e mulheres podem falar em assembléia e
diretamente comigo, se assim desejarem. Tem
alguma ideia de quanto tempo gasto lendo
sugestões, comentários ou simples observações que
me são enviadas todos os dias pelos akoreanos?
— Mas você não tem que agir conforme eles
dizem. Pode fazer simplesmente tudo de que gosta.
— Tudo de que eu gosto? — Atreus a fitou,
surpreso. — Eu tenho de fazer o que é certo para
Akora. Minhas próprias preferências não contam.
— O que o impede de decidir que o que você
deseja é o que é certo para Akora?
— Sobrevivi ao processo de seleção porque faria
o que era bom para Akora acima de todas as outras
considerações.
— O velho e misterioso processo de seleção
sobre o qual quase ninguém sabe muita coisa.
Porque não pode ser mais aberto?
— Não é tão simples.
— Você passou por algum tipo de ritual, algo
aconteceu. E quando terminou, foi reconhecido
como rei. Isso não parece tão complicado que não
possa ser discutido.
— Acho que você não entende isso pelo fato de
não ter nascido em Akora. Eu não pensei que
pudesse ser, mas.
A possibilidade parecia aborrecê-lo ou talvez
estivesse simplesmente perplexo. Brianna não tinha
certeza e não dispunha de tempo para considerar tal
fato, porque justo nesse momento, ouviu-se um
ruído no hall de entrada e o som de vozes
familiares.
— Deus, que frio! — Kassandra exclamou,
unindo-se a eles na sala de estar. A princesa tinha
as faces vermelhas e se apressou para esquentar as
mãos perto do fogo. — A Bond Street estava
maravilhosa. As lojas lindamente enfeitadas.
Brianna, você deveria ter ido connosco. Mas
levantou muito tarde, não é?
Kassandra e Joanna trocaram olhares. E, em
seguida, olharam para Atreus, que se erguera ao vê-
las chegar e as fitava com uma precaução afetuosa.
— Senhoras — ele as saudou. — Peço licença
para me retirar, porque estou esperando vários
membros do governo e preciso me barbear antes de
recebê-los.
Mal Atreus deixou a sala, Joanna sentou-se ao
lado de Brianna, e Kassandra reivindicou o outro
lado.
— Teve a chance de perguntar a Atreus sobre
Hollister? — Joanna indagou num tom casual.
— O que ele lhe disse? — quis saber Kassandra.
Brianna respirou fundo. Embora apreciasse o
interesse das amigas, não conseguia encontrar
palavras para falar.
— Brianna — começou Joanna com voz suave. —
O que aconteceu? Conte-nos.
— Você falou com Atreus, não foi? —. insistiu
Kassandra. — O que ele disse?
— Não é tão simples — murmurou Brianna,
assustada ao perceber que havia repetido as
palavras de Atreus.

Capítulo II

— É difícil expressar toda a alegria que sinto em


saber que a filha de Delphine está viva — disse o
conde de Hollister. — Sua mãe e eu éramos íntimos
como irmãos. Nunca me conformei com a morte dela
nem perdi a esperança de que ela pudesse voltar
um dia.
Uma voz cantando alegremente. chamando-a.
gritando além do bramir das ondas: aguente firme,
Bri! Aguente firme! A voz silenciou.
— Como eu gostaria que ela pudesse estar aqui
connosco — Brianna murmurou num tom suave.
Ambos se encontravam sentados na sala de
estar, contemplando um ao outro e segurando
chávenas de chá ainda não tocadas. A visão de
pequenos sanduíches com pasta de salmão,
biscoitos de amêndoa, bolinhos de aveia, geleia e
amanteigados, em formato de rosas, fizera o
estômago de Brianna reclamar. Estava nervosa,
embora continuasse tentando se convencer de que
não havia razão para tal. Hollister era um homem
bastante atencioso. Além disso, parecia tão ansioso
quanto ela.
Embora ele fizesse um esforço óbvio para evitar,
seu olhar escapuliu na direção do homem que se
encontrava a uma curta distância, perto das janelas
que davam vista para o jardim. Atreus falara pouco
após as apresentações iniciais, mas sua presença
silenciosa dominava o ambiente. Estava de pé,
austeramente vestido de preto, observando os dois.
— O senhor conheceu meu pai também? —
perguntou Brianna.
O ar fluindo apressado ao seu redor, enquanto
era erguida bem alto, seu próprio riso assustado.
Braços fortes e protetores. De repente, tudo sumiu.
— Lamento não tê-lo conhecido. Mas tenho
certeza de que se Delphine o escolheu, certamente
era um homem muito bom.
Não iria chorar. De modo algum, pensou Brianna.
Havia desejado tanto encontrar alguém que
conhecesse seus pais, que se esforçaria para
conduzir aquela reunião com dignidade. Embora
fosse extremamente difícil.
— Gostaria de saber se sou capaz de desenvolver
um gosto por chá. — Atreus aproximou-se,
acomodando-se ao lado dela. Seus olhares se
encontraram. — Importa-se de me oferecer uma
xícara, Brianna?
— Ora, é claro que não — respondeu ela,
procurando um fragmento de orgulho na firmeza da
voz. Suas mãos estavam trêmulas, mas administrou
bem a tarefa. Apenas algumas gotas arruinaram a
brancura do guardanapo sob o bule. — Sanduíche?
— perguntou, oferecendo-lhe o prato.
Atreus os fitou com um ar de dúvida.
— Com todo o respeito à cozinheira, prefiro
salmão grelhado na brasa e acompanhado de um
bom vinho.
— Sou da mesma opinião — Hollister concordou.
— Vocês costumam pescar em Akora? — quis saber.
— Temos problemas ocasionalmente com
tubarões.
— Tubarões? — O conde riu, um pouco nervoso.
— Para ser sincero, prefiro as trutas. Em Holyhood,
temos algumas de água doce muito saborosas. —
Sua querida mãe tinha uma mão muito boa com o
anzol — dirigiu-se a Brianna. — Talvez você também
tenha a mesma habilidade.
— Quem sabe. — O olhar dela se voltou para
Atreus. Não que estivesse procurando sua
permissão, definitivamente não. Mas queria algum
sinal, alguma indicação de que ele entendia o seu
desejo.
Além disso, gostaria de saber porque a opinião
dele era tão importante para ela.
— Holyhood é perto de Hawkforte, não é? —
perguntou Atreus.
Hollister fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— Sim, é. De fato, diz a lenda que Holyhood
pertenceu aos lordes de Hawkforte por muitas
gerações.
Brianna jamais ouvira tal coisa.
— Verdade?
— Oh, sim. — Hollister exibia o olhar de um
homem discorrendo sobre seu assunto favorito. —
Há uma história fascinante sobre Holyhood e suas
origens. Isso pode muito bem ser verdade.
— O quê? — Atreus indagou.
— Bem, há uma linda dama envolvida, é claro. É
comum nesse tipo de história. Dizem que ela era a
irmã do primeiro lorde de Hawkforte e possuía um
raro dom que lhe tornava possível sentir a dor alheia
e curá-la. De acordo com a história, ela foi notada
por um viking valente que, cansado de tantas
batalhas, desejava estabelecer a paz. Um mal-
entendido aconteceu entre os dois, e ele a levou de
Holyhood à força. Mas logo se viu enfeitiçado pela
sua beleza e bondade, enquanto ela começou a
respeitá-lo por sua coragem e honra. Dizem que se
apaixonaram profundamente. Juntos, e com ajuda
de outros, conseguiram transformar o sonho da paz
em realidade.
— Ouvi dizer que o primeiro lorde de Hawkforte
teria se casado com uma mulher escandinava como
parte da procura pela paz — observou Atreus. —
Também há boatos de que teria havido um terceiro
casamento de um outro lorde viking com uma
inglesa que possuía um dom raro.
— Está familiarizado com essas histórias,
Majestade? — Hollister viu-se curioso.
— Como Hawkforte está duas vezes unido à
minha própria família, através do casamento, fiz
questão de conhecer sua história.
— A família de Hawkforte é a mais nobre no reino
— disse o conde. — A maior honra da minha família
é descender deles.
— Eu não havia pensado por esse lado —
declarou Brianna. — Mas isso significa que sou
parente de Joanna e Royce. — Ela olhou para
Atreus. — Um descendente da família deles veio
para Akora e se casou com um membro da sua
família, logo somos, de fato, todos parentes.
As implicações da descoberta caíram lentamente
sobre ela. Kassandra e Joanna haviam falado dos
seus dons como parte de um legado familiar
partilhado. Agora, parecia que aquele legado a
incluía também. Seria possível encontrar, entre as
pessoas que experimentavam tais coisas, um pouco
de conhecimento sobre a terrível dúvida que a
assombrava?
— Assim parece. — Atreus pousou a xícara de
chá ainda intata. — Embora a ligação seja muito
distante. — Você informou sua família? — perguntou
ele a Hollister.
O conde assentiu com a cabeça.
— Minha esposa, lady Constance, está totalmente
atônita. Ela também conheceu Delphine, entende?
Éramos todos amigos nos velhos tempos, e
Constance ficou bastante emocionada só de pensar
em receber Brianna em Holyhood. Talvez eu deva
contar um pouco mais sobre a minha família. Temos
três filhos, o primogênito casou-se e recentemente
tornou-se pai. Constance ficou muito feliz em ganhar
uma nora e agora espera ter outra. Já está fazendo
planos.
— Que tipo de planos? — Atreus indagou antes
que Brianna pudesse fazer a mesma pergunta.
— Oh, só o habitual. Uma apresentação
apropriada à sociedade, esse tipo de coisa.
— Brianna já foi apresentada à sociedade. E foi
recebida pelo príncipe regente na Carlton House.
— Bem, suponho que sim. Acredito que
Constance tenha em mente algo mais pessoal, uma
apresentação mais apropriada para Brianna.
— Com que propósito? — inquiriu Atreus, muito
sério. Hollister tossiu. Parecia que o chá não
combinava com ele.
— O habitual. Uma jovem. Uma vida pela frente.
É aconselhável conhecer certo tipo de pessoas.
— De fato, acho que seria melhor me ensinar a
pescar — Brianna apressou-se em dizer.
Atreus riu ao mesmo tempo em que Hollister
tentou evitar um sorriso.
— Passaremos o Natal em Hawkforte — disse o
rei de Akora. — Como Holyhood é perto, Brianna
poderá ir visitá-los. — Ele fez uma pausa. — Se for
da vontade dela.
— Sim, eu desejo ir — ela declarou num tom
firme, embora não sentisse tanta convicção. Lady
Constance e seus planos a haviam deixado
apreensiva. Ganhar uma família inglesa parecia
requerer bem mais do que imaginara.
— Bem, neste caso nós a esperaremos. —
Hollister levantou-se e ofereceu a mão a Brianna. —
Minha querida, permita-me dizer novamente o
quanto estou feliz. pelo fato de estar aqui, e de você
ter voltado para nós depois de tanto tempo. Na
verdade, é a realização de um sonho.
A sinceridade nas palavras do homem não podia
ser negada,
— Obrigada, milorde. — Brianna ergueu-se
também. — Estou muito contente por tê-lo
conhecido.
Um aperto de mão caloroso e, em seguida,
Hollister partiu. Brianna, então, se viu sozinha na
sala de estar com Atreus. Respirou fundo, tentando
se acalmar, no entanto os pensamentos sobre
Holyhood, juntamente com as recordações daquele
beijo que Atreus lhe dera atormentavam-lhe a
mente.
— Você está bem? — perguntou Atreus, fitando-a
com firmeza.
— Oh, sim, claro. O conde parece ser um homem
muito gentil.
— É de fato. Mas achei-o um pouco ansioso.
Brianna olhou, através das janelas, o jardim
envolto no tom cinza de inverno.
— Você tem o poder de causar esse efeito nas
pessoas.
— Eu? — Atreus ficou genuinamente surpreso. —
Hollister não tem nenhuma razão para se sentir
ansioso por minha causa. Royce está a par da vida
do conde e da sua família. As finanças deles vão
bem, o comportamento é sensato, nenhuma
difamação manchando seus nomes. O conde anterior
era considerado um homem difícil. Este, porém, é
visto como um sujeito mais amável.
O pássaro estava de volta, acompanhado por
vários outros. Num impulso, Brianna pegou um
bolinho da bandeja de chá e caminhou até as portas
francesas que conduziam ao jardim. Abriu-as e saiu
para o terraço. Fazia muito frio, mas o frio era um
antídoto bem-vindo contra o calor das suas
emoções. E o que era melhor, não havia vento.
— Você deveria vestir um casaco — Atreus
sugeriu, aproximando-se.
Ela deu de ombros e lançou migalhas aos
pássaros. A luz pálida do dia se infiltrava pelos
galhos das árvores nuas.
— Suas reuniões estão indo bem?
— Toleráveis. Já estou pensando nos dias em que
passaremos em Hawkforte.
— Um Natal inglês? Ouvi dizer que são
maravilhosos.
— Isso também. Brianna. venha para dentro. —
Atreus passou pelas portas abertas.
Ela hesitou um instante, porém o bolinho já tinha
acabado, os pássaros já haviam voado para outro
lugar e o frio era de congelar os ossos. Em seguida,
entrou relutante e cautelosa.
— Vossa Alteza.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Atreus — corrigiu-a.
— Estou acostumada a pensar em você
formalmente. Afinal, é o rei.
Algo brilhou nos olhos dele, um lampejo de. raiva
ou de revolta? Brianna não pôde discernir, mas, de
qualquer modo, desapareceu em segundos. Além do
mais, tinha outros assuntos para distraí-la. Os dedos
de Atreus eram fortes e quentes no seu pulso
quando a puxaram para dentro.
— Mas também sou um homem — disse ele,
roçando de leve os lábios nos dela e, em seguida,
deslizando-os pela curva alta da face delicada, era
uma lenta e tentadora carícia, que fez o coração de
Brianna disparar antes que Atreus lhe reivindicasse
a boca num beijo ardente.
Não devia estar fazendo aquilo, pensou Atreus.
Devia ter bom-senso e disciplina para se abster de
tocá-la, sobretudo depois de descobrir como ela era
incandescente nos seus braços. Haveria tempo para
aquilo mais tarde, contudo o gosto da boca de
Brianna ameaçava aniquilar sua paz de espírito.
Ainda mais depois de sentir a surpresa dela se
transformar rapidamente em desejo. Um desejo que
se assemelhava ao seu. Era um homem bastante
experiente para não perceber tal coisa, e muito
voluptuoso para não se sentir atraído.
Brianna era virgem. Em Akora, raramente uma
mulher solteira se envolvia numa relação íntima com
alguém. Não era impossível, mas difícil de
acontecer. Brianna era uma jovem cautelosa e
primava pelo orgulho, ele já sabia disso. Cautela e
orgulho a impediriam de desviar sua conduta.
Entretanto, ela também havia entrado numa
idade, num mundo em que nunca se confundia
ignorância com inocência. Recebera o mesmo
treinamento de todas as meninas de Akora, o que
significava dizer que possuía conhecimento sobre a
natureza dos homens, das suas necessidades,
anseios e vulnerabilidades.
Como sempre acontecera desde o início dos
tempos. Pelo menos Atreus supunha que sim.
Vozes soaram no corredor próximo. O som de
risadas explodiu no ar.
— Alex e Joanna estão de volta — ele informou
com certa dificuldade e a respiração ofegante.
Brianna não respondeu, apenas o encarou
atordoada.
Muito suavemente, ele a afastou. Mal havia feito
isso e a porta da sala de estar se abriu.
— Atreus. — Alex parou abruptamente. Seu olhar
recaiu sobre o casal. Havia um brilho de
entendimento e diversão nos seus olhos. — Vejo que
Hollister já partiu.
— Sim, ele já se foi — respondeu o rei,
respirando fundo. Com esforço, tentou se concentrar
mais uma vez rio dever.
— Estou comprometido a fazer. o que mesmo
com o príncipe regente?
— Aceitar a saudação do seu regimento favorito,
depois participar de uma pequena ceia para a qual
ele convidou urna boa parte do corpo diplomático.
— Outra noite encantadora — murmurou Atreus,
num tom resignado. Quatro dias a mais em Londres
antes de irem para Hawkforte. Outra semana e
partiriam para Akora. Dez dias para alcançar terra
firme se o mar fosse gentil. Alguns a mais para
Brianna se encontrar com a família e planear o que
devia ser feito. No mais tardar dentro de quatro
semanas, poderiam se casar.
— O que achou do conde? — Alex perguntou a
Brianna.
— Ele parece ser uma pessoa muito gentil e
fascinante.
— Fascinante? — Atreus achara Hollister um
sujeito insípido. O que teria de fascinante?
— Ele é a única pessoa que eu vi de cabelos
vermelhos — Brianna justificou-se, encolhendo os
ombros. — Além de mim, é claro.
Uma observação tão simples, mas tão
significativa. Durante a sua vida, pelo menos a parte
que conseguia se lembrar, jamais vira alguém que
se parecesse com ela.
— Há pessoas em Akora com cabelos vermelhos
— observou Atreus. — Não muitas, mas existem
algumas.
— Não duvido, apenas nunca as vi. Encontrar
alguém com quem posso partilhar tal característica
é. reconfortante, embora não possa explicar por
quê.
Talvez ela não pudesse, mas Atreus sabia o que
era ser posto à parte, ser diferente do restante do
mundo. Conhecia muito bem a solidão que isso
poderia acarretar.
Solidão que Brianna sentira durante toda a sua
vida. E a qual os Hollister estavam prontos e
ansiosos para pôr um fim.
Hollister e lady Constance e suas indesejadas e
condenáveis perspectivas.
— O príncipe regente — lembrou Alex.
— Ele não é de fato o rei, é? Alex encolheu os
ombros.
— O rei está louco e trancafiado em algum lugar.
O filho ocupa o trono no lugar dele. Logo Prinny vai
se tornar rei e espera ser tratado como tal.
— Parece sempre bêbado demais para prestar
atenção ao modo como está sendo tratado.
— Se estiver consciente, ele sabe — advertiu
Alex. — Mas não se desespere, faltam apenas mais
alguns dias. Royce disse que o príncipe e a
sociedade inteira estão impressionados com você.
Byron está ameaçando escrever um poema.
— Talvez esse seja um motivo para haver uma
guerra entre a Inglaterra e Akora, afinal.
Brianna riu. Não queria, mas não pôde evitar.
Estava chocada por tão repentina intimidade. Apesar
de ser difícil se conter.
Atreus era, como havia dito, um homem. Não
apenas o rei. E depois havia o modo como se sentia
quando ele a beijava. ou a tocava. ou olhava na sua
direção.
— Você achou divertido? — perguntou Atreus,
cuja voz baixa e sedutora fez o coração de Brianna
disparar.
— Acho que sim — respondeu. — Você está
cumprindo seu dever maravilhosamente bem. —
Brianna se lembrou de todas aquelas horas gastas
ouvindo as recordações das mulheres mais velhas e
do afeto morno nas suas vozes. — E também acho.
— ela se dirigiu à porta e, de, alguma maneira, não
fazia ideia de como, virou-se e sorriu — que deveria
aproveitar melhor o seu tempo quando chegarmos a
Hawkforte.
No instante seguinte, Brianna entrou no corredor,
tremendo e sentindo como se tivesse engolido uma
dúzia de borboletas, quando vira o ar de surpresa
estampado no olhar de Atreus se transformar num
brilho de desejo.
O que era mesmo que as mulheres haviam dito.
algo sobre a paixão de um homem ser sua maior
vulnerabilidade?
Atreus era um homem que conhecia a paixão.
Não tinha percebido antes, nem mesmo suspeitara.
Para ela, ele era apenas o rei, uma figura de poder
inestimável e um obstáculo ao que ela acreditava
que Akora deveria ser. Nada disso mudara, contudo,
algo parecia diferente.
Iriam todos para Hawkforte, e então Atreus
voltaria a Akora. Algum dia ela também voltaria.
Afinal, possuía uma família lá e os amava demais.
Mas tinha o próprio passado para descobrir ali na
Inglaterra com ajuda de William Hollister e sua
condessa. Talvez até mesmo o seu futuro, embora
se recusasse a pensar muito no assunto.
Ela havia esperado demais por aquilo. Faria o
melhor uso possível de todos os momentos. Dentro
de poucos dias, menos de uma quinzena, Atreus
partiria. Isso era bom. Não podia se permitir pensar
de modo contrário.
Todavia os pensamentos continuavam a lhe
assolar a mente, enquanto ela subia a suntuosa
escadaria. O instinto a atraiu ao berçário. Joanna
estava lá com Amélia, que ria ao ser banhada. A
amiga a fitou e ofereceu-lhe a mão, puxando-a para
o círculo de calor e conforto feminino.
Tarde da noite, quando todos em Londres já
dormiam, começou a nevar. A princípio, apenas
alguns flocos, que caíam sobre os telhados e se
assentavam nas ruas de paralelepípedos. Mas logo a
nevão tornou-se mais intensa, suavizando os
contornos rijos dos tijolos, cimento, pedra e ferro,
virando em pequenos remoinhos ao sabor do vento.
Pela manhã, o mundo parecia transformado. Na
sala de desjejum, Brianna estava tão perto da janela
que tinha a ponta do nariz fria como gelo. Já vira
neve antes? perguntou-se. Não se lembrava, mas
por certo uma maravilha daquelas não podia ser
esquecida com facilidade. Num impulso, abriu uma
das portas francesas e saiu. baixando-se, pegou um
punhado dos flocos macios. Os cristais de gelo
cintilaram à luz sol e derreteram na ponta da sua
língua.
Ignorando o café da manhã, apressou-se escada
acima, pegou um capote e luvas e desceu outra vez.
Estava quase deixando a casa, quando Joanna se
uniu a ela.
— Venha. — A amiga disse com um sorriso. —
Vamos correr.
Decoro esquecido, as duas correram ao redor do
jardim, rindo, parando apenas ao perceber que
tinham companhia. Alex e Atreus já estavam ali.
— Ah! Pensa que é rápido? — disse Alex. —
Pegue isto! — Uma bola grande de neve golpeou o
peito de Atreus. Ele esticou o braço e devolveu o
favor com uma pontaria igualmente boa. Alex pegou
outro punhado e o despachou com o mesmo
movimento. Atreus se desviou e revidou.
A competição era rápida, furiosa e afável.
Também parecia, aparentemente, irresistível.
Joanna pegou uma bola de neve e a atirou no
marido.
A pontaria era muito boa ou ela teve muita sorte,
porque golpeou Alex em cheio na face. Ele parou
durante um momento, fitou-a com um brilho no
olhar e correu na sua direção. Joanna ergueu as
saias e saiu em disparada por entre os arbustos,
rindo o tempo todo.
— Bom dia — disse Atreus, chegando mais perto
de Brianna. Ele tinha a face vermelha pelo frio e o
tórax repleto de neve. Parecia muito jovem e.
descontraído? Sim, essa era a palavra. Parecia
descontraído, como Brianna nunca o vira antes.
— Bom dia — respondeu ela. Em algum lugar ali
perto, Alex e Joanna continuavam perseguindo um
ao outro, mas Brianna não estava mais prestando
atenção. O jardim e o mundo se reduziam a Atreus,
ao brilho daqueles olhos escuros e ao súbito e
atordoante prazer que sentia por estar na sua
companhia.
— Então isto é neve — comentou ele.
— Sim, e ela parece estar a seu favor.
— É verdade — reconheceu Atreus. — Bem como
o fato, não que eu acredite, que o príncipe regente
pensa que está com febre.
— Febre? Ele está doente?
— Pensa que está. E me foi dado a entender que
isso acontece com uma certa frequência. Foi para a
cama, se automedicou com láudano e mandou pedir
desculpas. Monarcas irmãos. sentimento fraternal.
respeito extremo por Akora e assim por diante. O
resultado é que as nossas reuniões foram
suspensas.
— Então você já pode deixar Londres?
Atreus assentiu com a cabeça, inesperadamente
com o entusiasmo de um aluno liberto.
— Sim, e já não é sem tempo. Cá entre nós, isso
foi mais difícil do que imaginei. Como um homem
nascido com tanto privilégio pode demonstrar
tamanha negligência pelo seu povo, está além da
minha compreensão.
— Acho que no fundo o príncipe sabe que eles só
o desejam como um símbolo e se ressente com isso.
Anseia ser necessário, não apenas tolerado.
— Deus ajude este país se na verdade
precisarem de tipos como ele.
— Concordo, mas como se sentiria se estivesse
na mesma posição? Suponha que ser rei realmente
não significasse nada, além de simples aparência.
— Eu não seria rei — respondeu Atreus sem
hesitar.
— E seria o quê?
— Escultor. Passaria meus dias esculpindo em
pedra.
— Seria mais feliz?
— Sou rei. Não posso escapar disso. Temos de
encontrar a felicidade no que somos. Não pensa
assim?
— Não sei se já pensei sobre o que faz as
pessoas felizes além de viverem com segurança e ao
lado daqueles a quem amam.
Atreus venceu a pequena distância que ainda
havia entre ambos. Tinha resquícios de neve no
tórax nos cabelos e um brilho ardente no olhar.
— Se isso fosse bastante para você, jamais teria
deixado Akora.
Brianna não se afastou, embora se sentisse
tentada.
— Minha situação é incomum.
— Tem razão, mas você ainda busca mais, não
é?
Ela se ajoelhou, sem saber ao certo o que estava
fazendo. Com toda aquela proximidade, não corria o
risco de errar a pontaria, e lhe atirou um punhado
de neve.
Joanna havia corrido, mulher sensata que era.
Mas Brianna permaneceu firme, estava tão
atordoada pela própria ação que não era capaz de se
mover. Atreus cuspiu neve e, surpreso, fez o que o
treinamento de uma vida toda o preparara para
fazer.
Brianna sentiu os pés se erguer do chão, e sua
queda foi amortecida pelos braços fortes que
prontamente suportaram seu peso.
— Você está faltando com o decoro — lembrou-a,
sorrindo.
— Não gosto de me sentir intimidada.
— Intimidada? Está brincando. Quando foi que se
sentiu intimidada por algo ou alguém?
— Geralmente, não me sinto. Mas com você. —
Brianna se conteve, advertida pelo brilho de desejo
nos olhos de Atreus que a estavam guiando a uma
direção que ela definitivamente não queria tomar. —
Não importa. Deixe-me.
— Está com frio?
— Sim.
— Está bem, então. — Atreus se virou de repente
e, sem avisar, inverteu suas posições de forma que
ele ficou por baixo no chão, e Brianna, por cima.
Os olhos de Atreus eram mais intensos do que
ela imaginara e, apesar de estar algum tempo
distante de Akora, sua pele ainda parecia beijada
pelo sol. O ar estava frio, no entanto Atreus era
morno, e ela, pressionada contra aquele corpo forte,
estava em chamas.
— Deixe-me — tornou a dizer, soando pouco
convincente até para si mesma.
— Exijo que pague uma penalidade.
— O quê? Você não pode. Eu o acertei
honestamente.
— Não. Fui atacado de surpresa.
— Desde quando isso é exigido?
— É um costume dos guerreiros declararem suas
intenções. Você me golpeou a traição.
— Eu estava parada bem em frente a você!
— Mesmo assim. — Os braços musculosos a
apertaram, puxando-a mais para perto. — Pedir que
pague uma penalidade é tanto assim?
— Não está pedindo, está reivindicando. E
depende da penalidade.
Atreus ia beijá-la, ela sabia. E o simples fato de
saber causou-lhe uma enorme excitação. Queria ser
beijada, desejava-o e, pela primeira vez na vida,
não queria pensar em mais nada.
— Beije-me — disse ele, e ao perceber sua
fisionomia assustada, fitou-a com uma estranha
benevolência. — Beije-me, Brianna, em vez de eu
beijá-la. Isso é pedir demais?
— Não há nenhuma diferença.
— Oh, sim, há. E uma enorme diferença.
Ela não podia. Não era certo. Enfrentara uma
tempestade, chegara quase morta a uma costa
dourada, havia lutado para permanecer viva,
encontrara um lugar no mundo e tinha ousado
sonhar em descobrir seu passado e o que o futuro
lhe reservava. Teria passado por aquilo tudo para vir
parar naquele lugar, naquele momento? Para ser
daquele homem?
Sim, sentia-se tentada a beijá-lo, embora não
tivesse nenhuma experiência, exceto o que
aprendera com Atreus. Seria o suficiente?
— Se eu o beijar, me deixará ir?
— Sim — respondeu ele, porque era um homem
honesto. — Por ora.
Brianna ouviu, mas não prestou atenção. Nada
importava a não ser Atreus estar tão próximo, e ela
desejava tanto descobrir como seria. beijá-lo!
Tímidos a princípio, seus lábios roçaram os dele,
saboreando o gosto da pele macia. A boca de Atreus
era morna, firme e excitante. A liberdade que sentia
e a presença daquele homem se combinavam num
doce inebriamento. Razão dissolvida, dúvida
desaparecida, a precaução durou apenas mais
alguns segundos, mas provou não ser forte o
suficiente diante da onda de desejo que a acometeu.
Brianna o beijou profunda e completamente e
com uma habilidade que pegou ambos de surpresa.
Tão divertida era a experiência, que ela teria
continuado a beijá-lo não fosse os braços de Atreus
apertá-la ao redor da cintura, quase impedindo-a de
respirar. No instante seguinte, ele se ergueu,
levantando-a consigo como se Brianna nada
pesasse.
— Isso não é uma ideia boa — disse, afastando-
a. O olhar de Atreus continha um grau de cautela
que Brianna julgou suficiente.
— Você exigiu uma penalidade — ela o lembrou.
— Há ocasiões em que penso que a educação das
mulheres de Akora deveria ser reexaminada.
— É mesmo? Suspeito de que muitos homens de
Akora partilham essa ideia, mas, por incrível que
pareça, você não dá a impressão de estar muito
empenhado em fazer algo nesse sentido.
Quando a oportunidade surgiu, Brianna se
afastou no que considerou uma retirada estratégica
e rápida. Royce e a esposa contornaram a casa,
olharam para Atreus e sorriram.
— Irmão querido — disse Kassandra. — Suas
costas estão cheias de neve. Qualquer pessoa
juraria que esteve deitado no chão.
— Qualquer pessoa deveria cuidar da própria vida
— murmurou ele.
Royce não conteve o riso.
— Ouvi dizer que Prinny está de cama, e que
você é um homem livre agora.
— Assim parece. Quando poderemos partir?
— Já avisei o pessoal em Hawkforte para nos
esperar hoje à noite. Isso lhe agrada?
— Perfeitamente — respondeu Atreus. Então,
uma vez mais, contou os dias para voltar a Akora.
A viagem para Hawkforte se deu por mar. As
estradas estavam muito melhores do que um ou
dois anos antes, dissera Royce, porém não tão boas
quanto iriam ficar daí a alguns anos, face ao frenesi
de obras que estavam sendo realizadas. O tempo se
mostrava moderado, com nenhum sinal da
tempestade que caíra na noite anterior, e todos
concordaram que seria mais agradável velejar. Isto
é, todos menos Brianna, que não expressou opinião.
Envolta num saco verde-esmeralda, com um capuz
na cabeça, permanecia no convés, afastada,
enquanto os outros conversavam. Aparentemente,
parecia perdida nos próprios pensamentos.
Seus ombros estavam rijos sob o casaco. O breve
olhar que Atreus lhe dirigiu, antes de se virar,
sugeria que tais pensamentos podiam ser tudo,
menos de satisfação.
Ele concedeu-lhe mais alguns minutos de solidão
e então se postou a seu lado. Após deixar o estuário
do Tâmisa, navegavam agora rumo ao sul. O vento
os favorecia e a embarcação acelerava sobre as
ondas. Gaivotas circulavam frenéticas no ar. Seus
gritos roucos quebravam o silêncio.
— Que dia magnífico! — comentou Atreus.
— É verdade. — A voz de Brianna soou tão firme
quanto o aperto da mão enluvada contra a amurada
do convés.
— Você é uma mulher corajosa.
A súbita afirmação teve o efeito desejado.
Brianna desviou o olhar da água e o encarou.
— Porque diz isso?
— Porque está aqui, num barco, no mar.
Considerando o que lhe aconteceu quando criança,
seria perdoada se não quisesse tirar os pés da terra
firme outra vez.
Atreus não pretendia falar sobre a tragédia, não
agora e talvez jamais. No entanto as palavras foram
ditas e se sentia satisfeito por isso. Precisavam
conversar a respeito do que acontecera com ela,
embora fosse difícil.
Brianna deixou escapar uma risada nervosa.
— Tal percepção tem a ver com o fato de ser um
rei?
— Acho que tem mais a ver com o fato de
enxergar o mundo de um modo particular.
— Como um artista?
Aquilo era inesperado, pensou Atreus. A maioria
das pessoas jamais percebia o que ele era.
Arrancado da vida que levaria se não tivesse sido o
escolhido.
— Tem a ver com observar detalhes. — Tocou-a
de leve no ombro. — Você está tensa e me pergunto
por quê. Então, lembrei-me que, por alguma razão,
não tem ido ao palácio nos últimos tempos. Teria de
cruzar o mar Inland para chegar até lá. O que a
incitou finalmente a fazer isso?
Brianna encolheu os ombros.
— Cansei de ser prisioneira dos meus próprios
medos e recordações.
— Uma boa razão. Do que você se lembra?
— Da tempestade que me levou a Akora, quase
nada. Apenas fragmentos que não consigo juntar.
Atreus tentou não soar aliviado.
— Talvez seja melhor não tentar.
— Perdi tanto que tenho medo de perder mais
alguma coisa.
— É bastante compreensível. Mas o passado
nunca pode ser mudado. Até mesmo o presente é
tão rápido e transitório que mal podemos vê-lo
passar. Resta-nos o futuro para fazermos algo por
nós mesmos.
— Para mim, eles estão entrelaçados. Não sou
capaz de pensar no futuro sem conhecer meu
passado primeiro.
Não era a resposta que Atreus queria ouvir,
porém a aceitou, resignado. O futuro de Brianna já
havia sido decidido, embora ela desconhecesse o
fato. Contudo em breve ficaria sabendo e o
aceitaria.
— Quantas cores você vê lá? — perguntou ele,
apontando para a água.
— Cores? A água é cinza.
— É? E a espuma na nossa esteira? Brianna
ergueu a cabeça e olhou para trás.
— É branca. Exceto onde. é verde-claro e. um
pouco azul-escuro.
— Onde o sol bate é dourado luminoso.
— Quer que eu diga que é bonito, não é?
— Quero que veja como é na realidade, não o
que pode se lembrar ou temer.
— Você também pinta? — perguntou Brianna.
— Tentei na minha mocidade.
— Sua mocidade? — Os lábios dela se curvaram
num sorriso provocante. — É tão velho assim?
Atreus era seis, quase sete anos mais velho que
Brianna. Não constituía uma diferença tão grande.
Por ela estar predestinada a ser sua esposa no
futuro, ele respondeu:
— Os anos que vivi antes de me tornar rei
parecem ter sido há muito tempo, quase como se
fizessem parte de uma vida diferente. Deixei muita
coisa para trás, mas me agarrei ao que era mais
importante.
— O que, por exemplo? — perguntou Brianna
num tom suave.
— Minha família e o amor que tenho por todos
eles, os valores que quero proteger e. — Atreus
ergueu a mão, tocou uma mecha de cabelos que
deslizara do capuz dela e a entrelaçou entre os
dedos. — e a minha arte — acrescentou. — Não
podia deixá-la para trás.
A mão de Brianna cobriu a dele, desenlaçando-
lhe os dedos com gentileza. Atreus permitiu, mas
em vez de soltá-la, acariciou-lhe a face, estudando
as linhas finas e delicadas. Então, respirou fundo,
lembrando-se de que não estavam sozinhos.
O vento soprou e no céu as gaivotas revoavam.
O presente rápido e transitório do qual ele falara
parecia ter reduzido de velocidade até quase parar.
Mas, por fim, na plenitude do tempo inconstante, as
imponentes torres de Hawkforte surgiram diante dos
olhos deles.
Aquilo parecia mais antigo que qualquer outra
coisa que vira na Inglaterra, pensou Atreus. A
estrada que saía do pequeno porto onde haviam
ancorado conduzia diretamente aos portões abertos
no meio a muros altos impregnados de musgo,
líquen e o fundo vermelho da hera de inverno. Em
frente aos muros avistavam-se os contornos do que
deviam ter sido algumas construções, por certo
ainda mais antigas. No interior, havia um vasto
pátio pavimentado com blocos de pedra que
evitavam a lama e controlavam a poeira. Havia
edificações por todos os lados, algumas bem
grandes.
À primeira vista, Atreus viu estábulos que
poderiam acomodar facilmente cem cavalos e tudo
de que necessitavam: forragem, ferrarias, bem
como arsenais suficientes para intimidar o inimigo
mais corajoso.
— Impressionante! — ele comentou com um
sorriso. — Estão esperando os franceses?
— Só se Napoleão de fato estiver louco —
respondeu Royce. — E isso eu duvido. Digamos que
temos o hábito de respeitar os velhos costumes aqui
em Hawkforte.
A frente havia um gracioso corredor de pedra
ligado com uma torre alta.
— Esta é a construção original? — perguntou
Atreus. Royce assentiu com a cabeça.
— Cuidadosamente mantida e reparada com
alguma frequência, mas ainda conserva muito do
que foi nove séculos atrás. As alas laterais foram
construídas depois, é claro, mas também são muito
antigas.
Entraram no grande saguão, onde Atreus parou
estupefato. As paredes, medindo uns dez metros de
altura, exibiam uma série de bandeiras, armas e
escudos que impressionavam até mesmo para os
padrões de Akora. Ao mesmo tempo, o gracioso
estofado próximo à imensa lareira e a enorme mesa
que aguardava os convidados deixavam claro que ali
havia a influência de uma mulher.
O corredor cheirava a pinho e a outros odores
amadeirados, sem dúvida por causa das coroas
mantidas em todos os lugares, devido à celebração
do feriado próximo. Uma dúzia de criados trabalhava
no local. Acenaram com a cabeça cordialmente para
os recém-chegados, e vários olharam para Atreus
com franca curiosidade. O rei não pôde deixar de
reparar que não exibiam o mesmo ar servil que ele
vira entre os serviçais da Carlton House. Pareciam
homens e mulheres de orgulho óbvio. Mais uma vez
pensou nas semelhanças com Akora, onde nenhum
homem ou mulher era considerado superior em
virtude de nascimento ou posses.
— Sente-se em casa aqui, minha irmã? —
perguntou ele a Kassandra.
Ela assentiu com um gesto de cabeça e partilhou
um sorriso com o marido, que se encontrava a seu
lado. Alex e Joanna estavam perto, e Amélia se
aninhou nos braços do pai. O bebê dormira durante
quase todo o trajeto até Hawkforte, mas havia
pouco despertara, dado uma olhadela ao redor e
depois do que parecera um momento de reflexão,
tinha deixado escapar um gritinho.
— Ela está com fome — disse Joanna.
— E fará tremer as vigas até que algo seja feito
em relação a isso — acrescentou Alex com um
sorriso. — Nós os encontraremos mais tarde para a
ceia.
Todos se dispersaram. Kassandra se pôs a
supervisionar o descarregamento das malas,
embalagems e pacotes trazidos de Londres, e
Brianna foi ajudá-la. Royce mostrou a Atreus seus
aposentos na ala oeste, que incluíam um espaçoso
cômodo com uma agradável vista para o mar.
Castor já se encontrava lá, desembalando os
pertences do rei. Ele retirou a estátua da pequena
caixa de madeira e a colocou sobre o tampo de
mármore de uma mesa próxima à enorme cama,
antes de acenar com a cabeça cordialmente para
que os dois homens saíssem.
— Acredito que ficará confortável — falou Royce.
— Tenho certeza de que sim. Obrigado por me
convidar.
— É um prazer. Espero que volte muitas vezes.
Afinal, esta agora é a casa de Kassandra, e ela
naturalmente sente muito a sua falta. Mas também,
se falou sério sobre Brianna.
Atreus ergueu uma sobrancelha.
— Se?
Royce sorriu, sardônico.
— Falou, não é? Vai se casar com uma mulher
que mal conhece, simplesmente pelo fato de
acreditar que deve se casar.
Atreus se apoiou contra o batente da janela,
cruzou os braços sobre o tórax e o observou o
cunhado, a quem considerava um amigo.
— O que acha que seria melhor? Não me casar
mesmo acreditando que devo?
Royce era um homem de falar o que lhe vinha à
mente quando julgava necessário.
— Que tal despender algum tempo para se
conhecerem melhor, até mesmo se apaixonarem?
Respeitando o fato de o cunhado ser
imensamente mais experiente no quesito amor,
Atreus limitou-se a dizer:
— E se nós não nos apaixonarmos? Brianna está
predestinada a ser minha esposa. Se eu tivesse
sabido disso antes, já teríamos nos casado. Não há
mais porque esperar.
— Não para você, talvez — contrapôs Royce num
tom sereno. — Mas, e para Brianna? Ela só está
descobrindo sua verdadeira identidade agora. E se
quiser viver aqui na Inglaterra?
Atreus não respondeu de imediato. Aquela
mesma pergunta o atormentara desde que Hollister
tinha aparecido. Mas não importava o quanto isso o
afligia, só havia uma resposta.
— Conhecendo Brianna como conheço, vendo a
mulher de honra e coragem que ela obviamente é,
não acredito que faça tal escolha.
O cunhado assentiu com a cabeça, mas seu olhar
exibia um misto de pesar e preocupação.
— Em breve descobrirá se está certo. Hollister
logo ficará sabendo que deixamos Londres, e não
acredito que desperdice muito tempo.
Royce tinha razão. O dia seguinte mal acabara de
amanhecer, quando o convite de Holyhood chegou.
— É muito estranho — comentou Brianna. —
Esperei tanto por isso, sonhei tanto e agora que
estou prestes a realizar meu maior desejo. não
tenho mais certeza de nada.
— Está dando um grande passo — disse Joanna
num tom fraterno. — É natural ficar ansiosa,
querendo saber onde os novos acontecimentos a
conduzirão.
— Não é só isso. Pensei que sabia o que queria.
Vir à Inglaterra, descobrir mais sobre mim mesma,
se possível encontrar alguém da minha família.
Agora que tudo está acontecendo de fato, deveria
me sentir feliz.
— Lembro-me de um tempo em que me sentia
assim. desnorteada, suponho. Ou melhor, confusa —
explicou Kassandra.
— Eu também — concordou Joanna. — E não faz
muito tempo que isso aconteceu.
As três mulheres tomavam o desjejum na torre
alta, na parte de Hawkforte reservada aos aposentos
particulares do lorde e sua esposa. A vista era
magnífica, mas elas mal haviam reparado, absortas
que se encontravam entre chás, marmeladas,
torradas e trocas de confidencias.
— Homens — murmurou Kassandra. — Provocam
confusão. Costumam causar um vendaval que
espalha folhas para todos os lados e precisam ser
varridas.
Brianna mordiscou uma torrada e olhou de uma
para a outra.
— O que tem isso a ver com homens? As duas
mulheres se entreolharam.
— Porque imagina que está confusa? —
perguntou Joanna.
— Talvez porque amo minha família em Akora e
estou tendo sérias dúvidas sobre tentar ter alguma
ligação com os meus parentes verdadeiros —
sugeriu Brianna.
— Brianna, querida. o seu problema é Atreus.
Todas nós sabemos que ele é. — Kassandra olhou
para Joanna, que completou.
— Um homem demasiado viril. E você e ele.
bem, é bastante óbvio.
— Que vocês dois foram feitos um para o outro
— foi a vez de Kassandra concluir. — Não há nada
de errado nisso. Nada. Mas acredite-me, Joanna e
eu descobrimos como nossos homens podem ser
complicados. Não são do tipo comum. Os três
podem ser totalmente irresistíveis. Eles têm essa
característica em comum, e nós. — Ela olhou para
Joanna, que assentiu com a cabeça. —
Compreendemos isso. Com o tempo, você também
compreenderá.
Brianna tinha irmãos na sua família de Akora,
um, especialmente, com quem era muito próxima.
Mas não tinha irmãs com quem pudesse conversar
tais assuntos. Porém sua mãe akoreana era uma
mulher bastante amorosa, dada a risadas e
conversas francas.
— Ele me beijou — deixou escapar de repente, e
de imediato se corrigiu. — Não, isso não é verdade.
Ele me beijou duas vezes, e da terceira vez eu o
beijei.
— Você o beijou? — indagou Kassandra,
concentrando-se na questão de maior interesse. —
Como Atreus reagiu?
— Repeliu-me.
Joanna riu.
— Excelente! Adoro Atreus, é claro, mas ele
sempre me passou a imagem de um homem
bastante controlado. Há muito tempo ninguém mexe
com ele dessa maneira.
— Isso não é verdade — rebateu Brianna,
confusa ao perceber que a amiga estava tirando
uma conclusão errada. — Atreus está apenas se
divertindo.
— Não — disse a irmã dele num tom enfático. —
Atreus sabe relaxar quando o trabalho está
terminado e o dever cumprido. Contudo, enquanto
estiver aqui, no meio a negociações delicadas com
os britânicos, não acredito que se prestaria a tal
papel.
— Nem eu — declarou Joanna. Então, retirou a
fita esquecida na mão de Brianna e a entrelaçou
habilmente nos cabelos da amiga. — Pronto, agora
está adorável.
— Pronta para ir a Holyhood — concordou
Kassandra. A cunhada assentiu num gesto de
cabeça.
— E para qualquer outra coisa.
Embora apreciasse o apoio das duas mulheres,
Brianna permaneceu calada, tentando assimilar a
ideia que explodia na sua cabeça. Ela e Atreus.
Atreus e ela. O simples pensamento a aturdiu. Era
absurdo. Impossível. Absolutamente errado.
Acabaria com aquilo assim que as coisas voltassem
a fazer sentido na sua mente.
Enquanto esperava que isso acontecesse, como
por certo aconteceria, deixou a torre alta. Desceu a
escadaria curva de pedra, caminhou pelo grande
corredor e saiu para a luz fraca do dia frio de
inverno, onde seu passado a esperava.
— Minha querida! — Lady Constance abriu os
braços enquanto se apressava para cumprimentar
os convidados. A condessa esboçou um sorriso para
os outros que desciam da carruagem, mas foi em
Brianna que sua atenção se focalizou. — William me
falou sobre a enorme semelhança que tem com sua
mãe, mas, mesmo assim, não foi o bastante. Você
é, de fato, o retrato de Delphine.
— Sou? — Brianna murmurou com dificuldade.
Recuando um passo, lady Constance a estudou
mais detidamente antes de assentir com a cabeça.
— Tem as sobrancelhas do seu pai, mas o resto é
todo de Delphine. Ela era a criatura mais adorável
que já conheci. Estava sempre sorrindo e tinha uma
voz tão doce que deixava os pássaros
envergonhados. Você canta?
— Não, a menos que deseje infligir castigo aos
que me rodeiam — respondeu Brianna num tom de
pesar. Tendo sobrevivido aos primeiros momentos
com a condessa Constance, podia agora observá-la
melhor e gostou do que viu. O conde de Hollister
parecia moderado e contido, e a esposa, espontânea
e extrovertida. Sua maneira de ser era franca e não
exibia traços afetados tão comuns às senhoras da
sociedade. As rugas sob os olhos e a boca
certamente eram originárias de frequentes sorrisos
em vez do ressentimento azedo da idade.
— Tenho certeza de que está sendo modesta. —
Lady Constance passou o braço ao redor do ombro
de Brianna e só então, tendo-a segura, dedicou
atenção aos demais convidados.
— Querida lady Joanna e lady Kassandra, que
prazer em vê-las. E os senhores, sejam muito bem-
vindos. — Nesse instante, seu olhar se dirigiu a
Atreus, que ela avaliou francamente. — É uma honra
receber Vossa Alteza na minha casa.
Lady Constance expressava exatamente o que
sentia. A presença do rei de Akora era uma honra.
Contudo, o visitante real não parecia afetar muito a
condessa.
— Não vamos ficar parados nos degraus da
entrada, querida — apressou-se o conde de Hollister
com um olhar tolerante à esposa. Então conduziu os
convidados ao interior do solar.
Brianna respirou fundo, tentando se acalmar.
Contemplara tantas vezes o desenho de Holyhood
no livro que havia achado na biblioteca de Joanna e
Alex em Londres, que o exterior da residência lhe
era completamente familiar. Mas, uma vez
ultrapassadas aquelas portas, quando estivesse de
fato no interior da casa, o que encontraria?
Atreus estava a seu lado. Como substituíra lady
Constance, ela não sabia, porém sua proximidade
era reconfortante. Diferente de Hawkforte,
preservado ao longo dos séculos, Holyhood devia ter
sido reformado muitas vezes. A casa atual parecia
não ter mais do que algumas décadas. O salão de
entrada era uma área circular espaçosa, encimada
por um teto alto em forma de cúpula. O chão de
mármore fora projetado com o desenho de uma
estrela. As paredes repletas de nichos continham
estatuetas no estilo greco-romano, e no teto alto
havia uma imensa pintura que retratava o céu
noturno.
Para coroar a belíssima decoração, graciosas
colunas de mármore ladeavam a escadaria principal
em curva que se estendia até onde a vista
alcançava.
— Meu finado tio construiu esta casa — Hollister
explicou. — Substituiu uma estrutura que datava da
era Tudor.
— Impressionante! — exclamou Atreus, mas sem
tirar os olhos de Brianna, que se mostrava pálida e
cansada. Instintivamente, ele a segurou pela mão.
Mesmo através da luva de couro feminina, podia
sentir sua pele fria.
— Algo errado? — perguntou em voz baixa.
— Não, não — respondeu Brianna, deparando
com o olhar curioso de lady Constance. — Eu
adoraria ouvir falar mais sobre minha mãe.
— Oh, claro, minha querida! Mas, melhor do que
isso, temos uma surpresa maravilhosa para você,
não é, William?
— Sim — respondeu o conde.
— Venha — chamou a condessa, conduzindo-a
até a sala de estar, onde um fogo alegre crepitava
na lareira, dispersando o frio de inverno. Os criados
estavam servindo chá, porém Brianna mal os notou.
Sua atenção recaiu de imediato no retrato de uma
mulher na parede, acima do mantel.
Sentiu o ar ficar preso nos pulmões. Estava
fitando. ela própria? Não, não, havia algumas
diferenças que, juntas, formavam uma pessoa
distinta. Entretanto, era alguém que se parecia
tanto com ela que não restava dúvida com respeito
à sua identidade.
— Minha mãe — murmurou.
— Foi pintado no ano em que ela e seu pai se
conheceram — informou o conde. — Depois da fuga
dos dois, o retrato desapareceu. Pensamos que seu
avô o tivesse destruído. Mas quando Constance e eu
viemos morar aqui, o descobrimos num dos sótãos e
o devolvemos ao seu legítimo lugar.
— Foi muita bondade da parte de vocês — disse
Brianna, sentindo-se terrivelmente assustada, com
medo de chorar, mas ao mesmo tempo
experienciando uma súbita leveza de espírito. Sua
mãe, a mulher que a trouxera ao mundo e a amara
nos seus primeiros oito anos de vida, se transformou
de repente em muito mais do que simples
fragmentos de memória e o sussurro de uma voz
perdida. Havia sido real e tinha morado ali naquela
casa. E naquele momento, era como se sorrisse para
eles.
— Era a coisa mais acertada a fazer — completou
lady Constance. — Seu avô se comportou muito
mal, se me permite dizer. Esta era a casa de
Delphine e ela sempre deveria ter sido bem-vinda
aqui.
Mas não havia sido, embora tivesse voltado uma
vez com o marido e a filha.
Um longo corredor envolto em sombras. uma luz
no final. o cheiro de canela.
O que é, querida. a imagem da mãe dela. aquele
homem velho horrendo.
.silêncio, Bridie, segure sua língua.
— Sente-se meu bem — a condessa convidou
num tom suave, mas Atreus já a estava guiando até
um sofá próximo.
Brianna se sentou e só então percebeu que
estava apertando a mão dele. Corando, ela retirou a
sua. Seu olhar recaiu na série de pratos tentadores
sobre a mesa diante deles e se agarrou à distração
oferecida.
— Vocês devem ter uma cozinheira maravilhosa.
Lady Constance parou de servir o chá.
— Oh, sim, temos. Talvez esta seja uma boa
oportunidade para mencionar que alguns serviçais
mais antigos apreciariam a chance de vê-la.
Conheceram sua mãe e estão emocionados por você
estar aqui.
— Ah, sim. Terei imenso prazer em conhecê-los
— murmurou Brianna.
— Esplêndido! — exclamou a condessa. — Depois
do chá, então?
Brianna assentiu com um sorriso e deixou a
conversa fluir ao seu redor. O conde de Hollister
estava interessado nas impressões de Atreus sobre
Londres e puxou o assunto. Podia ouvi-los ao fundo,
mas outras vozes a atraíam.
Edward, temos que tentar.
Concordo, mas não quero que você sofra.
Por Brianna, sua herança.
Filho de uma prostituta francesa. Como ousa.
Minha filha. Papai.
— Wilcox não é um nome francês — Brianna
falou em voz alta sem perceber.
— O que você disse? — perguntou Kassandra.
— Wilcox não é um nome francês — ela repetiu,
relutante. — Sinto muito, isso deve parecer muito
estranho para vocês — disse aos anfitriões. — Eu
deveria explicar que já estive nesta casa antes,
quando era criança. Estar aqui novamente me traz
recordações que eu não julgava possuir.
— Céus! — exclamou lady Constance, — William,
você sabia disso?
— Não — respondeu o marido. — Está dizendo
que Delphine e Edward voltaram a esta casa em
algum momento e a trouxeram com eles?
— Sim. — Brianna assentiu. — Encontraram-se
com meu avô, mas esse encontro. não foi bem-
sucedido. — Fez uma pausa, lutando contra a
tristeza que sentia. — Houve gritos. Acho que era a
voz do meu avô. Ele disse algo sobre o filho de uma
prostituta francesa.
Os Hollister trocaram um olhar sombrio. William
se remexeu na cadeira e disse:
— Eu tinha esperança que esse assunto não
viesse à tona, mas talvez seja melhor não lhe
esconder nada. Edward Wilcox era o filho de um
soldado irlandês e de uma francesa. Seu avô não
costumava medir as palavras. O fato de ele ter dito
tal coisa não significa que havia algo errado com a
reputação da francesa. Porém Wilcox cresceu na
França e certa vez trabalhou para o governo francês.
O finado conde detestava os franceses. E achava
inconcebível que sua filha se casasse com um
homem cujas lealdades ele considerava suspeitas.
— E eram? — Brianna quis saber, temendo a
resposta. — Eram suspeitas?
— Não tenho nenhuma razão para pensar assim
— assegurou William. — Como já disse antes, não
conheci seu pai, mas estou certo de que Delphine
não o teria escolhido se tivesse dúvidas quanto ao
seu caráter.
— Você tem ideia de quantos anos tinha quando
seus pais vieram aqui, Brianna? — perguntou
Atreus.
— Devia ter menos de oito, porque foi com essa
idade que cheguei a Akora. Mas já tinha idade
suficiente para ouvir e lembrar de tudo o que foi dito
nesse dia, embora minha memória não me ajude
agora.
Ela tornou a olhar para o retrato da mãe, como
se quisesse descobrir o que Delphine sentira e
pensara, o que havia esperado e sonhado, o que
teria ensinado à filha se tivesse vivido e não perdido
a vida tragicamente.
— Onde vivíamos antes de ter vindo para cá? —
desejou saber em voz alta, como se a criança que
havia dentro de si pudesse responder. — Para onde
fomos quando partimos?
— Para a França — sugeriu Joanna. — Se seu pai
era meio francês e tinha vivido lá. Talvez achasse
mais conveniente do que a Inglaterra.
— Se tivessem permanecido neste país —
começou William. — O pai de Delphine poderia ter
criado maiores problemas para o casal. Tinha poder
para tal e, por todas as evidências, havia ficado
extremamente bravo com a união dos dois.
— França? — Brianna revolveu a ideia na mente,
buscando qualquer senso de familiaridade. Ela e os
pais teriam vivido lá?
— Parles-tu français, Brianna? — perguntou
Royce.
— Não sei — respondeu ela de imediato. — Há
pessoas em Akora com origem francesa, mas
nenhuma delas vive próximo à minha casa. Nunca
viajei antes, logo não tive nenhuma chance de ouvir
o idioma delas. Não tenho ideia se sei falar ou não.
O silêncio se prolongou o suficiente para se
tornar opressivo.
— Brianna — disse Atreus, por fim. — Royce
acabou de falar com você em francês e você o
entendeu.
— Peut-être tu as parle anglais avec tes parents
— Royce continuou. — Mais tu as parle français avec
d'autres.
— Eu o entendo — Brianna murmurou
lentamente, aturdida com a descoberta. — Je
comprends. — Viera a Holyhood esperando descobrir
algo sobre seu passado, mas tanto assim era
atordoante. — Talvez morássemos na França e,
como você disse, eu falava francês com outras
pessoas, pelo menos o suficiente para aprender um
pouco do idioma. Que fantástico! Até agora, não
tinha nenhuma noção desse fato.
— Está vendo? — declarou lady Constance. —
Ficar aqui é o melhor para a sua memória.
— Sinto-me inclinado a concordar — disse lorde
William. — Após cumprimentar os serviçais, talvez
eu possa conduzi-la numa excursão pela
propriedade. — Ele olhou para os demais
convidados. — Claro que todos vocês serão bem-
vindos a nos acompanhar.
— Oh, é muito gentileza da sua parte —
respondeu Kassandra. — Mas preciso me ocupar
com os preparativos para o feriado.
— E Amélia está com aquela tossinha aborrecida
— acrescentou Joanna. Ao perceber o olhar
assustado do marido, corrigiu-se depressa: — Ou
pode começar a ficar.
— Mas — continuou Kassandra — não há motivo
para Brianna ficar aqui. Ainda está claro. Lorde
William, se importaria de acompanhá-la num passeio
pela propriedade?
— Ora, será um prazer. — O conde fitou as duas
mulheres com um olhar grato. — É muita bondade
da parte das senhoras.
Nitidamente combinado, pensou Atreus. Um
pouco óbvio, mas eficaz do mesmo modo. Podia, é
claro, simplesmente declarar que desejava conhecer
Holyhood. O capricho de um visitante real teria
prioridade sobre qualquer outra consideração. Mas
embora a ideia fosse tentadora, não cedeu ao
próprio desejo. A irmã e a cunhada haviam
combinado aquilo entre elas, disso não tinha dúvida.
Não podia culpá-las por querer bem a Brianna.
Ele também queria. E esse sentimento estava se
tornando mais do que uma simples estima a cada
dia que passava.
De quanto ela se lembraria? De quanto ele se
lembrava?
Atreus. são os franceses! Malditos!
Aguentem firme, homens! O vento está a nosso
favor!
Acabem com eles. Guerreiros de Akora, não
vacilem!
Fogo!
Meninos. Sim, eram apenas meninos, mas não
depois daquele dia.
— Atreus?
Ele deparou com o olhar de Brianna e sorriu.
Aceitou o chá que lady Constance lhe ofereceu e o
provou. Começou a conversar, apesar de não
prestar atenção ao que era dito.
E, após algum tempo, partiu. No entanto a
lembrança, inexorável companheira de todas as
horas, lançava sobre ele uma sombra de mau
agouro que parecia escurecer ainda mais o dia.

Os sinos da igreja repicaram no ar cristalino de


uma manhã de inverno, anunciando o júbilo do dia.
Ouvindo-os, Brianna se aconchegou mais na cama.
Estava morna, confortável e sem nenhuma vontade
de se levantar. Contudo, a excitação tomou conta da
sua mente. Era Natal.
O grande dia havia chegado e, de repente,
sentia-se como uma criança novamente. Com um
sorriso nos lábios, afastou as cobertas, ofegou de
frio e vestiu o roupão. Depois de calçar os chinelos,
parou tempo suficiente para avivar o fogo na lareira,
antes de se apressar em direção às janelas.
Nevara durante toda a noite. Flocos tingiam de
branco as paredes de pedra antigas e chegavam a
formar pequenos remoinhos ao redor das torres
altas. Espirais de fumaça se erguiam pelas chaminés
dos telhados ladrilhados. Brianna olhou um gato que
passeava pelo pátio e parou para sacudir o acúmulo
de flocos nos seus pelos, antes de recobrar a
dignidade e seguir caminho.
E os sinos continuavam a repicar.
Brianna vestiu-se depressa e prendeu os cabelos
com pequenos pentes de marfim, presente dos seus
pais akoreanos. Pensando neles, saiu apressada do
quarto. Sentia falta da família, da sua casa e dos
amigos. Enfim, sentia falta de Akora. Mas também
estava encantada com Holyhood e com a vida que
poderia ter, caso permanecesse na Inglaterra.
Nos três dias que se seguiram desde sua primeira
visita a Holyhood, passara muitas horas com o
conde e a condessa. Lorde William tinha muito
orgulho da propriedade e gostava de mostrar-lhe os
arredores. Lady Constance maravilhava-se falando
sobre Delphine, que havia sido sua melhor amiga.
— Eu tinha apenas cinco anos quando nos
conhecemos — dissera a condessa. — Delphine,
sete. Ela adorava ler e raramente a víamos sem um
livro nas mãos.
— Também gosto muito de ler — comentara
Brianna. — Foi numa das minhas incursões à
biblioteca de Joanna e Alex, na casa de Londres, que
descobri o desenho de Holyhood.
— Que choque deve ter sido. Ao mesmo tempo,
foi muita sorte, porque pôde recuperar algumas das
suas memórias.
Fora mesmo muita sorte. Mas agora, o que
passara não tinha tanta importância perto do que
estaria para acontecer, começando com o prazer
envolvente do Natal que aumentaria ao longo do
dia.
Atreus havia saído com Alex e Royce a fim de
cortar galhos frescos de pinho para o grande
corredor. Os homens retornaram horas mais tarde,
rindo e cheirando aos bosques pelos quais tinham se
embrenhado. Naquele instante, Brianna tinha
acabado de entrar no corredor das cozinhas. Então,
parou de repente, capturada pela visão do rei.
Atreus se virou e a viu. Tinha os ombros e o
tórax repletos de neve. O ar gélido havia lhe corado
a pele e embaralhado os pelos escuros das
sobrancelhas. Parecia mais jovem que o habitual,
logo que deixara as preocupações para trás, em
Londres.
Todavia sua expressão, quando a fitou, era séria.
Pousou o feixe de ramos que trazia nos braços e
acenou com a cabeça.
— Feliz Natal, Brianna.
— Feliz Natal para você também.
Ele continuou encarando-a e então curvou os
lábios num sorriso.
— Tem farinha no nariz. — Antes que ela pudesse
agir, ele retirou a farinha suavemente.
— Estávamos assando biscoitos — disse Brianna,
bastante atenta ao prazer que o toque daqueles
dedos fortes lhe provocara.
— Pensei ter sentindo o cheiro de canela —
comentou ele, inspirando fundo. — E também de
amêndoas e. chocolate.
— Pode nos dar uma mãozinha aqui? — chamou
Alex, que se encontrava sobre uma escada, Royce
estava em outra. Entre os dois, grandes galhos de
árvore. — Quero dizer — acrescentou num tom
zombeteiro —, a menos que prefira ficar discutindo
receitas.
— Se os seus biscoitos forem tão doces quanto
você, pode ter certeza de que vou adorá-los —
Atreus sussurrou no ouvido de Brianna.
Isso fê-la ter dificuldade de manter a mente
concentrada em qualquer outra coisa durante o
restante do dia. Apesar de ter ajudado Joanna e
Kassandra com todos os preparativos para a ceia,
antes de se retirar, tomar um bom banho e se
vestir.
Ao descer novamente, encontrou o grande salão
vazio, com exceção de Atreus, que estava próximo à
lareira, com um braço apoiado no mantel. Parecia
perdido em pensamentos, mas algum som o alertou,
pois se virou de repente.
— Onde estão os outros? — perguntou Brianna,
enquanto tentava absorver o impacto que a visão
daquele homem lhe causava. Ele trajava uma
indumentária formal, apropriada à ocasião. Os
complicados desenhos bordados em ouro no seu
colete abrandavam a elegância austera do traje à
moda inglesa. Mesmo num recinto tão espaçoso, ele
parecia grande e poderoso.
Ambos se estudaram durante alguns instantes.
Atreus poderia ter-lhe dito que Royce e Alex haviam
concordado, lançando mão do espírito de
solidariedade masculina, em manter suas esposas
ocupadas, de modo que ele pudesse ficar a sós com
ela, que se mostrara esquiva demais nos últimos
dias. Poderia ter acrescentando que tal conivência
não era injusta, já que as mulheres possuíam
bastante habilidade nesse assunto.
Mas em vez disso, disse apenas:
— Você está linda!
A pele de Brianna, normalmente clara, tornou-se
rósea. Usava um vestido de rica seda azul e, ao
redor da cintura esbelta, uma faixa de cetim branco
bordada com folhas de azevinho e bagas. Os cabelos
soltos caíam-lhe sobre os ombros. E não usava
jóias, reparou Atreus.
— Obrigada — ela agradeceu, olhando para os
degraus. Como ninguém apareceu, sorriu um pouco
ansiosa. — A decoração está adorável, não acha?
— Bem festiva. Venha aqui.
— O quê?
— Venha aqui.
Ao vê-la hesitar, Atreus sorriu.
— Tenho algo para você.
— Oh. pensei que fôssemos trocar presentes
depois da ceia.
— E vamos, mas gostaria de lhe dar isto
reservadamente. — Ele enfiou a mão no bolso do
casaco e retirou uma caixinha de madeira e
madrepérola. — Ficaria contente se você usasse isto
esta noite.
Brianna aproximou-se e, com uma certa
hesitação, aceitou a caixinha. Seus olhos
encontraram os dele, antes de recaírem sobre o
conteúdo, que se revelou quando ela ergueu a
tampa.
— Oh, meu Deus!
Na caixinha havia o céu, ou pelo menos um
pedaço dele, retirado na plenitude do dia e no ponto
máximo de cor. Cintilava como se o brilho no seu
interior estivesse vivo. O restante era ouro,
brilhante como o sol, torcido em cachos suaves e
perfeitos, envolvendo a.
— A Lágrima do Céu — murmurou Brianna, sem
poder esconder a surpresa. Já ouvira falar da jóia. A
safira, incrustada em ouro e usada como um
pendente, era famosa em Akora. Segundo a lenda,
fora achada nas cavernas sob o palácio, séculos
antes. Lapidada numa magnífica pedra preciosa pela
mão de um mestre e sempre mantida pela família
Atreides, passava de geração em geração.
— Não posso — disse ela, empurrando- de volta
às mãos de Atreus. O que ele estava pensando?
Como podia fazer tal coisa?
— Porque não? — perguntou Atreus. — Sinto
muito por não combinar com os seus olhos, mas
condiz com o seu vestido.
Atreus estava zombando dela, como os homens
costumavam fazer quando queriam acalmar uma
mulher ou distraí-la de assuntos sérios.
— Ambos sabemos que ninguém daria tal
presente por uma razão tão fútil — disse Brianna
num tom enfático.
— Fútil? É uma palavra que não ouço com muita
frequência. Pelo menos não em relação a mim.
— Eu não disse que você é fútil.
— Seria tão terrível se eu fosse? A ideia é um
pouco atraente.
Brianna se esforçou para não rir, mas ele a fitava
com um prazer masculino tão franco, que ela não
conseguiu se conter.
— Atreus, fale sério. A safira pertence a sua
família. Não posso aceitá-la.
— Está enganada. Minha mãe e minha irmã têm
suas próprias jóias. A Lágrima do Céu é minha. E,
convenhamos, não fica bem em mim. Combina
muito mais com você.
Era impossível resistir a Atreus.
— Você está brincando com um assunto sério —
declarou Brianna quando ele a segurou por ambas
as mãos e a puxou para si.
— Se o faço é porque isto é inesperadamente
difícil para mim. Pensei que conseguiria, mas
olhando para você.
Olhando para uma mulher que possuía um
verdadeiro encanto, não apenas físico, mas pela
força e a coragem da sua natureza. Brianna era
mais, muito mais, do que ele havia imaginado.
Sentia-se feliz por isso, é claro. Qualquer homem se
sentiria. Porém ela representava também certas
complicações sem as quais ele poderia passar.
— Talvez não devesse olhar para mim — Brianna
murmurou com voz suave. — E eu não devesse
olhar para você — acrescentou, sincera.
— Ou talvez, simplesmente, devêssemos aceitar
o fato de que fomos feitos um para o outro. —
Atreus beijou os dedos delicados entrelaçados ao
redor dos seus e percebeu o som afiado da
respiração de Brianna. Antes que ela pudesse se
libertar, ele declarou: — Estou convencido de que
você é a mulher predestinada a ser minha esposa.
— Brianna empalideceu, mas isso não o desanimou.
— Sei que isso tudo deve parecer muito repentino
para você, mas não posso me demorar por mais
tempo aqui. Preciso voltar a Akora, e uma vez lá,
devo dirigir minha atenção aos problemas que têm
de ser solucionados. Gostaria de fazer isso com você
a meu lado.
Pronto, dissera o que pretendia! E era verdade.
Tinham sido feitos um para o outro. Os poucos
beijos que haviam trocado não deixaram sombra de
dúvida. Além do mais, ele acreditava que Brianna
estava predestinada a ser sua esposa. Se não visse
outra razão até então para lhe contar a fonte
daquela convicção, pelo menos não a deixaria tão
confusa. Brianna já tinha a mente repleta com
coisas com que se preocupar,
— Isso é demais — disse ela, confirmando o que
Atreus havia imaginado. — Não posso voltar meus
pensamentos para este assunto agora. Vim à
Inglaterra descobrir quem sou, e você me propõe a
fazer de mim alguém completamente diferente.
— Não — ele rebateu, sincero. Não desejava
fazer de Brianna uma pessoa diferente. Queria que
ela fosse quem era, nada mais. A profundidade
daquela, descoberta o estava assustando, mas ele
continuou, determinado a fazê-la entender. — Não
estou — repetiu, enfático. — Seu passado não
determinaria quem é mais do que ser minha esposa
faria. A vida é sua. Pode seguir suas próprias
direções. Porém diga-me: o que pode descobrir aqui
na Inglaterra ou em qualquer outro lugar que
significará mais do que aquilo que a espera em
Akora?
— Ser esposa? — perguntou Brianna. — Você
pode considerar isso como a mais importante das
aspirações, mas.
— Refiro-me ao fato de ser minha esposa. Não
percebe o poder dessa posição?
— Não estou buscando poder.
Atreus acreditava, mas também entendia o que
ela não conseguia entender.
— Nem eu. Nós, que não buscamos poder,
estamos melhor capacitados para lidar com ele.
Enquanto Brianna considerava aquelas palavras,
Atreus ergueu o pendente e, antes que ela pudesse
contestar, colocou-o ao redor do seu pescoço. A
corrente finamente trabalhada era curta, e a joia
pendurada se aconchegou na base do seu pescoço.
Erguendo a mão, ela a tocou e o encarou.
— Eu não a aceitei.
Atreus lutou contra o desejo de simplesmente
obrigá-la.
Mas não faria tal coisa. Ela merecia um
tratamento especial.
— Então, concorde pelo menos em considerar a
possibilidade. — E para ajudá-la nesse sentido,
baixou a cabeça e a beijou na nuca, que sabia ser
uma região bastante sensível. Não era justo,
pensou, mas naquele momento justiça não tinha
tanta importância. Ele a desejava. Não a mulher
sem nome das suas visões. Não a estátua primorosa
na caixinha forrada de veludo. Desejava Brianna, a
mulher que tremeu sob o toque dos seus dedos,
embora exibisse um ar de desafio no olhar.
— Sua família — ela balbuciou quando pôde
respirar novamente. — Vai entender mal se me
virem usando isto.
— Não. Eles entenderão que pedi que se torne
minha esposa, e que você está considerando a
proposta.
— Atreus, não sei se posso considerar isso. Há
algo que devo lhe contar.
— Silêncio — ordenou ele, num tom de comando.
Em Akora os guerreiros regiam e as mulheres
obedeciam, mas também a proibição de prejudicar
uma mulher reinava sobre todas as coisas. Os
homens precisavam aprender a ser extremamente
persuasivos.
Então, beijou-a com ardor. Suas mãos
deslizaram, percorrendo-lhe as curvas dos quadris,
ao mesmo tempo em que sua língua mergulhava
profundamente, explorando os recantos da boca
macia. O instinto lhe dizia para pôr a suavidade de
medo e deixar a paixão fluir, nem que fosse apenas
durante um momento.
Afastando-se um pouco, porém mantendo-a
pressionada de encontro ao próprio corpo, ele
murmurou:
— Sinta, Brianna. Pare de pensar e ponderar.
Apenas sinta.
Santo Deus, ela não podia fazer mais nada! O
poder e a força de Atreus, seu gosto e seu toque a
##engasgar/sufucar<<engolfaram. Não era mais
capaz de ficar distante daquele corpo. Qualquer
distância, qualquer barreira era intolerável. Nada
mais existia além do desejo ardente de senti-lo bem
fundo nas suas entranhas, de fazer daquele homem
uma parte de si mesma, de receber dele a própria
essência da vida.
— Atreus. — O nome soou quase como uma
oração. Brianna cravou os dedos nos ombros largos,
enquanto a paixão aumentava. Suas costas se
encontravam pressionadas de encontro à parede.
Estava vagamente atenta ao ar frio nas suas pernas,
e aquela boca. aquela boca quente e hábil parecia
estar. se afastando. Não, não suportaria tal coisa.
Ele não podia parar.
— Isto é loucura — gemeu Atreus, e Brianna
sentiu um pequeno alívio ao perceber que não
estava sozinha no meio àquele redemoinho de
desejo. Ele se afastou depressa e a encarou. Tinha a
respiração ofegante, enquanto tentava arrumar os
cabelos desalinhados. — Deus permita que sopre um
bom vento que nos leve rápido de volta a Akora.
Brianna concluiu que Atreus estava impaciente
para se casar. para fazer amor. E não estaria sendo
sincera se não reconhecesse que queria o mesmo.
— Atreus, eu devo.
Teria sido apenas coincidência ou o destino
inconstante dera uma mão? De qualquer forma, não
estavam mais sozinhos. Kassandra e Joanna
entraram no salão, conversando para anunciar sua
chegada com bastante alarido. Royce e Alex vieram
logo atrás. Ambos os casais estavam de bom humor
e prontos para começar as festividades da noite.
Brianna esforçou-se para se acalmar.
Não tinha esperança de esconder o que
acontecera entre ela e Atreus, mas o orgulho exigiu
que recuperasse o controle. Gastou o máximo de
tempo que pôde sem ousar chamar mais atenção
para si e então curvou os lábios num sorriso, antes
de se virar e cumprimentar os recém-chegados.
Assim que a fitaram, Joanna e Kassandra
ofegaram.
— Oh, Brianna! — exclamou Kassandra,
irradiando um sorriso. — A Lágrima do Céu.
— Ficou muito bem nela, não é? — perguntou
Atreus antes que a irmã pudesse falar algo mais. —
Tenho esperanças de que Brianna concorde em usá-
la.
— Concorde? — Joanna olhou para um e depois
para o outro. A surpresa era evidente, mas foi
depressa refreada. — Oh, sim. Está bem.
— É. deve-se considerar uma decisão importante
antes de tomá-la de fato — acrescentou Alex,
lutando para não sorrir para o irmão.
— Creio que isso se chama olhar antes de saltar
— lembrou Royce, também sorrindo. — Acho que é
altamente recomendado.
— Sempre pensei assim — disse Atreus, no tom
de um homem que reavaliava suas suposições. As
coisas não se desenrolaram como ele havia
imaginado ou até mesmo esperado. Contudo, não
tinha dúvida: Brianna seria sua. Afinal, não era a
mulher que ele tinha visto? Não pegava fogo quando
estava nos seus braços?
Sendo esse o caso, estava inclinado a fazer-lhe a
vontade. Se ela precisava de um pouco mais de
tempo para chegar a uma conclusão sobre o próprio
futuro, que assim fosse.
Um pouco mais de tempo.

A neve se acumulava nas vidraças. O fogo


crepitava na enorme lareira de pedra que dominava
a parte norte do grande salão. Candelabros
prateados iluminavam a mesa coberta por uma
toalha de linho branco e com louçaria dourada.
O cheiro de pinho se misturava aos aromas do
banquete de Natal. O jantar fora composto de ganso
acompanhado por uma dúzia de pratos divinos. Uma
refeição simples para os padrões do príncipe
regente, mas um banquete para aqueles
normalmente acostumados à simplicidade.
Apesar disso, Brianna comeu muito pouco.
Pensamentos sobre ela e Atreus a distraíram.
Bastava apenas olhar para o rei e sentir uma quente
e doce onda de desejo que jamais imaginara sentir.
Verdade fosse dita, olhar não era realmente
necessário. Pensar nele já era o suficiente.
Ergueu o cálice e, sem notar a luz da vela que
refletia no líquido translúcido, tomou um gole. Do
outro lado da mesa, Atreus ria de algo que Royce
dissera. O homem que ela julgara austero e sério
estava agora relaxado, acessível e profundamente
sedutor.
Era forte, determinado, um guerreiro acostumado
a agir do seu modo. E ao mesmo tempo conseguia
ser suave, alegre e paciente. Propusera-lhe um
casamento honrado, a promessa de paixão e mais.
O que significava não ser apenas a mulher de
Atreus, mas a esposa do rei de Akora. O que poderia
fazer?
O vinho descia por sua garganta mais facilmente
do que engolir a ideia de que poderia se casar
visando poder. O simples pensamento causava-lhe
náuseas. Mas se seguisse o desejo do seu coração e
o poder viesse espontaneamente.
Brianna suspirou. Virando a haste da taça entre
os dedos, contemplou as muitas faces da tentação.
A refeição terminou com biscoitos de Natal, peras
carameladas, bolo de frutas com cobertura de
marzipã e vinho branco. Brianna recusou quase
tudo, mas não parecia se importar. Seu humor
melhorara bastante durante o jantar.
Quando deixaram a mesa, todos se acomodaram
perto do fogo, onde os presentes se encontravam
empilhados. Alguns embrulhados com adoráveis
tecidos, outros em belíssimas caixas.
— Primeiro o maior — decretou Royce, indicando
o objeto misterioso tão grande que fora preciso
colocá-lo no chão. O lorde de Hawkforte ergueu-o
facilmente e o depositou aos pés da esposa. — Para
você, Kassandra — disse num tom suave.
Ela removeu a embalagem com cuidado e gritou
de felicidade ao ver o couro novíssimo de uma
magnífica sela.
— Para você cavalgar tão veloz quanto o vento —
disse o marido. — Só me prometa que não se
distanciará muito de mim.
— Oh, Royce! — Os olhos da princesa se
encheram de lágrimas. Então, esboçou um leve
sorriso e abraçou o marido.
Pouco depois foi a vez de Royce ser surpreendido
quando a esposa o presenteou com um. O que era
aquilo? Brianna desejou saber. Do tamanho de uma
escrivaninha que se levava para todos os lugares,
sobre um pé largo e comprido. Mas também era
aproximadamente uns dez centímetros mais alto e
parecia incluir numerosas partes móveis.
— Consegue adivinhar o que é? — perguntou
Kassandra ao marido.
Royce segurou o objeto nas mãos, virando-o de
um lado para outro.
Então a descoberta o deixou extasiado.
— Uma máquina a vapor, não é?
— Sim — confirmou Kassandra. — E o fabricante
jurou que funcionará de verdade. Pode estudar o
mecanismo para construir a sua.
— Pretende de fato construir uma? — indagou
Alex.
— Estou pensando no assunto. O poder do vapor
provará ser revolucionário, tenho certeza.
— Perdoe-me, amor — disse Joanna com um
sorriso. Ela deu ao marido uma caixa de marfim
bem pequena amarrada com uma fita escarlate. —
Isto não é nada tão moderno.
Alex não se mostrou aborrecido. Ficou contente
com as peças de xadrez esculpidas em jade e ônix e
intrigado pelo tabuleiro engenhosamente dobrado
que as acompanhava.
Seu presente para a esposa pegou todos de
surpresa, em especial Joanna.
— Não fazia ideia de que você sabia — confessou
ela. Alex riu e deu-lhe um beijo na testa.
— Eu não sabia o que minha adorável esposa
tentava fazer furtivamente nestes últimos meses?
Porque vez ou outra você vinha se deitar com a face
suja de carvão?
— Verdade? Oh, Deus! — Joanna ruborizou. —
Tenho desenhado e responsabilizo Atreus por isso.
O cunhado, que lhe dedicava um sincero afeto,
riu.
— É mesmo? E qual é a minha culpa?
— Você me fez perceber que a arte pode ser tão
necessária à vida como o ar que respiramos. — Ela
olhou para a caixa de madeira que ganhara, repleta
de tintas, pincéis e papéis para pintura. — Obrigada,
meu amor. Irei me empenhar para produzir algo
totalmente não prático.
Quando as risadas por fim cessaram, foi a vez de
Brianna receber seus presentes. De Royce e
Kassandra ganhou uma cópia do livro que continha o
desenho de Holyhood, como também vários outros
volumes que contavam a história da família inglesa.
O prazer que ela sentiu se repetiu ao receber de
Joanna e Alex mais livros, o casal, conhecendo seu
amor pelas histórias, haviam escolhido muito bem.
— O venerável Beale — disse Alex. — E o sr.
Thomas More igualmente venerável, mas nenhum
Byron.
Brianna abraçou os livros, encantada pela
consideração dos amigos. Após retribuir os
presentes, olhou para Atreus, que a observava
atento.
Através da névoa de relaxamento e prazer, o
ressentimento se agitou dentro dela, mas logo se
dissipou. Ele poderia olhá-la do modo que quisesse.
Cabia a ela decidir o próprio destino.
Mesmo assim, não pôde deixar de desfrutar o
prazer que Atreus sentiu ao receber os presentes
que a família escolhera para ele, o que incluía uma
soberba coleção de mapas, alguns datando de
centenas de anos, que traçavam de modo confuso e
erroneamente algumas noções ridículas acerca de
Akora, feitas por aqueles que simplesmente não
podiam admitir que não sabiam nada sobre o Reino
Fortificado.
— Olhe para isto — disse ele, indicando um dos
mapas mais antigos. — Parece que somos a
residência dos dragões.
— O meu favorito é este aqui, que mostra Akora
cercada por anéis de fogo — apontou Alex.
Atreus entregou os presentes que trouxera de
Akora. Para Joanna e Kassandra havia primorosos
frascos de vidro envoltos em prata com filigranas de
ouro, contendo os mais raros e preciosos perfumes
criados pelos mais famosos perfumistas do reino.
Alex e Royce ficaram igualmente contentes com as
belas espadas com os cabos esculpidos com
símbolos antigos que
##contranger/forçar/obrigar/necessitar<<compelia
m o guerreiro a sempre lutar com honra.
Quando todos haviam recebido seus presentes,
Brianna se ergueu.
— Devo pedir a tolerância de vocês. É que o meu
presente para Atreus está lá fora.
A declaração suscitou expressões de surpresa e
olhares curiosos.
Agasalhados contra o frio, todos deixaram o
grande salão e caminharam até os estábulos.
— Eu não sabia onde colocar isso — disse
Brianna. — De modo que não fosse visto.
Pegando o lampião que Alex trouxera, ergueu-o
para revelar o conteúdo de uma baia. Uma baia
limpa e vazia, cora exceção de um bloco de pedra da
altura de um homem.
Atreus deu um passo à frente. Sua fisionomia se
transformou.
Lentamente, esticou a mão e tocou o bloco.
— O que é isto? — perguntou num tom suave.
— Quartzo — respondeu Brianna. Quartzo rosa,
segundo lorde William. Ele me mostrou vários ao
redor de Holyhood. Próximo ao solar há um
precipício que se estende até uma praia rochosa. A
base do precipício é de argila muito macia de um
notável tom púrpura. As pessoas fazem panelas com
essa substância. Sobre o barro, ergue-se uma
imensa parede de quartzo.
— Como conseguiu retirá-lo de lá? — quis saber
Atreus, deslizando a mão sobre a superfície
translúcida.
— Com o passar dos anos, os blocos de quartzo
se soltaram. Quando perguntei a lorde William se eu
poderia pegar um pedaço para presenteá-lo, ele
insistiu que eu trouxesse este aqui, embora fosse o
maior.
— É magnífico! Trabalhei com mármore, granito,
##transparente/translúcida<< alabastro, todos os
tipos de pedra, mas nunca com quartzo. — As mãos
fortes continuavam acariciando a pedra como se
buscando a forma a ser esculpida. — Obrigado! É
maravilhoso!
Aliviada por tão incomum presente fazer
tamanho sucesso, Brianna não pôde deixar de
reparar como mãos tão poderosas pareciam se
mover sobre a pedra com tanta suavidade. Atreus a
tocara do mesmo modo.
Brianna tocou a safira na base do seu pescoço. A
pedra preciosa parecia pesada e fria, mas se
aqueceu ao toque dos seus dedos. A Lágrima do
Céu. Um nome que suscitava tristeza. Deveria
aceitar a jóia, com todas as implicações contidas
nela? A tristeza seria o seu destino?
Ou suas lágrimas seriam de felicidade?
— O navio chega amanhã — falou Royce, olhando
para o quartzo. — isto precisará ser removido com
muito cuidado.
Atreus acenou com a cabeça e os homens
começaram a planear com seria feito. Brianna mal
os ouviu. Pensava no navio que levaria Atreus de
volta a Akora.
E talvez a levasse também.

O Natal se fora. Era o dia seguinte, embora a luz


do amanhecer ainda fosse levar horas para surgir.
Brianna precisava desesperadamente dormir. Tinha
os olhos ressecados e um frio cortante parecia
congelar-lhe os ossos, apesar das chamas que ainda
ardiam na lareira e das várias camadas de cobertas
que havia sobre seu corpo.
A Lágrima do Céu não se encontrava mais ao
redor do seu pescoço. Estava de volta na caixinha
marchetada, onde a vira pela primeira vez.
Deveria usar aquela pedra preciosa novamente?
perguntou-se.
Ela deu um suspiro de profunda frustração. num
súbito rompante de impaciência, ergueu-se da cama
e vestiu o roupão. Não podia aguentar ficar ali
parada. Apesar da hora, precisava achar alguma
ocupação.
Pegando uma vela, deixou o quarto, caminhou ao
longo do corredor e desceu os degraus que
conduziam ao salão principal. Então, continuou em
direção à ala leste, onde as portas duplas e largas
da biblioteca de Hawkforte estavam abertas. Podia
avistar, através das altas janelas, a lua cheia brilhar.
A luz do luar revelou a silhueta de um homem
sentado a uma mesa.
Atreus! Devia estar tão sem sono quanto ela.
Recuando um passo apressada, estava -a ponto
de se retirar, quando ele olhou na sua direção.
— Você esqueceu os seus chinelos — a voz soou
divertida.
Brianna olhou para seus pés descalços e para
Atreus, que havia cruzado a distância que os
separava e agora se encontrava a sua frente.
— Não consegui dormir — disse ela.
— Nem eu. Venha para perto do fogo.
— Mas não há nenhum fogo.
— Isso pode ser facilmente resolvido. Esta
biblioteca é excelente. Teve muitas chances de
explorá-la, não é?
— Algumas — respondeu ela, observando-o
enquanto ele virava a atenção para a lareira. Movia-
se com a elegância de um homem acostumado a
fazer tais tarefas. Ela desejou saber onde Atreus
aprendera a providenciar um fogo com tanta
destreza. Nas montanhas sobre a cidade real de
Ilius, talvez. Era lá onde os meninos começavam a
receber treinamento. Os músculos das costas largas
se moveram enquanto ele alimentava o fogo com
lenha. Quando as chamas subiram, ergueu-se,
retirou a poeira das mãos e acenou com a cabeça
para a mesa a qual antes se encontrava sentado.
— Quer ver uma coisa?
Brianna fez um gesto afirmativo com a cabeça.
Os dois sozinhos, num ambiente tão intimista, era
bem mais fácil pensar em como seria a vida ao lado
daquele homem. Mas em vez disso, ela dirigiu sua
atenção para os objetos que ele estava estudando.
— O que é isso? — quis saber.
— Dê uma olhadela mais de perto — pediu
Atreus, oferecendo-lhe um cilindro de marfim com
as extremidades de ouro.
Brianna o abriu bem devagar. Havia símbolos
gravados no ouro. Era fácil reconhecê-los. Eram de
Akora, mas num estilo não usado naquele século.
— Trouxe isto com você? — perguntou. Ele
sacudiu a cabeça numa negativa.
— Está aqui em Hawkforte há aproximadamente
setecentos anos, junto com a carta no seu interior e
estes outros artigos. — Atreus gesticulou para a
vasta coleção em cima da mesa.
Brianna notou uma estatueta de um cavalo em
bronze, uma lâmina curta de aço, uma garrafa de
##transparente/translúcida<< alabastro esculpida,
que poderia ter contido óleo perfumado, e uma caixa
folheada a ouro e marchetada com pérolas, grande o
bastante para armazenar aquilo tudo.
— Foram enviados pelo Hawkforte que alcançou
Akora muito tempo atrás?
Atreus fez um gesto de assentimento.
— A carta no interior do cilindro ainda existe,
mas agora o papel está muito frágil para ser
manuseado. O homem que a enviou chamava-se
Falconer. Escreveu para contar à família que não
voltaria.
— Isso deve ter sido muito difícil para eles.
— Mesmo assim, também devem ter ficado
felizes por saber que ele estava vivo. Royce me
disse que quando ele e Joanna eram crianças,
estudavam estas coisas sem parar. Ficaram
fascinados por Akora e, como resultado, Royce foi
até lá, e Joanna saiu à sua procura. O que o tal de
Falconer fez setecentos anos atrás acabou
influenciando as vidas de pessoas que ele jamais
imaginou que iriam existir.
O cavalo esculpido era frio e liso nas mãos de
Brianna.
Quem o esculpira havia captado o movimento do
animal a meio-galope. Isso fê-la lembrar-se dos
cavalos que seus pais akoreanos criavam em Leois,
a ilha de planícies onde havia cavalos em
abundância.
Uma súbita onda de desejo a atingiu.
Pousou a escultura sobre a mesa e olhou para
Atreus.
— Você pensa nas consequências dos seus atos
para as gerações futuras?
— Ocasionalmente, mas na maioria das vezes
apenas tento fazer o que é certo para as pessoas
que me foram confiadas para governar.
Brianna se sentia mais aquecida agora que o fogo
crepitava alto na lareira. O reflexo das chamas
dançantes formava um círculo de luz no recinto.
Deveria pegar um livro e sair dali, mas a solidão
daquele lugar a atraía. Contudo, permanecer onde
estava seria uma grande tolice. O que fê-la desejar
saber porque se encontrava sentada no tapete em
frente ao fogo, fitando as chamas.
— Há algo que preciso lhe falar — disse ela.
Atreus se baixou e acomodou-se a seu lado. Em
seguida, lançou outra acha no fogo e meditou sobre
as exigências da honra. Brianna era uma mulher
jovem, sem experiência.
Mas também bastante sensual, embora duvidasse
de que ela tivesse noção disso. Com pouco esforço,
poderia possuí-la. Seu corpo reagiu imediatamente à
ideia. Não era de admirar. Mas sua consciência
exigia que a respeitasse: Não a prejudicaria de
modo algum.
Quando tudo fosse dito e feito, ela estaria
imensamente mais feliz e certa do caminho que
deveria tomar na vida. Essa era a questão. Ergueu-
se antes que pudesse ponderar mais sobre o
assunto e fechou as portas da biblioteca. Quando
voltou, Brianna o estava fitando.
— Ouviu o que eu disse? — perguntou ela.
O instinto de guerreiro, sempre alerta ao perigo,
arrepiou-lhe os cabelos da nuca. Atreus tentou
disfarçar o súbito desconforto e sentou-se
novamente ao lado de Brianna. Sorrindo, afastou
uma mecha de cabelos invisível da face delicada.
— Algumas vezes não se sente tentada a relaxar
e desfrutar o momento?
O toque daqueles dedos fortes era leve e
provocante, mas Brianna precisava ignorá-lo. Sua
reação a ele era muito séria. Negava-se a parar de
fitá-lo, mal conseguia respirar e seu corpo parecia
ter desenvolvido vontade própria.
Fora advertida a respeito de tais sensações. A
mãe e as outras mulheres haviam deixado isso bem
claro: homens eram capazes de banir o bom-senso,
acabar com o controle e tornar o pensamento
racional impossível. Havia uma razão para se
manter cautelosa. Mas se pelo menos pudesse se
lembrar qual era.
Em vez disso se viu apoiando o rosto na mão de
Atreus, aceitando suas carícias. O que momentos
antes lhe parecera tão importante, agora corria sério
risco de se esvanecer do seu pensamento. Antes
que isso pudesse acontecer, esforçou-se para se
afastar. A falta do toque daqueles dedos foi quase
dolorosa, um choque adicional às suas emoções já
sobrecarregadas. No entanto, ela lutou para
suportá-lo.
— Preciso lhe contar algo.
Os lábios de Atreus se curvaram num sorriso. O
brilho nos olhos castanho-dourados era quase um
tormento.
— Tem a ver com morangos?
— O quê? — Ela se lembrou do prazer atordoante
que aquela boca sensual a fizera sentir. —
Morangos?
— Você é alérgica a eles — lembrou-a. — Mas
não a isto. — Segurando-lhe a mão, deslizou o
indicador de um lado para outro sobre a curva
interna da palma de Brianna. Ela sentiu os lábios de
Atreus muito próximos e ofegou quando ele beliscou
de leve a carne macia entre seu polegar e os outros
dedos. — Ou a isto. — Com a língua, ele acariciou o
mesmo local, várias vezes seguidas.
Brianna estava trêmula e arfando.
— Atreus.
— Houve um tempo em que pensei que jamais
deixaria de me chamar de rei, ou pior, de Vossa
Alteza.
— É o que você é. — O braço musculoso
envolveu-a pela cintura, poderoso, mas ao mesmo
tempo estranhamente suave. Com a outra mão, ele
empurrou-lhe o roupão pelos ombros, deixando-os
nus, e o pescoço delicado, exposto a seus beijos. —
Você é o rei — A voz soou frouxa e ofegante. — O
escolhido, o governante absoluto de Akora, decide
tudo. Oh! Isso é tão bom.
— E ficará melhor ainda — prometeu ele,
provando, de imediato, o que estava afirmando.
Inseriu a mão sob o seu roupão, apoderou-se de um
dos seios, acariciando-o ao mesmo tempo em que a
beijava com sofreguidão.
De repente, Brianna percebeu que estava deitada
no chão.
Não fazia ideia de como fora parar ali e seu
roupão havia desaparecido. Para piorar a situação, o
tecido fino da camisola, tudo o que lhe restara para
se cobrir, parecia insuportável. Desejava tirá-la,
lançá-la no fogo e fazer o mesmo Com a camisa e a
calça de Atreus. Uma imagem das suas roupas
ardendo nas chamas lhe veio à mente, e ela deixou
escapar uma risada nervosa.
Ele ergueu a cabeça sorrindo e a contemplou.
— Está se divertindo?
— Não, sim. Oh, céus, não consigo raciocinar!
— Ótimo — murmurou Atreus, baixando de novo
a cabeça.
Brianna teve alguns breves momentos para
considerar que não só as mulheres akoreanas eram
muito bem treinadas em certos assuntos, antes de a
excitação crescer dentro dela, tornando-se
insustentável. Com um movimento sinuoso,
contorceu-se, alheia ao fato de que a camisola se
erguera, deixando-lhe as pernas expostas. Ao sentir
a excitação de Atreus, um gemido abafado escapou
dos seus lábios.
Mas ainda havia algo que precisava lhe dizer.
Algo muito importante.
E tinha que falar, sem demora, sem consideração
ao prazer que Atreus lhe oferecia, à paixão e à
promessa de um futuro que ela desejava.
Conte a ele, impeliu-a uma vozinha interior.
— Atreus.
— Relaxe, meu amor. Terá tudo o que merece,
eu prometo.
Livre da camisa, o tórax largo exibia um trilho de
pelos escuros. O movimento dos músculos
ondulando atiçava os mamilos túrgidos de Brianna,
causando-lhe sensações delirantes.
Conte-lhe!
— Hélios. A palavra pouco abalou a intensa
paixão que Atreus sentia. Mas ele era um homem,
protetor e atencioso e, instintivamente, moveu-se,
procurando se acalmar.
— Não se preocupe, minha amada. Não se
preocupe. Não precisa temê-los.
— Você não entende.
— São uns desencaminhados, tolos, mas não
representam perigo. Não se preocupe.
— Não são nada disso! E eles têm razão em
reivindicar mais transparência, mais liberdade.
— Eles têm razão? — perguntou, erguendo a
cabeça e a encarando, surpreso. — Não pode estar
falando a sério.
Brianna enrijeceu. Atreus percebeu o rubor que
lhe tingiu a face, evidência da luta interior que
travava.
— Estou — rebateu ela se afastando.
O que havia por trás daquelas palavras, a
verdade que revelavam, não fazia sentido. Brianna
não podia ser, ao mesmo tempo, um membro do
grupo rebelde que desejava transformar Akora e a
mulher predestinada a ser sua esposa. Isso era
simplesmente impossível. Não era?
— Brianna?
Ela se virou e puxou o roupão para se cobrir.
Agarrando-se a uma cadeira próxima, encarou-o.
— Sou um dos membros de Hélios — confessou,
e deu um profundo suspiro.
Atreus também se ergueu, sem deixar de fitá-la.
Viu quando Brianna respirou fundo, quando seus
olhos se fecharam por um instante, quando a
resolução se fortaleceu dentro dela. Deveria ter
percebido desde o início. Brianna não era apenas a
visão que ele tivera na caverna. Não apenas a
estátua primorosa esculpida pelas suas mãos. Era
Brianna, uma mulher de coragem e complexidade.
— Alguns dos seus amigos podem ter conspirado
para me matar.
— Ninguém de Hélios faria tal coisa.
— Acha que não? Há muitas evidências que
provam o contrário.
A luz do fogo, os olhos dela pareciam vazios.
Atreus lutou contra o desejo de alcançá-la e tomá-la
nos braços. E em vez disso exigiu:
— Como você pôde? Por quê? Os Hélios não se
importam com as tradições de Akora, com os
valores que nos serviram tão bem por todos esses
séculos. Acabariam com tudo e para quê? Por uma
ideia infantil de liberdade sem responsabilidade?
— Por uma chance de ajudar a moldar o futuro
do nosso país — replicou ela. — Isso é tudo o que
queremos. Muito do que acontece em Akora é feito
em segredo, começando com a seleção do rei.
— A seleção do rei é um processo espiritual
diretamente ligado à genuína essência de Akora. —
Atreus estava surpreso, descrente e bastante
frustrado. Seu corpo doía e o coração. Preferia nem
pensar. — Você não sabe o que está falando. Se
soubesse.
— Porque não sei? — indagou Brianna, apertando
mais ainda o roupão de encontro ao corpo. —
Porque tão poucos sabem o que acontece por trás
de uma escolha que afeta a todos? Reclama que as
metas de Hélios são infantis, mas quando vão nos
permitir sermos adultos de verdade? Você controla
nossas vidas.
— Não! Sirvo a Akora e a todos os akoreanos. Se
não é capaz de entender isso, não entende nada.
— Então não entendo, porque vejo um homem
receber poder absoluto num ritual que já foi mantido
em segredo por tempo demais!
— Devo lembrá-la de que os nossos costumes
preservaram Akora por milhares de anos. Diferente
de nós, outras nações se erigiram e sucumbiram,
povos desapareceram e o caos reinou. Esse é o
futuro que você quer para Akora? Que sejamos
frágeis, tão temporários quanto o restante do
mundo?
— Claro que não! Eu amo Akora e desejo o
melhor para o nosso país!
— Verdade? E quem determina o que é melhor?
Você? Seus amigos de Hélios? As mesmas pessoas
que pensaram que o melhor para Akora era
conspirar com um louco para me matar e assumir o
governo?
— Isso não ficou provado! Você mesmo disse que
vai presidir todas as investigações. Decidirá o
destino deles. Mas já se decidiu, não é? Onde está a
justiça nisso?
— Deixarei de lado meus interesses pessoais,
essa é a essência daquele que pretende ser rei. Eles
terão um julgamento justo. Se forem inocentes,
ficarão livres. Se forem culpados, pagarão. Qual é o
seu problema em relação a isso?
— Se o que você diz é verdade, nenhum.
— Acha que estou mentindo?
— Não! Simplesmente duvido de que qualquer
homem seja capaz de deixar seus interesses
pessoais de lado, já que se trata de um atentado
contra a sua própria vida.
— Eu não sou qualquer homem. Sou o rei!
Um silêncio pesado se instalou no recinto, com
exceção do crepitar do fogo. De repente, as chamas
saltaram em direção à chaminé, avivadas por uma
rajada de vento que penetrou pelas janelas e uivou,
circulando pelas torres altas.
Vento onde antes não havia nenhum. Vento
nascido da quietude. Vento que parecia um uivo de
aflição.
— Nãoooo! — Brianna empalideceu e pôs as
mãos nos ouvidos como se não quisesse ouvir.
— O que houve? — Atreus dirigiu-se à janela
aberta e a fechou. No instante em que fez isso, o
vento cessou. Lentamente, Brianna baixou as mãos,
mas permaneceu pálida e aflita.
Em outras circunstâncias, ele a teria tomado nos
braços e confortado. Mas depois do que ouvira,
permaneceu onde estava. Mesmo assim, observou-a
com grande preocupação e um pouco confuso. Ela
estava apavorada? Aturdida? Mas por quê? Afinal,
aquilo era apenas um vento.
— O que a aflige? — perguntou.
— Nada. Quero dizer. você. eu. Hélios. — Brianna
meneou a cabeça, tentando clarear as ideias. — Não
importa. Vou para a cama — dito isso, caminhou em
direção à porta. Ao colocar a mão na maçaneta,
parou e olhou para trás. — Deseja que eu devolva a
Lágrima do Céu agora ou pela manhã?
— Eu desejo você.
Atreus percebeu o choque que a acometeu.
— Não pode dizer tal coisa. Não agora.
— Não devo — corrigiu ele. Então, deixou
escapar uma risada. O som assustou a ambos. —
Mas parece que não sou um sujeito tão sensato
quanto você me julgava.
Brianna havia aberto a porta, porém não a
transpôs.
— De fato pensa assim? — indagou um pouco
trêmula.
— Sou um homem. Sempre achei que a paixão
devia se render à razão, pelo menos na maior parte
do tempo. — Atreus caminhou até ela, sem lhe dar
tempo para pensar.
— Vamos ceder à razão juntos.
— Não. — Ela ergueu a mão, afastando-o. — Não
me toque novamente.
— Porque não? Eu a feri de algum modo?
— Não, ambos sabemos que não. Mas quando
você me toca, não consigo raciocinar.
— E acha isso desencorajador? Volte comigo para
Akora.
— Com que propósito?
— Disse que ama Akora, e os seus amigos serão
julgados. Venha e veja se será feita justiça. —
Aproximou-se ainda mais, fazendo-a recordar do
calor do seu corpo. — Venha comigo, Brianna. Seja
a minha consciência, se acha que deve.
— Você não precisa disso.
— Não? Tem ideia do que me lembro? A dor
infinita que me devorou? O desejo de morrer,
simplesmente para acabar com a dor? A tentação de
partir para o outro mundo e de quanto difícil foi
permanecer neste? E o medo. Não podemos
esquecer o medo. O temor de não ficar curado, não
voltar a ser homem, não ser capaz de me mover ou
de recuperar a memória. Ainda há noites que
desperto apavorado.
— Atreus — a voz de Brianna soou sufocada. —
Eu estava lá. Sei o que você sofreu.
— Mesmo assim tenho de julgar as mesmas
pessoas que podem ter ajudado a provocar aquilo
tudo. Tenho de deixar os interesses pessoais de lado
e ser o rei. Venha comigo.
— Eu pertenço a Hélios.
— Você pertence a Akora e possivelmente a mim.
— Atreus a puxou para si, lenta e continuamente. —
O que teme, meu amor? Porque o vento a afligiu
tanto?
A pergunta escapuliu antes que ele pudesse
impedi-la. Brianna estava pálida e assustada. Uma
mulher dominada pelo terror.
— Brianna.
Com um movimento súbito, ela afastou a mão de
Atreus, virou-se e escancarou a porta. Então, como
uma imagem em câmara lenta, ele viu a cascata
sedosa de cabelos vermelhos ondear nas costas de
Brianna, enquanto ela fugia.
— Brianna!
Era um guerreiro, caçador quando necessário.
Fora criado e treinado para ambos. E era um
homem, ardendo de desejo por uma mulher. Guiado
pelo mais primitivo instinto, alcançou-a no pé dos
degraus. Brianna o fitou chocada. Se pensava em
resistir, Atreus não lhe deu nenhuma chance de agir.
Ergueu-a nos braços e subiu os degraus apressado.
Nenhum homem podia prejudicar uma mulher.
Ele não a prejudicaria, não faria tal coisa.
Iriam se entregar um ao outro. Juntos,
desafiariam os demônios que os tentavam.
Atreus sabia onde ficava o quarto de Brianna.
Passara por lá um dia, quando Royce lhe mostrara o
solar.
Com um chute, ele abriu a porta e viu a cama
banhada pelo luar. As cobertas afastadas para o
lado como haviam sido deixadas. Rapidamente,
fechou a porta, cruzou o quarto, colocou Brianna
sobre a cama e a contemplou.
— Diga-me que não, Brianna. Se isso estiver no
seu coração, diga agora.
— Dizer o quê? Que o quero tanto como você me
quer? Que não me importo com o que pode
acontecer amanhã ou daqui a uma hora. ou com
qualquer outra coisa além deste momento?
No instante seguinte, as mãos delicadas estavam
sob a camisa de Atreus, acariciando-lhe os
contornos do tórax largo. Arqueando os quadris, ela
roçou o membro rígido, ele gemeu e fechou os
olhos, procurando se controlar. Era um homem
disciplinado. Passara dias sem dormir, sofrerá fome
e sede, suportara calor e frio e vencera o combate
corporal que fazia parte do treinamento de todo
guerreiro akoreano. Havia enfrentado problemas
complicados e apresentado argumentos e soluções
para todos. Treinara para ser paciente com seus
conselheiros e com todos aqueles que buscavam
pareceres. Estava preparado para lidar com aquilo!
— Brianna, querida, calma.
— Não! Não posso esperar.
De repente, a camisola dela sumiu. Fora retirada
por um deles, mas Atreus não sabia qual dos dois.
No entanto isso não tinha importância. Brianna
estava nua de encontro ao seu corpo, tinha a pele
mais lisa que o ##transparente/translúcida<<
alabastro que ele esculpira, mais real e excitante do
que ele podia suportar. Beijou-a com ardor.
Mergulhou a língua nas reentrâncias daquela boca,
enfiou a mão entre as coxas macias de Brianna.
Alcançando a montículo tenro que buscava,
acariciou-a repetidas vezes no mesmo ritmo em que
sua língua se movia, levando-a ao êxtase.
Entretanto para Atreus não era o bastante.
Tampouco para ela. Segurando-a pelos pulsos,
imobilizou-a no lugar, enquanto se baixava,
saboreando com calma centímetro por centímetro
daquela pele clara. Brianna gemeu e o puxou,
porém ele não arriscaria deixá-la tocá-lo. Em vez
disso, virou-a de costas, para admirar as covinhas
sobre as nádegas arredondadas. Eram muito mais
atraentes do que na sua imaginação. Soprou-lhe a
base da espinha e foi recompensado com um suspiro
de prazer. Mais uma vez os encantadores quadris se
arquearam na sua direção. Com um movimento ágil,
abriu os botões da calça e libertou seu membro.
Estava rijo a ponto de estourar, mas ainda assim,
ele esperou. Com imenso cuidado, roçou a fenda
húmida e quente entre as pernas de Brianna,
entrando o bastante para sentir as intensas
contrações dos músculos femininos puxando-o e
atraindo-o completamente.
Pela segunda vez a excitação a dominou, e
Atreus esperou. Virando-a de frente para ele,
murmurou o quanto ela era bonita e quanto a
desejava. Brianna gemeu seu nome, implorando que
a possuísse. Atreus a penetrou lentamente, ainda
exercitando sua resistência, apesar das batidas
selvagens do seu coração e do desejo que o
dominava.
Por fim, Atreus afundou nas suas entranhas com
um movimento firme, vencendo a barreira da sua
virgindade. Brianna sentiu a deliciosa pressão.
Estava pronta para ele. Seus braços o envolveram,
os lábios moldaram-se aos dele, reivindicando-o por
inteiro, extraindo daquele homem a verdadeira
essência da vida.
Quando Atreus voltou a si, estava deitado,
aninhando-a no abrigo dos seus braços, enquanto
suas mãos a acariciavam.
— Meu Deus — murmurou num tom suave.
Os lábios de Brianna se curvaram contra a pele
aquecida de Atreus.
— Hum.
— Jamais experimentei nada parecido.
— Como creio que você já sabe, eu também não.
Devo dizer que julgava ter sido bem orientada nessa
matéria, mas me enganei.
— Poderíamos nos dedicar a reescrever os
textos.
— Isso tem mérito. Podemos considerar o
assunto.
Ele riu e a puxou para si, sentindo no seu abraço
um sentimento de retidão como jamais
experimentara.
Olhou novamente para Brianna. Ela adormecera
de repente. Devia fazer o mesmo.
Fizera o que era certo e necessário. Não a
prejudicara. Embora não pudesse negar a grande
verdade: havia tirado a sua inocência e, desse
modo, unido a ele a única mulher na face da Terra
que deveria desejá-lo tão longe dela quanto fosse
humanamente possível.
Como podia ser diferente, quando a morte dos
pais ainda a assombrava? Mortes que ele causara
havia tanto tempo, naquele dia em que um menino
se tornara homem.
Atreus. são os franceses! Malditos! Aguentem
firme, homens! O vento está a nosso favor!
Mais próximo. mais próximo. Guerreiros de
Akora, não recuem!
Polynx está morto! Menelos também! Atreus, o
que fazemos?
Havia sangue derramado nos canhões, um
grande buraco na lateral do navio. Homens que ele
conhecia e respeitava mortos aos seus pés.
Recarregue! Não hesite! Nós somos invencíveis!
Não vamos falhar!
Foram seus olhos que haviam medido a distância,
suas mãos que tinham movido o canhão.
Ele dera a ordem.
Fogo!
Deitado na escuridão, com Brianna aninhada nos
seus braços, Atreus pensou na sua própria inocência
perdida. Tomada, não na doçura da paixão, mas no
sangue, suor e terror de uma batalha.

A expressão nas faces de lady Constance e do


conde era de pura surpresa. Com sentimento de
culpa, Brianna olhou para ambos.
— Por favor, procurem entender. Sei que parece
muito súbito, mas eu preciso mesmo voltar a Akora.
Estranhamente calada, lady Constance olhou
para o marido.
— É claro que lhe desejamos o melhor, Brianna
— disse o conde. — Mas há algo assim tão urgente
que incite essa decisão?
— Sinto falta da minha família.
— Oh, minha querida. — Lady Constance
segurou-lhe a mão. Estavam sentados na sala de
estar de Holyhood. Do lado de fora, o frio dia de
inverno começava a dar lugar ao crepúsculo. Um
pouco antes, Brianna conhecera a geração mais
jovem dos Hollister, inclusive um bebê chamado
William em homenagem ao avô. Bem recebida por
todos, tinha se afeiçoado rapidamente a eles. Com
pouquíssimo esforço, poderia vir a considerá-los
amigos e talvez até mesmo parentes.
Um fogo alegre crepitava na lareira e o chá havia
sido servido. Holyhood contava com todos os
detalhes de uma casa. A casa da sua mãe. Sua, se o
destino a tivesse trazido nessa direção.
— Compreendemos — disse lady Constance. — É
natural. Descobriu tanto sobre você. Talvez precise
de tempo para considerar tudo o que aconteceu.
— Mas, por favor, não pensem que não apreciei
tudo o que fizeram e me ofereceram. Conhecê-los e
descobrir Holyhood significou muito para mim.
— As portas do solar sempre estarão abertas
para você — afirmou lorde William. — Como
deveriam ter estado para sua mãe e seu pai. — O
conde se encontrava de pé e abriu os braços.
Brianna o abraçou, feliz e emocionada pela reação
dele.
— Claro que estão — reafirmou lady Constance
unindo-se aos dois. Com a mão, apertou a face de
Brianna suavemente. — Sabe, minha querida, já fui
jovem um dia. Sei como os desejos podem nos levar
a diferentes direções. Mas creia, não há guia mais
fiel que o nosso próprio coração. — A mulher olhou
para a pintura acima do mantel. — Tenho certeza de
que sua mãe lhe diria isso.
Brianna piscou, tentando conter as súbitas
lágrimas que lhe marejavam os olhos. Durante todo
o dia tentara se manter controlada. Havia realmente
feito o que a lembrança e a saciedade do seu corpo
proclamavam? Tinha mesmo acordado numa cama
que ainda guardava o calor e o cheiro de Atreus? Ele
havia se retirado deixando no travesseiro a Lágrima
do Céu, uma lembrança muda daquilo tudo que
acontecera entre os dois.
Era o que parecia e ela não se arrependia de
nada. Mas as preocupações existiam. Ele era o rei, e
ela, um membro de Hélios. Ele era akoreano, e ela
talvez fosse inglesa. Ele um homem, ela uma
mulher. E a despeito de todo o prazer que haviam
partilhado, o medo de se perder para Atreus a
atormentava. Mas não se lamentaria nem uma vez.
A verdade era que o rei de Akora era um amante
extraordinário. Durante o tempo em que vivera no
palácio, Brianna ouvira rumores discretos sobre suas
façanhas amorosas. Porém as mulheres que o
conheciam eram modelos de discrição. Não fosse
pela tendência que possuíam de se reunir nos
corredores para chorar copiosamente, nos dias mais
escuros que se seguiram ao ataque que Atreus
sofrerá, ela jamais poderia ter ouvido tais
observações.
Mas Atreus sobrevivera e agora a desejava.
Aquela realidade ainda era difícil demais de
assimilar. No entanto, teria de encará-la para o bem
de ambos.
— Minha querida — disse lorde William com seu
tom terno. — Precisamos gastar um pouco de tempo
para falar de assuntos práticos. Antes do seu avô
morrer algumas mudanças ocorreram no coração
dele.
Lady Constance assentiu com a cabeça.
— Para sermos mais justos, podem ter ocorrido
anos antes. Entretanto, tarde demais para lhe trazer
de volta a filha perdida. De qualquer modo, seu avô
deixou uma reserva para você.
— Uma reserva? — indagou Brianna, olhando de
um para o outro.
— Sim. Ele deixou uma reserva em dinheiro que
se tornará sua quando você se casar, mas, que de
qualquer forma, ficará sob o controle do seu marido
— lorde William explicou. — Também colocou no
testamento uma cláusula um pouco incomum: se
aos vinte e cinco anos você ainda estiver solteira, o
dinheiro se torna seu sem restrições.
— Mas ele nem sabia se eu estava viva.
— Porém tinha esperanças — disse o conde. —
Pelo menos, imagino que sim. Seu avô não confiava
em mim. Devo lhe dizer que se ele não tivesse
tomado tal decisão, eu mesmo a teria tomado. Era o
correto.
— É muita bondade da sua parte e suponho que
do meu avô também, mas de fato não faço a
mínima ideia do que isso significa.
— Significa — explicou lady Constance — que se
você resolver voltar à Inglaterra, poderá fazer um
ótimo casamento. Mas se preferir ser independente,
poderá ter uma vida bastante confortável.
— E. — acrescentou lorde William — pode fazer
isso com o nosso total apoio. O apoio da sua família
inglesa.
Nesse instante, Brianna sentiu uma profunda
tristeza.
— Se algo parecido tivesse sido oferecido à
minha mãe.
— Delphine e Edward ainda poderiam estar vivos
— concluiu lady Constance. — Querida criança, não
faz bem pensar em tais coisas, mas podemos e
devemos aprender com os erros do passado.
— Demorei muito mais tempo do que deveria,
mas agradeço pela compreensão de vocês.
— É verdade. Logo estará escuro — concordou
lady Constance. — Porque não passa a noite aqui?
Poderíamos ficar um pouco mais de tempo juntos.
Mandaremos um mensageiro a Hawkforte, é claro.
O convite era tentador, mas, na verdade, Brianna
estava ansiosa para rever Atreus e igualmente
ansiosa para saber como ele reagiria quando a visse.
O orgulho a incitava a encará-lo de frente. Embora a
bondade do conde e da condessa e o desejo genuíno
de ficar um pouco mais com eles antes de deixar a
Inglaterra pesasse na sua decisão.
— Eu gostaria de ficar — confessou com um
sorriso. — Obrigada pelo convite.
Minutos depois, um criado foi despachado a
Hawkforte.
Atreus leu o bilhete e olhou pelas janelas das
torres, contemplando a beleza do pôr do sol.
— Não há motivo para preocupação — disse
Royce atrás dele. — Brianna estará bem com os
Hollister. Além do mais, é preferível ficar lá a
percorrer a estrada no escuro.
— Mas ela podia ter voltado antes, ou melhor,
não deveria ter ido.
— Sinta-se à vontade para pegar um cavalo e ir
buscá-la — sugeriu Royce.
A sugestão era tentadora. Todavia, estaria Atreus
disposto a bater às portas do solar em Holyhood
para evitar que Brianna se sentisse atraída com a
promessa de uma vida que poderia ter se
permanecesse na Inglaterra? Não duvidava, nem
durante um momento, de que o conde e a condessa
estivessem se empenhando ao máximo para
convencê-la a ficar.
— Quando os navios aportarão? — perguntou
Atreus.
— Amanhã, por volta do meio-dia, dependendo
da maré.
— Desfrutei sua hospitalidade, mas espero que
compreenda que não pretendo me demorar.
Royce sorriu.
— Claro. A propósito, Kassandra e eu temos
conversado muito. Ela gostaria de voltar a Akora
para o nascimento do nosso filho.
Atreus não escondeu a surpresa.
— Pensei que ambos desejassem que o bebê
nascesse aqui em Hawkforte. A tia de Brianna,
Helena, está planeando vir ajudá-la como fez
quando Amélia nasceu.
— Essa era a intenção — reconheceu o cunhado.
— Mas nos últimos tempos, Kassandra começou a
pensar que seria melhor o bebê nascer em Akora.
Se isso acontecer, prefiro que ela vá agora, e não
perto do nascimento da criança.
Atreus fez um aceno com a cabeça. Sabia que
Royce estava pondo de lado as próprias convicções
para fazer a vontade da esposa. Uma escolha que
aprovava totalmente.
— Está preparado para acompanhá-la?
— Sim. Mas preciso de alguns dias em Londres
para resolver uns assuntos. Sei que não quer
prolongar sua estadia, mas.
— Também não estou assim com tanta pressa de
partir a ponto de fazer uma desfeita ao meu
anfitrião ou negligenciar meu dever em relação à
minha irmã. Demore o tempo que for necessário.
Royce fez um gesto de assentimento.
— Parto para Londres amanhã de manhã. Prinny
simplesmente terá que entender que.
— Que o rei de Akora requer sua presença para
uma discussão adicional sobre comércio e assuntos
correlatos. Vou lhe dar uma carta para que entregue
ao príncipe.
Royce riu.
— Excelente! Agradeço-lhe por facilitar minha
tarefa.
Atreus escreveu a carta após a ceia. Pouco tempo
depois, se retirou. A noite prometia ser de insônia,
então não desperdiçou nenhum esforço tentando
dormir. Além das janelas altas dos seus aposentos,
a luz do luar refletia nas águas geladas. Lançando
mão de um casaco de lã preto, ele saiu na noite. O
ar gélido que vinha do mar era revigorante em vez
de desagradável.
Atravessou para o outro lado do gramado, além
dos jardins desprovidos de flores, e percorreu a
distância até as paredes de pedra. Dali, podia
avistar a velha cidade e o porto. Mas não foi naquela
direção que Atreus olhou. Seu olhar se dirigiu a
Hawkforte. O solar parecia flutuar sobre a colina.
Para os padrões de Akora, Hawkforte era novo,
de meros nove séculos, considerando que Atreus
trabalhava e vivia em aposentos que seus
antepassados ocuparam havia milhares de anos.
Mesmo assim, Hawkforte irradiava um senso de
continuidade irrompível, de um lugar e de pessoas
que jamais oscilavam ou fraquejavam e certamente
nunca se renderiam. Por toda parte, o mundo tinha
tremido e con-vulsionado repetidas vezes e
Hawkforte se mantivera forte. Nisso, assemelhava-
se a Akora.
Tais lugares pareciam aprisionar ecos do
passado. Atreus não era supersticioso, longe disso,
e, apesar da sua experiência no processo de
seleção, não era místico. Embora, em mais de uma
ocasião, ao contornar um canto do palácio ou entrar
num cômodo, tivesse o súbito pressentimento de
que não estava sozinho, que havia outros ao seu
redor, não visíveis, contudo completamente reais,
fazendo as mesmas coisas e pelas mesmas razões.
Não tivera tal sensação em Hawkforte, mas ainda
assim, havia. algo. Talvez isso não fosse tão
surpreendente. Afinal, não era apenas um membro
da família por afinidade, e sim também pelos
antepassados distantes de Hawkforte que haviam
encontrado seus destinos em Akora.
Uma rajada súbita de vento gelado soprou do
mar, trazendo-o de volta ao presente e fazendo-o
lembrar. Brianna temia o vento.
O pensamento tomou conta da sua mente. Num
lampejo de memória, recordou-se dela na biblioteca,
as mãos tampando os ouvidos, gritando, enquanto o
vento, que parecia não vir de parte alguma, uivava
ao redor de ambos.
Brianna acreditava que os pais haviam perecido
numa terrível tempestade no mar. Talvez fosse por
essa razão que o vento a amedrontava.
Mas a lembrança trouxe consigo outros
pensamentos.
Havê-la possuído fazia-o repudiar a ideia de ficar
sem ela. Brianna deveria estar ali a seu lado, ao
alcance das suas mãos. Desejava protegê-la, fazê-la
sorrir e ouvir sua risada.
E também a queria na cama e com urgência.
O vento soprou mais uma vez. Atreus deixou
escapar um suspiro frustrado. Estava cansado de
não se sentir ligado com o mundo ao seu redor,
como se alguma parte da sua mente flutuasse
noutro lugar. De repente, ouviu o que parecera
vozes, e, quando olhou, à luz do luar, pensou ter
captado a figura de uma mulher e a seu lado a
silhueta alta e poderosa de um homem que se
curvava para ouvir o que ela dizia.
A ilusão, e não podia ser outra coisa,
desapareceu em segundos. A lua se escondeu atrás
de uma nuvem. Atreus permaneceu um pouco mais
ali, contemplando a noite, antes de atravessar para
o outro lado dos extensos gramados do antigo
Hawkforte.
Da janela de um dos numerosos quartos de
hóspedes em Holyhood, Brianna observava o manto
de nuvens que se erguia a oeste. Era muito tarde.
Tudo era silêncio no interior da casa adormecida.
Nada se movia, com exceção de um gato sentado no
terraço de pedra, além da janela. No ato de limpar
os bigodes, o animal parou de repente e olhou para
o mar, parecendo observar algo que se mexia. Mas
não havia nada a ser visto além da ondulação da
água provocada pela maré.
Deixando a cortina escorregar da mão, Brianna
voltou para o centro do quarto. O fogo ainda ardia
acolhedor. numa mesa próxima, uma bandeja
continha um bule de chocolate quente e uma tigela
prateada com creme chantili. Em frente à lareira de
pedra, uma grande cadeira de balanço. A poucos
metros encontrava-se a cama de dossel. Havia uma
penteadeira com espelho de moldura prateada, um
primoroso tapete Aubusson nas cores marfim, rosa e
verde, e uma bonita estante repleta de livros.
Um aposento adorável, aquecido, feminino e
bastante confortável. Um dia pertencera a Delphine,
segundo lhe havia contado lady Constance ao
acompanhá-la até a porta e dar-lhe boa-noite.
— Se preferir outro. — oferecera a condessa.
Mas Brianna não quisera. Queria ficar onde a
mãe tinha vivido, cercada pelas coisas que fizeram
parte da sua vida. Olhar pelas janelas e ver as
mesmas coisas que ela via era o mais próximo que
poderia ficar da mulher que a trouxera ao mundo.
Os lençóis de linho estavam frios, mas ao pé da
cama havia uma jarra de porcelana cheia de água
quente. Nas poucas noites frias que vivera na casa
da família em Leois, a mãe enchia jarras
semelhantes àquela e deixava no mesmo lugar. Sua
mãe akoreana, Leoni, a mulher cuja face havia sido
a primeira que ela vira ao recuperar a consciência. A
pessoa que não tinha saído do seu lado durante
semanas, enquanto ela lutava contra o fantasma da
morte. Que a abraçava quando ela chorava e
tentava acalmá-la de mil modos diferentes. Quem a
havia ajudado a dar os primeiros passos rumo a
uma nova vida. E o pai, Marcus, o homem forte,
calmo e bom que não hesitara em acolher uma
criança órfã na sua casa e no seu coração.
Como sentia falta deles! Durante todos aqueles
meses na Inglaterra, a desesperada necessidade de
descobrir quem era e de onde viera a havia feito
deixar todas as outras emoções de lado. Mas agora
sabia quem era: a srta. Brianna Wilcox. Tinha um
nome, uma herança e um passado que já não podia
ser negado.
— Delphine. o vento.
— É apenas um bebê, Edward.
— Quando ela chora. é perturbador.
— Não diga isso.
— Papai, olhe, papai! Eu fiz o barco partir!
— Mamãe, não fique zangada.
— Na frente da árvore, mamãe, derrube.
— Esta criança. — As persianas rebentaram. —
Edward, temos que partir daqui.
— Novamente.
— Novamente.
— Esta criança.
Mudavam-se de lugar para lugar, não ficando
mais do que alguns meses em cada um. Lampejos
de memória vieram à mente de Brianna. Um quarto,
uma casa, uma rua, e escapavam antes que
pudesse apoderar-se deles.
Vozes ouvidas na escuridão, quando os pais
pensavam que ela estava dormindo. Vozes de amor
e preocupação. Vozes agora tão distantes.
Brianna estava chorando. As lágrimas caíram
sobre o travesseiro, na cama, no quarto e na casa
que tinha sido da sua mãe. Em memória de Delphine
e Edward, ela chorou por tudo o que haviam
perdido.
Então adormeceu, mergulhando num sono
profundo e repleto de sonhos. Pouco tempo depois,
o dia havia amanhecido e alguém batia à sua porta.

— Mais café, Vossa Alteza? — Lady Constance


sorriu enquanto oferecia o bule. A condessa parecia
bastante à vontade, como se fosse uma ocorrência
cotidiana um membro da realeza aparecer nos
degraus da sua porta, antes de a luz do sol cobrir as
copas das árvores. Felizmente, era uma
madrugadora, assim como o conde, e aparentava
apenas estar um pouco confusa com o inesperado
convidado.
— Obrigado — falou Atreus. — E agradeço mais
uma vez a hospitalidade. Não era minha intenção
chegar a esta hora.
— Não se preocupe — disse o conde. — Como
pôde constatar, também tenho uma predileção por
visitas matutinas.
O riso de Atreus cessou de repente, quando
Brianna entrou na sala de estar. Ela se vestira, não
apressadamente, mas com um certo grau de
distração, após ter sido informada pela alvoroçada
criada que o rei de Akora havia chegado.
Ele parecia bastante à vontade, conversando com
lorde William e lady Constance. E também. másculo,
poderoso e muito tentador. O casaco de equitação
acentuava-lhe os ombros largos.
Sem o menor esforço, Brianna se lembrou dos
contornos firmes sob suas palmas. Atreus havia feito
a barba, mas ela ainda podia se lembrar da
aspereza daquela face roçando na sua pele. E a
boca. Era melhor não pensar.
Atreus se ergueu e caminhou na sua direção. Ela
nada pôde fazer a não ser permanecer enraizada
onde estava, encarando-o.
— Brianna — a voz grave soou como uma carícia
permeada de preocupação. — Sentimos a sua falta.
Lady Constance e lorde William foram bastante
amáveis, oferecendo-me o desjejum. Imaginei que
apreciasse companhia para voltar a Hawkforte esta
manhã.
Ela deduziu que aquilo significava que não
poderia permanecer ali por mais tempo.
— Prometi a William que ficaria um pouco mais.
— William? — Atreus olhou para o conde,
surpreso pelo grau de intimidade.
O homem contraiu os lábios num esforço inútil de
esconder um sorriso.
— Creio que Brianna se refere ao meu neto.
Conheceram-se ontem, e ele ficou encantado com
ela.
— E eu por ele. Combinamos de ir caçar rãs.
— Todas as rãs estão hibernando nesta época do
ano — disse lady Constance.
Brianna deu de ombros.
— Não prometi que teríamos êxito.
— Eu gostaria de ir junto — informou Atreus.
Ambos os Hollister olharam na direção do rei.
— Tem certeza, Vossa Alteza? — perguntou lorde
William.
— Claro. Na realidade, não posso pensar em
nada que possa me dar mais prazer.
— Entendo. Neste caso, tenho certeza de que
William vai adorar tê-lo como companhia também.
Na verdade, agora pensando sobre isso, porque não
vamos todos caçar rãs?
— Que excelente ideia, meu querido — concordou
lady Constance, provando novamente ser uma
esposa exemplar. — Vou informar aos criados. O dia
está radiante, um piquenique de inverno seria uma
ótima opção.
— Não parece preparada para caçar rãs — disse
Atreus a Brianna pouco tempo depois, quando
estavam se aprontando para sair. — Seus olhos
estão vermelhos. Andou chorando?
— Estive lembrando dos meus pais e de
fragmentos de conversas. — Não estava disposta a
lhe contar sobre o vento.
— Você não devia ter ficado aqui.
— Ao contrário, estar aqui, saber quem era
minha mãe, descobrir essa parte de mim. É tudo o
que eu mais desejava na vida.
— E continua sendo o seu maior desejo? Brianna
se virou e o fitou por sobre o ombro.
— Não — respondeu e saiu para a claridade do
dia.
Capítulo III

Três dias depois, Brianna observava as torres de


Hawkforte desaparecerem no meio à névoa do
amanhecer. Estava quente para um dia de inverno.
O rei de Akora não navegava sozinho. Dois
navios de guerra os antecediam e outros dois os
seguiam. Mesmo naqueles tempos difíceis, ninguém
seria louco em desafiar os guerreiros considerados
os mais valentes do mundo.
A quinta embarcação que completava a frota era
grande, construída para proporcionar conforto além
de poder de combate, já que transportava um
exército de guerreiros e um arsenal de armamentos.
No convés, Brianna fitava a bandeira real oscilando
no topo do mastro central, anunciando a presença
do rei, que no momento se encontrava nove metros
acima do convés, ajudando a estender as velas.
Ela não pretendia olhar. Não outra vez. O choque
que experimentara ante a visão de Atreus em
posição tão arriscada ainda não havia passado.
Porém podia ouvir o som da voz grave, enquanto
ria, divertido, com os homens que trabalhavam
junto com ele. O tempo era típico de um dezembro
inglês e tanto o rei quanto os outros ainda trajavam
calças e camisas de lã. Eram todos altos, fortes e
exibiam excelente forma física, mas ela só tinha
olhos para o governante dos akoreanos. Aquele
homem possuía uma aura de comando mesmo
quando fazia piadas com os marujos e os ajudava.
O navio balouçou ao impacto de uma onda, e
Brianna teve de se agarrar à grade do convés. O
mastro parecia flutuar, ameaçador sobre ela,
fazendo-a emitir um grito sufocado. Atreus e os
outros homens nem sequer notaram o movimento
da embarcação. Continuaram a desenrolar as velas,
admirando a paisagem.
E, de repente, Atreus assomou à frente de
Brianna, inabalado pelos esforços físicos e exalando
poder. Com um gesto instintivo, ela apertou a capa
contra o corpo. Um capuz num tom verde, que
madame Duprès insistira que combinava com a cor
dos seus olhos, cobria-lhe a cabeça e lhe
emoldurava a face.
Era, pensou Atreus, a requinte da feminilidade:
graciosa, forte, orgulhosa. e extremamente
cautelosa. Ali estava um bom exemplo do motivo
pelo qual um homem não deveria se deitar com uma
virgem, a menos que estivesse decidido a fazê-la
sua para amar e proteger pelo resto da vida.
Brianna não tinha aceitado tal proposta, e o fato de
não havê-lo feito a estava tornando infeliz.
Ela concordara em embarcar por vontade própria.
Atreus não tinha precisado exigir sua presença.
Teria sido capaz de fazê-lo? Havia viajado para a
Inglaterra com o firme propósito de trazê-la consigo.
Conhecê-la melhor fê-lo exultar com tal
possibilidade. Mas deveria ter ouvido Alex, que tinha
boas razões para saber a diferença entre a mulher
que se idealiza e a que se vê com os olhos da
paixão,
Uma risada alta atraiu a atenção de Atreus. Alex
e Joanna estavam no convés a uma curta distância.
O irmão carregava Amélia, que se agitava nos seus
braços com admirável vigor. Próximos a eles, Royce
e Kassandra assistiam à cena, divertidos.
A presença da família era sempre bem-vinda.
Amava-os de todo o coração. Todavia desejava
algum tempo sozinho com Brianna.
Ela virou a cabeça, e Atreus observou o sol de
inverno brincar com os contornos da face delicada.
O mármore com que esculpira a estátua que se
encontrava na sua cabina não fazia jus a ela.
Nenhum material era capaz de lhe captar a beleza
na íntegra.
— Esse aroma que estou sentindo é de frutos do
mar? Atreus inspirou profundamente e sorriu.
— Sim. Quando foi a última vez que os comeu?
— Faz muito tempo — respondeu Brianna por
sobre o ombro, enquanto caminhava, atraída pelo
delicioso aroma. Uma fogueira acesa era o centro da
atenção de um círculo de guerreiros que
supervisionavam os preparos.
Todos se curvaram numa meia reverência ao
notar a aproximação de Brianna, que lhes sorriu em
agradecimento e inspirou o aroma. De imediato,
uma torrente de lembranças lhe veio à mente. A
mãe junto ao forno a lenha nos fundos da casa,
onde a refeição estava sendo preparada. Os irmãos
sentados à ampla mesa de madeira, saboreando os
camarões e lagostins que tinham sido pescados
havia menos de uma hora. A imagem de si própria
alimentando os gatos famintos que disputavam as
sobras dos peixes.
Uma onda de nostalgia a assolou, fazendo-a virar
no mesmo instante, mas não a tempo de enganar o
olhar atento de Atreus, que a seguiu quando ela se
dirigiu à grade do convés e pousou gentilmente a
mão no seu braço.
— Você está bem?
Brianna conseguiu esboçar um sorriso.
— Agora que estou a caminho de casa, sinto-me
cada vez mais saudosa.
— Em breve chegaremos — assegurou-lhe
Atreus, mantendo o toque suave da mão, apesar do
desejo de tomá-la nos braços.
— Atreus. o que aconteceu entre nós.
— Tinha de acontecer. Lamento se está
arrependida, mas em breve.
— Eu não disse que estou arrependida. Apenas
acho que não define nada.
O rei era um homem calmo e equilibrado. Tanto
no conflito quanto no consenso, mantinha as rédeas
das próprias emoções e racionalidade.
No entanto, havia quatro dias, todo seu
autocontrole fora perdido na cama de Brianna e, ao
que parecia, teria de tentar recuperá-lo.
— O diabo que não define! — Antes que ela
tivesse tempo de respirar, Atreus se moveu,
bloqueando-lhe a visão dos demais, e a tomou nos
braços. A voz máscula soou carregada e baixa. —
Nenhuma mulher se entregou mais completamente
ou de modo mais generoso a algum homem.
Nenhuma cerimônia de união poderia nos tornar
mais unidos do que estivemos. Não negue, porque
sabe que é verdade.
— Também é verdade que há muita coisa que se
interpõe entre nós. Não negue isso também —
rebateu Brianna num tom mais suave, mas não
menos firme.
— Nada se interporá entre nós. Eu não permitirei.
— Não pode controlar tudo, Atreus. Mais
precisamente, a mim. — Brianna espalmou as mãos
contra o peito musculoso, na intenção de afastá-lo,
e quando o tocou, de pronto a força que empregava
se suavizou. Dotado de um magnífico instinto
guerreiro, Atreus avaliou a vantagem que possuía e
roçou os lábios nos dela de maneira tão suave que
fê-la ofegar de surpresa. Em seguida, se afastou
alguns milímetros, apenas para investir outra vez,
tomando-lhe os lábios num beijo profundo,
enquanto as mãos fortes lhe envolviam o tórax,
implacáveis.
— Renda-se, Brianna — sussurrou ele. — Renda-
se e aceite a sua vitória.
— Você é mestre em confundir as pessoas —
disse ela.
— Não tem razão para estar confusa.
Brianna suspirou e encostou-se a cabeça no peito
largo.
— Ainda assim, estou profundamente confusa. As
mãos longas lhe acariciavam as costas.
— Tudo vai se resolver. Verá quando chegarmos
a Akora.
Brianna ergueu o olhar para encontrar o dele.
— Minha opinião é bem diferente da sua. aceite
que ambos desejemos o melhor para Akora, mas
trilhamos caminhos diferentes para consegui-lo.
— Tem de confiar que farei o que é certo.
— Crianças costumam confiar que os pais façam
as escolhas certas, mas não podemos ser crianças a
vida inteira.
— Não trato meu povo como se fossem crianças,
mas não espero que se preocupem com
responsabilidades que são minhas por direito.
— Não vê? É exatamente. — Brianna se
interrompeu, e ambos olharam para a fogueira ao
mesmo tempo. Os criados que estavam cozinhando
haviam desaparecido. Por certo, para lhes dar um
pouco mais de privacidade. Sem supervisão, os
frutos do mar começavam a queimar. — Oh, céus!
— exclamou ela, antes de correr em direção à
fogueira.
O vento soprava forte e, logo, a costa da
Inglaterra tornou-se apenas uma lembrança. Pouco
antes de virar para o sul e sair do Canal, avistaram
uma frota de navios de guerra franceses.
À medida que rumavam para o sul, ao longo da
costa da França, observaram várias embarcações
ostentando a bandeira americana. Os intrépidos
capitães e suas tripulações haviam rompido o
bloqueio militar que os britânicos lhes tinham
imposto.
— A coisa não está boa para os americanos —
comentou Alex, enquanto observavam uma das
embarcações desaparecer a distância. — Têm
poucos homens, armamento e dinheiro para
prosseguir com a guerra.
— Mas possuem muita determinação — retrucou
Atreus.
— E lutam nas suas próprias terras. Eu não
descartaria uma vitória americana.
O destino dos americanos, não importava fosse
qual fosse, e não os ocuparam durante muito
tempo. Após o jantar, voltaram a atenção ao que os
esperava em Akora.
— Deilos continua a provocar — afirmou Atreus.
— Recusa-se a cooperar com os investigadores ou a
admitir qualquer um dos seus crimes.
— Isso é ridículo — argumentou Kassandra,
olhando para o marido, sentado a seu lado à ampla
mesa de jantar.
— Todos sabemos que ele tentou provocar a
invasão britânica em Akora para que o povo se
voltasse contra você. Royce estava lá quando Deilos
se vangloriou de tal façanha para mim.
Atreus sorriu ao dirigir o olhar ao meio-irmão.
— Deilos deve se recordar bem do último
encontro de vocês, Royce.
— O que aconteceu? — indagou Brianna. Possuía
algumas informações sobre o assunto, mas tinha
certeza de que havia muito mais.
— Eu não o matei — replicou Royce.
— Teve razão em não fazê-lo — declarou Atreus.
— O julgamento dele servirá para lembrar a todos
os akoreanos que o que temos não é eterno.
— E quanto aos simpatizantes de Hélios? — quis
saber Joanna. — Soube que alguns foram presos
logo depois do atentado contra você, mas a maioria
não foi solta?
Atreus anuiu com um gesto de cabeça.
— Todos com exceção dos quatro que sãos
suspeitos de conspirar com Deilos.
Embora estivesse tentada a negar que houvesse
qualquer conspiração, Brianna optou pelo silêncio.
Nos dias que se seguiram à confissão que fizera a
Atreus, imaginara se ele havia contado à família do
seu envolvimento com Hélios. Embora firme nos
seus princípios, temia a desaprovação daqueles que
considerava seus amigos. O alívio por constatar que
todos continuavam alheios ao fato era passageiro.
Sabia que aquele segredo não poderia ser guardado
para sempre.
— Claro que sempre haverá a chance de serem
inocentes — completou Atreus com os olhos fitos em
Brianna.
— Pensei que houvesse evidências suficientes de
que os incriminassem — interveio Kassandra.
— Essa foi a conclusão da investigação —
informou Atreus. — No entanto, não existem provas
concretas.
— Se é esse o caso, porque estão sendo
mantidos na prisão? — indagou Brianna, cautelosa.
— As evidências — começou Atreus — sugerem
que se estivessem livres, poderiam agir em prol de
Deilos. Além disso, concordo com os juizes que não
devem ser libertados.
— Alguém conspirou com Deilos — Royce
manifestou-se. — Estou convencido disso e não me
refiro aos homens tolos o suficiente para lutarem
por ele.
— O que quer dizer? — indagou Alex.
— Para utilizar Hélios como fez, deve ter sido
alguém lá de dentro,
— Não necessariamente — contrapôs Brianna. —
Deilos utilizou os símbolos de Hélios para os seus
propósitos, mas isso não era segredo. Qualquer
pessoa poderia ter se apropriado deles para
qualquer fim.
Joanna tomou um gole do seu vinho e sorriu.
— Sua beleza interior lhe dá créditos Brianna,
mas acho que é a gentileza do seu coração que está
falando. Quer acreditar no melhor das pessoas.
— Não mereço esse crédito. O fato é quê.
— Brianna tem razão — aparteou Atreus. —
Talvez haja alguma outra explicação para o que
aconteceu. Se esse for o caso, o julgamento a
revelará. Como atuarei como juiz, deve
compreender que não devo levar essa discussão
adiante.
Todos anuíram com um gesto de cabeça e a
conversação mudou de rumo, embora Brianna se
mantivesse silente. O apoio de Atreus a tocou,
mesmo percebendo que interviera para que ela não
continuasse. Preocupava-a o que ele dissera sobre
as provas concretas de inocência. Poderiam os
membros de Hélios receber de fato um julgamento
justo da parte do rei? Esperava que sim, para o bem
deles. e dela.
No dia seguinte, encontravam-se afastados o
bastante do norte para deixar o inverno gelado para
trás. Kassandra e Joanna estavam extasiadas por
poder deixar de lado as vestes inglesas e a trocarem
por trajes akoreanos mais confortáveis. O mesmo
acontecia com Brianna até retirar a túnica favorita
do baú e perceber que era. branca.
A cor das virgens.
Após uma breve batalha com a própria
consciência, resignou-se a aceitar a necessidade da
farsa. Vestir qualquer outra cor seria uma
declaração pública do que se passara entre ela e
Atreus, e não se sentia preparada para assumir
aquela relação. Porém deixar que ele erguesse uma
sobrancelha quando a visse.
Ele, no entanto, não o fez, mas sorriu ao deixar o
olhar se demorar sobre ela.
— Você é linda com qualquer coisa que escolhe
usar, mas o traje akoreano lhe cai melhor.
— É mais confortável — ela respondeu, num
infrutífero esforço para não encará-lo. Atreus
também havia trocado as vestimentas. Trajava um
saiote plissado e sandálias. Uma faixa de couro
envelhecida lhe afastava os cabelos dos olhos. A
única menção a sua estirpe era a faixa dourada
amarrada em volta do músculo exaltado do braço
esquerdo. Era essencialmente másculo, atraindo-a
de uma forma à qual ela mal podia resistir.
Se pelo menos ele não fosse o rei.
Brianna afastou o pensamento, desviando a
atenção para outro assunto.
— Não contou a sua família sobre mim. Atreus
deu de ombros.
— É um assunto nosso.
— Obrigada por não tê-lo feito. Sei que
eventualmente terão de saber, mas a opinião deles
significa muito para mim.
Ele se encostou na grade do convés com os
braços cruzados sobre o peito e a fitou com
intensidade.
— E a minha também possui tamanha
importância para você?
— Claro que sim — ela respondeu, mais do que
estava disposta a admitir.
— Ainda assim, você e outros em Hélios fariam. o
quê? Teriam me tirado do cargo e me substituído
por alguém que faz promessas fáceis e oferece
soluções rápidas? É isso que deseja?
— Ninguém que eu conheça em Hélios jamais
sugeriu que você não devesse ser o líder de Akora.
— Deilos não acha isso. Pensou em me matar e
tomar o poder para si.
— Deilos nunca fez parte de Hélios.
— Mas talvez tenha procurado usar Hélios.
Conte-me. Como se envolveu nisso?
Brianna hesitou, dividida entre a determinação de
não fazer nada que pudesse ameaçar os amigos e o
desejo de fazer Atreus entender o que os motivava.
— Eu conhecia algumas pessoas que estavam
envolvidas. Conversávamos sobre algumas coisas.
Suponho que estivessem tentando descobrir se eu
era favorável à causa. Um dia fui convidada a
participar de uma reunião.
— Reunião? Elas acontecem com frequência?
— Depende. Tudo é muito informal. Em parte, é
por isso que não consigo ver Deilos envolvido com
Hélios.
— Porque não ele parece inclinado a sentar ao
redor de uma fogueira num acampamento, bebendo
vinho e partilhando ideias visionárias?
Brianna o fitou, surpresa.
— Não importa. Digamos apenas que ele iria
discordar de todo mundo.
— Talvez não de todos. Entre os jovens que
fazem parte de Hélios, pode haver alguns que
anseiem por maior disciplina, exatamente o que
Deilos lhes daria.
— O fato de serem jovens e idealistas não
significa que devam ser ingênuos. Hélios é
completamente dedicado à paz. Alguns dos homens
nem sequer desejam tomar parte no treinamento
dos guerreiros por acreditar que isso torna nossa
cultura focada na violência.
Foi a vez de Atreus se mostrar surpreso.
— O treinamento dos guerreiros é voltado para a
defesa. O que há de errado nisso?
— Eu não acho errado, mas outros vêem de outra
forma. Essa é a questão. As pessoas podem ter
diferentes pontos de vista e expressá-los
abertamente.
— Elas podem fazer isso agora. Qualquer homem
que não queira tomar parte no treinamento de
guerreiros deve apenas expressar seu desejo, que
ninguém o forçará.
— Mas esse é o problema. Um homem deve ser
capaz de dizer isso sem sofrer discriminação.
— E o que deveríamos fazer? Admirá-lo por se
recusar a fazer a sua parte para proteger o lar e a
família?
— Porque deve haver admiração ou condenação?
— contrapôs Brianna. — Porque não haver apenas
respeito em relação às diferentes opiniões?
— Porque esse respeito não repelirá o inimigo.
Deilos deve ter acreditado que os deuses o estavam
presenteando quando descobriu Hélios.
— Não sabe se ele nos descobriu, muito menos o
que pensaria se o tivesse feito.
— Tem razão — concordou Atreus, pesaroso. — E
preciso que me lembre disso de vez em quando.
A admissão surpreendeu Brianna. Estava
pensando quanto Atreus havia sido coerente,
quando a pergunta seguinte a interrompeu:
— Há homens de verdade em Hélios? — Atreus!
— ela exclamou, deixando evidente a exasperação
na voz.
— Oh, está bem — suavizou ele. — Acho que
requer coragem se recusar a fazer o que é
considerado normal e necessário. Talvez se um
homem for sincero na sua convicção e não agir
apenas guiado pela covardia, pode contribuir para
Akora de outras maneiras.
— Acredita nisso?
— Não. mas estou aberto à possibilidade de que
seja verdade. Por certo deve valer a pena investigar.
— Porque não diz isso em público? Porque é visto
como um. monólito determinado a manter as
tradições akoreanas e permitir apenas as mudanças
que julga necessárias?
— Um monólito? — indagou Atreus, parecendo
divertido.
— Não estou brincando. É assim como você é
visto.
— Por Hélios? Brianna anuiu.
— Você é uma figura de extraordinário poder.
Tão distante do restante de nós.
— Nunca ocorreu a nenhum de vocês que eu não
queria ser desse jeito?
— Não — respondeu ela, com sinceridade. —
Nunca. Você parecia a salvo das preocupações
humanas comuns, invulnerável. até ser ferido.
— E aí o que pensaram?
— Que seria uma lástima se você morresse. Sua
família sofreria uma grande dor, mas, além disso,
seríamos desafortunados se o perdêssemos.
— Obrigada, fico agradecido por isso — Atreus
afirmou, num tom seco.
— Hélios não é seu inimigo.
— Não penso que seja, contudo ideais são uma
faca de dois gumes. Podem levar as pessoas a
grandes realizações, mas também torná-las
suscetíveis a grandes mentiras.
— Está dizendo que você não é guiado por
grandes ideais?
Aquilo o tomou de surpresa.
— Argumenta como um conselheiro, Brianna.
— Obrigada. No entanto, o Conselho é parte do
problema. Todos que o compõem são grandes lordes
ou latifundiários em idade respeitável. Deilos era o
mais jovem quando fazia parte do Conselho.
— E vimos no que deu.
Encorajada pelo fato de Atreus se mostrar
disposto a conversar, ela continuou.
— Porque o Conselho não pode ser ampliado e
congregar uma maior variedade de pessoas?
Homens não oriundos de famílias importantes,
pessoas mais jovens e até mesmo mulheres?
— Mulheres? Eu pretendia mesmo lhe perguntar
isso. Lembra-se da história akoreana? Milhares de
anos atrás, um acordo foi feito entre as sacerdotisas
do mundo antigo e os guerreiros do mundo novo.
Eles governariam e as mulheres os serviriam, e, em
troca, nunca seriam feridas. Isso lhe soa familiar?
Brianna anuiu com paciente tolerância, e Atreus
prosseguiu:
— O outro exemplo disso, de as mulheres nunca
serem injuriadas, está no cerne da vida akoreana.
Não há vergonha maior para um homem do que ferir
uma mulher. No entanto, quando o acordo será de
fato posto em prática?
Brianna deixou que um sorriso lhe curvasse os
lábios, enquanto repetia as palavras que constituíam
uma brincadeira entre as akoreanas.
— Qualquer dia desses. Precisamos apenas de
algum tempo para nos ajustar a ideia.
— Mais de três mil anos? Ela deu de ombros.
— É uma grande mudança, mas quanto a ideia
de aumentar o Conselho.
Qualquer um que chegasse ao convés se
surpreenderia com o rei de Akora soltando uma
gargalhada genuína, enquanto abraçava a mulher
que, sem sombra de dúvida, era sua amada.
Vários dias se passaram e o ar se tornou mais
fragrante. E o sono, mais elusivo. Brianna contava
as estrelas pintadas no teto sobre sua cama e
pensava em Atreus.
Homem e rei. Amante e governante. Havia lutado
pela vida dele, chorara ante a possibilidade da sua
morte e se rebelara contra o que considerava tirania
da parte do seu governante. Atreus ria, provocava-a
e às vezes demonstrava um certo anseio pela vida
que teria preferido levar e uma certa relutância em
relação ao poder. E isso a surpreendia. E o mais
inusitado: era um excelente ouvinte. Não lhe
prometia grandes mudanças, e ela não esperava que
o fizesse, mas Atreus a escutava. Era um homem
extremamente sedutor.
Sexo e poder.
Ela sentiu a face rubra. Nunca imaginara um
casamento naqueles termos. Casar com Atreus.
Dividir sua cama e poder. O que mais uma mulher
poderia desejar?
Amor.
Brianna testemunhara o amor que seus pais
akoreanos partilhavam, e havia momentos, no meio
da noite, em que a mente vagueava entre os
sonhos, e fragmentos de memória lhe eram
revelados. E então recordava que Delphine amara
Edward e fora correspondida.
Poderia ela amar Atreus? Os olhos verdes se
dilataram ante tal pensamento. Oh, sim. Muito
facilmente! Estava a meio-caminho de amá-lo,
certo? E não iria pensar sobre isso.
Durante toda a manhã ela estava tensa, estranha
e sem disposição para conversar. Subiu até o convés
a tempo de ver as últimas estrelas brilhando no
firmamento. O mar, que ainda aparecia escuro e
ameaçador nas suas lembranças distantes, exibia
apenas uma suave ondulação causada pelo vento.
Alguns homens já estavam acordados e sentados
com uma primeira caneca de café do dia nas mãos.
Brianna inspirou, apreciando a fragrância, mas não
se aproximou. Em vez disso, seu olhar foi atraído
para a figura solitária de Atreus, que estava sentado
na popa, com um braço pousado no leme.
Com passos lentos ela se encaminhou na sua
direção. Os cabelos negros estavam soltos e
roçavam os ombros nus. Ainda não se barbeara, e a
sombra dos pelos que começavam a crescer trazia a
Brianna a lembrança vivida dos momentos que
haviam partilhado.
Sob o gracioso drapejado da túnica que trajava,
ela sentiu os mamilos enrijecer e teve de inspirar
fundo para conter a onda de sensualidade que
ameaçava engolfá-la.
— Dormiu bem? — indagou Atreus.
— Não exatamente. E você?
Um sorriso débil lhe curvou os lábios.
— Muito pouco. — O brilho dos olhos negros não
deixava dúvidas sobre o motivo da sua agitação. —
Sente-se — ele convidou num tom gentil.
Brianna sentou-se porque teve vontade, e não
por sentir os joelhos fraquejar, disse a si mesma.
Sua coxa roçou a de Atreus, e ela se sobressaltou
como se tivesse encostado em brasa.
Ele deixou escapar um suspiro, mas não fez
nenhum movimento que a constrangesse.
— Olhe lá. A estibordo da proa.
Brianna dirigiu o olhar na direção recomendada e
não viu nada. Estreitou os olhos e conseguiu sentir
mais do que divisar uma curva suave contra o
horizonte.
— Akora — murmurou ela, sentindo a inquietação
se transformar em alegria.
Os despenhadeiros que se erguiam a mais de
trinta metros contra o céu eram desprovidos de
pontos de apoio por onde pudessem ser escalados.
As pedras suportavam apenas uma fina camada de
mato composto por plantas de raiz baixa, resistentes
ao vento. Ao pé dos despenhadeiros, as ondas da
rebentação quebravam contra os rochedos. Não
havia praias que garantissem um atraque seguro ou
baías que servissem como porto.
Não era de admirar que os estrangeiros
chamassem Akora de Reino Fortificado. Embora se
encontrasse numa embarcação akoreana,
ostentando a bandeira real, Brianna compreendia o
temor e o assombro que experimentavam os que se
aventuravam a se aproximar demais. A explosão
vulcânica que dividira a ilha havia mais de trezentos
anos emitira um rio de lava que entrou o mar, onde
esfriou rapidamente, formando a barreira atrás da
qual Akora permanecia escondida do mundo. Uma
barreira ameaçada por um mundo que mudava
muito rápido, repleto de novas armas e ideias, mas,
ainda assim, Akora se mantinha forte pela coragem
e determinação do seu povo.
Seria suficiente? A pergunta lhe atormentava a
mente, enquanto a embarcação real se aproximava
da costa. Brianna avistou a estreita rachadura na
parede do despenhadeiro que levava à passagem
sul. A entrada parecia pequena e pouco auspiciosa,
porém as aparências enganavam. Era ampla o
suficiente para permitir a passagem de um navio
ainda maior do que aquele.
Akora se encontrava à luz fraca do dia que se
despedia. Aves marinhas, procuravam seus ninhos,
unindo os grasnares melancólicos ao sussurro do
vento. A distância, Brianna podia divisar três
pequenas elevações. Era tudo o que podia ser visto
das pequenas ilhas que, juntamente com Kallimos, a
ilha real, e Leios, a ilha na qual ela vivia, formavam
Akora. num gesto instintivo, os olhos verdes se
dirigiram para o ocidente, à procura de Leios, mas
esta estava muito distante para ser vista com
nitidez. Mesmo assim, a visão longínqua lhe tocou o
coração. Seus parentes deviam se encontrar lá, a
mãe talvez preparando a refeição, a menos que
tivessem ido jantar na casa de amigos. Estariam
pensando nela? Brianna viajara havia meses, quase
meio ano. Tinham trocado assídua correspondência,
mas aquilo não substituía o convívio rotineiro.
O que os irmãos estariam fazendo?
Especialmente Polônio, seu favorito? Antes de partir,
ela o aconselhara a ser cauteloso, mas duvidava de
que ele tivesse lhe obedecido.
A leste, avistou a ponta sul de Kallimos e
percebeu que a luz da guarda na torre já estava
acesa. Enquanto observava, a luz piscou no ritmo do
código utilizado pelos akoreanos. Próximo a Brianna,
no convés, um tripulante abriu uma fornalha de
metal e respondeu. Os sinais continuaram por vários
minutos até que o guarda desaparecesse na
distância.
Ciente da repentina presença a seu lado, ela se
voltou.
— O que eles dizem?
— O de sempre — respondeu Atreus. — Nos
identificamos e indicamos Ilius como nosso porto. A
torre pela qual acabamos de passar está agora
transmitindo essas informações para a próxima torre
da cadeia e assim por diante. A notícia chegará a
Ilius dentro de meia hora.
— Assim tão rápido? — Levaria horas até a maré
e o vento levá-los até a cidade real.
— O sistema foi modelado para proporcionar
aviso imediato se algum inimigo entrar por este
estreito ou por aquele ao norte.
Brianna ergueu o olhar para fitá-lo e mais uma
vez sentiu a suave vibração que a atingia toda vez
que o via. O fato de Atreus se encontrar tão próximo
era alarmante o suficiente. Cada detalhe dele, como
o arco das sobrancelhas que ela traçara com a ponta
do dedo na noite anterior, a linha firme do queixo, a
cicatriz esbranquiçada na testa que lhe lembrava o
quanto ele estivera próximo da morte, todos os
pequenos testemunhos da intimidade de ambos
ainda possuíam o poder de atordoá-la.
— Isso aconteceu com frequência? — indagou
ela.
— A que está se referindo? — Atreus parecia tão
distraído quanto Brianna, que experimentou uma
certa satisfação com isso.
— Inimigos chegando à costa. Ele pensou por
instantes.
— Aconteceu quatro vezes, acredito. O incidente
mais recente foi há cinco séculos.
— É mesmo? — Não a surpreendia a precisão da
resposta. Aquele homem parecia personificar o
coração e a alma de Akora. — E o que aconteceu?
— É uma longa história — respondeu ele,
desviando-lhe a atenção para as luzes intermitentes
que apareceram de repente na costa à medida que
passavam. Ao longo de todo o litoral de Kallimos, a
ilha cujo nome significava "beleza", akoreanos já
sabiam da notícia, que já se espalhara, do retorno
do seu rei. As tochas eram utilizadas para saudá-lo.
— Esteve fora apenas algumas semanas — disse
Brianna, observando as manifestações de boas-
vindas.
— Jamais me ausentei antes — lembrou Atreus.
— E, quem sabe, poderei nunca mais fazê-lo.
Ela, que havia se ausentado de Akora por mais
tempo que Atreus, o fitou surpresa.
— É verdade. Você só viajou desta vez por causa
da situação diplomática.
— Não exatamente. havia outras coisas
pendentes.
— Porque muitos membros da sua família
estavam na Inglaterra?
— Não, na verdade teve mais a ver com você. —
Atreus se inclinou sobre a grade, fitando-a. — Viajei
para a Inglaterra com o propósito de dissuadir os
ingleses da tolice de querer invadir Akora. Mas
também para trazê-la de volta.
Brianna tinha certeza de ter ouvido direito o que
ele dissera, mas aquilo não faziam sentido.
— Não compreendo. Até que você chegasse à
Inglaterra, nós nem sequer nos conhecíamos. E
verdade que ajudei na sua recuperação após o
atentado, mas tivemos muito pouco contato depois
que recobrou a consciência. — Uma possibilidade lhe
ocorreu. — Meus pais pediram para que me
trouxesse de volta? Nas cartas que me escreveram,
se mostravam muito compreensivos quanto ao meu
desejo de permanecer na Inglaterra, mas talvez
tenham se tornado impacientes.
— Talvez sim, mas não confidenciaram a mim.
Disse que não nos conhecíamos, mas eu sabia quem
você era. Há muito sei.
— Isso não é possível — declarou Brianna com
uma certeza que estava longe de possuir.
— Do que tem medo, Brianna? Que haja mais no
mundo, em Akora e sobre nós, do que está disposta
a acreditar?
— Não estou com medo. Porque diz isso?
— Porque foi medo que senti em você lá na
biblioteca.
Ela virou o rosto rapidamente, mas não antes de
Atreus observar as repentinas sombras que lhe
perpassaram o olhar. O instinto lhe dizia para tomá-
la nos braços e perguntar o que fazia-a sentir medo,
para que pudesse dissipá-lo. No entanto a cautela e
o que já aprendera sobre Brianna o detiveram.
Brianna não era o tipo de mulher que pudesse ser
facilmente manipulada. O orgulho e a coragem que
possuía não permitiriam.
Em vez disso, ele tocou-lhe o braço com
suavidade.
— Venha comigo. Há algo que quero lhe mostrar.
— O que é?
— É difícil de descrever. Prefiro que
simplesmente veja. — A mão forte deslizou pelo
braço de Brianna até que os dedos longos se
entrelaçassem com os dela. Com um sorriso que lhe
roubou o fôlego, Atreus a guiou ao longo do convés,
desceu a escada é cruzou o corredor até seus
aposentos. Antes de entrar, Brianna hesitou durante
alguns instantes e se sentiu tola em fazê-lo. A
intimidade que os rodeava evocou lembranças
ardentes.
Os pertences de Atreus, assim como os dela, se
encontravam em baús, na expectativa da chegada,
porém um deles estava aberto. Uma caixinha jazia
no topo, e Atreus a entregou a Brianna.
— Veja o que tem dentro.
Enquanto ele falava, ela meneava a cabeça em
negativa.
— Não posso aceitar mais presentes.
— Não se trata de um presente. Eu jamais abriria
mão disso, mas quero que a veja.
Aliviada e um tanto intrigada, Brianna ergueu o
fecho da caixinha com cuidado. O interior era
forrado com veludo e continha uma pequena estátua
entalhada em mármore rosa.
A estatueta de uma mulher.
Curiosa, ela a pegou. No mesmo instante,
percebeu que havia sido produzida pelas mãos de
um mestre. Os olhos verdes se voltaram para
Atreus.
— É um trabalho seu? Ele anuiu.
— Fiz isso há oito anos. Olhe mais de perto.
Brianna obedeceu, pois não podia resistir. A
estátua era deslumbrante e tão cheia de vida que a
frieza do mármore a surpreendeu. Atreus devia
conhecer muito bem a modelo para captar de
maneira tão vibrante cada detalhe das formas
daquela mulher.
Cada pequena e meticulosa particularidade.
Não, não podia ser. Era impossível. Ainda assim,
as evidências saltavam aos seus olhos. Estava
segurando uma réplica de si mesma em mármore.
Como estava no presente, não como tinha sido oito
anos antes, quando ele dissera ter feito a obra de
arte.
— Unia coincidência. — ela conseguiu dizer,
agarrando-se àquela ideia como a uma tábua de
salvação.
Ideia essa que ele dissipou num instante.
— Pode não acreditar, mas se tem alguma
dúvida, gire-a.
Mais uma vez Brianna fez o que Atreus pediu,
apenas para se arrepender, pois no mesmo instante
focou o par de covinhas localizadas na estátua no
mesmo ponto onde ficavam as dela.
A pedra, que lhe parecera fria, de repente
queimava-lhe as mãos. Brianna a jogou de volta na
caixa e a entregou a Atreus.
— Isso não tem graça. Deve ter feito a estátua
nas últimas semanas!
O rei pousou a caixa com cuidado antes de
responder.
— Eu a esculpi há oito anos. Não acha que estou
mentido, acha?
— Não — admitiu ela com um suspirou
exasperado. Apesar das diferenças que existiam
entre ambos, acreditava que Atreus era um homem
em quem se podia confiar.
— Eu a vi — afirmou Atreus num tom suave e
puxou uma cadeira próxima à mesa. Puxou outra
cadeira e se acomodou em frente a Brianna. Em
seguida, tomou-lhe as mãos. — Todo homem que é
submetido à seleção a experimenta de forma
diferente. Sabemos disso porque existem arquivos
guardados sobre o assunto, passados somente de
um rei para outro. Ainda assim, há elementos em
comum para todos. Vemos através de uma
perspectiva além de nós mesmos. O que vemos
varia, mas, no meu caso, consegui ver a mulher
destinada a ser minha esposa. Eu vi você.
— Pensou ter visto alguém que se parecia
comigo.
— Apesar do ângulo preciso das sobrancelhas, da
discreta assimetria entre os lados esquerdo e direito
do seu rosto e da curva perfeita do seu queixo? E
não podemos esquecer das delicadas covinhas. —
Quando Brianna corou, ele acrescentou, gentil: — Eu
vi você. Não tinha dúvidas de que era real e
destinada a ser minha esposa. Quando voltei da
seleção, presumi que a encontraria em breve e
poderíamos nos casar. Estava ansioso por fazê-lo. O
único problema era que não sabia o seu nome.
— Meu nome.
— Permaneceu um mistério, mas aquilo não me
preocupava muito. Lembrei-me do velho ditado que
dizia que se você quer encontrar alguma pessoa,
procure-a no palácio, pois cedo ou tarde todos vão
até lá.
A compreensão a atingiu e, junto com ela, os
primeiros sinais de crença, embora frágeis e
relutantes.
— Exceto pelo fato de eu não.
— Você permanecia em Leios. — O esboço de um
sorriso curvou um dos cantos dos lábios de Atreus.
— Anos se passaram. De vez em quando eu via uma
mulher ruiva e pensava que era você, mas sempre
me decepcionava.
— Até que sofreu um atentado.
— Quando recobrei a consciência, me descobri
fitando a mulher que sempre procurei. No momento
em que a vi, compreendi que não estava destinado a
encontrá-la antes.
— Como poderia saber? — indagou Brianna.
— Porque tinha a exata aparência de quando a vi
durante a seleção. Oito anos antes, seria uma
menina de dezasseis anos. Estou certo de que devia
ser graciosa, mas ainda não havia se transformado
na mulher que eu vi, na que se tornou.
Aquilo fazia sentido. Havia uma certa lógica no
que Atreus dizia.
— Porque não me disse nada?
— Descobri que você pretendia voltar à
Inglaterra. Embora relutante em deixá-la ir, eu sabia
que necessitava de tempo para me recuperar
totalmente. Tenho de admitir que não previ que
você ficaria tanto tempo por lá.
— Ou que eu iria encontrar minha família inglesa.
— Para ser sincero, lorde William e a condessa
me causaram momentos de desconforto.
A mente de Brianna se encontrava em turbilhão.
Tudo o que se passara entre ambos tomara forma
num ritual sobre o qual nada sabia e tinha suas
dúvidas.
— E quanto ao meu envolvimento com Hélios?
Como pode conciliar isso com o que acredita que eu
represento na sua vida?
— Não posso — admitiu Atreus. — Tenho de
confiar que o que vi é o que está destinado a ser.
— Mas não precisa simplesmente acreditar. Não
tem de viver em fé cega.
— Cega? — Brianna temera ofendê-lo, mas ele
parecia divertido. — Acredite-me, não há nada cego
em relação a minha fé. Considere isso: talvez seja o
seu envolvimento em Hélios que a torne tão
adequada a ser minha esposa.
O pensamento era tão surpreendente, que
Brianna o fitou, surpresa.
— Mas. você é opositor de Hélios.
— Oponho-me a mudanças que ameacem a
segurança de Akora. Mas estive pensando: como
você é destinada a ser minha esposa, deve haver
algum propósito nos seus ideais. Talvez esteja sendo
chamado a expandir meus horizontes e considerar
outras possibilidades além daquelas em que
acredito.
— Quer dizer. ver as coisas do modo de Hélios?
— A ideia a enchia de alegria. Seria possível?
— Não — retrucou Atreus, desiludindo-a de
imediato. — Hélios não articulou nada até agora,
além do desejo de maior abertura. Isso está longe
de ser uma política eficaz para governar uma nação.
Entretanto, talvez haja alguns elementos na ideia
generalizada de abertura que valha a pena eu
explorar.
— Alguns elementos — repetiu ela. — Isso
significa que prevê algum tipo de acordo?
Atreus sorriu outra vez e se ergueu, levando-a
com ele.
— Está negociando? — ele perguntou.
— Não é isso que fazem os homens e as
mulheres?
— Algumas vezes. tenho sido muito paciente.
Os braços fortes a envolveram. Brianna podia
sentir o calor do corpo másculo. Atreus estava
próximo, muito próximo. Poderia tentar se
desvencilhar, e talvez até conseguisse, mas
desejava que ele a beijasse. Queria sentir a paixão
de Atreus e a dela crescerem juntas.
Os lábios sensuais roçaram a base do seu
pescoço. Tomada de surpresa e no mesmo instante
assolada de prazer, Brianna ofegou. Ele ergueu a
cabeça para fitá-la.
— O Lagrima do Céu pertence a este lugar.
Permita que o veja aqui em breve.
De repente, ouviu-se um grito, seguido de outro.
A lua, erguendo-se sobre as montanhas, revelava a
cidade real de Ilius.
A jornada chegou ao fim com rastejante
vagarosidade. A maré os empurrou para o porto.
Deslizavam sobre a água com excessiva
morosidade. Cada momento parecia interminável.
Brianna se encontrava no convés com os demais,
observando a cidade se aproximar. Ilius, a Cidade
dos Sonhos. Assim era conhecida, pois havia sido
um sonho que a construíra. Uma quimera, onde uma
terra árida e desprovida de recursos naturais havia
se transformado num lugar de beleza e esperança.
Sendo assim, século após século, emergira das
cinzas e desespero para simbolizar o que havia de
melhor em Akora.
A cidade se erguia do porto por ruas de pedras
brancas e sinuosas ladeadas de casas de jardins
floridos è lojas, subindo cada vez mais até alcançar
o topo plano da colina, onde se localizava o palácio.
À luz da lua, as imensas colunas nas cores azul e
vermelha sustentavam o teto maciço que parecia ter
sido lavado com prata.
Geração após geração tinha acrescentado algo ao
palácio sem, no entanto, destruir o que havia sido
construído antes. Crescera, como pensava Atreus,
feito uma criatura viva, que o próprio tempo
esculpira.
E lhe parecia irresistível. Era o lar que ele amava
de todo coração. O lugar onde respirara pela
primeira vez e daria, com o passar dos anos, seu
último suspiro. Era o único local em que, de fato,
queria estar.
— É tão lindo! — manifestou-se Brianna a seu
lado, esticando a mão e tocando a de Atreus. Juntos
observaram a cidade vir ao encontro deles.
Embora tivessem chegado na hora em que a
maioria das pessoas normalmente já havia se
recolhido, parecia que cada homem e cada mulher
em Ilius, além de muitas crianças, se juntavam ao
agradável coral de vozes que se propagava pelo ar,
somado ao retumbar dos tambores e à melodia dos
aldeões, até alcançá-los. Logo após deixarem para
trás as pedras do cais, Brianna deixou escapar um
grito de alegria. Entre a multidão divisou seus
amados pais, Leoni e Marcus, acompanhados da
irmã da sua mãe, a renomada curandeira Helena. A
primeira coisa que lhe veio à mente foi a satisfação
em revê-los, mas logo a preocupação a invadiu. No
mesmo instante, ela se voltou para Atreus.
— Eles sabem?
O rei entendeu de pronto.
— Sobre nós? Não. Mas todos sabem que eu
pretendia voltar em breve. Talvez esperassem que
você estivesse no mesmo barco.
Momentos depois, a suspeita de Atreus se
confirmou.
Mal Brianna deu alguns passos, já se encontrava
nos braços de Leoni, com Marcus sorrindo, radiante
ao lado das duas.
— Oh, minha querida! — exclamou a mãe,
abraçando-a com força. — Helena nos persuadiu a
vir até Ilius no caso de você regressar. Eu não
queria acreditar nela. Polônio está connosco, mas
não sei para onde foi. Os outros estão em casa.
Sentimos tanto a sua falta! Sua aparência é ótima!
Brianna não está linda, Marcus?
— Maravilhosa! — concordou o pai. A voz grave
estava estranhamente rouca e, por um instante,
Brianna pensou ver lágrimas nos seus olhos.
— Papai! — exclamou ela, antes de abraçá-lo,
rindo e chorando ao mesmo tempo. Durante os
meses em que havia estado longe, não se permitira
pensar na saudade que sentia daquelas pessoas
calorosas e afetivas que a receberam nos seus
corações. Naquele momento, de volta ao convívio
deles, não conseguia conter as emoções.
— Oh, Deus! — ela exclamou com voz trêmula,
quando por fim se apartaram. — Não costumo cair
em prantos desse jeito.
— Não tem problema — manifestou-se Helena,
que sorria para a sobrinha. — É tão bom revê-la!
Seja bem-vinda.
— E que o rei seja bem-vindo também —
acrescentou Marcus, desviando a atenção de Brianna
para a multidão exultante rodeando Atreus, que
parecia ##engasgar/sufucar<<engolfado pela
torrente de pessoas. Não fosse sua estatura
avantajada, ela não conseguiria vê-lo. Próximo a
ele, avistou Royce e Alex e presumiu que Kassandra,
Joanna e Amélia estivessem seguras ao lado dos
maridos. Muitos conselheiros que ela reconhecia se
encontravam lá, juntos com a guarda do palácio,
que se esforçava de modo sutil para manter alguma
ordem.
O que parecia impossível, mas Atreus não se
importava.
De bom grado, entregou-se à onda de
entusiasmo que os guiava pela longa e sinuosa rua
até os portões do palácio.
Lá, tochas ardiam nas enormes estátuas das
leoas gêmeas que emolduravam a entrada do amplo
pátio na frente do palácio. Brianna estava próxima o
suficiente para ver Atreus erguer as mãos e tocar o
pé da leoa mais próxima. Era um gesto familiar a
muitos akoreanos, que faziam o mesmo sempre que
voltavam de alguma jornada, fosse para o outro
lado de Ilius ou do mundo.
Quando entraram o pátio, a multidão se
espalhou, enchendo cada canto. Criados acorriam
com mais tochas e partes do que, logo, se tornaram
mesas. Brianna não pôde conter o riso. Era típico
dos akoreanos arranjar qualquer desculpa para
realizar uma festa. Alguns grupos já se encontravam
dançando. Barris de vinho rolaram para fora do
palácio e rapidamente foram consumidos com a
comida que se materializou como mágica, tanto da
cozinha do palácio quanto de muitas outras por toda
Ilius. Todos, ao que parecia, trouxeram algo para
partilhar. Em pouco tempo, as mesas se encheram
de pães, queijos, carnes, peixes frescos, sopas,
saladas e, claro, uma grande variedade de frutos do
mar. E, por fim, uma especialidade apreciada por
Brianna: os doces de amêndoas salpicados com
canela e açúcar.
Quando teria sido a última celebração igual
àquela? ela imaginou, enquanto passava a língua
pela ponta dos dedos. O vinho cor de palha que se
multiplicava em abundância tinha sabor picante e
doce sobre sua língua e a deixava um tanto zonza.
Ou talvez fosse o efeito da vertiginosa excitação de
estar de volta ao lar. Abençoado e belo lar.
Seus pais estavam dançando, parecendo aos
olhos de todos um casal de jovens amantes. Atreus
se encontrava próximo, conversando com vários
conselheiros. Por cima das cabeças dos homens, os
olhos negros encontraram os de Brianna A
intimidade estampada no sorriso encantador fê-la
esquecer a multidão a sua volta.
Ele era. esplendoroso. Cheio de vida, feliz por
estar em casa e totalmente no comando.
Meio ano antes, quase morrera. Quando tinha
ficado claro que aquilo não aconteceria, preces em
ação de graças foram erguidas aos céus por toda
Akora. Porém o choque e o horror permaneceram,
impedindo as expressões de alívio. Mas não naquele
momento. A improvisada explosão de alegria que se
alastrava ao seu redor era a verdadeira celebração
da vida de Atreus, a sobrevivência tão esperada e,
acima de tudo, o retorno do rei para os braços do
seu povo.
Um som estrondoso chamou a atenção de
Brianna, que teve tempo de ver um jorro de luz
rasgar o céu da noite, pairar no ar por um milésimo
de segundo e, em seguida, explodir numa chuva de
brasas incandescentes.
Fogos de artifício. Outro furacão explodiu contra
as nuvens, seguido de outro jorro de luz. Um
chafariz de estrelas multicoloridas se abateu sobre
eles, enquanto outros rojões serpenteavam em
direção ao céu.
Brianna estava tão encantada que nem reparou
no jovem que se postou a seu lado, até que ele lhe
tocasse o braço.
— Bri, volte para a Terra— o rapaz brincou,
divertido.
— O quê? Oh, Polônio! — Ela riu e abraçou o
mais novo dos irmãos. Um jovem esguio com gentis
olhos castanhos e um ar de nobreza. Era dois anos
mais velho que Brianna, porém ela sempre se
sentira muito responsável em relação a ele, que
costumava ser guiado pelas boas intenções. Sentira
falta de toda a família, mas Polônio ocupava um
lugar especial no seu coração.
— Mamãe disse que você estava aqui, e também
que havia ido a algum lugar. Como tem passado?
— Bem o bastante, e você? — Antes que Brianna
pudesse responder, o irmão continuou: — Sentimos
muito a sua falta, Bri. Não é a mesma coisa sem
você.
— Senti saudades de vocês também, mais que
suspeitava ser possível.
— Ainda assim permaneceu lá. A viagem valeu a
pena?
— Sim — respondeu ela, num tom suave. —
Encontrei o que procurava.
De pronto, a expressão do rapaz se iluminou.
— Verdade? Que maravilha! Eu sabia que você
faria um trabalho melhor do que as autoridades,
que, a meu ver, nem sequer tentaram.
Um pouco da exasperação em relação àquele
velho assunto permeou a resposta de Brianna.
— Polônio, não há razão para não acreditar que
um esforço verdadeiro e honesto foi realizado para
encontrar a minha família inglesa. É que houve
circunstâncias adversas, como acabei por descobrir,
que condenaram qualquer esforço ao falimento.
— Se foi esse o caso, muito bem, mas temo que
você seja um tanto crédula. As coisas não mudaram
aqui. Nossos amigos continuam presos.
Com um rápido olhar ao redor para se assegurar
de que todos estavam demasiado distraídos para
escutar, Brianna murmurou ao irmão:
— Eu sei, mas o julgamento se realizará em
breve e tenho certeza de que será justo.
Polônio deu um passo atrás, fitando-a nos olhos.
— Posso imaginar quem a convenceu disso.
Aproximou-se muito da família Atreides, não? Eu a
alertei sobre isso.
Fora uma advertência que a tinha surpreendido e
aborrecido ao mesmo tempo. Fizera-a lembrar-se de
que durante o último ano, Polônio parecia inclinado
a pensar que sabia de tudo. Em questões em que
costumava levar em conta a opinião de Brianna,
recentemente ele não se mostrava disposto a ouvi-
la. Uma tendência que Brianna julgava que ele fosse
superar, mas não estava mais tão certa disso,
— Eles não são inimigos. Estão longe de sê-lo.
São pessoas boas e honradas que querem o melhor
para Akora, assim como nós.
— Se é esse o caso, porque Hélios foi banido?
— Banido? O que está dizendo? Hélios não tinha
sido banido quando parti. Na verdade, a maioria dos
que foram presos depois do atentado a Atreus foram
soltos.
Polônio dispensou o comentário da irmã com um
gesto impaciente de mão.
— Talvez não tenhamos sido banidos
oficialmente, mas quantas pessoas estarão dispostas
a fazer parte de uma organização suspeita de
conspirar para matar o rei? Acabei de chegar de
uma reunião em que havia pouco mais de uma dúzia
de simpatizantes. Um ano atrás, teriam sido
centenas, ou até mais, mas agora. — ele calou-se
de repente, fitando-a. — Você disse Atreus? — A
expressão no rosto do irmão se fechou. — Nunca a
ouvi chamá-lo de nada, a não ser rei.
Brianna amava o irmão de todo coração, mas
havia momentos em que parecia não conhecê-lo.
Onde estaria o menino que costumava abrir o
coração para ela, revelando o temor e a repugnância
que sentia pelo treinamento de guerreiros e o desejo
de uma vida pacífica? Ou onde se encontrava o
homem que retornara do treinamento que tanto
odiava, ainda convencido de que aquilo era errado e
ansioso para traçar seu próprio caminho? Quando
Polônio havia se tornado tão cético nos seus
pensamentos e tão
##alegre/contente/jovial/risonho<< lépido em
julgar os outros?
— Atreus — repetiu Brianna. — Ele é um homem,
um ser humano como qualquer um de nós. Se você
e os outros em Hélios o conhecerem melhor.
— Como você fez?
Brianna franziu o cenho, mas ainda assim o tom
da sua voz permaneceu gentil.
— Sim. Ele não é reacionário ou arbitrário.
Mostra-se disposto a ouvir e considerar alternativas,
mesmo que elas não lhe agradem inicialmente.
— E depois continua com a opinião dele e faz o
que bem entender.
— Atreus diz o contrário. Que o bem do nosso
povo deve vir sempre à frente dos seus desejos.
— Pelo amor de Deus, Bri! Claro que ele diz isso.
Concordamos, eu, você e os outros que é tudo
fachada para obter a complacência das pessoas e
assim fazer com que elas não exijam mais domínio
sobre as próprias vidas.
— Sei que pensamos assim, mas, e se não for
verdade? E se Atreus estiver sendo sincero? Afinal,
vive de acordo com os preceitos que acabei de lhe
expor.
— Daqui a pouco estará dizendo que há algo
verdadeiramente sobrenatural na absurda ficção do
processo de seleção para rei!
— Eu costumava achar que não — admitiu
Brianna, pensando na estátua e na decência e
honestidade de Atreus. — Mas agora não estou tão
segura.
— Nunca pensei que pudesse ser manipulada
dessa forma. Na verdade, você tem uma mente
feminina. É fraca.
Brianna não pôde conter o choque.
— Como pode dizer uma coisa dessas?
— Não falei para magoá-la — emendou Polônio
de imediato, honrando a ancestral proibição de um
homem ofender uma mulher. — Mas para lhe
chamar à razão. É sabido que as mulheres são
menos lógicas nos seus julgamentos, dadas às
emoções, portanto, mais facilmente levadas a falsas
conclusões.
— É sabido? Isso é uma besteira! Quem lhe disse
isso?
— Não preciso que ninguém me diga. Um homem
que possua olhos para ver e uma mente pensante
pode chegar a essa conclusão por si mesmo.
— Então esse homem deve esfregar os olhos e
clarear a mente, pois corre o risco de se enganar!
— Não fica bem para você falar dessa forma.
— Não fica bem para mim.
— Ou para qualquer mulher. Seria bom que
reconhecesse seu lugar.
Com essas palavras, o irmão que Brianna tanto
amava e pensara conhecer virou-se e desapareceu
na multidão.
Desnorteada, ela observou-o partir, até que
alguém passou com uma bandeja e colocou outra
taça do vinho doce nas suas mãos. Ela o tomou,
distraída, e ficou satisfeita quando outra explosão de
rojões a entreteve.
Em algum momento próximo ao alvorecer,
Brianna descobriu-se sentada com Leoni na
escadaria do palácio. Poucas pessoas permaneciam
ali, algumas bastante sonolentas. Marcus estava
ajudando alguns homens a retirar as mesas. Grupos
de farristas continuavam cantando, mas nada que
abalasse a calmaria do lugar.
Leoni, a sempre prática e racional mãe, havia
guardado um garrafão do vinho e encheu a própria
taça e a da filha.
— Que esplêndida celebração. Exatamente o que
todos nós precisávamos.
Brianna anuiu com um gesto de cabeça.
— Todos estão tão felizes.
— Ninguém mais do que eu. — Leoni se inclinou
e deu palmadinhas de leve na mão da filha. —
Houve dias em que temi que você não retornasse.
— Oh, mamãe. — Brianna sentiu um nó na
garganta.
— Ora, não chore. Não falei isso para emocioná-
la. Se tivesse preferido ficar na Inglaterra, no fundo
do meu coração saberia que era do que precisava e
ficaria feliz por você. Porém não posso me lembrar
de momento mais alegre na minha vida do que
quando a vi descer do navio.
— Deveria ter voltado mais cedo.
— Retornou quando achou ser o momento certo,
e se achar que deve voltar à Inglaterra.
— Encontrei o que procurava.
— Encontrou? — A mão de Leoni apertou a da
filha. — Seus pais?
— Você e Marcus são meus pais — afirmou
Brianna num tom suave. — Apenas pais verdadeiros
com amor genuíno compreenderiam a necessidade
que tive de partir.
Leoni emitiu um som ente um suspiro e um
soluço. Permaneceu silente por instantes, para
recobrar o autocontrole.
— Entendemos que você tinha necessidade de
conhecer a si mesma, corno todos nós.
— Sou lady Brianna Wilcox, pelo menos na
Inglaterra.
— Foi isso que descobriu? Conte-me, como
conseguiu?
— Graças a um homem ruivo — explicou Brianna
e riu diante da expressão de surpresa da mãe.
Enquanto o conteúdo do garrafão de vinho diminuía,
contou tudo o que acontecera na Inglaterra. Bem,
quase tudo. Não disse nada sobre Atreus.
Mas o guardava na mente, a cada momento, a
cada respiração. Marcus retornou e, sorrindo,
carregou Leoni consigo. Brianna garantiu-lhes que
se recolheria em breve, porém deteve-se por mais
algum tempo na escadaria.
As estrelas haviam desaparecido e nuvens
surgiam do leste, trazidas por um vento fresco. Tal
era o encantamento que ela sentia que nem se deu
conta daquilo.
Pensava em encontrar Atreus e lhe dizer que a
festa havia sido maravilhosa. Um tanto zonza,
ergueu-se e subiu, apressada, a escadaria do
palácio.
Atreus não se encontrava nos seus aposentos.
Brianna parou na parte interna das portas duplas
que levavam ao corredor central da ala familiar do
palácio. A área lhe era conhecida, por ter
permanecido muito tempo ali, ajudando nos esforços
para retirar Atreus dos braços da morte. Os
cômodos destinados ao rei eram espaçosos,
decorados com murais, conforme o costume
akoreano, e confortáveis, embora mobiliados de
maneira simples, de acordo com as preferências do
ocupante, de quem não havia sinal. Ela encontrou
apenas Castor, o serviçal que conhecera e que
aparentava estar desfazendo o último dos baús de
Atreus.
— Deseja alguma coisa, lady? — indagou ele.
Constrangida, ela deu de ombros.
— Eu. não devia ter vindo. Não sei o que estava
pensando.
O sorriso gentil de Castor sugeria que os
pensamentos dela não eram um total mistério.
— Às vezes o rei tem insônia. Nessas ocasiões,
se dirige ao estúdio.
— O estúdio dele?
— Sabe onde fica?
— Eu não. Espere, sim, sei. Posso encontrá-lo.
Mas talvez seja melhor não incomodá-lo.
— Talvez já o tenha feito, lady.
As palavras tiveram um efeito estranhamente
confortador. Brianna anuiu com um gesto de cabeça
e se afastou. De volta ao corredor, hesitou por um
instante, pensando em que caminho tomar. Havia os
que consideravam aquele castelo um labirinto e,
naquele momento, deu-lhes razão. Cada estrutura,
que fora construída havia séculos, compreendia
numerosos cruzamentos de corredores. Ela teve de
seguir vários para, por fim, encontrar aquele que
levava ao recluso salão que Atreus utilizava como
estúdio.
Localizado numa área antiga do palácio, o
aposento era amplo, com pé-direito alto e grandes
janelas em forma de arcos, através das quais viam-
se nuvens carregadas que anunciavam uma
tempestade iminente.
No entanto, era no homem de pé no centro do
estúdio que a atenção de Brianna se focava.
Atreus estava de costas para ela, trajando
apenas um saio-te branco plissado de guerreiro
akoreano, e com o peito nu. Os músculos das costas
e ombros flexionavam-se à medida que ele se
movia. Encontrava-se de frente para uma mesa
baixa e tão intensa era sua concentração que nem
sequer percebeu quando Brianna fechou
suavemente as portas atrás de si e entrou o
aposento. Na outra extremidade do aposento, havia
um maciço bloco de pedra de onde parecia emergir
um braço e uma cabeça de homem. E próximo dali,
via-se uma estatueta de um cavalo, entalhado com
tanta riqueza de detalhes que Brianna teve a
impressão de que o animal fosse irromper em
galope a qualquer instante.
Para todos os lados que ela olhasse, encontrava
obras repletas de beleza e paixão que a faziam
perder o fôlego. Ali estava uma faceta de Atreus que
ela sabia existir, mas que não havia compreendido
até o momento.
O instinto lhe dizia para recuar tão rápida e
silenciosamente quanto possível, e assim ò faria não
fosse Atreus virar-se de repente e descobri-la ali.
Durante um momento, permaneceu em silêncio,
apenas a observá-la.
— A festa acabou? — indagou por fim. — Havia
uma mancha de argila sobre o peito musculoso.
— Terminou há pouco — respondeu Brianna, e
indicou com a cabeça a estátua de uma bailarina
prestes a executar um salto. — É maravilhosa!
— Acha mesmo? Estou tentando captar traços de
intenso esforço e o fogo oculto sob uma
pseudodelicadeza.
— Eu diria que está de fato conseguindo. Atreus
riu e pegou um pano para limpar as mãos.
— Obrigado. Logo mais a pedra oriunda de
Holyhood será transportada para cá. Terei de
estudá-la por um tempo, antes de conceber algo
nela, mas me certificarei de fazer alguma coisa que
valha a pena.
— Tenho certeza que sim — disse Brianna,
aproximando-se e olhando mais uma vez para a
estátua da bailarina.
Atreus meneou a cabeça.
— Vou esculpi-la em bronze. A argila é apenas o
primeiro passo. Depois disso, vem a cera, de novo a
argila, pressionada contra a cera para formar o
molde e, por fim, o bronze derramado sobre ela. Há
outros métodos para criar uma estátua como esta,
porém escolhi este para torná-la única. Não será
possível fazer cópias.
— Qual requer mais paciência, a pedra ou o
bronze?
— Ambos, mas a paciência é importante em todo
trabalho de valor.
— Está sendo paciente comigo? — indagou
Brianna, creditando sua ousadia à bebida.
— Estou tentando. Divertiu-se na festa?
— Muito. Obrigada. E você?
— Sim — respondeu Atreus num tom solene,
embora parecesse tentar esconder o riso.
— Deveria sorrir mais. Tem um belo sorriso. mas
não o exibe mais do que o necessário.
— Que displicência da minha parte!
— Isso, aí está. Assim fica melhor. Como eu
disse. lindo!
— Gostaria de se sentar? — indagou Atreus
colocando a mão em concha sobre o ombro delicado.
— Sim, é uma boa ideia. Estou mais cansada do
que pensei.
— Talvez seja pela excitação do dia. Voltar para
casa e todo o resto. Como está a sua família?
— Nada mudou em relação aos meus pais, e isso
é maravilhoso. No entanto, Polônio. — Havia algo
sobre o irmão que não deveria revelar a Atreus,
porém não parecia se importar no momento.
Reparou na cama estreita a seu lado, um simples
catre. — Dorme aqui de vez em quando? — Atreus
se encontrava muito próximo dela. Todos os seus
sentidos estavam cientes da força, tão contida e
arrebatadora, daquele homem. — Se fôssemos
casados, eu não gostaria que você dormisse aqui
com tanta frequência.
— Tudo bem. Combinado, então.
— Atreus, fale sério!
Ele deslizou o braço em volta do corpo delgado e,
puxando-a para si, forçou-a a encará-lo.
— Eu sou nobre e honrado. Vou levar em
consideração que talvez você tenha bebido um
pouco além da conta e precise de alguém para
acompanhá-la até seus aposentos.
Enquanto Atreus falava, Brianna fitava os lábios
sensuais, lembrando-se da textura deles quando a
beijavam.
— Isso não tem nada a ver com o vinho.
— Tem certeza disso?
— Talvez a bebida tenha me dado um pouco mais
de coragem, só isso.
Os dedos longos roçaram-lhe a face, traçando o
contorno do rosto até os lábios de maneira
provocante e tentadora.
— Não a imagino carecendo de coragem.
— Ficaria surpreso.
— Já estou por tudo isso, por quanto a desejo,
pelo fato de preencher todos os meus pensamentos
e sonhos e de não conseguir imaginar um futuro
sem você.
Brianna lhe prendeu a ponta de um dedo entre os
dentes, mordiscando-o de leve.
— Admite que há complicações nisso?
Uma sombra perpassou a face máscula de traços
marcantes que era, concluiu ela, o paradigma da
beleza masculina.
— Esqueça-as — declarou ele.
— Não posso. — Mas, ao que tudo indicava,
Brianna seria capaz de não pensar em todas as
complicações. Nada parecia existir, exceto Atreus e
o desejo ardente que começava a crescer dentro
dela como o vento que fustigava as janelas naquele
momento.
Atreus se ergueu, carregando-a consigo, e
deslizou as mãos sobre a pele macia dos ombros
delicados. Mãos fortes e hábeis, com marcas
deixadas pela espada e o cinzel, capazes de extrair a
beleza da pedra e da terra.
Capazes também de desabotoar as fitas que lhe
prendiam o vestido. Brianna ofegou quando o traje
caiu num único movimento, detendo-se na cintura.
Porém o quase inaudível som de surpresa se perdeu
no beijo devorador e urgente de um homem que se
aproximava rapidamente do limite, do próprio
autocontrole.
Os braços fortes eram como garras de aço em
volta da cintura delgada, segurando-a firme contra
ele. A boca experiente, como uma labareda de fogo
que lhe lambia o pescoço, o colo, passando pelo
sulco dos seios firmes, até tomar um dos mamilos e
depois o outro, sugando-os com avidez e fazendo-a
emitir um grito profundo de prazer, enquanto as
mãos delicadas se fechavam em volta dos ombros
largos.
— Atreus, por favor.
A língua quente lhe traçou o contorno do tórax,
enquanto as mãos firmes puxavam o vestido para
baixo, deslizando-o sobre a sinuosidade dos quadris
até que a peça se amontoasse aos pés de Brianna,
deixando-a apenas com a fina lingerie que lhe cobria
a intimidade.
Nada que conseguisse detê-lo. Atreus deslizou as
mãos sob o elástico da peça íntima para descê-la
pelas pernas, mas a fragilidade do tecido cedeu com
a força que ele exerceu. Um som profundo emanou
da garganta do rei, que puxou Brianna para si,
pressionando-a contra o próprio corpo excitado.
O mundo pareceu se dissolver. Incapaz de se
manter em pé e segura apenas pela força dos
braços musculosos, Brianna ainda teve de suportar o
doce tormento que a língua quente executava,
encontrando-lhe o ponto de maior sensibilidade e
fazendo-a experimentar um prazer sem limites.
Atreus a arrastava para a insanidade e, além
disso, levando-a as alturas do êxtase, após o qual
ela descobriu que aquele homem ousado estava
apenas começando.
— Esperei durante tanto tempo — sussurrou
Atreus num tom rouco quando se ergueu, a tomou
nos braços e a deitou no catre, enquanto retirava o
saiote. Com movimentos gentis, porém precisos,
cobriu-lhe o corpo com o dele, apartou-lhe as pernas
e as fechou em volta dos próprios quadris antes de
penetrá-la com uma investida rápida.
A princípio, Brianna ofegou pelo choque que
experimentou ao ser preenchida pelo membro
avantajado. Mas todo seu corpo estava preparado
para aquilo e o recebeu em toda sua plenitude.
Através da névoa do próprio prazer, observou a
paixão dominar Atreus. Por fim, ele inclinou a
cabeça para trás, as veias do seu pescoço
intumescidas, e gritou o nome dela.
O tempo passou. Brianna não tinha ideia de
quanto. Permaneceram deitados, entrelaçados no
catre com os corpos esfriados pelo vento que ainda
soprava forte. no seu íntimo, ela experimentava um
intenso contentamento. Deslizou os dedos pelos
cabelos negros e espessos.
Quando Atreus apoiou a cabeça nos seios firmes,
ela o sentiu sorrir antes de erguer as sobrancelhas e
fitá-la com intensidade.
— Agora eu me sinto verdadeiramente em casa
— dito isso, se levantou e depositou um beijo rápido
no ventre de Brianna, logo acima dos pelos púbicos,
e se dirigiu à mesa encostada na parede. Quando
retornou, segurava duas taças.
— Acho que tomei vinho suficiente — afirmou ela,
distraída, admirando a beleza do corpo másculo.
— Isto é suco de laranja com um pouco de mel.
Brianna bebeu, sedenta, fitando-o. Haveria um
centímetro daquele corpo que não fosse magnífico?
Teria Atreus ideia de quanto era bonito?
Depositou a taça vazia no chão ao lado do catre e
ergueu o corpo, sustentando-se nos cotovelos.
— Existe alguma estátua que o retrate? Ele
pareceu surpreso.
— De mim? Ainda não morri.
— O que quis dizer com isso?
Atreus esvaziou a própria taça e a pousou ao lado
da de Brianna.
— Já esteve nas cavernas sob o palácio?
— Ouvi falar delas, mas nunca estive lá.
— Devemos ir juntos e em breve. Há muito lá
que desejo partilhar com você. — Os dedos longos
se moveram, provocantes, sobre os ombros de
Brianna e desceram pela curva dos seios até lhe
tocar o mamilo intumescido, fazendo-a estremecer
de prazer. — Mas não agora — acrescentou, e a
ergueu, pousando-a em seguida sobre o colo com a
face voltada para ele e as pernas a envolver-lhe a
cintura. A posição era demasiado íntima, assim
como o contato do membro rijo com o centro da
feminilidade.
— Está cansada?
Brianna meneou a cabeça em negativa. Nunca se
cansaria de fazer amor com Atreus. O desejo que
sentia era tão devastador que ameaçava devorá-la.
Com um movimento lento, ele lhe baixou os quadris,
segurando-a de modo que não pudesse se mover, a
não ser que comandada pelas mãos firmes. Uma
doce e excitante frustração se espalhou pelo ventre
feminino. Tinha de se mover. tinha.
Os músculos internos da intimidade
aconchegante se fecharam em volta do membro,
recebendo-o por completo. Atreus ofegou por
apenas um instante, fazendo-a pensar que ele fosse
gritar. Mas aquele era o rei de Akora, um homem
que não se rendia facilmente.
E foi Brianna a emitir um grito suave, quando
Atreus se ergueu, ainda enterrado dentro dela, e
deu alguns passos ao longo do estúdio. De repente,
algo macio e firme veio de encontro às costas nuas
de Brianna, que ergueu o olhar e viu acima dela a
estátua do homem que emergia da pedra. Atreus se
moveu e o vento soprou mais forte, enchendo o
ambiente e a preenchendo.
O vento, no seu íntimo, irresistível, cada vez
mais forte, até que Brianna não ouvisse nada além
do resfolegar frenético da própria respiração, as
batidas do coração e o impiedoso e selvagem vento.
— Não! — gritou ela, apesar de o corpo
convulsionar em espasmos de prazer.
A negativa fez Atreus congelar, mas apenas por
um instante. As contrações dos músculos da
intimidade quente que o envolvia lhe
proporcionaram um clímax que parecia não ter fim.
Quando ele se deu conta, encontravam-se
deitados no chão. Brianna enroscada a seu lado,
com os joelhos quase lhe tocando o queixo. Os olhos
verdes cerrados, enquanto tremia.
Um xingamento baixo deixou os lábios de Atreus,
que de imediato a envolveu nos braços, apertando-a
contra o corpo desnudo.
— Brianna, querida, diga-me o que há de errado.
Deus, se eu a machuquei.
Ela descerrou as pálpebras e o fitou, parecendo
confusa. num impulso, ele se ergueu, levando-a
consigo. Em seguida, retirou o lençol do catre e a
envolveu com ele. Sentou-se sobre a pequena cama
com Brianna no colo e lhe acariciou a face.
— Escute-me, quero saber o que há de errado.
A tempestade que ameaçara cair durante toda a
manhã desabava naquele instante. Porém Atreus
nem sequer prestava atenção à chuva torrencial que
transpunha as janelas do estúdio, carregada pelo
vento, que parecia se intensificar a cada segundo.
Ele se afastou de Brianna durante alguns
instantes, foi até as janelas e as fechou, deixando a
tempestade lá fora. Enquanto o fazia, avistou a
espuma branca das ondas que se chocavam contra o
cais do porto.
Akora estava familiarizada com as rajadas de
vento que vinham do oeste pelo Atlântico. Mas
aquele temporal provinha do leste, sugerindo ainda
mais periculosidade, num redemoinho violento que
arrastava tudo o que estivesse no caminho. A única
vantagem daquele tipo de tempestade era que
nunca chegava sem aviso. Mas não dessa vez.
Grande parte da frota akoreana se encontrava ao
largo. As tripulações teriam de buscar abrigo no
porto ou se arriscar a enfrentar a fúria da natureza
em mar aberto.
Brianna emitiu um gemido suave. Atreus
retornou de pronto e a tomou nos braços. Envolta
no lençol e aconchegada ao corpo viril, com o uivo
do vento abafado pelas janelas cerradas, parecia
estar se recuperando. Quando o fitou, ele percebeu
que ela o via.
— Atreus? — a voz dela soava fraca. — Desculpe-
me. Oh, Deus, desculpe-me!
Por que ela estaria se desculpando? perguntou-se
Atreus. Determinado a não assustá-la, acariciou o
rosto delicado.
— Olhe para mim. Escute-me. Você não fez nada
de errado. Fui eu. Deveria ter sido mais cuidadoso.
Ela o fitou com olhar perdido por um instante,
antes de menear a cabeça em negativa.
— Não compreende. — Ela dirigiu o olhar às
janelas fechadas. — Lá fora. a culpa é minha.
Atreus refletiu sobre aquelas palavras, tentando
entendê-las, mas não faziam sentido.
— A tempestade. é culpa sua?
O vento. Brianna tinha medo do vento. Atreus lhe
testemunhara o temor em Hawkforte.
— Não acreditará em mim. — Sua voz soava
entristecida, como se ela se lembrasse de um antigo
sofrimento.
— Dê-me uma chance. — Aninhando-a no colo,
pousou-lhe a cabeça contra o próprio ombro
enquanto falava. — Não é a tempestade. É o vento.
Brianna assentiu com a cabeça.
— Você tem medo do vento.
— Nem sempre — ela respondeu. — O vento é
apenas uma parte da natureza. Mas às vezes um
vento ruim pode chegar.
— Vento ruim? Que pode ferir?
— Sim. Algumas vezes apenas fustiga as roupas
no varal ou assusta as vacas, mas outras vezes. —
Um longo e profundo tremor a perpassou. —
Começou quando eu era criança. Mudávamos muito
por causa dele.
— Porque tinha medo do vento?
Brianna meneou a cabeça.
— Porque eu o causava.
Atreus julgou ter ouvido mal.
— Você era a causadora do vento? Isso não é
possível.
— Não deveria ser, mas era.
— Brianna, você era apenas uma criança. Deve
ter havido outras razões para que a sua família se
mudasse, apenas não sabia quais eram.
— Ouvi meus pais conversarem sobre isso.
Também eles não queriam acreditar, mas aconteceu
muitas vezes para que duvidassem.
Ela devia ter confundido as coisas, pensou
Atreus. Era tão criança e as lembranças que possuía
decerto eram fragmentadas.
— Mais tarde — começou ele —, quando você
veio para Akora, por certo Leoni e Marcus não
acreditaram nisso, não é?
Brianna estremeceu de novo.
— Akora. quando chegamos. — Ela inspirou
fundo e, de repente, desvencilhou-se dos braços
fortes e se afastou. Envolta no lençol, permaneceu
de pé, parecendo desamparada, enquanto fitava a
estátua do homem que emergia da pedra. — Meu
pai estava estendendo o braço dessa forma antes
que as ondas o ##engasgar/sufucar<<engolfassem.
Acho que tentava me dizer algo.
O horror da imagem enraizada na mente de
Brianna atingiu Atreus em cheio. Dentre a variedade
de assuntos que poderiam discutir, a morte dos pais
de Brianna seria o último que escolheria.
— Desculpe-me se a estátua fê-la lembrar disso,
mas. Mas ela parecia não escutá-lo.
— Eu estava muito aborrecida naquele dia.
Detestava aquele barco. Queria voltar para casa.
Para o último lugar onde vivemos. Eu tinha uma
amiga lá. Acho que o nome dela era Emmeline.
— Lembra-se daquele dia?
— Apenas de fragmentos. Lembro-me de estar
chateada, e depois me recordo do vento.
O vento. A compreensão o atingiu em cheio,
acompanhada de absoluta incredulidade. Atreus se
colocou diante de Brianna e a segurou pelos ombros,
obrigando-a a encará-lo.
— Não pode acreditar que teve algo a ver com o
que aconteceu com seus pais.
A tristeza entorpecida deu lugar à dura
resignação.
— Houve outras tempestades. Certo dia, as
crianças do vilarejo me cercaram, gritando que eu
era uma bruxa. O vento que se seguiu foi tão forte
que derrubou árvores.
— São apenas coincidências. Nada mais. Brianna
exibiu um sorriso melancólico.
— Leoni e Marcus sabem que é verdade. Nunca
os importunei com esse assunto, mas eles
testemunharam acontecer diversas vezes.
— Você de fato acredita nisso — Atreus deu voz
ao pensamento. Era inacreditável que ela vivesse
assombrada por aquele fardo.
No treinamento para guerreiros, ensinavam que
um homem poderia experimentar um grande choque
e horror para torná-lo insensível às pequenas
mazelas. Atreus o vivenciara uma vez, havia muito
tempo. Um momento da sua vida que preferia
esquecer. Também sabia o que significava ser
atormentado por uma lembrança e pelo sentimento
de culpa, só que, no seu caso, o motivo era real.
Tinha sido responsável pela morte dos pais de
Brianna. O fato de havê-lo feito para salvaguardar
Akora não o isentava do remorso.
Mas a culpa de Brianna, por certo um fardo tão
injusto, poderia lhe ser tirado das costas.
— onde vai? — indagou Brianna, enquanto Atreus
a carregava para fora do estúdio pelo labirinto de
corredores.
Ele vestira o saiote. Ela permanecia enrolada no
lençol e aconchegada ao peito musculoso.
— Você precisa dormir. — Atreus a carregava em
direção às portas que davam acesso aos aposentos
privados da ala familiar. O silêncio ali era absoluto.
Castor se recolhera e não havia sinal de outros
criados.
Após tão longa e agitada festa, todo o palácio e
também a cidade pareciam ter imergido no sono.
— Não deveria me trazer para cá — murmurou
Brianna, sem obter resposta. Em vez disso, Atreus
afastou as cobertas da cama e a deitou gentilmente
sob os lençóis de linho.
O sono a ##engasgou/sufucou<<engolfou de
imediato, mas Atreus continuou acordado, enquanto
o mundo cochilava e a manhã se transformava em
tarde. A chuva havia parado, embora o aroma de
terra molhada ainda impregnasse o ar. Com exceção
dos latidos dos cães-de-guarda, a quietude envolvia
tudo ao redor.
Atreus tinha de lhe dizer. Assim como não
poderia reter a informação que William Hollister lhe
dera. Não a deixaria acreditar que havia sido ela a
responsável pela morte dos pais.
A ironia do pensamento fez um sorriso amargo
nos seus lábios.
Quando Brianna soubesse a verdade. o que
aconteceria? Ela estava destinada a ser sua esposa.
Ele soubera disso havia oito anos e estava mais
convencido do que nunca. Porém, apesar de achar a
união de ambos inevitável, não podia evitar a
incerteza.
Kassandra herdara o nome da profetisa de Tróia,
cujas profecias sobre a destruição tinham sido
ignoradas. Assim como ele, a irmã também fora
capaz de prever o futuro. Tal dom, que tão
frequentemente se revelava uma maldição, fora-lhe
retirado, já que havia atingido seu propósito. Mas,
enquanto o possuía, Kassandra descobrira que o
futuro era composto de uma infinidade de caminhos
que podiam se tornar realidade ou não, de acordo
com as escolhas que as pessoas faziam.
Talvez sua vida com Brianna fosse um dos
caminhos que não seria seguido.
Mal o pensamento lhe veio à mente, Atreus
apertou os braços fortes em volta do delicado corpo
feminino. Procurara por aquela mulher por dever à
pátria, mas tinha sido como homem que a
encontrara. Um homem que a amava.
Seria esse amor suficiente para deixá-la partir se
lhe restasse apenas aquela opção?
Brianna se mexeu como se os pensamentos dele
perturbassem seus sonhos. Atreus lhe sussurrou
palavras ternas no ouvido, e logo ela se acalmou.
Ao crepúsculo, a criada Sida lhes serviu uma
refeição. Não ultrapassou os limites da antecâmara
do aposento, anunciando-se num tom de voz audível
para que lhe percebessem a presença. Deixou a
bandeja sobre a mesa e se retirou.
Atreus a buscou e retornou ao quarto. Trajava
apenas um sorriso estonteante.
— Sida acha que estamos famintos.
— Sim, e ela tem razão — concordou Brianna,
observando a abundância de comida na bandeja. Em
seguida, sentou-se na cama, puxando o lençol para
cobrir o colo, um tanto embaraçada.
Havia contado sua história a Atreus. Ele sabia seu
mais profundo e preocupante segredo e, ainda
assim, permanecia ao lado dela, fitando-a com
genuína admiração no olhar.
— Atreus.
Ele pousou a bandeja na cama e se acomodou ao
lado de Brianna.
— Depois. O que quer comer?
Decidida a fazer-lhe a vontade e deixar as
preocupações de lado por um tempo, inspirou os
aromas que exalavam da bandeja.
— Hum. de tudo um pouco.
Atreus riu, divertido, e fez o que Brianna pediu,
enchendo os pratos de ambos. Em seguida, serviu
duas taças de vinho branco para acompanhar a
refeição. Havia também uma garrafa de água, da
qual Brianna se serviu.
Enquanto comia, sua mente errava, distraída pela
proximidade de Atreus, pelos momentos ardentes
que ele lhe proporcionara. Deliciava-se com o calor
e a perfeição do corpo viril e também com o sorriso
luminoso que deixava à mostra os dentes alvos.
— Oh! — exclamou ela ao derramar um pouco de
água sobre a mão e a coberta da cama. De
imediato, pegou um guardanapo e tentou secar, ao
mesmo tempo em que Atreus também o fez. As
mãos se roçaram e os olhos de ambos se
encontraram.
— Está tudo bem — garantiu ele num tom gentil.
— Não, não está. Deveria ter lhe contado a
verdade sobre mim no momento em que mencionou
a possibilidade de eu me tornar sua esposa.
— Brianna. nada poderá mudar isso. Sempre
acreditarei que era destinada a ser minha esposa.
— Oh, Atreus. — Ela não pôde evitar as lágrimas
ante a aceitação incondicional de Atreus.
Ele as dispersou com um movimento lento da
ponta dos dedos.
— Termine a refeição — falou num tom gentil. —
Há algo que quero lhe mostrar. — Sem mais
explicações, ergueu-se, encaminhou-se a uma arca
próximo à parede e tirou a túnica.
Pouco tempo depois, vestindo uma das camisas
que Atreus usara na Inglaterra, Brianna foi guiada
em direção a uma porta estreita, localizada no meio
do corredor da ala da família. A vestimenta
improvisada lhe cobria os joelhos. Quando
alcançaram uma escada sinuosa de pedra, Atreus
largou da sua mão pelo tempo suficiente para riscar
um fósforo e acender um pequeno lampião que
retirou de um gancho do lado interno da porta.
Segurando-o com uma das mãos e tomando a dela
com a outra, encaminhou-se para a escada,
— onde vamos? — ela quis saber.
— Às cavernas subterrâneas. Não disse que ouviu
falar delas?
Sim, ouvira comentários sobre sussurros
misteriosos e rituais, incluindo até mesmo o
processo de seleção em si. A visitação às cavernas
não era proibida, e até onde sabia, muitas pessoas
as conheciam. Brianna já havia pensado em fazer o
mesmo, porém nunca tivera tempo. No momento se
perguntava por quê. O que imaginava que pudesse
haver lá que ela não desejava confrontar? Algo que
talvez lhe abalasse as convicções sobre o que era
real e o que não era.
Embora não temesse a escuridão nem sofresse
de claustrofobia, agradeceu pelo fato de Atreus estar
munido de um lampião e pelo contato reconfortante
da mão forte que segurava a dela. Continuaram a
descer, passando por onde Brianna presumiu ser o
andar térreo do palácio. O ar se tornou mais frio e
levemente húmido.
Por fim, a escadaria terminou e, pelo que ela
podia ver além da luz do lampião na mão de Atreus,
imergiram num amplo quarto. Instantes depois, ela
ofegou, cambaleando, quando fitou a face de uma
estátua tão perfeitamente entalhada que durante
um momento pensou ser de um homem vivo.
— Este é Thaddeus — explicou Atreus. — Foi um
rei há mais ou menos setecentos anos.
— E como foi o governo dele?
— Bom, apesar de não ter desejado o cargo e
nunca havê-lo aceitado.
— Como isso é possível? O rei não é o escolhido?
— Sim, mas não somos todos iguais. Alguns se
adaptam mais confortavelmente ao cargo do que
outros. — Atreus moveu o lampião, iluminando
outra estátua. — Por exemplo, este é Praxis. Foi rei
há duzentos anos e governou sem dúvidas,
hesitações ou arrependimentos.
— Conhece a todos? — perguntou Brianna.
— Cada um deles. Deixamos arquivos privados
para os nossos sucessores. Nos primeiros dois anos
depois de me tornar rei, eu os li todos de maneira
compulsiva.
— Procurava orientação — afirmou Brianna com
repentina compreensão.
Atreus anuiu.
— Sim, sentia-me sozinho num caminho que me
surpreendia. — Voltou-se devagar, iluminando mais
estátuas. — Ser um artista é permanecer sozinho a
maior parte do tempo. É necessário para a criação e
isso nunca me incomodou. Mas ser um rei. é um tipo
diferente de solidão. Tive dificuldades para me
ajustar a ela.
O pensamento de Atreus solitário e incomodado
na sua nova posição tocou o coração de Brianna.
Algumas semanas antes, teria lembrado a si mesma
de que aquele homem havia se tornado voluntário
para o processo de seleção, mas no presente, aquilo
não fazia diferença. As escolhas que ele tinha feito
não anulavam os desafios que tivera de enfrentar.
E ainda enfrentaria.
Aquele era o pensamento de Brianna quando
outra estátua lhe chamou a atenção.
— É uma mulher?
— Sim, seu nome era Demetre.
— Era esposa de algum rei? — Aquilo explicaria a
presença da mulher no aposento que claramente era
destinado a homenagear aqueles que haviam
governado Akora.
— Era uma sacerdotisa e renomada professora.
Você sabia que sua tia Helena será homenageada
com uma estátua nesta sala?
— Isso é esplêndido! Minha tia é uma curandeira
extraordinária.
— E também resistente à ideia. Talvez possa nos
ajudar a convencê-la.
Enquanto conversavam, continuaram a caminhar
pelo local. De repente, Brianna sentiu sob as
sandálias o piso mudar de pedra gasta para algo
enlameado. Ofegou quando o lampião iluminou uma
imensa caverna. Cones de cristais se erguiam do
chão e também desciam do teto, cintilando nas
cores branca, rosa, verde e azul. Pareciam dividir o
vasto espaço em galerias, todas levando a uma
enorme placa de pedra, próximo ao centro da
caverna. Nela, Brianna teve a impressão de avistar
um grande cristal vermelho que se assemelhava em
tudo a um rubi, exceto pelo tamanho. Não poderia
haver um rubi tão grande. ou poderia?
Não houve oportunidade de perguntar, pois
saíram rapidamente da caverna e entraram numa
passagem que parecia entalhada na pedra. na sua
extremidade, Brianna percebeu um estranho brilho
que, à medida que se aproximavam, tornava-se tão
intenso que dispensava a luz do lampião.
— Aqui vivem pequenas criaturas — explicou
Atreus, enquanto colocava a lanterna de lado. —
Sobem pelas pedras e são seus corpos que
produzem essa luz.
— Onde estamos? — A frente dela, havia água e,
por mais estranho que pudesse parecer. uma praia!
Quando se aproximaram, o ar tornou-se aquecido.
Anéis de vapor subiam no ar, e Brianna inspirou,
percebendo um aroma levemente salgado.
— A água é aquecida e repleta de minerais —
informou Atreus. — É potável, e achamos que
ajudou a sustentar aqueles que se abrigaram aqui
depois da erupção do vulcão. Mas há também outra
fonte de água — continuou, gesticulando em direção
a uma pequena construção, pouco mais que uma
fileira de colunas que seguravam um telhado
pontudo. Sob o efeito da estranha luz, brilhava de
forma sinistra.
— Um templo? — indagou Brianna. Atreus
assentiu.
— Por mais incrível que possa parecer, tudo isto
parece ter sido parte da superfície próxima ao mar.
Era um lugar sagrado e as pessoas se reuniam aqui
em busca de proteção. Há teorias de que tentaram
escapar da erupção do vulcão pelo mar, mas não
conseguiram. De acordo com os registos disponíveis,
à medida que o vulcão continuava em atividade, do
solo foi surgindo uma imensa elevação sinalizada
pelo corte na ilha. Esta área foi literalmente
##engasgar/sufucar<<engolfada para dentro da
terra. Por certo se tratou de uma experiência terrível
para todos que estavam presentes, mas isso
também pode lhes ter salvado a vida.
— Impressionante o fato de todos terem
sobrevivido. — Brianna não podia imaginar como
conseguiram escapar ou sobreviver depois.
— Eu também costumava pensar assim quando
vim aqui há oito anos.
— Oito anos? — Ela o fitou, surpresa. — Foi
quando passou pelo processo de seleção.
— Sim, exatamente aqui.
— Aqui? Mas. — O fato de Atreus a levar para um
lugar como aquele e para onde ninguém escolhia ir,
surpreendeu-a.
— Quero que compreenda — disse ele num tom
suave, erguendo-lhe a mão que ainda estava unida
a sua —, tanto quanto é possível para uma pessoa
que não participou da seleção, o que isso significa.
Brianna havia lhe revelado a parte mais secreta
de si mesma. O fato de Atreus estar disposto a fazer
o mesmo, dividindo com ela o que o destacava dos
outros, a tocou fundo. Comovida, deu um passo em
direção ao rei.
— Tentarei compreender, de verdade. Vou me
esforçar ao máximo para deixar de lado o que penso
ser meu ceticismo inato e aceitar que as suas
crenças são genuinamente uma questão de fé.
— Agradeço-lhe. Claro que isso tem a ver com fé
e com a vida espiritual de Akora. Eu sabia quando
concordei em passar pelo processo de seleção, mas
não tinha ideia do que estaria envolvido nele.
— Seu avô não lhe contou nada antes de morrer?
— quis saber Brianna.
— Nem sequer uma palavra. — Atreus sentou-se
na praia, levando-a com ele. A areia era quente, e
Brianna retirou as sandálias para enterrar os pés
nela.
— Na noite do dia que havia sido marcado,
despedi-me dos meus pais, irmão e irmã e de alguns
amigos mais chegados. Como bem pode imaginar,
nenhum de nós sabia se eu retornaria com vida.
Tinha conhecimento do fato de ter de passar a noite
nas cavernas, então desci até aqui.
— E o que aconteceu?
— Nada.
— Quer dizer que o processo. — Não era possível
que Atreus lhe estivesse dizendo o que ela sempre
pensara ser verdade. De pronto, concluiu que se
assim fosse, não se sentiria justificada, mas
desapontada e até mesmo diminuída.
Desde quando suas opiniões haviam mudado tão
drasticamente? Nos braços envolventes do rei? No
calor da força e do sorriso daquele homem?
— A princípio nada aconteceu, pelo menos por
um bom tempo. Vaguei pela caverna e cheguei a
este lugar aqui. Depois de toda a ansiedade,
experimentar absolutamente nada foi bastante
frustrante. Eu me sentia confuso e preocupado ante
a possibilidade de ter feito algo errado. — A risada
que lhe escapou dos lábios refletia a lembrança do
homem que ele era na época. Jovem, idealista e
indeciso. — Talvez fosse tão inconsequente que nem
seria morto. Teria de voltar ao palácio e, de alguma
forma, explicar à minha família que ainda estava
vivo, mas não havia sido o escolhido.
— Que embaraçoso para você — murmurou
Brianna.
— Assim me parecia. Por fim, quando o tempo
continuou a passar e nada acontecia, fiquei irritado
e decidi que já que estava aqui, deveria tirar
vantagem da situação. — Com um gesto de cabeça,
Atreus indicou o vapor dos minerais. — Banhei-me
ali algumas vezes e achei prazeroso. Quer
experimentar?
— Agora?
— Que hora seria mais adequada? Foi o que fiz
na época e gostaria de partilhar com você essa
experiência o máximo possível.
Deixando-a decidir, Atreus se levantou, retirou o
saiote e mergulhou na água, presenteando-a com
uma visão privilegiada das costas largas e
esculturais e das provocantes nádegas firmes. De
pronto, Brianna se ergueu, retirou a camisa por
sobre a cabeça e o seguiu. Ele virou-se. O olhar
ostensivo e perscrutador. Ela manteve a cabeça
erguida e tentou não ver a água que batia contra o
corpo forte.
— Oh. está quente.
— Muito? — O braço musculoso se movia
próximo a Brianna, roçando-lhe o quadril.
— Não. está boa. Foi apenas a surpresa. — Como
tudo mais na sua vida nos últimos dias.
— Relaxe, ela é calmante. — Quando Brianna lhe
voltou um olhar duvidoso, Atreus removeu a fita de
couro que impedia os cabelos de lhe caírem na
testa. Em seguida, ergueu os dela, com deliberada
calma, e os prendeu num coque no alto da cabeça.
A repentina friagem que lhe atingiu a nuca era
excitante e Brianna estremeceu quando os pelinhos
daquela região se eriçaram. E de repente, sem
nenhuma razão, ela sentiu como se alguém os
vigiasse.
— Há alguém aqui? — indagou.
— O que a faz pensar assim?
— Não sei. — Não havia evidência de outras
pessoas, nenhum som ou movimento. Brianna
sentiu-se tola. — durante um momento pensei.
Bem, não importa.
De qualquer forma, a impressão se evanescera.
Sentia-se totalmente a sós com Atreus. Era como se
nada no mundo existisse exceto os dois. E aquela
era uma sensação deliciosa. Não havia outra palavra
para expressá-la.
— Por quanto tempo aquelas pessoas ficaram
aqui? — perguntou.
— Mais ou menos duas semanas. Quando, por
fim, aventuram-se a subir, descobriram o mundo
deles devastado.
— Não sobrou nada.
Atreus anuiu.
— Nenhum traço característico, nenhuma
construção, campo, nada que lhes parecesse
familiar. Não havia restado qualquer tipo de
vegetação, nem sequer uma árvore ou arbusto.
Conseguiram salvar alguns animais, mas tudo o
mais estava perdido.
— O que será que pensaram? — murmurou
Brianna. Nas lições que tomara quando criança, os
sobreviventes originais eram corajosos, figuras
lendárias, tão distantes que mal podiam ser
compreendidos, contudo, antes de mais nada, eram
homens e mulheres não muito diferentes deles. Ela
nem sequer podia imaginar as raias do desespero
que enfrentaram.
— Pensaram que haviam sido abandonados —
explicou Atreus. — Mas estavam enganados. Levou
algum tempo para descobrirem isso.
Aquilo era novidade para Brianna.
— O que quer dizer?
— Mais tarde eu explico. Posso lhe pedir um
favor?
Em meio à sinistra luz da caverna, o rei parecia
um jovem deus emergindo da magnificência das
águas. Os cabelos negros que lhe roçavam os
ombros largos e desnudos lhe emprestavam uma
aparência extremamente máscula. A boca sensual
evocava prazeres que no presente momento
repercutiam em Brianna, enquanto os olhos atentos
percorriam seu corpo.
Atreus poderia pedir. A questão era se ela teria
forças para negar.
— Um favor?
— Ajude-me a realizar uma fantasia.
— Você tem muita imaginação. — Ofegou
Brianna. Seus braços se encontravam apoiados na
beira da fonte. A água batia contra seu corpo,
impulsionada pelo movimento ritmado de ambos. As
nádegas de encontro à virilha de Atreus. Ele estava
enterrado dentro dela, levando-a ao limite da
insanidade, apenas para estacar, esperar e
recomeçar de novo.
Brianna tentou dominá-lo, contraindo a
musculatura interna do ventre, mas Atreus apenas
gemeu e lhe cravou os dentes na lateral do pescoço.
A sensação era inebriante e fez com que uma onda
de calor a invadisse. Ela soltou um grito, que ecoou
nas paredes da caverna.
— Chega, Atreus, chega.
— Nunca, não com você. — Ele segurou-lhe os
quadris com firmeza, se agachou e a penetrou ainda
mais.
As luzes que tremeluziam ante os olhos de
Brianna provinham das criaturas de luz ou das
explosões de prazer que ela experimentava? Aquilo
não importava. Sua excitação era tanta que a levou
a um nível de prazer nunca antes provado.
Tomada de surpresa e retornando
vagarosamente à realidade a seu redor, Brianna
agradeceu à força máscula que a mantinha na
superfície da água. Com um gemido rouco, Atreus
retirou a ambos da água e se deitaram ao lado da
fonte. Apesar da respiração pesada, uma risada lhe
escapou dos lábios.
— Nunca pensei que a realidade pudesse superar
a fantasia.
Brianna sorriu, demasiado exaurida para falar, e
se aninhou contra o corpo musculoso.
Algum tempo depois, ela não poderia avaliar
quanto, acordou com um murmúrio de vozes.
Sentou-se rapidamente e olhou ao redor à procura
das roupas que haviam deixado ali. Mas antes que
pudesse avistá-las, as vozes cessaram como se
nunca tivessem existido.
Vagarosamente, Brianna se deitou outra vez,
porém o sono havia desaparecido. A seu lado,
Atreus se encontrava deitado de costas com uma
mão sobre o peito. Sua respiração era lenta e
cadenciada como se estivesse mergulhado num sono
profundo. Observá-lo era uma tentação à qual ela
não conseguia resistir. O corpo viril a fascinava.
Eram tão diferentes e, no entanto, pareciam ter sido
feitos para completar um ao outro.
De forma suave, quase sem respirar, traçou com
a ponta do dedo a curva do ombro largo. Logo baixo
da pele espessa, havia os poderosos ossos e
tendões. Longas fibras musculares davam contorno
aos braços e pernas. Aqui e ali, identificou cicatrizes
que não havia percebido no ânsia do ato de amor.
Algumas pareciam antigas, o legado do treinamento
de guerreiros, certamente.
Pelos negros e macios se espalhavam desde o
peito, passando pelo abdômen, até engrossarem na
virilha. No momento, Atreus não estava excitado, o
que não era de surpreender dada a atividade de
minutos antes, mas, ainda assim, aquela parte do
corpo dele a fascinava. Representava o poder da
masculinidade, embora o deixasse vulnerável.
Na Inglaterra, durante um passeio na Torre de
Londres, Brianna vira exposições de armaduras
usadas pelos guerreiros medievais que retratavam
pedaços de tecidos decorados e feitos para proteger
as partes que os homens valorizavam acima de
todas. Alguns eram tão grandes que se destacavam
na silhueta dos guerreiros como mensageiros
orgulhosos da sua potência.
Riu com a lembrança, porém se conteve,
prendendo a respiração e esperando não despertar
Atreus. E conseguiu. Mas não conseguiu deter a
fascinação. Ao contrário, a cada momento,
descobria-se mais arrebatada pela visão daquele
homem.
E, inevitavelmente, o roçar dos seus dedos não a
satisfaziam mais. Imerso em sono tão profundo, que
por certo Atreus não notaria se.
Com extremo cuidado, inclinou-se para baixo,
aproximando-se da pele que guardava o aroma da
fonte mineral, um odor salgado e agradável
misturado com o almiscarado, remanescente do ato
de amor. Brianna pousou uma mão no peito
musculoso e sentiu sob a palma as batidas fortes do
coração daquele guerreiro.
Não muito tempo antes, pensara o quanto seria
fácil amá-lo. A realidade se tornou ainda mais fácil.
Amava aquele homem, não o rei, a carne, o sangue,
os músculos, os tendões, o orgulho e a coragem, a
paixão e a ternura. Amava-o com uma intensidade
que escapava ao seu controle.
Um beijo. apenas um, nada mais. por certo
Atreus não perceberia. Observando-o atentamente e
alerta a qualquer pequeno movimento que
denunciaria seu despertar, Brianna roçou os lábios
na curva do queixo marcante. A pele era macia e
quente. tentadora.
De repente, retraiu-se, consciente de quanto
estava perto de perder o controle. Aquilo não seria
adequado. seria? Se Atreus estivesse acordado,
esqueceria o controle, como invariavelmente fazia
quando se amavam. Mas, e se fosse ela a estar no
poder?
A ideia era tentadora e irresistível. Devagar,
ainda o observando, atenta, aproximou-se. Em
breve ele acordaria. Era um homem talhado para a
batalha e não cairia em sono profundo antes de
haver se exaurido por completo. Ela tinha pouco
tempo a seu favor.
Como utilizá-lo da melhor forma? Quanto se
atreveria a ousar?
Muito, ao que parecia. Desejava tocá-lo como
Atreus a tocava. Conhecê-lo de todas as formas.
Antes que perdesse a coragem, inclinou-se para a
frente e soprou com delicadeza a parte de Atreus
que mais a fascinava. Apenas uma suave lufada de
ar que agitou os pelos existentes naquela região.
Ele se mexeu, e Brianna retrocedeu alguns
centímetros. Porém, instantes depois, o corpo
másculo permaneceu imóvel, devolvendo-lhe a
coragem. Ela deslizou a língua no local onde havia
soprado, mas aquilo não era suficiente. Queria mais.
Lentamente, continuou por todo o comprimento da
masculinidade avantajada até atingir a extremidade
onde, com extrema delicadeza, mordiscou.
Atreus gemeu, fazendo-a descerrar as pálpebras
para encontrá-lo a observá-la numa posição, que
poderia ser descrita como um tanto indelicada,
porém inebriante. Senhora da situação, Brianna
continuou o que havia começado. Até que sentisse o
sabor salgado das prelídio/ principios da seiva de
Atreus e levantasse o corpo para sentar sobre ele.
— É de fato cheia de surpresas — afirmou Atreus
com voz rouca, enquanto lhe segurava os quadris.
— Não deve ser esquecer disso. — Retirando a
tira de couro que lhe prendia os cabelos, Brianna
deixou os cachos cair em cascata sobre os ombros,
e o cavalgou.
— Está acordado?
Havia se passado muito tempo, embora Atreus
não soubesse precisar quanto. As horas
costumavam se perder nas cavernas.
Deixou escapar um profundo suspiro e apertou os
braços em volta do corpo de curvas sinuosas.
— Não deveria, mas estou.
— Vai me contar mais sobre o processo de
seleção? — Brianna estava impaciente por saber
mais e não conseguia dormir.
— Oh, isso. — A passagem mais importante da
sua vida desaparecera-lhe da mente. Mas a
influência de uma mulher extraordinária não podia
ser subestimada. — Eu ainda estava relutante a
voltar ao palácio, portanto resolvi ir até lá —
começou Atreus, acenando com um gesto de cabeça
em direção ao templo.
— O que havia lá?
Ele se ergueu e lhe estendeu a mão.
— Venha ver.
Adentraram o templo juntos. Era muito pequeno
e repleto de minúsculas criaturas de luz. Na
tranquilidade do lugar, o som mais alto era o do
gotejar da água.
— Olhe lá — disse Atreus, puxando-a para perto
de uma das paredes.
Como acontecera na sala das estátuas, Brianna
deparou com uma face, porém essa estava
entrelaçada com musgos, incalculavelmente velha e
com uma expressão que sugeria ao mesmo tempo
força e suavidade. Na parede em volta da face, caía
um jorro de água.
— Foi o que você ouviu — explicou ele. Brianna
desviou o olhar da pedra para encará-lo.
— Eu? O quê. — Antes de concluir a pergunta,
aparou uma pouco de água nas mãos e a provou,
enquanto a lembrança lhe voltava junto com um
sorriso. — A água da junção?
Atreus assentiu.
— Ela é desfrutada por incontáveis casais na sua
noite de núpcias e conhecida por possuir grandes
poderes de. encorajamento.
Brianna deixou cair as mãos ao lado do corpo.
— Nesse caso, não deveríamos bebê-la. As
sobrancelhas de Atreus se arquearam.
— Porque não?
— Se adquirirmos mais encorajamento, por certo
morreremos exauridos.
Ele deu uma gargalhada que reverberou pelo
templo.
— Acho que se trata mais de lenda do que de
realidade. Bebi a água e não experimentei nenhuma
irrupção de desejo.
— Então, você veio até aqui?
— Sim, estive aqui antes, muitas vezes. Este era,
e ainda é, meu lugar predileto.
— E o que aconteceu?
Atreus hesitou, porém o dado havia sido lançado
e nele estava sua única chance.
— Encostei-me na parede. Estava aquecida.
Brianna fez o mesmo.
— Está fria agora.
— Como é esperado. Mas naquele dia se
encontrava aquecida. Depois de algum tempo,
imaginei por quê. Todo o templo estava muito
quente. Desconfiei de que algo estivesse errado e
pensei em ir embora. Mas quando tentei me
desencostar da parede, não consegui. E então o
vulcão entrou em erupção.
— O vulcão o quê?!
— Senti acontecer por completo. A fissura na
terra, a imensa torrente de lava a preenchendo, se
erguendo e explodindo no ar, rasgando ainda mais
profundamente a terra no seu caminho. Ouvi o
estalo das pedras e o guincho das águas. Vi os
templos desabarem e as pessoas morrerem.
Experimentei o choque e o horror que jamais tinha
conhecido.
Atreus relatava com naturalidade o que lhe
acontecera. Para ela, no entanto, aquilo era
inusitado.
— Deve ter tido algum tipo de alucinação —
arriscou Brianna.
— Não. Na realidade, não estava experimentando
aquilo. Havia algo além de mim. Eu era apenas um
espectador.
— Está querendo dizer que este lugar guarda
lembranças do que aconteceu? — indagou Brianna,
hesitante.
— Sim, mas não de forma assombrada por ecos
do passado. É uma memória viva.
Atreus podia ver por sua expressão que ela não
conseguia entender, mas que estava tentando.
Aguardou observando-a e, quando julgou ser o
momento certo, tomou-lhe uma mão na dele e
espalmou a outra contra a parede do templo,
próximo à face de pedra.
— Não tenha medo.
Em seguida, inspirou profundamente e foi para o
interior da parede, procurando a tranquilidade que
sabia existir ali, e sabia também o que mais
encontraria naquele lugar. A vastidão, que ele
apenas tocou, o poder além da compreensão, o
ilimitado senso de felicidade e orgulho, o fim da
solidão e, dentro daquela ternura, o calor
convidativo de um abraço materno.
Brianna também inspirou fundo. Segurando-lhe
firmemente a mão dela e servindo-lhe de escudo,
Atreus foi um pouco mais além, deixando-a sentir
aquilo tudo, antes de retroceder devagar.
Um longo suspiro abandonou os lábios de Brianna
quando o fitou com os olhos escurecidos pelo temor.
— O que foi. aquilo? — ela quis saber.
— Algumas pessoas o chamam de espírito de
Akora.
— Algumas pessoas?
— Acho que é mais do que isso. Existem lugares
que são consideram sagrados espalhados por todo o
mundo, onde nos sentimos próximos de algo além
de nós mesmos. Akora é um deles, mas não o único,
embora aqui, talvez possamos estar mais próximos
do que em qualquer outro lugar.
— É impressionante. E você experimentou isso de
maneira íntima.
— Para mim, foi uma gloriosa experiência, mas
posso entender porque alguns não são talhados para
isso e não conseguem sobreviver ao contato com tal
poder. — Atreus fitou as próprias mãos. — Quando
retornei ao palácio, havia queimaduras na palma das
minhas mãos onde tocaram a parede. Mas,
estranhamente, não doíam e desapareceram em
poucos dias. Mais tarde soube que as mesmas
marcas tinham aparecido nas mãos de todos os
homens que se tornaram rei.
— Você de fato é o escolhido — disse Brianna. —
É tudo verdade. — O assombro na expressão do seu
rosto era claro, como o era a genuína aceitação do
fato e até mesmo a alegria que sentia.
Atreus não perdeu tempo.
— Sim, é verdade. Assim como é verdade que
naquele momento soube que eu e você estávamos
destinados a ser marido e mulher.
— Ainda acredita nisso, apesar do que ficou
sabendo sobre mim?
— Brianna. — Ele estendeu a mão, necessitando
tocá-la ao dizer o que devia. — Está enganada sobre
o que pensa de si mesma.
— Enganada? Se não consegue aceitar a verdade
sobre mim.
— Não é verdade. Na minha família, houve
mulheres com estranhos poderes, incluindo a
habilidade de extrair algumas forças da terra. Não
excluo a possibilidade de você ser como elas,
especialmente por sua ligação com a linhagem
Hawkforte. Mas não foi a causadora da morte dos
seus pais.
— Não pode saber o que houve. Não estava lá.
— Sim, eu estava. — A mão forte se apertou em
volta do braço de Brianna. Havia planeado o que
dizer, mas ainda assim, as palavras ameaçavam
asfixiá-lo da mesma forma como as lembranças o
faziam. — Eu tinha quinze anos e fazia o
treinamento de guerreiros. O destacamento no qual
me encontrava estava fazendo manobras marítimas
em águas próximas ao estreito do sul, quando
observamos navios franceses se aproximarem. Não
era a primeira vez que acontecia e não seria a
última. Ordenamos que eles se afastassem, porém o
almirante que os comandava se recusou a fazê-lo.
Soubemos mais tarde que se encontravam fora da
rota, e o almirante, temendo a fúria de Napoleão,
imaginou que uma incursão contra a lendária Akora
lhe restituiria a confiança do imperador. Estava
totalmente enganado.
— A tempestade. — disse Brianna
— Havia uma ventania, mas nenhuma
tempestade. Os navios franceses foram afundados
na batalha.
A pele de Brianna estava extremamente fria.
Diante dos olhos negros, a cor pareceu lhe
abandonar a face.
— Meus pais.
— Não tínhamos ideia de que havia civis a bordo
até os encontrarmos.
— Oh, Deus! — Ela tremia tão intensamente que
Atreus pensou que fosse desmaiar. Para prevenir
aquilo, aproximou-se para tomá-la nos braços, mas
antes que lograsse fazê-lo, Brianna se afastou. —
Está me dizendo que meus pais foram mortos por
akoreanos?
O povo que a acolhera e a fizera um deles? As
pessoas. que ela amava?
— Estávamos nos defendendo.
Brianna não mais o ouvia, enquanto parecia falar
consigo mesma.
— Mas a tal batalha devia ser do conhecimento
de todos. Leoni e Marcus decerto sabiam. Todos,
mas ninguém jamais me falou nada.
— Você me disse que Leoni e Marcus não sabiam
que se sentia responsável pela morte dos seus pais.
— Ainda assim, não me contaram como minha
mãe e meu pai morreram. Ou como passei a fazer
parte da família deles.
— O que adiantaria lhe contar se teria de viver
aqui, especialmente depois que ficou claro que não
possuía nenhum parente na Inglaterra? Ou assim
pensávamos.
— Mas havia! E eu não teria ficado sabendo disso
se não insistisse. — Brianna se afastou, com o braço
esticado para mantê-lo a distância. — Tantas
mentiras!
— Não são mentiras.
— Sim, mentiras! Omissões, coisas que deveriam
ter sido ditas. Todos estes anos amei Akora, e agora
descubro que meus pais morreram por causa dela.
Meu pai mergulhou no mar, desesperado para
encontrar minha mãe, mas não conseguiu. Ele
parecia. Oh, Deus, a expressão do meu pai quando
as ondas o ##engasgar/sufucar<<engolfaram!
O pesadelo daquele dia fatídico cresceu dentro de
Brianna e, com ele, a inegável verdade.
— Poderia ter sido honesto comigo desde o início,
mas em vez disso você. — Ela baixou o olhar à
própria nudez. Os corpos tão familiarizados um com
o outro após horas de paixão. — Procurou me atrair
para o seu lado. Cumprir o que acredita ser o
destino, porque nada mais importa, não é? Nada
além das determinações de Akora.
O rosto de Brianna se contorceu de dor.
— Não tenho dúvidas de que você é o escolhido,
mas deveria pensar se isso não o tornou menos
humano.
E no segundo seguinte, ela foi embora, deixando-
o sozinho no templo como oito anos antes.
Entretanto dessa vez Atreus sabia que havia
fracassado.
Brianna acordara de um sonho para entrar num
pesadelo. Atreus era o escolhido, sendo as lendas e
crendices dos akoreanos verdadeiras. Algum tipo de
poder que possuíam fazia-os cientes daquilo.
Sentira-o no templo, experimentara-o através do
rei. A revelação era surpreendente e a teria V
enchido de alegria se não tivesse sido sobrepujada
pela descoberta de que seus pais haviam morrido
por causa daquele mesmo poder.
Embora se envergonhasse por tão severa
conclusão, não conseguia pensar de outra forma.
Fora o espírito vital de Akora, ou o que quer que
realmente fosse, que havia inspirado e encorajado o
povo akoreano a preservar o reino fortificado contra
todos os intrusos.
Seus olhos pareciam queimar. Brianna virou a
face para o vento. Talvez ele conseguisse lhe secar
as lágrimas que pareciam não ter fim. Pela primeira
vez em dezasseis anos, quando havia acordado e
encontrado Leoni ao pé da sua cama, sentia-se
completamente sozinha.
Akora, o lar que ela amava, fora o motivo da
morte dos seus pais. Aqueles que havia amado e em
quem confiara acima de tudo deixaram-na acreditar
numa mentira sobre aquelas mortes. Os dois golpes
eram mais do que podia suportar, porém não lhe
restava outra opção, pois não tinha como escapar
deles.
Poderia deixar Akora, não imediata ou
facilmente, mas poderia partir. Havia uma vida a
sua espera na Inglaterra. Contudo, saber disso não
lhe trazia consolo algum. Para onde quer que fosse,
o que quer que fizesse, a dor e a mágoa a
seguiriam.
Não poderia simplesmente deixar uma parte de si
mesma para trás, e essa parte consistia na inegável
verdade de que amava Atreus. Ainda assim, era
aquele mesmo amor que tornava impossível
conviver com mais mentiras. Atreus estava
determinado a se casar com ela, não por causa da
mulher que era, mas por crer que era seu destino se
tornar sua esposa. Tinha se valido de grande perícia
ao atraí-la com paixão e poder. E ela fora
totalmente receptiva e condescendente. Não fosse
por seu compromisso com Hélios e os
questionamentos que tinha no seu íntimo, já seria
esposa do rei.
Sua cabeça latejava. Colocou as mãos sobre ela e
fechou os olhos, mas não encontrou conforto algum.
Quando tinha saído cambaleante para fora das
cavernas, dirigira-se de imediato a seus aposentos
para se banhar, trocar de roupa, mas não se
lembrava de havê-lo feito. No momento, se
encontrava sentada na mais alta fileira das
arquibancadas de pedra do estádio vazio. Meio ano
antes, estivera sentada bem próximo dali, tomada
de excitamento pelos jogos e corridas de carruagens
que se desenrolavam naquela ocasião. Atreus tinha
estado na liderança, bem próximo da vitória.
Lembrava-se de haver pulado de alegria, com o
coração disparando de vibração por ele.
Pouco depois, o estádio tinha sido rasgado ao
meio por uma enorme explosão que derrubara a
parede ao lado de Atreus.
Disseram que o traidor Deilos fora o responsável.
Que se opunha às reformas que o rei queria
implementar em Akora e se julgava mais condizente
ao cargo de rei do que Atreus.
Alegaram também que alguns componentes de
Hélios o haviam ajudado.
Mais mentiras? Brianna não sabia e não
conseguia pensar sobre aquilo no momento. O sol
brilhava forte e o vento estava se tornando mais
opressivo.
Para o inferno com o estúpido vento! na sua
tenra idade, quando apenas suspeitava da verdade
sobre si mesma, costumava temê-lo. No presente,
parecia apenas um estorvo inútil. Outros dons, tinha
dito Atreus, inerentes a algumas mulheres da família
dele e de Hawkforte. Dons de manipular energias
primárias da natureza, mas presumivelmente com
algum propósito. Algo além de um simples
infortúnio.
Mas com ela. oh, não. Se tivesse de receber
algum dom, que fosse para um bom propósito. E se
tivesse de se apaixonar por um homem, que fosse.
Sua mente trilhou o caminho da autopiedade.
num impulso se ergueu e deixou o estádio. Não
tomou nenhum rumo definido. Em pouco tempo,
descobriu-se entre uma multidão que se
encaminhava ao palácio. Havia uma deliberada
sobriedade naquela gente. Não teve tempo de atinar
o motivo, já que a resposta se apresentou de
imediato.
— Bri, não esperava encontrá-la aqui.
Polônio abriu caminho entre a multidão para se
postar a seu lado. Brianna deixou escapar um
suspiro suave e lutou para ocultar todos os sinais de
tristeza da face. A despeito da conversa que haviam
tido na festa, não podia se imaginar confidenciando
sua intimidade ao irmão. Apesar da proximidade
entre ambos, não podia esquecer de que Polônio
tinha sido um dos que permitiram que ala
acreditasse numa mentira.
Entretanto ele a conhecia o suficiente para saber
que algo estava errado, sem que fossem necessárias
palavras.
— O que há de errado? — indagou seu irmão. Por
um instante, o egocentrismo próprio da juventude
pareceu ser posto de lado, enquanto a fitava com
genuína preocupação,
Mas aquilo não era o suficiente. Brianna queria
apenas permanecer sozinha.
— Nada.
— Está muito pálida.
Ela continuou caminhando sem olhar para o
irmão.
— Acabei de retornar da Inglaterra. Tem pouco
sol lá nesta época do ano.
— Mas estava com aparência bem melhor quando
chegou. Desculpe-me se eu disse algo que a
aborreceu.
— Apenas não soava como o Polônio que
conheço. Isso me aborreceu. O resto, francamente,
foi bobagem.
O irmão continuou a fitá-la, preocupado.
— Tem sido um tempo difícil para mim, mas
agora com o início do julgamento.
— Julgamento? Começa hoje? Ele a olhou,
estupefato.
— Claro, é para lá que todos estão indo e para
onde pensei que você também ia. Não vai para lá?
— Sim, claro. — Tratava-se dos seus amigos em
Hélios. Talvez Atreus a desejasse fora do caminho,
mas teria uma surpresa.
Iria assistir ao julgamento, manteria a cabeça
erguida e veria se de fato existia justiça em Akora.
Levada pelo fluxo de pessoas, entrou o amplo
pátio em frente ao palácio. O mesmo lugar onde
dois dias antes acontecera a festa. Mas todos os
sinais dela haviam sido apagados. Talvez por julgar
que a população comparecesse em massa, tomaram
a decisão de realizar o julgamento no pátio. Nenhum
outro lugar era Akora poderia acomodar tantas
pessoas.
Os mais rápidos perceberam de imediato que
teriam melhor visão da escadaria que levava ao
palácio. Polônio seguiu em frente, levando a irmã
consigo, e encontrou lugares para eles próximo ao
estrado armado numa das extremidades do pátio.
Uma mesa e uma cadeira de encosto alto haviam
sido postas lá.
— Não há trono? — murmurou Polônio.
— Ele não precisa de um — retrucou Brianna. —
O poder de Atreus não provém de símbolos. —
Passara a compreender aquilo muito bem.
O irmão olhou em volta, rapidamente, como se
estivesse preocupado com quem estava por perto.
— Isso é crendice do povo.
Apesar de saber que não, Brianna não
encontrava forças para argumentar.
Abaixo deles, próximo ao estrado, ela avistou
Kassandra e Joanna sentadas ao lado dos
respectivos maridos. Ficou agradecida pelo fato de o
pequeno grupo não perceber sua presença.
Não esperaram durante muito tempo. Sem
anúncio ou fanfarras, Atreus emergiu do palácio e
ocupou seu lugar à mesa. Estava trajado de maneira
simples, com uma túnica branca. Parecia cansado,
pensou Brianna, preocupada. Quando ele tomou o
assento, os olhos negros escrutinaram a assembléia,
detendo-se nos dela.
Como prometera a si mesma, ela manteve a
cabeça erguida e lhe sustentou o olhar, embora
tivesse de apelar a toda a força que possuía para
não vacilar.
Após alguns instantes, Atreus desviou o olhar,
mas não antes de Brianna captar a tristeza
estampada no semblante dele. Qualquer satisfação
que pudesse ter sentido em encará-lo se desfez de
imediato.
Os prisioneiros foram trazidos logo em seguida,
sob os olhares atentos da multidão.
Eram todos jovens, já que Hélios costumava
atrair a juventude. Eram também familiares a
Brianna, pois frequentavam as mesmas reuniões a
que ela costumava ir. Na ânsia de dividir esperanças
e sonhos, chegou a considerar todos em Hélios
como amigos. Vê-los naquelas circunstâncias lhe era
doloroso.
O magistrado, Marcellus, aproximou-se da mesa,
onde Atreus estava sentado. Segurava um bloco e o
consultava à medida que falava.
As acusações foram feitas sem rodeios.
— Cada um dos réus contribuiu na aquisição de
materiais para explodir o estádio — entoava
Marcellus. — Tais ações foram realizadas com plena
consciência do propósito para o qual seriam
utilizados os materiais. E essas ações resultaram na
morte de oito homens e no ferimento de muitos
outros, incluindo o rei de Akora em pessoa.
— Que deveria ter a decência de não assistir a
este julgamento — murmurou Polônio, dado o
envolvimento pessoal com os acusados.
— É dever do rei presenciar o julgamento —
replicou Brianna. — Atreus sempre cumpre suas
obrigações. — Tinha razões amargas, para pensar
daquela forma.
As evidências foram apresentadas rapidamente.
Testemunhas afirmaram ter visto um ou mais dos
acusados nas adjacências de uma carroça, que mais
tarde fora roubada e que combinava com a
descrição daquela utilizada no ataque. Outras
testemunhas ligaram os réus aos tonéis. Porém as
acusações mais contundentes foram daqueles que
reconheceram os quatro como compradores de
produtos que seriam utilizados na fabricação de
pólvora.
Muito antes do depoimento das testemunhas
acabar, Brianna tremia por dentro. Algumas das
evidências poderiam ser consideradas meras
coincidências, mas somadas umas às outras,
deixavam pouca esperança de que os quatro fossem
de fato inocentes.
— Não compreendo — sussurrou para Polônio. —
Hélios é um movimento totalmente pacífico. Porque
alguém de lá estaria disposto a usar de violência?
— Talvez não estivessem inclinados à violência
quando se juntaram ao movimento. Mas perceber
que nada mudaria os fez agir, inspirados pelo
desespero.
— Todos nós nos frustramos. Queremos que as
coisas aconteçam mais rápido, mas isso não justifica
o que essas pessoas são suspeitas de fazer. Meu
Deus, ajudaram a matar inocentes!
— Isso não teria acontecido se o rei não tivesse
sido tão intransigente. Ele causou aquelas mortes
tanto quanto qualquer um dos acusados.
Brianna fitou o irmão, incapaz de acreditar que
ele acabara de proferir aquelas palavras.
— Não pode estar falando a sério.
— É verdade, não entende? Se Atreus tivesse
concordado com as reivindicações de Hélios,
ninguém teria sido levado a cometer atos tão
desesperados.
— Incluindo matar pessoas? Não podiam
esperar? Queriam tudo no mesmo instante? E
quando não conseguiram, se acharam no direito de
matar os outros?
— Claro que não! Eu não disse isso. Mesmo que
as vítimas fatais fossem defensoras de Atreus, não
se justifica matá-los.
Teria uma nuvem coberto o sol? De repente,
Brianna sentiu muito frio.
— E matar Atreus? Não consegue entender o
quanto seria errado?
— Acho que ele se interpõe no caminho de
qualquer pessoa que deseja reformas em Akora.
Longos instantes se passaram durante os quais
Brianna não conseguia pensar em nada além da
gravidade do que o irmão acabara de dizer. Atreus
deveria morrer. Ou, pelo menos, a morte dele era
aceitável.
Polônio acreditava naquilo.
Ao longe, ela ouviu Atreus dizer alguma coisa
sobre a apresentação das evidências estar concluída
e os procedimentos serem adiados até a manhã do
dia seguinte. Os quatro acusados foram levados
embora e a multidão começou a se dispersar.
Polônio se levantou e esperou que a irmã fizesse o
mesmo, mas Brianna não se permitiria acompanhá-
lo.
— Ficarei mais um pouco.
— Não deveria, Bri. Se ficar aqui, ainda estará
com eles. Venha comigo. Haverá uma reunião hoje à
noite.
— Uma reunião de Hélios?
— Sim. Você deveria participar.
Ela ergueu o olhar para Polônio, vendo-o por um
instante como ele costumava ser. O menino gentil
que se tornara seu irmão. Polônio detestava a ideia
de qualquer tipo de violência. E no presente, falava
sobre assassinatos com uma certa tranquilidade.
Sentira muito apreço por Hélios e, de alguma
forma, ainda sentia. Mas o dia havia sido extenuante
e desejava desesperadamente ficar a sós com os
próprios pensamentos.
— Vá — disse ela por fim e, em memória do que
haviam partilhado, conseguiu esboçar um sorriso.
Sozinha, aguardou até que uma boa parte da
multidão se dispersasse antes de se encaminhar
para seus aposentos no palácio. A exaustão a
envolvia a cada passo. Na verdade, a mente traidora
não a deixava compreender o quanto estava
cansada.
Por fim, conseguiu alcançar os próprios
aposentos. Lançando mão do último resquício de
energia que lhe restava, tirou as sandálias e se
jogou na cama sem pelo menos trocar de roupa ou
puxar as cobertas. Momentos depois, dormia
profundamente.
O luar iluminava o quarto quando Atreus o
entrou. Havia esperado o máximo que pudera,
conjeturando se deveria ir até lá ou não. A indecisão
era uma novidade para ele e não lhe agradava.
Mesmo assim, entrou com cautela, entreabrindo a
porta devagar e espiando o interior do aposento
antes de seguir em frente.
Brianna estava dormindo, como imaginara. Em
ocasião do julgamento, havia decidido que não iria
procurá-la. A presença de Brianna o surpreendera,
mas também lhe dera esperanças. A óbvia exaustão
e tristeza em que ela se encontrava o enchera de
amargo arrependimento.
Ele a tinha ferido. O líder de Akora, o mais
poderoso presioneiror das leis e valores, magoara
uma mulher. E a mulher a quem amava.
Poderia ter feito. o quê? Deveria ter contado a
história de outra forma ou não lhe revelar nada?
Deveria ter se refreado de tentar de todas as formas
atraí-la para si? Todas as alternativas que lhe
vinham à mente pareciam melhores do que a atitude
que tomara.
O modo como Brianna o havia fitado.
Não tenho dúvidas de que você é o escolhido,
mas deveria pensar se isso não fê-lo menos
humano!
Brianna não sabia o quanto poderia estar certa.
Procurara na pedra, na argila e no metal meios
de preservar a própria humanidade em face de uma
experiência que, embora abençoada, fazia-o se
sentir afastado de qualquer pessoa. Porém havia
reencontrado aquela humanidade nos braços de
uma mulher que, naquele momento, dormia, alheia
a sua presença.
Atreus se ajoelhou ao lado da cama, observando-
a. A face delicada estava voltada para ele. Os lábios
levemente entreabertos à medida que respirava
profundamente. Desejava desesperadamente tomá-
la nos braços e confortá-la. Mas não podia ir mais
além, enquanto tanta coisa se interpusesse entre
ambos.
Contudo, a tentação de tocá-la se revelou
irresistível. Estendeu a mão e, com cuidado, afastou
um cacho da face de Brianna.
Ela permaneceu imóvel. Não parecia consciente
da sua presença.
Aquilo era um bom sinal, disse Atreus a si
mesmo, detendo-se ali mais um pouco antes de se
erguer. Silenciosamente, deixou o quarto, mas não
sem puxar as cobertas sobre Brianna e se certificar
de que as janelas estavam fechadas.
A noite prometia ser fria, a julgar pela forma
como o vento soprava.
Ele seguiu pelo corredor, imerso nos próprios
pensamentos, e encontrou a irmã vindo na sua
direção.
— Esperava encontrá-lo — disse Kassandra,
tomando-lhe o braço e depositando um suave beijo
na sua face. — Está com uma aparência horrível.
Apesar da própria tristeza, Atreus sorriu.
— Sincera como sempre. Nada que algumas
horas de sono não curem.
A irmã o fitou com franco ceticismo.
— É mesmo? Eu diria que precisa mais do que
isso. Como está Brianna?
— Dormindo. — Ele retomou a caminhada, e
Kassandra o acompanhou. — Onde está Royce?
Acho que ele não gosta da ideia de deixá-la vagando
por aí sozinha nos últimos dias.
Kassandra baixou o olhar para o ventre abaulado.
— Royce me olha como se pensasse que vou
explodir. Eu amo aquele homem de todo coração,
mas ele está me levando à loucura.
— Sabe que ele faria qualquer coisa por você. O
olhar da irmã se suavizou.
— Sim, eu sei. Sou a mulher mais afortunada do
mundo. Mas vim na esperança de encontrar você.
Hoje foi um dia difícil, e sei que amanhã será pior.
— Amanhã Deilos será julgado em tribunal
aberto. Aos olhos de todos que quiserem
comparecer.
O homem que quase lograra matá-lo e que havia
cometido inúmeros outros crimes, por fim, teria de
encarar a Justiça. Seria difícil, mas também
necessário para o bem de Akora. Só depois que
aquilo fosse feito, de acordo com a lei, as pessoas
saberiam que estavam de fato seguras.
— Amanhã — começou Kassandra num tom
gentil, — você relembrará de tudo o que aconteceu,
até mesmo reviverá o atentado. Estaremos lá para
lhe dar apoio, claro, mas ainda assim, terá de
enfrentar tudo sozinho.
— Estou acostumado à solidão.
Kassandra deixou escapar um suspiro
exasperado. Todos na família sabiam que ser rei
significava estar isolado.
— Algo que eu. nós. esperávamos que mudasse
agora.
Atreus parou abruptamente para encará-la. Uma
possibilidade repentina lhe ocorreu e, com ela, um
genuíno sobressalto.
— Mamãe a mandou me procurar?
— Não — assegurou-lhe Kassandra enquanto ria,
divertida. — Está ocupada com Amélia e com a
espera desta criança que vai nascer, mas não deve
esperar que isso dure muito.
De fato, não poderia. Amava a mãe de todo
coração, mas Phaedra o instava a se casar havia
anos e seus esforços aumentavam mais a cada
irmão que casava antes dele. Se sua mãe tivesse
qualquer indício de que ele já pedira Brianna em
casamento. e que ela estava mais distante de
aceitar do que nunca.
— Gostaria de poder contar com a sua discrição
— disse ele por fim.
— Claro que pode contar, e também com tudo o
que eu puder fazer por você. — Kassandra parou de
repente e colocou a mão sobre o ventre.
— Você está bem? — indagou Atreus de pronto.
— Sim. É que desde que chegamos aqui, esta
criança está fazendo questão de se anunciar. Tem
um chute bastante potente.
— Tenho desejado lhe perguntar o que fê-la
decidir ter essa criança aqui? — indagou ele,
satisfeito pelo fato de a irmã não correr nenhum
risco.
— Ainda não estou certa. Tinha decidido que o
bebê nasceria em Hawkforte. Por falar nisso, é um
menino, tenho quase certeza. Hawkforte será seu lar
e herança, portanto, seria lógico que nascesse lá.
Mas, de repente, há mais ou menos um mês,
comecei a achar que ele deveria nascer aqui.
Atreus anuiu.
— Estive pensando sobre o que disse uma vez.
Que o futuro é feito de infinitos caminhos e cabe a
nós escolhermos qual tomar. Talvez essa criança
tenha escolhas a fazer.
— Talvez. — Kassandra ergueu o olhar para fitá-
lo. — Está tentado me dizer algo?
O pensamento de Atreus voltou às cavernas, ao
templo e ao que uma Vez lhe parecera tão claro,
mas no presente nem tanto.
— Apenas que há infinitos caminhos. Venha,
vamos encontrar Royce antes que ele fique
preocupado com você.
Kassandra o acompanhou, mas não sem antes
olhá-lo de soslaio algumas vezes. Atreus ignorou os
olhares furtivos e seguiu em frente. Por um caminho
que não escolhera, mas que lhe fora imputado e
inescapável.

O julgamento foi retomado na manhã seguinte. A


multidão estava de volta e ainda mais numerosa do
que no dia anterior, já que todos queriam
testemunhar o julgamento do homem, cujos crimes
dos quais o acusavam eram de tamanha
monstruosidade que faziam as pessoas se referir a
eles aos sussurros. Brianna não estava certa de que
Deilos era culpado por tudo o que lhe era imputado,
mas sabia que seria necessário chegar ao pátio cedo
para arranjar um lugar.
Não viu Polônio, porém supôs que Leoni e Marcus
estariam ali. Teria de falar com eles, mais cedo ou
mais tarde, mas ainda não era o momento. Não
enquanto a mágoa por haver sido traída ainda era
pungente.
Atreus apareceu logo depois. Brianna dirigiu-lhe
o olhar, mas logo o desviou para não ser
surpreendida encarando-o. Ele aparentava estar um
pouco mais descansado, contudo sua expressão era
impassível, como se tivesse se recolhido em si
mesmo a fim de se preparar para o que estava por
vir. Tinha a aparência de uma pedra, pensou ela. Os
contornos e feições perfeitamente talhados, mas
desprovidos de vida. Sua humanidade ocultada para
não ser vista.
E como uma pedra, o rei parecia totalmente
inflexível. Brianna sabia que era a intenção de
Atreus julgar com justiça, mas não podia evitar de
imaginar se ele guardava dentro de si qualquer traço
de misericórdia.
Ele se sentou e de imediato a multidão se
mostrou tensa. Rodeado por guardas, um homem foi
guiado para dentro do pátio. Como todos, Brianna se
ergueu para obter melhor visão dele. Seria Deilos?
Estava longe de ser uma figura cativante. Tinha
estatura menor do que a maioria dos homens
akoreanos e era tão magro quanto um cão de
corrida. As feições eram pontiagudas e estreitas,
como o restante do corpo. Não demonstrava
qualquer sinal de medo, mas os olhos se moviam
constantemente pela assembléia. Quando se
aproximou do estrado, exibiu um sorriso de desdém
e ergueu um braço.
Sem mão, pois o braço direito terminava num
coto.
Então a história que Brianna ouvira sobre aquele
homem era real. Enquanto Atreus estava entre a
vida e a morte, Royce, o homem que os akoreanos
chamavam de lorde Hawk, havia caçado Deilos com
o claro propósito de matá-lo. Tanto pela ameaça que
fizera à princesa Kassandra quanto pelo mal que
fizera ao próprio lorde Hawk, quando o mantinha em
cruel cativeiro. Porém, no último momento,
persuadido pela princesa Kassandra, Royce deixara
Deilos viver para ser submetido a julgamento.
Retirara-lhe apenas a mão e a liberdade. Caberia a
Atreus decidir se ele perderia também a vida.
— Salve, rei! — entoou Deilos, desdenhoso. —
Salve, o escolhido governador de Akora! Aqui estou
eu diante do senhor.
Atreus não reagiu de imediato. Inclinou-se para
trás no encosto da cadeira e observou Deilos com
calma.
— Aqui está você, Deilos — disse por fim —, em
tribunal aberto para ouvir as acusações que lhe são
imputadas. Refute as evidências se puder e receba
um julgamento justo. Marcellus. — Gesticulou em
direção ao magistrado, que se aproximou de pronto.
Dessa vez não precisou consultar os apontamentos.
— Deilos, da família Deimatos, as seguintes
acusações lhe são imputadas. Ilegalmente, manteve
Royce, o conde de Hawkforte, e, em seguida, um
estrangeiro em cativeiro cruel sem devida
autoridade. Conspirou para utilizar tal cativeiro com
o intuito de provocar a invasão de Akora por obra do
reino da Grã-Bretanha. Pretendia usar tal invasão
para derrotar a família Atreides e se tornar o rei de
Akora, e, quando fracassou no seu intento,
conspirou para matar o legítimo rei de Akora,
explodindo com pólvora as adjacências do estádio
durante a realização dos jogos, explosão que
resultou em oito mortos e vários feridos. Estas são
as acusações.
Muito antes de terminar, o magistrado tivera de
elevar o tom de voz para ser ouvido acima do
protestos indignados da multidão. Uma grande parte
das acusações era conhecida apenas pelos Atreides
e os conselheiros mais próximos. Brianna sabia do
cativeiro de Royce apenas devido à amizade que a
ligava aos dois casais.
Ante a notícia de que Deilos tentara provocar a
invasão de Akora por um poder estrangeiro, muitos
começaram a berrar, furiosos. Atreus ergueu a mão,
ordenando que se acalmassem, embora o
burburinho de revolta continuasse.
Quando Marcellus terminou, nada podia conter a
multidão. Mulheres e homens indignados gritavam
os próprios julgamentos.
— Traidor!
— Assassino!
— Violador!
— Escória!
Os guardas fizeram um cordão de isolamento,
empurrando a população para trás, mas foi Atreus a
acalmá-la. Ergueu-se num impulso e de pronto
todos se calaram. Suas palavras eram simples,
como ditas a amigos.
— Deilos receberá um julgamento justo que
poderá ser realizado na presença de todos, já que é
de interesse geral. Mas, se continuarem a interferir,
a sessão será transferida para o palácio e apenas
alguns terão permissão para assisti-la.
Quando Atreus voltou a se sentar, a multidão
estava em silêncio. Marcellus deu um passo à frente
de maneira brusca.
— Se assim quiser a corte, a primeira
testemunha será chamada.
Royce se aproximou para descrever, num tom
frio, o que experimentara nas mãos de Deilos.
— Naufraguei, assim como os outros — disse ele
—, na costa de Akora. Deilos e os seus homens me
encontraram. Em vez de me entregar às autoridades
competentes, aprisionaram-me. Fiquei em cativeiro
durante nove meses e me encontrava às portas da
morte quando fui resgatado por minha irmã e o
príncipe Alexandros. Mais tarde soubemos que a
intenção de Deilos era utilizar-se do cativeiro e da
morte de um homem da nobreza britânica para
incitar os ingleses a invadir Akora. Chegou a ir à
Inglaterra com esse propósito e lá se encontrou com
um poderoso nobre que, naquela época, estava mal
orientado o suficiente para acreditar que a Grã-
Bretanha poderia conquistar Akora.
— Deilos retirou meu irmão da cela, onde
estávamos presos todos aqueles meses — contou
Joanna no seu depoimento —, com a intenção de
matá-lo. Apenas a intervenção do príncipe
Alexandros conseguiu impedir que aquilo
acontecesse e que eu não fosse torturada. Ainda
assim, Deilos tentou matar Alex e a mim,
prendendo-nos numa caverna na ilha de Deimatos.
— Deilos admitiu para mim — relatou Kassandra
por seu turno — que acreditava que a invasão
britânica faria nosso povo se voltar contra o rei.
Estava convencido de que o aceitariam como
governador para substituí-lo. Quando seu plano
fracassou, decidiu matar Atreus e, como todos
sabemos, chegou muito perto do seu objetivo.
A multidão, que absorvia cada palavra, se
remexia inquieta e resmungava. Muito do que havia
sido relatado já era sabido, mas escutá-lo em alto e
bom som era assombroso.
Seguiram-se mais seis testemunhas, que
acrescentaram seus depoimentos sobre os atos de
Deilos e suas intenções. Quando o último
testemunho foi concluído, já era meio-dia. Atreus
anunciou um ## interrupção/recanto << recesso,
enviando moças e rapazes para distribuírem
alimentos e bebidas à multidão sedenta e faminta.
Toldos foram erguidos para proteção contra o sol
abrasador. Porém ninguém se mostrava inclinado a
partir. O processo prendia a atenção de todos.
Brianna não partilhava aquela mesma fascinação,
mas não pretendia ficar sozinha com seus
pensamentos. Permaneceu onde estava, esperando
que o ## interrupção/recanto << recesso acabasse.
E, antes que o julgamento fosse retomado, Polônio a
encontrou.
— Bela atuação, não acha?
Ela o fitou de soslaio, franzindo a testa ante a
visão do irmão. Ele parecia não ter dormido e não
havia se barbeado. Os olhos estavam vermelhos e
irados.
— Eu diria que é um julgamento justo — replicou
ela.
— Justo? Como pode dizer isso quando a maioria
das testemunhas são os próprios Atreides?
— Mas eles estão diretamente envolvidos. São
obrigados a testemunhar.
— E acha que estão dizendo a verdade?
— Penso que não têm motivo para mentir.
Porque o fariam? Deilos era um membro do conselho
do rei. Possuía um cargo honorífico. Foi escolha dele
trair tudo o que era seu dever defender.
— Deus, você não entende nada! Não vê que
estão determinados a destruir qualquer um que
discorde deles? Deilos teve coragem de se opor ao
rei. Isso é o que recebeu em troca.
Brianna sentia uma onda de enjôo crescer
enquanto fitava o irmão.
— Como Deilos se ligou a Hélios? O que uniu dois
lados tão diversos?
A expressão de Polônio se fechou.
— O que a faz pensar que eu saberia?
— O fato de ser um membro de Hélios que
parece simpatizar com Deilos.
— Estou apenas sendo justo. Deveria tentar fazer
o mesmo. Abra seus olhos!
Era o que Brianna havia feito, e o que viu a
aborreceu profundamente. O testemunho, no dia
anterior, contra os quatros suspeitos deixara poucos
questionamentos sobre o envolvimento deles.
Quanto a Deilos, não havia dúvidas de que era
culpado. Se Polônio estivesse envolvido com um
homem como aquele.
— Voltará em breve para Leios com nossos pais?
— indagou ela.
O irmão não respondeu, mas Brianna não
esperava que o fizesse. Atreus e os demais estavam
retornando para ocupar seus lugares na audiência. O
julgamento iria reiniciar.
Capítulo IV

— Akoreanos! — gritou Deilos. — Escutem-me! —


A promotoria concluíra sua explanação. Era a vez de
Deilos apresentar a própria defesa, mas havia
aberto mão de testemunhas. Em vez disso solicitou
o direito de se dirigir à corte e aos presentes. Ele se
encontrava de pé no centro do pátio, o braço
estendido como a chamar atenção de todos para o
membro mutilado. Sua voz era alta e profunda.
Brianna achou difícil ignorá-la e imaginou se aquilo
não era parte do segredo da influência de Deilos em
algumas pessoas. Polônio se inclinara para a frente
no seu assento, atento a cada palavra. Não era o
único. A multidão estava tão silenciosa quanto no
momento em que Atreus ordenara que se
acalmasse. Deilos desfrutava de toda a atenção.
— Fui difamado diante de todos. Foi dito que
procurei prejudicar Akora. Nenhuma acusação ou
insulto poderia ferir tão fundo meu coração. Eu amo
Akora. Minha intenção sempre foi protegê-la. —
Alguns dentre a multidão zombaram do comentário,
mas a maioria se manteve em silêncio, escutando.
— Minha família se orgulha de ter sua linhagem
ligada aos primórdios de Akora, ao tempo em que os
Atreides tomaram o poder. Mantiveram-no até os
dias de hoje, enquanto nós os servimos, geração
após geração, serenos e diligentes, sempre a serviço
do povo de Akora, de maneira abnegada.
As zombarias recomeçaram, porém em menor
intensidade e cessaram rapidamente.
— Houve momentos no passado em que meus
ancestrais ficaram preocupados com os rumos que
os Atreides haviam tomado para nos guiar. Com o
motivo pelo qual nossos costumes antigos não
estavam sendo respeitados. Com o modo como o
papel adequado da mulher na nossa sociedade se
transformou numa piada que ridicularizava acordos
sagrados. Ao constatarem que o restante do mundo,
um mundo pelo qual viajei e posso lhes garantir sua
falta de valores, conseguiu interferir intensamente
no nosso. Porém selamos nossos lábios. Nunca nos
esquecemos de que éramos servidores, mas digo-
lhes: os Atreides há muito esqueceram o que
significa isso. Não servem Akora. Procuram apenas
governá-la!
Aquilo pareceu indignar a multidão, que gritava
negativas, mas entre elas havia os poucos que
expressavam concordância, incluindo Polônio.
— Neste momento, encontro-me diante de vocês
como acusado — continuou Deilos. — E para vocês,
meu povo, confessarei. Sou culpado? Sim, culpado
de amar Akora, de servi-la, de estar disposto a dar
meu sangue por Akora!
Dessa vez houve mais ovação. Todavia, a grande
maioria se encontrava em silêncio, claramente
surpresa pela franca admissão do réu.
— Coloquei os lordes estrangeiros em cativeiro?
Sim! Quem é esse homem que se fez membro da
família Atreides através do casamento? no seu país,
é o mais confiável conselheiro do seu rei,
encarregado por ele para conduzir missões que têm
como objetivo aumentar o poder da Grã-Bretanha.
No momento, encontra-se sentado entre nós,
próximo aos ouvidos do rei e capaz de. influenciá-lo
em questões que podem prejudicar Akora!
Kassandra se ergueu num impulso, parecendo
disposta a acabar com Deilos sozinha, mas Royce a
deteve, puxando-a com suavidade e a fazendo
sentar.
— Porque não o entreguei diretamente às
autoridades? Porque, entristeço-me em dizer, na
época já não confiava neles para fazer o que era
certo. Os estrangeiros poderiam ter me dito o
motivo real da sua vinda, mas ele não o faria.
— Ele está mentindo — manifestou-se Brianna. —
Royce nunca teve intenção de prejudicar Akora.
— É isso o que eles a levaram a pensar —
retrucou o irmão.
Ela o fitou, exasperada, enquanto Deilos
prosseguia:
— Alegam que tentei provocar uma invasão de
Akora por poderes estrangeiros. Pois digo que eles
sabiam que os britânicos pretendiam invadir nosso
país e nada estava sendo feito para impedi-los. Mas
eu. fui até a Grã-Bretanha e o que descobri me
encheu de temor. Retornei, sabendo que atitudes
drásticas deveriam ser tomadas para que Akora não
caísse no poder dos estrangeiros.
— Mentiras! — sussurrou Brianna, mas dessa vez
Polônio não a ouviu.
— Pensem sobre isso, meus queridos akoreanos!
Dentro de pouquíssirrio tempo poderemos viver
numa Akora esmagada sob as botas de um invasor
estrangeiro. Pelo menos aqueles que permanecerem
vivos, e quantos seriam? Afinal, os verdadeiros
akoreanos não lutariam para manter nossa terra
livre? E quanto às nossas crianças? Quantas delas
morreriam ou viveriam escravas? E nossos templos
não serão queimados, nossos lares, destruídos, a
herança de que nos orgulhamos, arrasada e sem
esperança de ser recuperada? — Deilos silenciou
durante um momento, olhou a sua volta. Era um
exímio orador, e a multidão começava a segui-lo,
hesitante ante o cenário de horror que lhe era
apresentado. — Poderia lhes contar os esforços que
fiz para fazer o rei atentar para os perigos do
caminho pelo qual estava enveredando, mas isso iria
apenas os irritar e desanimar. Volta e meia eu era
repelido, sendo-me negada a oportunidade de falar
com o rei, que preferia gastar seu tempo em
consultas com o irmão, Kyril Alexandros, o qual,
como todos bem sabem, é casado com uma inglesa
originária da mesma família que serve muito bem
aos interesses britânicos. Desesperei-me,
akoreanos, e não lhes digo isso com orgulho, mas
não posso faltar com a verdade. E no meu
desespero, concebi um plano também desesperado.
Pensei em assustar o rei, para fazê-lo sentir na pele
os horrores que uma invasão traria a Akora. Nunca
tive intenção de matá-lo, mas. Deus! Sou apenas
um homem e, portanto, passível de cometer erros
como todos. O que deveria ter sido apenas uma
pequena explosão, foi, infelizmente, uma tragédia.
Pessoas inocentes morreram. Podemos chamá-las
de baixas numa guerra que salvou Akora de um
desastre maior.
— Isso é desprezível! — exclamou Brianna. —
Como ele ousa usar tais mortes em benefício
próprio?
— Fique quieta! — admoestou-a Polônio, com os
ouvidos atentos às palavras do réu.
Brianna não suportava ouvir mais nada. Ergueu-
se rapidamente, abriu caminho entre a multidão e
correu para o palácio, consciente da quietude da
multidão atrás de si e a do som da voz de Deilos,
vibrando mais forte e confiante a cada instante.

***
Ela estava preocupada. Atreus podia sentir. Se
fosse livre o suficiente, a teria seguido sem hesitar.
Não importava o que se interpunha entre ambos,
ainda se achava no direito de confortá-la e protegê-
la.
A questão é que não era um homem livre e
nunca o seria. O dever exigia que permanecesse ali
e escutasse as fanfarrices de Deilos.
O homem possuía o dom da oratória, tinha de
reconhecer, mas parte dele provinha da prática da
própria profissão. Quando fazia parte do conselho,
Deilos discursava com grande eloquência. No
momento, alegava ter sido ignorado, mas aquilo,
como todo o resto, não passava de uma mentira.
E Deilos fazia soar como verdadeiro. Para todos
que não estivessem diretamente envolvidos nos
eventos do ano anterior, o cenário era crível e talvez
persuasivo.
As pessoas o escutavam. Muitos franziam o
cenho e meneavam a cabeça em negativa, mas, de
qualquer forma, prestavam atenção.
— Paguei um preço alto pelas minhas ações —
continuava Deilos, erguendo o braço que terminava
num coto para que todos o vissem. — Por elas, fui
mutilado. Essa é a justiça dos Atreides, meus
amigos. Então que seja. Aceitei o preço que paguei
e, juro-lhes, pagaria um ainda maior, até mesma
com minha própria vida. Tudo o que peço e quero é
a segurança de Akora!
Deilos deixou cair o braço ao lado do corpo e
baixou a cabeça: a imagem fidedigna de um homem
leal a suas convicções e destemido diante de todas
as adversidades.
A multidão permaneceu em silêncio. Não houve
aplausos, embora Atreus pudesse identificar alguns
que se mostravam bastante inclinados a fazê-lo. A
grande maioria parecia simplesmente preocupada e
abismada.
Atreus se ergueu e todos os olhos se fixaram nele
com grande alívio. Não havia dúvidas de que
esperavam que ele refutasse as alegações de Deilos,
mas ficariam desapontados.
— A sessão está adiada até amanhã de manhã —
anunciou antes de se retirar.
Dentro do palácio, parou por um instante e se
forçou a respirar fundo. O simples esforço de
permanecer sentado e escutar Deilos levara seu
autocontrole ao limite. Era um artista, bem como
um rei, mas também era um guerreiro, e aquela
parte da sua natureza fora instada a acabar com
Deilos naquele momento. A tentação de traspassá-lo
com uma espada e vê-lo sangrar até a morte havia
sido quase irresistível. Royce dissera-lhe uma vez
que Deilos precisava ser eliminado, e ele não via
nada que refutasse tal afirmação, exceto que para o
bem de Akora, era necessário deixá-lo vivo, julgá-lo
e dar ao povo uma demonstração de justiça.
O mesmo povo que escutara Deilos.
Exasperado, Atreus meneou a cabeça. Devia
deixar de lado aqueles pensamentos e não se sentir
desapontado com pessoas, exigindo delas o que não
tinham para dar.
Acima de tudo, precisava conservar a fé. Havia
momentos em que a fé era como as águas geladas
de um ##ribeiro/rio<< córrego para uma garganta
seca: uma bênção bem-vinda que se recebia sem
questionamentos. Mas, noutras ocasiões, a clareza
da fé era mais elusiva, ainda que a sua presença
constante e inabalável fosse sentida.
Deilos incitava tal ressentimento sem pelo menos
perceber. Ou talvez percebesse, já que parecia
possuir um gênio diabólico. Sabia exatamente como
manusear as alavancas da dúvida e do medo a seu
favor.
Ainda assim, todas as suas tramas, desvairadas
conspirações e esforços extremos não o haviam
levado à gloria que buscava, mas ao precipício da
derrota. Seria bom, concluiu, não perder a
consciência daquilo.
Em breve a família o seguiria, ansiosa por
conversar, o que ele compreendia perfeitamente. No
entanto não estava com paciência para fazê-lo no
momento. Cruzou os corredores sombrios, deixando
que a calma e a frieza retornassem.
Nunca seria livre. Tal pensamento havia lhe
ocorrido antes, mas não com tanta nitidez.
Nunca. Não enquanto vivesse. E depois? Talvez
até mesmo após a morte. Jamais refletira tanto
sobre liberdade. O dever sempre fora sua principal
preocupação. No presente, porém, não conseguia
ocupar a mente com outra coisa além de Brianna.
Precisava vê-la. Diabos! Necessitava mais do que
isso, mas se contentaria com o que pudesse ter.
Tudo o que tinha a fazer era encontrá-la.
Ela não estava nos seus aposentos. Por um
instante, considerou a possibilidade de Brianna ter
retornado às cavernas, mas a descartou de
imediato. Ela não procuraria o lugar onde havia sido
confrontada com tão desagradável descoberta.
Aonde poderia ter ido? Para a Inglaterra, pensou
Atreus. Então, recordou-se de que Brianna tinha
adorado alimentar as aves do jardim na casa de
Joanna e Alex, em Londres. Havia muitas aves por
toda Akora, mas no palácio existia um lugar em
particular onde elas costumavam pousar.
E foi para lá que se dirigiu. O pequeno jardim
abrigado do lado externo de uma das paredes do
palácio, com vista para o porto. Era aberto a
qualquer um que desejasse visitá-lo, mas apesar de
datar de mais de cem anos, poucos pareciam
prestar atenção a ele.
Brianna estava sentada num banco de pedra ao
lado de uma pequena fonte, cujas águas caíam
dentro de um laguinho repleto de peixes. Atreus
sorriu ao vê-la fazer o que imaginara.
Até mesmo os pombos, com seu arruinar
lamentoso, eram persuadidos a se juntar aos
agitados melros, tordos e aos gaviões de penugem
brilhante que eram nativos de Akora.
Brianna ergueu o olhar quando Atreus entrou o
jardim e ficou visivelmente tensa. Por um instante,
ele pensou que ela fosse se levantar e ir embora,
mas permaneceu sentada. Em seguida recomeçou a
alimentar as aves.
Ele se sentou ao seu lado, porém não tão perto
para tocá-la. Agora que a tinha encontrado, não
sabia ao certo o que dizer dentre as centenas de
possibilidades que pululavam na sua mente. Por fim,
optou por ir devagar e escolheu um assunto quase
impessoal.
— O que achou do julgamento?
Brianna ergueu o olhar para fitá-lo, parecendo
indecisa sobre o que lhe dizer. Ele a viu inspirar
fundo e expirar devagar.
— Como você disse que seria. Justo.
O fato de ela haver respondido e soado
concordante era uma vitória maior do que Atreus
esperara.
— E Deilos, o que pensa dele? — perguntou,
cauteloso.
— Eu me retirei antes que ele acabasse de falar,
mas ouvi o suficiente. É como uma cobra rastejando
na grama, inteligente, persuasivo e perigoso.
— Deilos tem o dom da oratória. Brianna franziu
o cenho.
— Ele mente bem. O que mais me impressionou
é que o povo o ouviu com atenção.
— É importante para eles ouvir o que Deilos tem
a dizer.
— Mesmo que estejam sendo manipulados por
ele?
— Ainda assim — replicou Atreus. — Embora eu
pense não existir essa possibilidade.
Uma sombra perpassou os olhos verdes.
— Como pode estar tão seguro quanto a isso?
— Quando um homem discursa bem como Deilos,
lança vários encantamentos. Durante um tempo, as
pessoas podem parecer sob o efeito deles. Mas ao
voltarem as suas rotinas, vêem tudo por um prisma
diferente. Deilos se apresentou diante de todos e
acusou minha família e a mim em particular de trair
Akora. Tentou fazer parecer que cedemos à
influência da Grã-Bretanha a ponto de permitir que
Akora fosse conquistada. O que é um absurdo. Além
disso, tentou passar o conceito de que é admissível
matar simplesmente por não sermos escutados.
Disse que tudo o que lhe importa é a segurança de
Akora, mas foi ele a violar as leis, ameaçar a
estabilidade e colocar a todos em risco.
— E acha que o povo vai chegar a essa conclusão
sozinho?
— Estou contando com isso.
— Deposita muita confiança em homens e
mulheres simplórios.
— Tenho de fazê-lo — retrucou Atreus. — Não há
outra forma de governar. Sem fé na bondade das
pessoas simples, eu teria de lançar mão da tirania
para forçá-las a agir como acho que deveriam. Esta
nunca foi a nossa filosofia.
Brianna atirou o último punhado de migalhas às
aves e esfregou as mãos para limpá-las.
— Deve saber que Deilos tem seguidores. Alguns
estão no julgamento.
Atreus anuiu.
— Deve haver um pouco mais agora. Aqueles que
não conseguiram enxergar através da névoa ilusória
do seu discurso.
— Eles podem ser perigosos.
— Está preocupada comigo?
— Eu. — Brianna o encarou. — Sim, estou
preocupada. Como não poderia estar? Eu me
preocuparia com qualquer pessoa que estivesse
numa situação como essa. Mas, Atreus, procure
entender. Viajei para a Inglaterra com o intuito de
descobrir a criança que fui. E isso não quer dizer que
estivesse rejeitando a pessoa que me tornei. Tenho
orgulho de ser akoreana. Ser lady Brianna Wilcox
não muda isso, mas descobrir a verdade sobre a
morte dos meus pais sim.
— Pensei que ficaria aliviada por saber que não
teve culpa. Foi por isso que lhe contei.
— Talvez algum dia me sinta aliviada, mas no
momento, tudo o que consigo enxergar é que vivi na
mentira por dezasseis anos. Aqueles que amei e em
quem confiei me parecem agora estranhos, como se
nunca os tivesse conhecido.
— Não percebe que o que fizemos foi para o seu
bem?
— Não percebe que mentir não é correto? —
contrapôs Brianna. — Que as feridas advindas da
mentira podem ser demasiado profundas para ser
curadas?
O sol rumava para o oeste. À luz dourada, os
reflexos ruivos dos cabelos de Brianna brilhavam.
Atreus se ergueu, baixando o olhar para fitar as
feições que esculpira com tanta exatidão quando ela
era para ele apenas uma visão. Embora queimasse
de desejo de tomá-la nos braços, foi apenas sua voz
profunda que a tocou.
— Não são as mentiras que a aborrecem, e sim a
verdade. O fato de o poder de Akora ser real e ter
de ser protegido até mesmo enquanto nos protege:
O fato de eu e você estarmos destinados a ser
marido e mulher. A evidência de que não há
nenhum espectro de culpa pairando sobre você para
assombrá-la com um medo injusto e infundado.
Brianna se levantou, esbelta e magnífica, com a
cabeça erguida num gesto de desafio.
— Sim. Vamos falar sobre verdade. A verdade é
que você deseja que eu esqueça como e porque
meus pais morreram. Que deixe tudo isso de lado e
sirva à mesma nação que lhes tirou a vida. Você
poderia fazer isso, Atreus? Se as nossas posições
estivessem trocadas e fossem os seus entes
queridos que tivessem morrido na mão dos
britânicos, conseguiria relevar tudo isso, amar e
servir a Grã-Bretanha?
Ele hesitou e, no silêncio que se seguiu, Brianna
percebeu a verdade que não podia ser negada.
— Não pode se imaginar fazendo isso — declarou
ela por fim. — Talvez nunca tenha pensado por esse
aspecto. Ainda assim, espera que eu o faça.
— Eu pedi que o fizesse — corrigiu Atreus,
estendendo a mão para lhe tocar a face, — Talvez
tenha pedido muito.
Afastou a mão e partiu, caminhando pelo jardim
iluminado pelo sol poente, de volta ao labirinto do
palácio, que o envolveu com seu impiedoso abraço.
Depois que o rei deixou o jardim, Brianna
permaneceu por mais algum tempo, sentada num
banco ao lado da fonte. A distância, ouvia o
gorgolejar da água e o cantar das aves noturnas,
mas o cenário bucólico lhe passava despercebido.
Sua mente voltava, inexorável, para Atreus. Pois,
enfim, era aquele o rumo constante dos seus
pensamentos desde que o vira sair do navio que o
tinha levado à Inglaterra.
Atreus havia falado sobre verdades e a desafiado
a aceitá-las, mas, ao mesmo tempo, afastara-se
como se a estivesse libertando.
A questão era: desejava ser libertada? Onde
existia o amor, a liberdade seria possível?
Amava-o verdadeiramente, não tinha dúvidas.
Ainda mais depois de tomar conhecimento da
enormidade que envolvia ser o escolhido. A essência
de Atreus estava interligada de forma intrínseca com
a nação à qual servia. Ambas nunca poderiam ser
separadas.
Seria ela capaz de amar Akora como o fizera
antes? Poderia viver aquele amor todos os dias pelo
resto da sua vida? A despeito da morte dos pais, das
mentiras e de toda a dor?
Enquanto se julgara responsável pela morte de
Delphine e Edward, tinha sido incapaz de sofrer por
eles de maneira apropriada. Mas, no presente,
podia, e a dor que sentia era aguda e recente.
Baixou a cabeça e observou as lágrimas caírem
sobre as próprias mãos.
No dia seguinte, Atreus proferiria a sentença.
Condenaria Deilos à morte? Era um guerreiro
soberbo. Não duvidava de que ele fosse capaz de
matar em batalha, porém mandar um homem para
a morte por execução era outra questão. Seria ele
capaz de fazer aquilo?
A morte assombrara a ambos. As que
aconteceram e as que estavam por vir. Não havia
nada que pudesse ser feito quanto ao passado, mas
o futuro não devia ser encarado sozinho.
Ergueu-se e enxugou as lágrimas. Enquanto os
últimos raios de luz do dia se extinguiam e as
estrelas reivindicavam o céu, ela deixou o jardim.
Atreus devia ter procurado a reclusão e, nesse
caso, por certo, estaria recolhido no seu estúdio. Por
mais que ele amasse a família, Brianna duvidava de
que estivesse disposto a desfrutar a companhia dela
naquele momento. Talvez tivesse procurado o
refúgio dos próprios aposentos, mas ela achava
pouco provável.
Dirigiu-se aos seus aposentos, vestiu uma túnica
limpa e escovou os cabelos. Jogou uma echarpe de
seda sobre a cabeça e saiu.
Demorou-se de propósito no caminho, andando
vagarosamente e passando pelas janelas altas e
arqueadas até alcançar o pátio. Lá, fez uma pausa
para inspirar o ar da noite que trazia consigo uma
miríade de aromas. Da madeira queimando nas
lareiras da cidade que se estendia baixo, das flores e
do jasmim que enchiam os arbustos encostados nas
paredes do palácio, e do mar.
Uma suave brisa fazia prazerosas carícias no seu
rosto. Brianna evitou as amplas salas de cerimonial
e optou por uma escada estreita, conhecida apenas
pelos residentes do palácio, fossem criados, guardas
ou os próprios Atreides. Os degraus levavam ao
pórtico que dava vista para o pátio, próximo à
escada para o telhado.
Pouco depois de chegar ao palácio, ela descobrira
aquele lugar. Era como um mundo à parte,
estendendo-se sobre os vários hectares do palácio,
plantado com seu próprio jardim, cruzado por
exclusivos caminhos e que, na maioria das vezes,
era o modo mais eficiente de ir de um lugar para
outro. Ostentava ainda um observatório, onde as
estrelas eram estudas havia séculos.
O telhado constituía a desculpa perfeita para ela
se deter um pouco mais, pôr os pensamentos em
ordem e reunir a coragem de que precisava.
No entanto, antes de seguir em frente, avistou
um homem cruzando o pátio. Parecia apressado e
um tanto furtivo. Quando ele saiu das sombras,
Brianna conseguiu divisar-lhe a face.
Polônio.
Vira-o pela última vez durante o julgamento. O
que estaria fazendo ali àquela hora? Curiosa e um
tanto preocupada, mudou de direção e resolveu
seguir o irmão.
Ele caminhava rapidamente, o que a obrigou a
apressar o passo para não perdê-lo de vista. Quando
virou uma das esquinas do palácio, Polônio
desapareceu por uma porta estreita. Brianna se
precipitou atrás dele, mas, ao transpor a porta, não
avistou sinal do irmão. Encontrava-se numa parte
da centenária construção que não conhecia. Um
longo corredor se estendia a sua frente e se
ramificava em várias passagens. Estacou e apurou
os ouvidos, porém não escutava nenhum som que
denunciasse o paradeiro de Polônio.
Enquanto caminhava ao longo do corredor, ela
espiava cada passagem sem lograr êxito. O caminho
foi dar num amplo aposento, com telhado de pedra
alto e arqueado. No centro, o solo sofria uma
depressão, onde havia bancos de pedra com anéis
de metal. Pareciam destinados a prender algo. ou
alguém? De repente, um murmúrio de vozes vindas
de algum lugar além do aposento de pedra fê-la
parar.
Ao se aproximar, distinguiu o som de vozes
masculinas, somadas a gemidos lancinantes de dor.
Caminhando um pouco mais, deparou com uma
fileira de celas ao longo de uma parede de pedra,
isoladas por grades. Entre elas, existia um posto de
guarda. Era lá que três guerreiros akoreanos
conversavam.
Naquele instante, um dos guardas correu na
direção oposta de onde Brianna se encontrava, e os
outros dois se viraram para ver o que estava
acontecendo nas celas. Ela os seguiu e logo desejou
não tê-lo feito. Cada cela abrigava um ocupante. De
pronto, reconheceu os homens que haviam sido
julgados no dia anterior. No extremo oposto,
encontrava-se Deilos. Todos pareciam bastante
doentes. Debatiam-se no chão, gemiam de dor e
vomitavam.
Deixando de lado a cautela, ela deu um passo à
frente. Não tinha nenhum dote de curandeira, mas
aprendera alguma coisa com tia Helena, e aqueles
homens pareciam ter sido envenenados.
— Lady — chamou um dos guardas ao notar sua
presença. — Não deveria estar aqui.
— Mandou buscar socorro?
— Sim, mas. — O guarda se calou quando
Brianna retirou a echarpe da cabeça, revelando sua
identidade. De imediato, ele se inclinou numa
reverência. Era conhecida com uma das que
cuidaram do rei e sua presença não devia ser
questionada. — Lady Brianna, sem dúvida sua ajuda
seria bem-vinda.
— Abra as portas das celas, por favor. — E
quando percebeu o guarda hesitar: — Não acredita
que um homem nessas condições oferecerá qualquer
resistência, não é?
O guarda pareceu concordar e se apressou em
obedecer.
— Quando isso começou? — indagou Brianna,
curvando-se sobre um dos prisioneiros.
O homem não apresentava qualquer sinal de
febre, embora revirasse os olhos e gemesse
incessantemente.
— Há poucos minutos, lady — informou um dos
guardas.
— Quando comeram pela última vez?
— Há meia hora. Eles receberam pão, assado de
cordeiro, queijo e vinho.
Brianna se ergueu e fitou os guardas.
— Vocês comeram a mesma coisa?
— Comeremos quando deixarmos o turno.
— Não há dúvida de que havia algo errado na
refeição que foi servida a eles.
Mal Brianna acabou de pronunciar a frase e o
terceiro guarda se aproximou, trazendo consigo tia
Helena. Uma mulher alta e de meia-idade, cujos
traços marcantes eram emoldurados por cabelos
grisalhos.
A tia dirigiu-se a ela.
— É bom que esteja aqui. Precisarei da sua
ajuda. — E voltando-se para os guardas: — Estes
homens têm de ser transferidos para a enfermaria.
— Lady, eles são prisioneiros — argumentou um
dos guardas.
— E doentes! — rebateu Helena de modo brusco.
— Portanto, têm direito a um tratamento apropriado
que eu não posso lhes dispensar aqui. — E olhando
ao redor: — Providencie para que todo este local
seja limpo depois que eles forem removidos. Pedirei
que me enviem macas.
Dentro de pouco tempo, vários ajudantes de
Helena apareceram trazendo as maças, onde os
cinco homens foram colocados e levados à ala
médica, escoltados pelos guardas.
No caminho, Brianna contou à tia que os
prisioneiros haviam passado mal depois de comer, o
que muito as admirava, pois não havia relatos de
intoxicação alimentar em Akora.
Ainda assim, os homens se encontravam
bastante doentes, vomitando e tremendo enquanto
eram acomodados nos leitos da ala médica do
palácio, uma série de salas destinadas ao uso de
Helena, cujos aposentos ficavam próximos dali.
No momento, as doze camas da ala médica se
encontravam vazias. No ânsia de auxiliar Helena no
tratamento dos doentes, Brianna não percebeu que
havia algo errado. Só quando ouviu uma pancada e,
ao virar-se, ver um dos guardas cair no chão, é que
se deu conta do que estava por vir.
No mesmo instante, outro guarda foi nocauteado.
Helena teve a presença de espírito de correr até um
dos armários onde guardava seus instrumentos
cirúrgicos, alguns bastante afiados. Mas antes que
conseguisse alcançá-lo, Polônio emergiu das
sombras e a dominou.
— Não faça isso! Não quero machucá-la.
— Você!
Helena estacou, estupefata, porém não mais do
que Brianna. Mesmo suspeitando de que o irmão
estivesse no caminho errado, não pôde evitar o
espanto.
— Polônio, o que está.
Ele não lhe respondeu, mas não era necessário. A
sala se encontrava repleta de homens,
aproximadamente uma dúzia. Alguns se incumbiam
dos guardas, enquanto outros ajudavam Deilos e os
demais prisioneiros.
— Rápido! — Ofegou Deilos, erguendo-se com
dificuldade e aceitando um copo de água que um
dos homens lhe oferecia.
— O que utilizou? — indagou Helena.
— Emetina. Do seu suprimento.
— Arriscou-se — retrucou a tia de Brianna num
tom calmo. — Algumas gotas a mais e poderia
morrer.
— Com a minha vida por um fio como se
encontra, não me preocupei:
E quanto à vida dos demais? perguntou-se
Brianna. Acreditara na culpa daqueles homens ao
ouvir as evidências relatadas no julgamento do dia
anterior. E a disposição que eles mostravam em
seguir Deilos provava que estava certa, mas não
pensara que Atreus os sentenciaria à morte.
— Funcionou — interveio Polônio. — Está livre.
— Ainda não — disse Deilos, empunhando a
espada que um dos homens lhe entregara. — Traga-
a connosco — ordenou, gesticulando em direção a
Brianna. — E mate o restante.
— Matar? — Polônio ficou tenso. Toda a
##arrogância/orgulho/vaidade/convencido<<
empáfia que exibia se extinguiu de pronto. — Deus!
Os guardas estão inconscientes, e minha tia.
Deilos se voltou para encará-lo.
— Sua tia dará o alarme em breve. Não temos
necessidade dela, mas esta aqui. — Apontou para
Brianna. — Poderá nos ser útil. — E ante a hesitação
de Polônio: — Ou você está comigo, ou contra mim.
É hora de decidir.
— Não! — gritou Brianna, enquanto um dos
homens a arrastava consigo. A última visão que teve
foi a de Polônio se aproximando da tia com a mão
no cabo da espada.
Brianna não podia crer no que estava
acontecendo. A tia. os outros guardas. sendo mortos
pelas mãos do seu irmão!
Ainda se debatendo, foi arrastada ao longo de
um corredor em direção à escada. Quando
conseguiu libertar um dos braços, arremessou o
punho fechado contra o queixo do seu algoz. O
homem xingou, irritado, e bateu com a cabeça de
Brianna contra a parede.
No mesmo instante a escuridão a
##engasgou/sufucou<<engolfou.

— Atreus?
Atreus desviou o olhar do bloco maciço de
quartzo rosa que Brianna lhe dera de presente e
deparou com Alex e Royce parados à porta do
estúdio.
Antes que eles lhe dissessem qualquer coisa,
sabia que algo grave havia acontecido.
— O que houve? — indagou, aproximando-se dos
dois. Ambos estavam armados de espadas, e Alex
empunhava a de Atreus, que a tomou, embainhou e
ouviu o que eles tinham a lhe dizer.
— Não temos certeza do que aconteceu —
começou Alex. — Mas os cinco prisioneiros
escaparam. Há vômito por todas as celas. Ao que
parece, foram levados à ala médica. Helena, seus
ajudantes e os guardas.
Atreus escutava, certo de que o pior ainda estava
por vir.
— Brianna não se encontra nos seus aposentos —
acrescentou Royce ao final do relato de Alex. — O
que pode não significar nada ou. muito.
— O que mais?
Os dois homens se entreolharam.
— O irmão de Brianna, Polônio, foi visto há pouco
percorrendo o corredor próximo ao calabouço. O que
também pode não significar nada.
— Para onde acham que ele irá? — indagou
Atreus, enquanto deixavam, apressados, o estúdio.
— Para Deimatos — sugeriu Royce. — A ilha que
pertence à família de Deilos há gerações. Polônio a
utilizou antes.
— Sem sucesso — rebateu Atreus. — Por duas
vezes. Além disso, ele sabe que era o primeiro lugar
onde iríamos procurá-lo. Deilos não se refugiará lá.
Alex assentiu.
— Então, para onde? — Alex indagou.
— A questão é: o que ele planea? — retrucou
Royce. — Apenas escapar? Voltar e lutar algum dia?
— Aquele homem é insano. Não há lógica nas
suas atitudes.
— Sempre há uma lógica — rebateu o rei. —
Mesmo nas profundezas da loucura. Uma lógica
distorcida, mas ainda assim, uma lógica.
— Então, temos de pensar como ele — sugeriu
Royce num tom calmo. — Prever o que Deilos
deseja.
Os três transpuseram as portas que levavam ao
pátio. Alex e Royce haviam dado ordens antes de
irem procurá-lo. O mais forte e bravo exército de
Akora os aguardava. Homens aos quais Atreus
confiaria a própria vida.
Quando os soldados o avistaram, gritaram em
ovação. As vozes se elevando acima do vento que
começava a soprar com inusitada violência.

Brianna sentiu uma humidade fria sob a face.


Moveu-se devagar e, de imediato, deixou escapar
um gemido, quando a dor a atingiu.
— Ela acordou. — Uma voz soou próxima. Sentiu
uma mão virá-la e ergueu o olhar para deparar com
rostos desconhecidos.
— Mas está quase inconsciente — outra voz
masculina, uma que Brianna tinha razões para
temer, respondeu.
O medo era pouco comparado à imensa tristeza
que ela sentia.
— Sente-se — outra voz ordenou. E essa ela
reconheceu. Polônio. Seu coração pareceu perder
uma batida. Seu irmão. Se ele se encontrava ali,
nem tudo estava perdido.
— Polônio.
— Não fale. Apenas sente-se. — Brianna sentiu o
braço forte deslizar em volta dos seus ombros,
ajudando-a a se erguer. — Beba isto.
A água era gelada e ela a tomou, ávida. Em
seguida, lembrou-se de Deilos bebendo um copo de
água e recordou-se também de ele vomitar.
— Oh, Polônio, por quê? — Brianna conseguia
apenas sussurrar, tão grande era a dor que sentia.
— Fiz o que tinha de fazer.
E então, ela caiu em prantos, detestando as
lágrimas que brotavam, incessantes, mas incapaz de
impedi-las. A liberdade de Deilos traria terríveis
consequências para o povo de Akora. Polônio a
puxou contra o peito, abafando-lhe os soluços.
— Não tenha medo. Não permitirei que Deilos a
machuque.
— Mas você. obedece a ele.
— Eu acredito no que Deilos quer para Akora.
— E o que é? Pelo que ele luta?
— Para manter Akora segura. Longe das invasões
estrangeiras. A parte do restante do mundo.
O irmão estava profundamente enganado.
— E porque deseja que Akora permaneça
isolada? — indagou Brianna.
— Porque o mundo é um lugar cruel. Porque
outro motivo somos treinados para lutar? Os
Atreides querem se tornar parte dele. Tudo o que
temos de raro e precioso não sobreviverá a isso.
A mente de Brianna se voltou ao templo e em
tudo o que sentira lá.
— Akora é mais forte do que pensa, e os
Atreides, mais que todos nós, não fariam nada para
prejudicá-la.
— Mas ele a prejudicou. Akora está furiosa.
— O que está dizendo? Quem colocou isso na sua
cabeça? — Decerto fora Deilos, que costumava
influenciar a mente dos fracos que o seguiam.
— Eu vi com os meus próprios olhos. — De
repente, Polônio ficou tenso e a deitou no chão.
— Com está sua irmã? — perguntou Deilos ao se
aproximar.
— Um pouco melhor, mas ainda tonta. Não
esperava que a machucassem.
— Ela não deveria ter reagido. Sabe o que
acontece quando uma mulher se excede.
— Claro, senhor. Mas pergunto-lhe se seria
necessário a trazermos connosco.
— Preferia tê-la matado como fez com os outros?
— Polônio se calou, mas as mãos se apertaram
contra os braços de Brianna. — Ela ajudou a salvar a
vida de Atreus, o que o fará se sentir na obrigação
de fazer o mesmo por sua irmã.
— Ele o faria por qualquer pessoa — revidou
Brianna num tom firme, apesar da dor de cabeça a
entontecer.
— Cale-se! — ordenou Deilos. — Carregue-a,
Polônio, e se certifique de que ela não nos atrase.
O irmão deslizou o braço pela cintura de Brianna
e a ergueu.
— Consegue caminhar?
— Tenho de conseguir, não é?
— Não devia estar envolvida nisso — sussurrou
Polônio. — O que estava fazendo no calabouço?
— Procurando você.
— Por quê?
— Eu o vi cruzando o pátio. Estava preocupada
com o que estaria fazendo e no que poderia estar
envolvido. — E esboçando um leve sorriso: — Não
poderia ter imaginado algo pior.
— Não espero que entenda. Mas Deilos é a nossa
esperança. Não podíamos cruzar os braços e deixá-
lo morrer.
— Céus! Tem de preservar a vida de um louco
assassino e acabar com a dos outros. — Brianna não
suportava nem sequer pensar no fim de Helena e
dos guardas.
A medida que se aprofundavam nas cavernas, ela
imaginou o quanto poderiam estar próximos do
templo. À luz exígua das tochas, mal podia
enxergar, o que fazia-a perder o senso de direção.
— Polônio. o que está acontecendo? Porque está
tão quente?
— Eu lhe disse, mas você não quis acreditar em
mim.
— Não entendo.
Brianna nunca sentira um calor como aquele.
Emanava das rachaduras no chão sob seus pés.
Uma estranha luz vermelha apareceu a alguma
distância. Ouviu um rugido abafado, fraco a
princípio, mas que se tornou algo como se
estivessem entrando a caverna de um monstro pré-
histórico, talvez um dragão.
— Akora está furiosa — repetiu Polônio, enquanto
a guiava para onde a passagem terminava acima de
uma vasta caverna.
Brianna baixou o olhar e deparou com a boca do
inferno.

Os homens se dispersaram. Alguns ficaram sob o


comando de Alex para vigiar Deimatos, caso Deilos
optasse pelo inesperado, e o restante foi liderado
por Royce para guardar os estreitos dó sul e do
norte, que seguiam para o oceano. Não haveria
como Deilos escapar se procurasse qualquer saída.
— Gostaria de poder ajudar — disse Joanna, que
estava no pátio com Amélia nos braços. — Se eu
pudesse saber onde Brianna se encontra.
— Não quero que se esforce para isso — retrucou
o rei num tom gentil.
— Nunca imaginei que iria desejar prever o
futuro outra vez — manifestou-se Kassandra, que se
postava atrás dela. — Mas se eu pudesse ter apenas
um vislumbre.
— De nada adiantaria — assegurou-lhe Atreus. —
Como disse, há apenas caminhos para um possível
futuro. Nós escolhemos nossos próprios destinos.
Assim como deveria escolher o dele: permanecer
onde estava e esperar por algum sinal do paradeiro
de Deilos ou ir à caça dele.
O palácio estava bem guardado, não devido ao
recente ataque, mas por ser aquela sua condição
por mais de três séculos. Uma tradição que nunca
ninguém aventara mudar.
Guardas se encontravam postados nas muralhas
e nas torres. Os mesmos que haviam informado não
terem visto qualquer sinal de um grupo de homens
deixando o palácio.
Um aviso tinha sido expedido para a cidade e
chegara quando os moradores costumavam cear em
mesas postas nos pátios das suas casas. A busca
tivera início havia pouco tempo e seria possível ter
alguma notícia de Deilos em Ilius, porém, até o
momento, ninguém reportara nada.
O comandante da zona portuária ainda estava
jantando, mas o filho mais velho se mantinha em
vigília e garantira de que nenhuma embarcação
havia deixado o porto.
O vento soprava com força.
Redemoinhos de poeira se levantavam do pátio.
À luz da lua, Atreus podia ver a espuma branca das
ondas bater contra as pedras do cais.
Joanna protegeu a face da filha com as mãos.
— Deveria voltar lá para dentro — aconselhou,
Atreus, acenando para os homens da sua guarda
pessoal, que de pronto se acercaram de Joanna e
Kassandra.
— Isso é necessário? — indagou Kassandra.
— Acho que Deilos ainda se encontra no palácio
— declarou Atreus, segurando a própria espada. —
Não me parece provável que tente atacá-las, mas
quero-as bem protegidas.
— Acha mesmo que ele ainda está aqui? —
perguntou Joanna.
— Sim.
Enquanto as mulheres retornavam sob escolta
para a ala familiar do palácio, Atreus dividia o
remanescente dos seus homens. Enviou alguns às
cavernas, com instruções de protegê-las, outros
foram incumbidos de procurar nas passagens que
davam acesso às praias sob o palácio. E para si,
reservou o lugar onde achava que Deilos mais
gostaria de estar.
Designou seis dos mais capazes homens para
acompanhá-lo e liderou o caminho de volta ao
palácio. Seguiu pelo o labirinto de corredores com
passadas rápidas e em silêncio até alcançar a porta
que levava à escadaria próxima à ala médica. Para
olhos descuidados, os degraus terminavam no que
parecia ser um antigo depósito. Porém, para os mais
bem informados, o que dava a impressão de ser
meras prateleiras de madeira vazias do teto ao
chão, na verdade serviam para obscurecer e ocultar
a extensão da passagem ali existente.
Em circunstâncias normais, as prateleiras de
madeira estariam niveladas com a parede, mas
naquele instante, encontravam-se ligeiramente
entreabertas, o que revelou que os instintos de
Atreus estavam certos.
— Deve haver outros com ele — comentou ele. —
Tentem deixá-los vivos, mas não corram riscos
desnecessários.
— E quanto a Deilos, senhor? — um dos homens
perguntou.
— Ele é meu!
Atreus liderou o caminho, movendo-se rápida e
silenciosamente. A passagem lhe era bastante
familiar. Viera até ali pouco depois de se tornar rei e
a visitava regularmente desde então. Nunca havia
encontrado qualquer sinal de que outra pessoa a
tivesse descoberto e nunca falara sobre ela. Mas
Deilos a conhecia. Uma descoberta através de
registos antigos? Um conhecimento passado por
gerações da sua família? Não importava. Tudo o que
Atreus desejava era encontrá-lo, e a Brianna, antes
que fosse tarde.
Atrás dele, ouvia as exclamações contidas de
surpresa dos seus homens.
— Não quero que comentem sobre isso com
ninguém. Bastou um murmúrio de concordância por
parte dos guardas e Atreus soube que seu segredo
estava a salvo.
Quando alcançaram o final da passagem, o rei
estendeu o olhar à vasta caverna, sentiu o calor
inundá-lo e avistou, muito baixo, o mar de fogo.
— Por aqui — ordenou, imergindo no estreito
caminho que levava à infernal paisagem.

Brianna cambaleou e quase caiu. As pernas


roçando contra as pedras pontiagudas do caminho.
Baixou o olhar e viu manchas de sangue no tecido
branco da túnica. Entorpecida pelo choque e pela
batida da cabeça, não conseguia sentir dor. Era
como se tudo estivesse acontecendo num pesadelo.
Uma parte de si desejava ardentemente acreditar
que poderia acordar a qualquer momento, mas sabia
não ser verdade.
Aquele cenário era a visão do inferno que se
escondia por trás da beleza do Reino Fortificado. A
lembrança que todos os akoreanos partilhavam,
passada de uma geração à outra em lendas e
canções. Conaquilo tudo era real e presente.
Polônio caminhava logo atrás dela.
— Percebe porque Deilos tem de agir?
— Não! — Ofegou Brianna, lutando para se
manter de pé. — O que isso tem a ver com ele?
— Deilos descobriu que o vulcão acordou. Há
outro caminho para este palácio. Um que os Atreides
jamais descobriram. Quando ele percebeu o que
estava acontecendo, constatou que seus mais
terríveis temores eram justificados. Atreus e os
Atreides estão determinados a nos aproximar do
mundo exterior, mas não deveriam fazê-lo. Akora
está furiosa com eles e é por este motivo que tudo
isto está acontecendo.
— Você é um membro de Hélios. Costumava
acreditar que deveríamos ser mais abertos.
— Nunca concordei em ser como o restante do
mundo. Desejava que todos tivéssemos opiniões
próprias sobre nossos destinos em vez de seguir
aquelas determinadas por Atreus. Mas agora vejo
que estava errado. Não há nada a fazer além de
retornar aos costumes antigos, honrá-los e rezar
para que Akora releve.
Alguns dias antes, Brianna diria que estavam
diante de um fenômeno, natural que nada tinha a
ver com a ira de Akora. Contudo, desde que sentira
o poder dentro do templo, sabia que Akora possuía
vida, num sentido amplo e eterno. E, baseado
naquilo, tudo era possível.
— Deilos lhe mostrou isso? Polônio anuiu.
— Aqueles que Deilos julga os melhores para ele
poder contar em tempos de crise gozam da sua
confiança.
— Atreus é o mais indicado a lidar com essa crise
ou qualquer outra. Não vê que é apenas a presunção
exacerbada, a inveja que tem dos Atreides e a
loucura que faz Deilos pensar que é o mais indicado
a liderar Akora?
— Vejo que aquilo que o rei está fazendo é
errado. Destruirá Akora e todos nós!
Brianna meneou a cabeça em desespero. Não
conseguia chamar o irmão à razão, mas tinha de se
preparar o melhor que pudesse para o que estava
por vir.
Deilos caminhava à frente, movendo-se com
rapidez como se o calor e o fogo não o
incomodassem em nada. Os homens que o
acompanhavam não partilhavam o mesmo vigor,
mas o seguiam de qualquer forma.
Polônio lhe dissera que havia outro caminho para
entrar ali, o que significava outra passagem para
fora. A rota de escape de Deilos?
— Não há lugar para onde ele possa ir — disse
Brianna. — Ou onde possa se esconder.
— Deilos estará protegido. Você o viu discursar e
o modo como as pessoas reagem.
— Muito poucas pessoas.
— Não importa. Os puros e fortes serão atraídos
por ele. O movimento de Deilos crescerá. Atreus não
será capaz de esconder esse perigo para sempre.
Quando as pessoas descobrirem, vão se voltar para
Deilos.
— E porque ele simplesmente não contou quando
estava discursando no julgamento diante de tantas
pessoas? Se isso irá atrair todas as pessoas para o
seu lado, porque não fazê-las testemunhar o fato?
— Ele poderia ter feito isso. — Pela primeira vez
um tom de incerteza se refletiu na voz do irmão,
mas logo desapareceu. — Deilos deve ter tido suas
razões.
— Nenhuma boa razão. Oh, Polônio, não
consegue ver?
— Você é minha irmã e não desejo que nada de
mau lhe aconteça, mas fique calada.
— Não quer que nada de mau me aconteça? E
quanto. — Brianna nem sequer conseguia pensar no
que ele fizera. Mesmo que Deilos fosse isento de
todas a culpas, devia ser punido por haver levado o
irmão a trilhar o caminho do demônio.
— Calada!
Ela obedeceu, mas apenas por ter o coração
repleto de tristeza. Não havia mais nada que
pudesse falar.
Continuaram a caminhar, seguindo Deilos para
dentro da cova. Para todo lugar que olhasse,
Brianna avistava o brilho vermelho da lava
borbulhando na superfície. O solo em que pisavam
tinha temperatura suportável, porém as rachaduras
nele existentes deixavam passar nuvens de vapor
com odor de enxofre.
Os olhos lhe ardiam. Brianna levou as mãos a
eles e descobriu que ainda vestia a echarpe, embora
jogada por sobre os ombros.
Polônio a segurava pela mão, mas tinha a
atenção voltada para o caminho que Deilos e os
outros homens tomavam.
Restava a Brianna apenas um fio de esperança
que alguém viesse naquela direção, mas aquilo era
melhor do que nada. Lançando um olhar de soslaio
ao irmão, moveu os ombros o suficiente para que a
echarpe escorregasse e ela pudesse segurar uma
das pontas com a mão livre. Devagar, puxou-a e,
inspirando profundamente, deixou-a cair.
— Venha — chamou Polônio, levando-a consigo.

***
Atreus movia-se com rapidez pela paisagem
queimada levando seus homens consigo. Atravessar
um lugar como aquele exigia cuidado, porém cautela
lhes custaria tempo, e a urgência o guiava. O
caminho fazia uma curva na margem da caverna
antes de se aprofundar nela, mas havia uma
passagem mais curta, cruzando o centro, onde o
que parecia ser solo íntegro poderia facilmente se
revelar uma crosta em ebulição.
— Vão por ali — ordenou aos homens. —
Encontro-os do outro lado.
— Rei. — Atreus nunca tinha de repetir uma
ordem, mas, em tais circunstâncias, não poderia
culpar o guarda.
— Vão em frente — ordenou num tom firme. Sem
esperar para ver o comando obedecido, saltou uma
rachadura e tomou o próprio rumo.
Havia dado algumas passadas, quando deu um
passo em falso e pisou no que julgava ser solo
íntegro, mas se enganou. O fogo lhe lambeu o
solado da sandália, que ele conseguiu erguer antes
de saltar. Mais adiante, uma língua de fogo lhe
chamuscou o braço, porém ele nem sequer notou.
Encontrava-se no meio do caminho dentro da cova,
quando avistou um reflexo branco contra o cenário
preto e vermelho.
Conseguiu alcançar o objeto, mas não sem antes
quase afundar no fogo por duas vezes. Levou a
echarpe à face e inspirou profundamente.
Brianna estava viva! Uma alegria imensa o
invadiu, mas apenas por instantes. Deilos estava
com ela. Com um xingamento baixo, Atreus
continuou em frente.
Minutos mais tarde, conseguiu avistá-los. Deilos
trazia consigo uma dúzia de homens, além de
Polônio, que se encontrava próximo a Brianna, a
qual aparentava estar pálida e zonza. Naquele
instante, Deilos chamou e Polônio levou a irmã para
onde ele estava.
— Idiota! — murmurou Atreus por entre os
dentes. Não tinha ideia do que se passava na mente
daquele jovem, mas não lhe importava. No
momento, nada tinha importância além de Brianna.
E de Deilos, que a tomara pela mão e se
aprofundava na caverna.
— O caminho mudou — anunciou Deilos. — O
solo aqui é inconstante. O que antes era seguro não
é mais — dizendo isso, empurrou Brianna. — Você,
mulher, vá na frente. Nós a seguiremos.
— Senhor. — começou Polônio.
— Não argumente comigo, garoto! O
sentimentalismo é uma fraqueza que um homem de
verdade não tolerará.
Brianna engoliu em seco o terror que sentia,
agarrando-se à esperança. Tudo o que podia divisar
era uma fina crosta e o fogo borbulhante. Tentar
seguir em frente era loucura. Mas se recusasse.
Polônio se postou entre ela e Deilos.
— Senhor, eu vou na frente.
— Você? Presumo que saiba lutar. Não estou
disposto a perdê-lo.
— Ela é minha irmã.
— O que eu lhe disse? Não fui claro o bastante? É
tolo o suficiente para se opor a mim?
— Como mulher, deve ser protegida.
— É mulher para servir e assim o fará!
Sem mais delongas, Deilos empurrou Brianna
para a frente. No mesmo instante, o fogo lambeu a
bainha da sua túnica. Ela soltou um grito e puxou o
tecido, mas não a tempo de evitar que ficasse
chamuscado.
— Vá! — ordenou Deilos. — Ou morrerá onde
está! A mão de Polônio voou para o cabo da espada.
— Senhor.
— Deilos!
Atreus se encontrava parado a uns doze metros
de distância, com a espada desembainhada. Estava
sozinho, cercado pelo fogo e fumaça como se tivesse
emergido das profundezas da terra. O coração de
Brianna pareceu perder uma batida, mas, em
seguida, o medo a assolou.
— Atreus, não!
Ele a ignorou e continuou a caminhar, através da
fumaça, em direção a eles.
— Solte-a, Deilos!
— Que tocante — retrucou Deilos, com sarcasmo.
— O que acabei de lhe falar sobre sentimentalismo,
Polônio? Veja um homem morrer por ele.
— Atreus, volte! — Brianna não permitiria que
Atreus fizesse aquilo. Akora precisava dele.
Recordava-se muito bem do desânimo que se
abatera sobre a população nos dias que se seguiram
ao atentado contra o rei.
Com um movimento instintivo, ela fez menção de
caminhar na direção de Atreus, mas Deilos a
segurou. O braço direito desfigurado, apertando-lhe
o pescoço. Com a mão esquerda segurava uma faca.
— Largue a espada ou ela morre!
— Não! — gritou Brianna, mas era tarde. Sem
hesitar em demonstrar qualquer sinal de dúvida,
Atreus abriu a mão e deixou a espada cair sobre o
chão e se postou diante de Deilos, desarmado e sem
a proteção de uma armadura.
O bandida soltou uma gargalhada de triunfo e
chamou por seus homens.
— Levem-no!
Todos correram, obedientes, porém antes que
pudessem alcançá-lo, os homens de Atreus surgiram
da escuridão empunhando espadas. Os de Deilos
eram em maior número, mas não tinham sequer um
milésimo da habilidade ou ferocidade dos guardas do
palácio.
Deilos rosnou de raiva e recuou, levando Brianna
consigo. Não havia caminho livre de fogo.
— Mande seus homens recuarem! — gritou ele.
— Para que possam vê-lo escondido atrás de
uma mulher? — indagou Atreus, que se aproximou,
desarmado e parecendo despreocupado. Não
arriscava sequer um olhar para onde pisava, mas o
chão sob seus pés se apresentava firme, e o fogo se
mantinha à margem. — Solte-a, Deilos!
— Para que ela viva e eu morra? Acho que não.
A faca resvalou no pescoço de Brianna, que
fechou os olhos, erguendo uma prece aos céus.
— Não!
Outra voz, que não a de Atreus, fez-se ouvir. E
de repente, Brianna foi arrancada das mãos de
Deilos, rolou de encontro ao fogo, conseguindo parar
apenas quando cravou os dedos no solo.
Deilos gritava outra vez. Polônio o segurava. O
irmão havia perdido a espada, mas parecia ter a
intenção de estrangular o homem que ele estava
disposto a seguir até as profundezas do inferno.
— Não vai matar minha irmã! — Polônio
intercalava as palavras com as batidas da cabeça de
Deilos contra o chão.
Brianna cambaleou, conseguindo se erguer,
enquanto Atreus saltava a distância que os separava
e quase chegou a tempo. Deilos empurrou Polônio,
conseguiu pegar a faca e a enfiou no corpo dele.
— Polônio! — exclamou Brianna. Todo o amor
que sentia pelo pobre e desencaminhado irmão
expresso no nome que chamava. Precipitou-se em
direção ao jovem, sem levar em conta quanto Deilos
estava próximo. Tudo o que tinha em mente era
estancar o sangue que já se espalhava pelo chão. A
faca estava cravada no peito de Polônio, acima do
abdômen. As mãos do rapaz agarravam o cabo.
Com expressão de incredulidade, ele baixou o olhar
para a grande mancha de sangue que se alastrava
pela túnica.
— Brianna.
Ela teria respondido. Feito qualquer coisa para
ajudá-lo, não obstante seus crimes. Porém, no ânsia
do desespero, subestimou Deilos, que se aproximou
com impressionante rapidez e fê-la refém outra vez.
— Para trás, Atreus! — ordenou. — Não preciso
de uma faca para matá-la. Vou jogá-la ao fogo antes
que você pense em salvá-la.
Atreus estacou, mas seus olhos não deixaram os
de Brianna. Seus homens lutavam com os que
haviam sobrado do lado de Deilos. Polônio
convulsionava aos pés da irmã. Uma labareda de
fogo saltou alto.
E se apagou contra o vento.
Ele estava chegando. Brianna sentia-o crescer
dentro dela e, pela primeira vez na sua vida, ficou
grata por aquilo. O dom que fora a maldição e a
vergonha da sua infância, o terror que a assombrara
chegava glorioso e triunfante para socorrê-la
naquele momento de desespero.
— O vento. — sussurrou ela, e o som da sua voz
reverberou pelas paredes da caverna, através das
passagens e pelas rachaduras no chão chamuscado.
O vento. O sopro da terra. As chamas se
curvavam diante dele, fagulhas se espalhando em
grandes tufãos que se elevavam como anjos ao céu.
— Brianna.
Ela viu Atreus pronunciar seu nome, mas não o
escutava. Havia apenas o vento a sua volta. Os
cabelos vermelhos eram como as chamas em si, se
agitando atrás dela. A túnica que trajava estava
colada ao seu corpo. Não conseguia respirar. Se
desse um passo, o vento a levaria.
— Brianna, desça! — Atreus falou na sua mente e
coração. O homem que ela amava com toda a força
da sua alma.
Estendeu a mão, ansiando tocá-lo pela última
vez.
— Desça!
O comando, nascido do amor e repleto de
confiança, atravessou a fenda do vento e penetrou
nela.
E então Brianna caiu, separada de Deilos, no
chão que a recebeu com o calor aconchegante de
uma mãe.
Atreus se moveu, voando como o vento, e atacou
Deilos, que lutava com a força de dez homens e
gritava como um louco. Rolaram no meio ao fogo e
à fumaça.
Atreus era de longe mais alto e forte, o que
parecia lhe dar vantagem. Mas Deilos, sempre
esperto, enfiou a mão por debaixo da túnica e
retirou um punhal.
— Morra — disse, sorrindo.
O punhal teria atingido Atreus diretamente no
coração se o vento não tivesse soprado ainda mais
forte, fazendo Deilos se desequilibrar e errar a
pontaria.
O punhal feriu o ombro de Atreus. Deilos recuou.
— Ao inferno com você!
— Você não pode vencer — declarou Atreus num
tom calmo. — Acabou, Deilos, aceite isso.
— E deixar que decida o meu destino? Acho que
não.
O assassino olhou para as labaredas atrás dele e,
em seguida, dirigiu o olhar aos seus homens que
morriam nas mãos dos guardas do palácio.
E então fitou Brianna.
— Que emocionante ele ter vindo salvá-la — ele
pronunciava as palavras dominado pela insanidade
causada pela proximidade da derrota. — O que o rei
lhe contou sobre a sua chegada a Akora,
estrangeira? — E soltando uma gargalhada histérica:
— Disse-lhe que estávamos lá no dia em que seus
pais morreram? — Mesmo no meio ao calor
sufocante, Brianna sentiu um frio lhe percorrer o
corpo. — O almirante francês foi um tolo — declarou
Deilos. — Buscava a glória, mas não tinha meios de
alcançá-la. Mas foi uma batalha honrada que muito
nos agradou.
— O que está dizendo? — indagou Brianna, sem
poder conter a pergunta.
— Eu e Atreus estávamos juntos no treinamento
de guerreiros. Fazíamos parte do mesmo
destacamento. Ele não lhe contou isso? Que
negligente da sua parte, Atreus! Talvez tenha sido a
modéstia que o calou. — E voltando-se para
Brianna: — Ele foi o herói do dia. Aclamado por
todos. Algum jovem, ainda em treinamento, algum
dia se provou tão capaz? Ou disparou tiros de
canhão com tanta precisão? É verdade que era o
neto do rei e talvez todos estivessem dispostos a ver
o melhor dele, mas devo admitir que Atreus
mereceu o louvor. no meio à batalha, quando o
vento se ergueu, o almirante francês teria tido a
chance de recuar, não agisse Atreus com tanta
habilidade. — Deilos sorriu, deleitando-se com o
horror visível na face de Brianna. — Ele matou seus
pais, doce menina. Foi pelas mãos de Atreus que
eles encontraram a morte. Ainda consegue ouvir os
gritos?
Sim, ela conseguia.
Deilos viu a resposta estampada no rosto
delicado. Inclinou a cabeça para trás e soltou uma
gargalhada fantasmagórica.
Ainda rindo, virou-se e se atirou no meio das
chamas.

Aquele era um tempo para sonhar. Da sensação


distante do linho frio sob os membros e da água
fresca nos seus lábios. De brisa leve e vozes gentis.
Certa vez acordou sentindo o aroma de jasmim.
Era noite. Através das janelas altas arqueadas do
lado oposto da cama, divisou a lua em forma de
foice.
Sentiu o toque da mão na sua face. Virou-se e
viu. Helena?
Sonhos.
— Sempre desejei uma filha, rezei por uma.
Meus filhos me foram preciosos, mas uma filha. —
Era a voz de Leoni, calma e agradavelmente
familiar. — Ela era tão frágil quando chegou aqui.
Parecia tão perdida. Eu precisava ir ao seu quarto,
quando acordava durante a noite, e saber se estava
respirando.
Aquilo tudo Brianna ouvia sob a névoa dos
sonhos, fragmentos que caíam como pétalas no mar
da inconsciência.
— Ela se recuperará.
— Será? Agora que sabe o que escondiam dela?
E então Brianna flutuou, procurando o
esquecimento. Era noite alta e ela chorou,
escutando os próprios soluços. Alguém lhe enxugou
a face e a abraçou.
— Não chore, Brianna.
Não era a voz de Leoni. Delphine?
Uma mulher cantava suave:
— "Durma minha criança, deixe a paz a envolver
durante toda a noite."
Lady Hollister tinha razão. A mãe possuía uma
bela voz que morrera com ela, mas ainda vivia na
sua memória.
Estavam na praia, em algum lugar da França?
Próximo a casa onde passavam uma temporada. O
pai havia acendido uma fogueira e se encontravam
reunidos em volta dela. Brianna no colo da mãe. O
ar da noite era frio, mas estava devidamente
aquecida, coberta com um lençol. As estrelas
brilhavam no céu.
O pai soltou uma risada. Um som capaz de
enchê-la de alegria.
Brianna sorriu e sentiu o sabor salgado das
lágrimas.
".durante toda a noite."
A noite escura da alma. Encontrava-se além do
horror e do choque. Até mesmo a dor fora
silenciada. Aquela era a teia da vida. Momentos de
felicidade intercalados com perda. Viu Deilos se
atirar mais uma vez nas chamas e afundar.
Quando abriu os olhos outra vez, era dia claro.
Joanna estava sentada a seu lado, lendo, mas
ergueu os olhos de pronto quando Brianna se
moveu.
— O que. — Aquele chiado fraco seria sua voz?
— Calma. — Joanna pousou o livro e ajudou
Brianna a se sentar.
Mas ela não queria ajuda de nenhum deles.
— Passou por momentos difíceis — explicou
Joanna, franzindo o cenho, quando Brianna ficou
tensa, afastando-se.
— Atreus? — Brianna forçou-se a falar.
— Ele está reunido com o Conselho. Com se
sente? Como se sentia?
— Como se não fizesse parte de mim mesma. —
A sensação de estar desligada a protegia de alguma
forma.
— Polônio? — Durante alguns instantes, viu à sua
frente o punhal cravado no do peito do irmão e
mordiscou o lábio com força.
— Não fale — sugeriu Joanna num tom suave,
ajeitando os travesseiros atrás dela. — Ele está
gravemente ferido, não vou lhe mentir, mas Helena
acha que se recuperará.
— Helena? — Aquela informação atravessou a
névoa do entorpecimento que sentia.
— Helena me disse que talvez você não soubesse
que ela e os outros haviam sobrevivido. Que Polônio
não lhes fez nenhum mal.
— Pensei que ele os tivesse matado quando
Deilos ordenou — disse Brianna.
— Pelo que me contaram, é natural que você
temesse isso, mas Polônio não fê-lo e a protegeu —
explicou Joanna, franzindo o cenho ante o silêncio
de Brianna. — Sida entra e sai a toda hora para ver
se já está acordada, disposta a submeter seu apetite
a uma tentação.
— Não estou com fome. — Mas na verdade
sentia-se faminta, o que a surpreendeu. Devagar,
estava voltando a si.
— Por quanto tempo dormi? — indagou,
enquanto Joanna se encaminhava à porta.
— Quase vinte e quatro horas. Precisava
descansar. Ainda assim, era estranho pensar que
perdera um dia da sua vida sem se dar conta.
Mexendo-se na cama, Brianna fez uma careta de
dor.
— Há um corte na sua perna — informou Joanna,
retornando. — Helena o limpou e disse que o curará
sem deixar cicatriz. Tem também algumas
queimaduras nos pés e tornozelos, mas também
sumirão.
— Queimaduras. — Fragmentos de imagens lhe
voltavam à mente. Por um instante, sentiu uma
onda de calor e julgou sentir o odor de enxofre. —
Sabe onde eu estava? Onde estávamos?
— Atreus a carregou para fora das cavernas.
Presumo que estivessem lá. — Joanna lhe dirigiu um
olhar inquisitivo, mas não ousou perguntar se
adquirira as queimaduras lá.
— Sim, claro, as cavernas. — Atreus era tão
preocupado em guardar segredos que não a
surpreendia o fato de haver silenciado sobre aquele.
Mas por quanto tempo esperava conseguir e porque
deveria fazê-lo? Talvez houvesse tempo para
escapar, mas para onde? Como poderiam deixar
Akora, especialmente depois de tomar conhecimento
do extraordinário poder que de lá emanava?
— Volte — pediu Joanna num tom suave. —
Parece a quilômetros de distância.
— Gostaria de tomar um banho. — Brianna se
livrou das cobertas e escorregou as pernas para fora
da cama. Erguendo-se, pensou por instantes que lhe
faltariam forças para se pôr de pé, mas inspirou
fundo e empertigou a coluna.
— Precisa de ajuda? — indagou Joanna.
— Não — respondeu Brianna, que entrou no
toalete e fechou a porta.
Quando saiu, Joanna havia partido e Leoni
tomara seu lugar. A mãe retirava pratos de uma
bandeja e os pousava na mesa próxima à cama. Ao
vê-la, sorriu. Pelo menos seus lábios o fizeram,
apesar de os olhos se mostrarem cautelosos.
— Foi uma boa ideia tomar banho sozinha?
Joanna disse que você está fraca.
— Sinto-me bem. Como está Polônio? Os lábios
de Leoni se estreitaram.
— Tem sorte de estar vivo. Marcus está lhe
fazendo companhia e seus irmãos estão vindo de
Leios. Tem falado coisas sem sentido.
— Ele acreditava em Deilos.
— Seguiu um homem insano. Meu filho. julguei
conhecê-lo.
— Todos representamos mistérios uns para os
outros.
Havia pão e mel, queijo, pedaços de frango e
torta de maçã. Comida para sustentar e confortar.
Brianna pegou um pedaço pequeno de pão e o
partiu. Sentia a boca ressequida.
— Porque Polônio seguiu Deilos, Brianna? Ele era
mais apegado a você. Disse-lhe alguma coisa?
— Deveria perguntar ao rei. Ele sabe de tudo.
— O rei? Ele terá de decidir o que fazer com
Polônio e os outros simpatizantes de Hélios.
Brianna quase se esquecera deles. O julgamento
lhe parecia tão distante.
— Você era membro do Hélios? — indagou Leoni
de repente.
— O que a faz pensar assim?
— Não sou cega. Percebia seu
descontentamento. Costumava sair algumas vezes,
quando julgava que ninguém estava notando.
Helena disse que você continuou a fazê-lo quando
veio para Ilius.
— Não pensou em me impedir?
A mãe encheu uma taça de água e lhe entregou.
— Achei que precisava testar as próprias asas.
Brianna engoliu a água junto com o pão e sentiu
recobrar um pouco mais de força.
— Eu queria ter asas para voar para longe daqui.
O comentário era cruel, sabia disso. Leoni fez
uma carranca, mas instantes depois, sorriu com
suavidade.
— Culpa-nos por não lhe termos contado.
Aquela não era uma pergunta, mas Brianna se
sentiu
##contranger/forçar/obrigar/necessitar<<compelid
a a responder.
— Não os culpo. Apenas estou perplexa. Sempre
confiei em vocês. Nunca me ocorreu o contrário.
— E acredita que Marcus e eu a traímos por
silenciarmos. Bem, talvez esteja certa. — E ante a
expressão surpresa da filha: — É correto dizermos
que fizemos isso para o seu bem, para que se
adaptasse melhor à nova vida. Mas não é só isso,
como bem deve saber. Queríamos que nos
aceitasse, que nos amasse sem nenhuma sombra a
embotar tal sentimento. Eu, particularmente,
desejava isso. A ideia de lhe contar a maneira como
seus pais haviam morrido me enchia de temor.
Quando veio a notícia da Inglaterra de que você não
possuía parentes, pareceu-me certo guardar
segredo. — Leoni sentou-se devagar, com uma
expressão melancólica estampada na face. — Eu
estava muito enganada. Vejo isso agora e sinto
muito.
Brianna deixou-se afundar numa cadeira em
frente à mãe. Fitou-a, percebendo o que lhe era tão
agradavelmente familiar. A mulher que residia
dentro da mãe. O ser repleto de esperanças e
sonhos, desejos e fragilidades, assim como ela
própria.
— Você queria uma filha.
— Oh, sim. Depois que os meninos nasceram,
Marcus e eu tentamos mais três vezes. Por duas
vezes eu abortei logo no início da gravidez, e na
terceira cheguei aos cinco meses, mas não consegui
levar a gestação até o fim.
— Não sabia disso.
— Porque falar sobre esse assunto? Neste
momento sinto que devo. Helena me desaconselhou
a tentar mais uma vez. Lembrou-me da
responsabilidade que eu tinha para com os filhos
que tive com Marcus, que havia jurado não mais me
tocar, a menos que tomássemos precauções para
evitar outra gravidez. Foi muito difícil abrir mão da
esperança de ter uma filha, e achei que havia
conseguido. até você aparecer. — A lembrança lhe
fez surgir um sorriso terno no rosto. — E lá estava
você, Brianna. Não qualquer filha, mas você, que
era tão corajosa! Foi a primeira coisa que soube a
seu respeito. Durante todos os longos meses nos
quais lutou para recuperar as forças, reaprender a
andar, aceitar um novo país e uma nova casa, nunca
reclamou ou vacilou. Apenas se levantava todas as
manhãs e fazia o que era necessário.
— Eu não tinha outra escolha.
— Claro que tinha. Era uma criança. Ninguém
esperava que carregasse aquele fardo sozinha, e
não o carregou, mas, de qualquer forma, sua
coragem foi extraordinária.
Apesar de tudo, Brianna não pôde conter o
sorriso.
— Acho que me vê com olhos de mãe.
— Claro que sim, e daí? Não acredita naquela
bobagem que as mães só enxergam o melhor dos
seus filhos, não é? Deixe-me lhe dizer uma coisa:
ninguém vê mais claramente do que uma mãe.
Conhecemos cada pedacinho, cada machucado por
dentro e por fora. Conseguimos discernir força e
fraqueza com a mesma facilidade. — E deixando
escapar um profundo suspiro: — Ainda assim, não
consegui enxergar Polônio como deveria.
— Não pode se culpar por isso. Deu-lhe as
mesmas chances que deu a mim e aos outros para
testarmos as nossas asas.
— Ele provou ser frágil.
— Mas sobreviveu graças a Deus e às habilidades
de tia Helena. Agradeçamos por isso.
Leoni anuiu, secou os olhos e estendeu a mão
para a filha.
— Vou repetir. Sinto muito pela minha
contribuição no sofrimento que se abateu sobre
você. Se pudesse tirá-lo do seu coração, eu o faria
com todo o prazer.
— Nunca lhe desejaria nenhuma dor — afirmou
Brianna, quando se sentiu apta a falar.
Ambas permaneceram sentadas por mais algum
tempo, antes de deixarem o quarto para ir visitar
Polônio.
O irmão era um espectro pálido do que fora.
Toda a segurança inerente à juventude havia
desaparecido, substituída por uma total resignação.
— Brianna. — Polônio tentou sorrir, porém a dor
pelo esforço o impediu.
A visão do sofrimento do irmão a encheu de
tristeza, mas ela a ocultou.
— Veja você. Não está muito mal para um
homem que foi traspassado por um punhal.
— Eu não merecia ter sobrevivido.
— Deve muito a sua tia — interveio Leoni,
refugiando-se na austeridade.
— As habilidades ajudam — declarou Helena. —
Mas a sorte também teve seu papel. Um milímetro
mais à esquerda e o teríamos perdido. Os olhos de
Leoni faiscaram.
— Maldito Deilos, encontrará o inferno que tanto
merece!
Brianna olhou para o irmão. Em silêncio, meneou
a cabeça, e Polônio inclinou a dele, compreendendo.
Ambos sabiam que Deilos chegara mais próximo do
inferno do que qualquer mortal poderia.
Marcus chegou pouco tempo depois. Fitou o filho
caçula e deu um suspiro.
— Tenho tanta coisa para lhe dizer, mas não
encontro palavras.
— Pai, desculpe-me.
— Isso é um começo, suponho. Brianna,
disseram-me que você precisava descansar.
— E descansei. Agora preciso fazer outras coisas.
— Embora não soubesse ao certo quais seriam.
— O rei permanece reunido com o Conselho —
informou Marcus. — Há especulações sobre a
sentença que ele irá proferir, mas nenhuma certeza.
— O que quer que o rei decida, será justo —
afirmou Polônio com à certeza de um homem
aceitando seu destino.
— Ele deve dormir agora — manifestou-se
Helena. Marcus e Leoni permaneceram mais um
pouco, mas logo que Polônio adormeceu, Brianna se
retirou. Dirigiu-se ao jardim, onde Atreus a
encontrara.
Embora o dia estivesse claro, ela ficou ali durante
pouco tempo. A paz e a beleza do lugar provocaram
tensão nos seus nervos. Desceu até o ancoradouro,
ao longo das ruas sinuosas que ligavam o palácio ao
cais. As pessoas cuidavam dos seus afazeres
rotineiros. Mulheres tratavam dos jardins, que
ocupavam um lugar de destaque em todas as
residências, tomavam conta dos seus filhos e
cumprimentavam umas às outras. Muitas a
reconheceram como ocupante do palácio e lhe
acenavam com um gesto de cabeça. Brianna sorria
em resposta, mas não se detinha para conversar.
Não seria boa companhia para elas.
Uma vez no porto, caminhou ao longo das pedras
esverdeadas pelo limo do cais que terminavam
numa saliência para dentro do mar. Ali, ela sentou-
se com as pernas balançando por sobre a margem e
olhou para a costa.
Em sua imaginação, podia ver Leios, seu lar nos
últimos dezasseis anos. Ainda o seria?
Pensou por instantes, mas logo a resposta lhe
veio à mente. Um lar apenas na lembrança, Não
conseguiria encontrar contentamento naquele lugar,
embora lhe fosse precioso como sempre. Leios e
toda Akora. Não obstante o que acontecera, ainda a
amava.
E Atreus?
De pronto, a mente de Brianna se fechou. Não
conseguia pensar nele, não sem escutar a voz de
Deilos repetidas vezes.
Ele matou seus pais, doce menina.
Não era uma pessoa doce. Na verdade,
desprezava aquela qualidade. Era uma mulher de
coragem e firmeza. A mãe lhe afirmara aquilo.
Na distância, avistou o mastro com a cabeça de
um búfalo de uma embarcação que cortava as
águas. Encontrava-se demasiado distante para
saber, mas Brianna julgou que estava se dirigindo à
baía do sul. Para onde iria? Poderia estar rumando
para a Europa ou as Américas, a Ásia ou talvez á
África. Ou simplesmente estar patrulhando. Uma das
inúmeras embarcações que mantinham o Reino
Fortificado inviolável.
Protegendo-o dos presunçosos almirantes
franceses sedentos de glória.
Atreus estava com quinze anos naquela época.
Brianna fizera os cálculos na sua mente pouco
antes, mas não havia pensado no assunto até
aquele momento.
Quinze anos.
Quando tinha essa idade, ela ajudava Leoni nas
tarefas de casa e Marcus nos estábulos. No verão
daquele ano, sua égua favorita havia dado à luz um
potro que, no futuro, se tornaria um vencedor de
corridas em Leios e receberia a Taça de Ouro num
dos torneios de outono em Ilius. Brianna não tinha
comparecido ao torneio, embora ficasse tentada a
fazê-lo. A tempestade da qual pensava se lembrar e
o sentimento de culpa ainda a consumiam por
dentro, aprisionando-a.
Aos quinze anos, ela estava às voltas com as
aulas de geometria, arguindo Polônio sobre filosofia
e ignorando os olhares apreciativos dos rapazes
locais, que pareciam crescer a cada dia.
Aos quinze anos, Atreus fora obrigado a se tornar
um homem. Neto do rei, devia aprender grandes
coisas, como era esperado que o fizesse. Imerso
numa situação que ele não poderia ter previsto,
apenas agiu de modo a cumprir seu dever e garantir
aos akoreanos que a linhagem Atreides era genuína.
O que fizera depois que acabou? Como era
curioso pensar naquilo. Enquanto ela jazia na praia à
beira da morte, o que Atreus fizera?
Havia comemorado? Brianna nunca tivera notícia
de nenhuma comemoração em Akora, quando os
inimigos eram abatidos. Aquilo não costumava
acontecer com frequência, mas houvera um
incidente anos antes, de novo com os franceses,
porém daquela vez os estrangeiros se curvaram
diante da derrota. Lembrava-se de ouvir falar do
fracasso deles e a respeito dos sobreviventes que se
estabeleceram em Akora, agradecidos por se libertar
da Europa em guerra. Mas não houvera nenhuma
comemoração, apenas a aceitação do preço que
deveria ser pago para manter Akora livre.
Estarem seguros em Akora e felizes por ser
akoreanos. Brianna jamais questionara o preço que
tinham de pagar por isso, mas no momento,
tornara-se uma questão pessoal.
Ele matou seus pais.
Havia sido a mão de Atreus a disparar, com sua
inabalável determinação. O futuro rei. O escolhido
para suceder. Teria disparado mais de uma vez?
Destruir uma embarcação com um único tiro era
possível, mas improvável. Devia ter repetido a
ordem para recarregarem o canhão, mantendo o
alvo na mira. Devia ter esperado, calculado e
disparado mais de uma vez.
Aos quinze anos.
O mesmo tempo que Atreus levara para descobrir
quem ela era. A noiva que lhe havia sido designada,
segundo a crença do rei, ficara órfã por seus atos.
Teria ele ponderado, pelo menos uma vez, deixá-
la em paz e não persuadi-la, em memória daqueles
que havia matado?
O mar não tinha respostas. Tampouco as
gaivotas que sobrevoavam acima da sua cabeça.
Brianna permaneceu ali até que o frio do crepúsculo
a mandasse de volta pela rua sinuosa em direção ao
palácio.
— Sua mãe — disse Helena — não me
agradecerá se descobrir que a sua recuperação é
demorada porque você está me ajudando.
— Não me recuperarei deitada na cama —
contrapôs Brianna. — Já a ajudei antes de partir
para a Inglaterra. Posso fazer isso de novo, não?
— O estado de Polônio de fato requer cuidados —
contemporizou Helena, relutante. — E a sua
presença parece agradá-lo.
O irmão ainda sentia dores lancinantes, apesar
dos medicamentos que a tia lhe dava. Uma dose
maior iria colocá-lo em risco, e Polônio sabia disso.
— A dor significa que estou vivo — afirmou ele,
esforçando-se para sorrir. — Lembro-me disso e a
dor parece diminuir.
Brianna mexeu com a colher para esfriar a sopa
que o ajudava a tomar.
— Você é incrivelmente corajoso.
Polônio ensaiou uma risada, mas se deteve
quando a dor o assolou, fazendo-o menear a cabeça.
— Fui incrivelmente estúpido ao dar ouvidos às
asneiras de Deilos. Mas vou lhe dizer, não na minha
defesa: havia algo naquele homem. Falava com
tanta convicção! Parecia ter todas as respostas e
conhecimento de tudo.
Brianna encostou uma colherada de sopa nos
lábios do irmão.
— E parecia amar Akora.
Polônio engoliu, anuindo.
— Era o que eu pensava. Quando nos levou lá
para baixo e nos mostrou o que estava acontecendo,
pela primeira vez percebi o que Akora significa para
mim. Sempre me considerei um pacifista, mas, de
repente, isso não importava mais. — Engoliu um
pouco mais da sopa e ergueu o olhar para fitá-la. —
Quantas pessoas acha que sabem?
Brianna fez a mesma pergunta no seu íntimo.
— Não muitas, ou teríamos ouvido falar disso.
— Não posso imaginar como ou porque o rei
guardou segredo daquilo.
— Talvez ele saiba que não há nada que possa
ser feito.
— Mas isso não pode ser verdade. Somos um
povo de navegantes. Temos muitas e variadas
embarcações para evacuar a todos se fosse
necessário.
— E ir para onde? O mundo está em guerra.
Europa, América. Pessoas estão em conflito por
todos os lugares. Apenas aqui vivemos em paz.
Polônio deixou escapar um suspiro e deitou a
cabeça no travesseiro. Brianna colocou o prato da
sopa de lado e ajustou as cobertas ao corpo do
irmão. Parecia mais velho, pensou, e não só devido
ao ferimento. Nos últimos dias, havia confrontado o
demônio e desafiado a morte. A experiência
roubara-lhe a inocência da idade que até então era
evidente.
— Deve dormir agora.
— É muito gentil da sua parte estar aqui.
Não, deveria ter dito que era egoísta. Aquilo a
afastava de outras coisas. Porém o irmão pegou no
sono e, de qualquer forma, não iria sobrecarregá-lo
com seus próprios problemas.
Mas eles continuaram a atormentá-la, enquanto
permanecia sentada ao lado da cama, segurando a
mão de Polônio e mantendo-o ligado a um mundo
além da dor e da morte.
Ainda se encontrava ali quando o pai entrou. A
expressão de Marcus se suavizou ao olhar para o
filho caçula.
— Como ele está?
— Melhor, acho eu. Sente dor, mas não há mais
nada a ser feito, e Polônio a está suportando bem.
— O rei proferiu a sentença dos quatro
simpatizantes de Hélios que conspiraram no
atentado que quase o matou.
— E qual será o destino deles?
— Aprisionamento até que uma junta de
magistrados, clero, pessoas do povo e membros da
família dos quatro concordem que eles estejam
aptos a voltar ao convívio da sociedade.
— E Polônio? — indagou num tom suave.
— O rei ainda não se pronunciou sobre o assunto,
mas tive um encontro com ele. Atreus disse-me que
levará em consideração o fato de que seu irmão
salvou a sua vida. — Marcus puxou uma cadeira e se
sentou próximo a ela.
— Filha. o que há entre você e o rei?
De imediato, Brianna desviou o olhar, antes que
o pai percebesse quanto estava surpresa.
— Pai.
— Eu sei — garantiu Marcus, bastante
embaraçado, antecipando a reação da filha — que
deve preferir discutir isso com sua mãe, e, para
dizer a verdade, eu também desejava que fosse
assim, mas como estou aqui neste momento, cabe a
mim fazê-lo. Portanto, vou perguntar mais uma vez:
— O que há entre vocês?
— Porque acha.
— Brianna, eu sou um homem. Percebi a
expressão do rei quando se referia a você.
— Ele se referiu a mim?
— Quando afirmou que Polônio salvou a sua vida.
— Atreus também salvou a minha vida, embora
eu tenha certeza de que ele não lhe contaria isso.
Jogou a espada para o lado quando Deilos ameaçou
me matar se não o fizesse.
As sobrancelhas de Marcus se ergueram.
— Jogou a espada para o lado? Foi por isso que
ficou ferido?
Brianna assentiu, recordando-se do punhal na
mão de Deilos direcionando-se ao coração de
Atreus. Helena lhe contara que o ferimento dele não
era grave, porém o pensamento do que poderia ter
acontecido ainda a assombrava. Marcus a
observava.
— Compreendo — afirmou ele, cobrindo com a
sua a mão da filha. — A vida é preciosa e o amor é
raro. Esta é a minha filosofia.
Brianna sorriu apesar das lágrimas, que pareciam
constantes nos últimos dias.
— Então é um grande filósofo. E ambos se
abraçaram.
E então veio o tempo de espera. O rei se
encontrava reunido com os conselheiros. Outra vez,
num encontro com os simpatizantes de Hélios. Os
membros de Hélios e os conselheiros também se
reuniam.
Haveria mudanças. Podia se sentir no ar. As
pessoas se juntavam em pequenos grupos em volta
do palácio e ao longo da cidade que se estendia
baixo, debatendo entre si. Algumas vezes as
discussões se acaloravam, mas em geral eram
pacíficas. Todos confiavam em que o rei faria as
escolhas certas.
Brianna rezava para que ela também o fizesse.
Na tarde do terceiro dias após sair das cavernas,
foi à procura de Atreus. Ele não estava no estúdio,
onde julgara encontrá-lo. Tampouco nas cavernas
logo baixo do palácio, para onde se encaminhou
quando não logrou achá-lo em lugar algum.
Sozinha no templo, Brianna hesitou antes de
tocar de leve com a mão a face de pedra coberta de
limo. O fato de sentir apenas a fria humidade não a
surpreendeu, mas a lembrança do que sentira
através de Atreus ainda ecoava no seu íntimo.
Assim como a recordação do que haviam
partilhado naquele lugar.
Uma suave lufada de ar atravessou o templo,
fazendo agitar de leve o tecido da túnica que ela
trajava. Deteve-se um pouco mais lá, tomada de
surpresa pela sensação de calma que a invadira.
Sentia-se tão relaxada que poderia dormir se a
necessidade de encontrar Atreus não tivesse se
fortificado dentro dela.
Seria ousada o suficiente para procurá-lo nos
seus aposentos como fizera antes? Em vez de
responder a si mesma, ergueu o olhar ao céu repleto
de estrelas. Enquanto observava, um meteorito
cruzou o firmamento antes de desaparecer de vista.
Era uma noite apropriada para a observação das
estrelas. Os astrônomos de Akora, que trocavam o
dia pela noite, por certo estariam no observatório.
Mas havia todo o telhado do palácio para ela
percorrer.
Subiu a escada com rapidez e parou ao atingir o
topo. Não havia luzes no telhado, mas ainda assim,
quando seus olhos se acostumaram, podia ver com
clareza suficiente para seguir em frente.
Encaminhou-se pelo lado que dava vistas para
Ilius e estava se acomodando ali, quando percebeu
que não se encontrava sozinha.
— Estava procurando por você — manifestou-se
Atreus. Um desejo cego a invadiu.
— E eu por você. Como vão as reuniões?
Ele deixou deu uma risada seca e se postou ao
lado dela, esticando as longas pernas a sua frente.
— Estão caminhando. É o melhor que posso
dizer.
Brianna lhe dirigiu um olhar preocupado.
— Hélios e os conselheiros não chegaram a um
acordo?
— Oh, sim. Concordam que o outro lado é
arrogante, presunçoso e teimoso.
— Não fizeram nenhum progresso? Atreus
pensou por instantes.
— Estão gritando menos, mas talvez porque suas
gargantas estejam doendo.
— Atreus. — Ainda estava hesitante, porém tinha
de perguntar. — Porque passar por tudo isso para
mudar Akora, quando sabe da situação que a
aguarda?
Ele a fitou com surpresa genuína.
— Que situação?
— O vulcão. Eu sei o que vi.
Por mais incrível que pudesse parecer, o rei
sorriu.
— E concluiu que Akora está em perigo?
— Não está?
— Brianna, o fluxo de lava que viu está lá há
mais de trezentos anos. Apareceu algumas décadas
depois do cataclismo. Não falamos sobre isso para
evitar desnecessária ansiedade como a que você
está sentindo agora, mas todos os reis que
sucederam o primeiro que a descobriu a observaram
com o mesmo cuidado que eu estou tendo. Ele
aumenta e diminuiu. Às vezes é mais abundante do
que o que viu, outras vezes, menor, mas permanece
controlado como todo o resto de Akora.
Uma grande onda de alívio a envolveu.
— Deveria ter percebido — afirmou Brianna, num
tom suave.
— Que eu não esconderia um perigo iminente de
Akora? Que faria qualquer coisa que estivesse ao
meu alcance para proteger o nosso povo? Sim,
deveria ter percebido.
— Atreus, desculpe-me. — Sentia-se uma
perfeita idiota. Deilos utilizara a ameaça do fluxo de
lava para convencer pessoas como seu irmão de que
Akora estava irada com. o governo de Atreus.
Brianna não havia acreditado naquilo, mas tinha
aceitado que o perigo era real.
— Não há razão para se desculpar. O fato é que
estou procurando por você para apresentar minhas
desculpas. — O rei inspirou fundo e soltou o ar
devagar. — Quero que saiba quanto lamento o que
aconteceu com seus pais.
— Sei que estava cumprindo seu dever. — A voz
de Brianna soava extremamente baixa. Atreus
cumprira sua obrigação. Algumas vezes a vida podia
ser bastante cruel. Pessoas inocentes morriam.
— Sim, mas isso não me absolve do que
aconteceu ou da minha disposição em lhe ocultar o
fato.
Considerar uma realidade cruel na própria mente
era uma coisa, ouvi-la dita em voz alta, outra.
— Mais uma vez você cumpria o seu dever.
— Sim, dever para com Akora. Foi tudo em que
pensei desde que me tornei rei. Sabendo quanto não
desejava essa posição, propus-me a me esforçar
muito para exercê-la com dignidade.
— E o fez.
— Talvez, mas é necessário agir com muita
dignidade. — Atreus se calou por um longo instante.
Quando voltou a falar, sua voz era profunda e gentil,
contendo uma estranha nota de tristeza que Brianna
não conseguiu captar de pronto.
— Eu não conseguiria derrotar Deilos sem a sua
ajuda.
— Isso não é verdade. Estou certa de que
encontraria uma forma.
— Acho que não. Foi me dado o dom de ver você
durante o processo de seleção para um propósito.
Acho que tínhamos de nos juntar para derrotá-lo.
Não nos casamos, mas fizemos o que era
necessário.
O que Atreus estava dizendo? Não era isso o que
Brianna pretendia quando saíra à procura dele.
— O que era necessário? — Ela indagou, e o viu
anuir com um gesto de cabeça, mas precisava ouvir
as palavras. — Está querendo dizer que não há mais
razões para nos casarmos?
Atreus inspirou profundamente.
— A não ser que esteja grávida.
— Não — declarou ela, tentando afastar o pesar
por não se encontrar naquela condição. — Não
estou.
— Então está livre. Quando Polônio estiver
curado, ele poderá se juntar a você na Inglaterra.
Passar um tempo fora de Akora, conhecer um pouco
mais do mundo o beneficiará, e você poderá usufruir
da companhia do seu irmão.
— Você vai exilá-lo?
— Será isso ou a prisão.
— Para ele sim, e para mim?
Atreus pareceu surpreso com a pergunta.
— Você sempre será livre para retornar a Akora
quando desejar, mas por escolha própria. Se algum
dia conseguir colocar de lado as sombras do
passado.
Ele se ergueu e tocou de leve no seu ombro.
— Quando fui procurá-la na Inglaterra, estava
disposto a não lhe dar opção, embora soubesse
possuir uma parcela de culpa pela morte dos seus
pais. Você disse que me tornei menos humano, e
acho que de alguma forma estava certa.
— Falei tomada pela raiva — argumentou
Brianna. — Uma raiva tola e estúpida.
— Mas falou a verdade. O que não é dito ou feito
pode ser tão doloroso quanto as nossas ações. Você
é livre para fazer suas próprias escolhas.
— E quanto a você? — ela perguntou. — Essa
possibilidade de escolha que está me dando o torna
livre também?
— Sou um rei. A liberdade não me pertence —
dizendo isso, a fitou por um longo instante e depois
partiu, deixando-a sozinha sob um mar de estrelas.
Brianna desejara ter asas para partir de Akora, e
Atreus acabara de lhe dar.
Enfim, conseguira, embora tivesse lhe custado
mais do que qualquer outra coisa que havia feito na
vida. Libertara-a. Brianna merecia e Atreus não
poderia ter lhe dado coisa melhor.
Mas. Diabos! Como estava ferido! Não era
verdade que corações podiam, literalmente, se
partir, mas sentia como se o dele tivesse sido
esmagado.
Tinha ido embora apressado, pois sabia que se
demorasse um pouco mais, sua determinação iria
por terra. Não olharia para trás. Já cometera muitos
erros, não precisava de mais um.
Mas para onde iria? Nenhum lugar era distante o
suficiente de Brianna. Ainda assim, não arriscaria
permanecer sob o mesmo teto que ela, não
importava o quanto estivessem distantes.
Raramente Atreus dedicava algum tempo
inteiramente a si próprio, porém, sob tais
circunstâncias, parecia-lhe o melhor a fazer. Hélios e
os conselheiros poderiam gritar uns com os outros à
vontade sem a sua presença. Encontravam-se tão
ocupados berrando que nem sequer lhe notariam a
ausência.
Determinado, voltou aos próprios aposentos,
escreveu um bilhete, pegou seu arco favorito e
partiu.
Brianna permaneceu no telhado, fitando as
estrelas. Pensara que daquela forma clarearia a
mente, mas não logrou êxito. A vida é preciosa e o
amor é raro, dissera-lhe o pai, e as palavras
tocaram fundo no seu coração. Nunca deixaria de
lamentar a morte de Delphine e Edward, porém não
podia culpar Atreus por isso e tampouco lhe negar
seu amor.
Assim decidira, mas ele viera até ali para lhe
dizer que não precisavam mais se casar. Seguira-a
até a Inglaterra, reivindicou-a, persuadiu-a a voltar
a Akora, tudo por crer que estavam predestinados
um ao outro. Estava tão convencido daquilo que não
permitira a si mesmo ser dissuadido por causa da
participação que tivera na morte dos pais deIa.
Quase a deixara na ignorância até que
estivessem casados.
Mas iria juntar-se a uma mulher que talvez o
viesse a desprezar?
Libertara-a para o bem dela. E para o bem dele
também?
Como Brianna poderia descobrir sem recorrer a
uma margarida?
Ela sorriu. Não havia margaridas ali, mas Atreus
lhe dera asas, e ela pretendia usá-las.
Atreus não se encontrava nos seus aposentos, o
que não a surpreendeu, já que raramente estava lá.
Muito bem, esperaria que ele retornasse. Em algum
momento, voltaria, mesmo que para uma simples
troca de roupa.
Era noite alta e estava demasiado cansada. Não
precisou de muito esforço para convencer a si
mesma de que o melhor lugar para aguardá-lo era
deitada na cama.
Pela manhã, acordou, ou melhor, foi acordada. A
mulher grisalha e esguia entrou no quarto. Um
sorriso surpreso lhe curvou a boca graciosa.
— Lady Phaedra. — Sentando-se na cama e
cobrindo o corpo com o lençol, Brianna fitou a mãe
de Atreus.
A senhora a encarava com prazeroso interesse.
— Vim falar com meu filho. Ele está aqui?
— Não! Pelo menos. acho que não.
— Que indelicado da parte dele. — Ainda
sorrindo, lady Phaedra fechou a porta e acomodou-
se num sofá de dois lugares junto à cama.
— Atreus tem estado tão ocupado desde que
retornou da Inglaterra que quase não tivemos
chance de conversar. Pensei em lhe roubar alguns
minutos antes que as obrigações lhe tomem todo o
tempo, mas acho que cheguei tarde.
— Lady Phaedra, sei que isso deve parecer.
— Oh, querida, Atreus é um homem, eu não
ousaria me intrometer na sua vida privada. Para ser
sincera, folgo em saber que ele possui uma.
— É mesmo?
— Claro. A sua devoção a meu filho quando ele
se encontrava ferido não escapou a minha
percepção. Nem o fato de você ser inteligente,
sensata e adorável. Diga-me, gosta de crianças?
— Sim, gosto. Bem, acho que devo me levantar.
— Claro, e talvez possamos tomar o café da
manhã juntas. Oh. o que é isto?
Phaedra pegou o bilhete da mesa ao lado da
cama, leu-o e franziu o cenho.
— Atreus partiu por alguns dias.
— Para onde? — indagou Brianna. Que dever o
teria afastado naquele momento? O que seria tão
premente para fazê-lo deixar o palácio quando havia
tanto a resolver?
— Caçar. Foi caçar. — Lady Phaedra colocou de
novo o bilhete na mesa. — Isso é muito estranho.
Até onde sei, meu filho não é afeito à caça.
Brianna se levantou da cama com o lençol
envolto no corpo. Olhou ao redor, procurando o
vestido, e quando o encontrou, tentou alisar os
vincos com as mãos.
— Para onde ele iria?
Phaedra não hesitou em lhe dizer, junto com os
detalhes e instruções de como chegar ao locai.
— Temo que terá de ir a pé — concluiu ela. —
Um cavalo nunca conseguiria chegar lá.
Era uma mulher sensata, disse Brianna a si
mesma. Descartando as roupas elegantes, vestiu
uma túnica grosseira, calçou um par de botas antes
e partiu em busca de Atreus. Ele se encontrava nas
montanhas que se erguiam adiante de Ilius, num
lugar que descobrira quando criança e pelo qual
desde então se apaixonara. Havia construído até
mesmo uma cabana para si no local.
Assim havia lhe contado Phaedra, e Brianna
pretendia conferir com os próprios olhos caso
conseguisse chegar até lá. O sol subia e logo a
manhã se transformou em tarde. Fazia muito calor e
o suor escorria até seus olhos. Prendera os cabelos,
mas os cachos rebeldes insistiam em lhe cair na
face, ela os afastava e seguia em frente.
Não poderia Atreus simplesmente ter ido pescar
de barco pela costa? Oh, não, tinha de escalar
rochedos, saltando brechas fundas para chegar a um
lugar onde nenhuma mulher respeitável se
aventuraria a ir.
A paisagem era linda, Brianna admitiu quando fez
uma pausa para explorar os arredores. A vista das
montanhas cobertas de arbustos e com o mar baixo
era espetacular. Podia ver as três pequenas ilhas e,
quando subiu um pouco mais, teve uma visão
panorâmica.
Na distância, ao longo do aclive, divisou uma
torre de observação. Haveria outras, tinha certeza,
mas nenhuma tão próxima. Encontrou uma fonte,
onde bebeu água o suficiente para aguentar o
restante do percurso.
Durante todo o trajeto, pensava no que iria dizer
a Atreus. Ainda se sentia indecisa quando pulou o
cume de um rochedo e parou de repente.
À frente, havia um campo coberto de flores, e no
centro dele, uma pequena e confortável cabana. Um
enorme urso estava parado em frente à construção,
apoiado nas patas traseiras.
O animal de madeira havia sido esculpido com
tamanha riqueza de detalhes, que Brianna pensou
que ganharia vida a qualquer momento.
Embora não existissem ursos em Akora, a visão
era assustadora. Assim como as leoas que
guardavam os portões do palácio, o urso era uma
reminiscência de outros tempos e lugares.
Porém nenhum urso, de madeira ou de carne e
osso, iria impedi-la de continuar. Respirando com
dificuldade, forçou-se a caminhar até alcançar a
cabana. Quando chegou, encostou-se na parede e
fechou os olhos.
Mas abriu-os de imediato ao ouvir o som metálico
de uma flecha atravessando o ar. Virando numa das
esquinas da cabana, Brianna avistou Atreus. Estava
parado, com os pés afastados e os músculos do
peito flexionados. Ele esticou um grande arco, fez
pontaria e disparou uma flecha na direção de um
alvo pendurado numa árvore distante.
A flecha atingiu o centro do alvo, bem perto da
outra que havia sido arremessada instantes antes.
Varias flechas foram atiradas a seguir. Por razões
que nem Brianna sabia explicar, decidiu sentar-se e
assistir.
Pouco depois, Atreus caminhou até o alvo e
recolheu as flechas. Ao retornar com as flechas na
mão, ele a viu sentada na grama, com as pernas
cruzadas e os cabelos caindo em cascata sobre os
ombros.
— Brianna!
— Sua mãe me contou sobre este lugar. — Era
melhor usar toda a munição que possuía. — Acho
que ela gostou de mim.
— E mesmo? — Atreus se aproximou. — Como
conseguiu chegar até aqui?
— Andando.
— O caminho é perigoso. Poderia ter se
machucado.
— isso tudo poderia ter sido evitado se eu tivesse
encontrado uma margarida.
Atreus se agachou ao lado dela, parecendo
confuso.
— Uma margarida?
— Ele me ama, ele não me ama. Há quanto
tempo acha que as mulheres lançam mão disso?
Só então o entendimento o atingiu e fê-lo sorrir.
— Desde quando existem mulheres e margaridas
— ele respondeu.
— Atreus, você me ama? — Uma mulher que
escalara uma montanha tinha o direito de saber o
que mais lhe interessava na vida.
— Sim, eu te amo — ele afirmou, sem hesitar ou
parar para pensar.
— Isso é ótimo, porque eu também te amo.
Ele piscou algumas vezes e desviou o olhar por
um instante.
— Você me humilhou.
— Nunca fiz isso, querido. Você disse que eu
deveria fazer minha escolha. Muito bem, eu a fiz.
De repente, Brianna foi arrancada do chão pelos
braços fortes e carregada em direção à cabana.
— Não sei no que minha mãe estava pensando.
Poderia ter enviado um mensageiro — resmungou
Atreus.
— Netos.
Ele baixou o olhar para fitá-la, franzindo o cenho.
— O quê?
— Sua mãe estava pensando em netos. Deseja
muito tê-los.
Atreus possuía o sorriso mais arrasador,
especialmente quando direcionado a ela.
— Sinto-me inclinado a satisfazê-la, se você
estiver também.
— Gostaria de tomar um banho primeiro, mas
acho que nesta cabana terei de me contentar com
uma tina — disse Brianna.
Atreus meneou a cabeça diante da falta de
confiança dela e deu um pontapé na porta para abri-
la, revelando uma residência construída no topo de
uma fonte de água aquecida.
Brianna estava boiando nela, sentindo uma
felicidade imensa, quando uma coisa branca passou
a seu lado. E logo depois outra. Uma terceira pousou
na ponta do seu nariz.
Margaridas. Uma chuva delas, acompanhadas de
açafrões, íris e violetas colhidas nos campos de
Atreus. Todas se colando aos ombros delicados e
aos seios nus e fazendo-a sorrir com genuína e
inegável alegria no meio ao dia claro e cintilante.

— Oh, minha querida! — exclamou lady


Constance. Ela desceu a prancha com uma agilidade
incomum para uma mulher daquela idade e deu um
abraço caloroso em Brianna. Lorde William se
encontrava logo atrás dela, olhando à sua volta,
disposto a não perder nada.
— Estamos tão felizes em termos vindo! —
afirmou a bondosa condessa. — Quando recebemos
a sua carta, ficamos estupefatos, não, William?
William? — Virou-se para encontrar o marido, que
fitava, boquiaberto, as estradas sinuosas que
levavam ao palácio que se elevava numa inclinação.
— Claro que ficamos — ela decidiu responder pelo
lorde. — E agora estamos aqui, junto a você.
— Estou muito feliz que tenham aceitado o
convite — declarou Brianna. Estava sendo sincera. A
presença dos amigos de Delphine completavam sua
felicidade. Parecia-lhe certo que pessoas honradas e
sensatas como eles fossem os primeiros
estrangeiros a receber permissão para visitar Akora.
Aquela era uma surpreendente ruptura com o
passado e fora engendrada por Atreus. Hélios e o
Conselho ainda discutiam a medida, embora ambos
os lados parecessem dispostos a declarar uma
trégua temporária em louvor às festividades.
— Os ânimos estão acirrados em Londres —
informou lorde William, dando de ombros.
— Fomos convocados por Prinny em pessoa —
aparteou lady Constance. Não parecia impressionada
pela experiência. — Discursou interminavelmente
sobre as nossas responsabilidades ao representar a
Grã-Bretanha, do extraordinário significado deste
evento e outras coisas. Eu disse a ele que iríamos
simplesmente comparecer a um casamento e
pretendíamos nos divertir.
— Ela falou isso de fato — garantiu lorde William
com evidente aprovação. — Quase fez desmaiar o
príncipe.
Brianna soltou uma gargalhada. Deu o braço para
lady Constance e lorde William e os guiou em
direção ao palácio, recebendo no caminho os
calorosos cumprimentos de cada homem, mulher e
criança pelos quais passavam.
— É espantoso — disse lorde William, repetindo a
afirmação em intervalos regulares. —
Absolutamente espantoso. Nunca poderia ter
imaginado um lugar como este.
— Não é de admirar que você quisesse retornar a
Akora — concordou lady Constance. — Oh, minha
querida, estamos tão felizes por você! Notei, quando
esteve em Holyhood, que o rei lhe dispensava
exagerada atenção. Aí eu disse a mim mesma:
Constance, há algo entre aqueles dois. Mencionei-
lhe isso, não, William?
Porém o marido não lhe respondeu. Encontrava-
se hipnotizado pelas estátuas das leoas à frente
deles e pelo palácio em si.
— Nunca vi algo assim na minha vida. Faz tudo o
mais parecer uma choupana.
— Não devemos dizer isso a Prinny — declarou
lady Constance, enfática. — Ele gastou uma fortuna
na execução dos seus projetos.
— O palácio esteve em construção por mais de
trezentos anos — explicou Brianna, orgulhosa. —
Nada foi derrubado. Os aposentos originais ainda
são utilizados, mas houve acréscimos ao longo do
tempo.
— Impressionante! — manifestou-se lorde
William mais uma vez, enquanto subiam os degraus
largos em direção às imensas portas duplas que se
encontravam abertas. Lá, foram recepcionados por
Atreus de maneira calorosa.
Lady Constance curvou-se numa profunda
reverência.
— Vossa Alteza, sentimo-nos honrados por
estarmos aqui.
— Vossas presenças é que nos honram, boa
senhora — afirmou Atreus, estendendo as mãos
para tomar a dela e ajudá-la a se erguer. — Por
favor, me chame apenas de Atreus. Não somos
muito formais aqui.
— Tenho uma carta do príncipe regente para
Vossa Alteza — interveio lorde William, entregando-
lhe um grosso envelope com selos e fitas.
— Responderei no tempo devido — disse Atreus.
— Agora, vamos nos acomodar.
Quando lady Constance e lorde William foram
levados a seus aposentos, Brianna deixou escapar
um leve suspiro de alívio antes de correr para se
encontrar com Phaedra e Leoni, que estavam
incumbidas dos preparativos. Nenhum rei havia se
casado nos últimos cinquenta anos e, ao que
parecia, todos os akoreanos estavam ansiosos por
partilhar cada momento dos preparativos da
cerimônia e dos festejos. Fora declarado feriado
nacional, e verdadeiras multidões rumavam para
Ilius. Cada residência se encontrava apinhada de
gente e o excedente se acomodava em tendas
armadas nos pátios e jardins. Havia músicas e risos
por todos os lados, e o aroma dos apetitosos pratos
cozidos em fogo aberto pairava no ar para ser
partilhado por todos que passassem pelas ruas.
— Tudo está sobre controle — garantiu Leoni. —
O melhor que você tem a fazer é descansar.
— Sim, isso mesmo — concordou Phaedra. —
Não há nada mais importante a fazer do que tomar
fôlego.
Agradecida, Brianna obedeceu. Deitou-se na
cama, mas não esperava dormir. Porém, quando
descerrou as pálpebras, chegara o dia do seu
casamento.
Desconfiava ter engolido algumas daquelas
borboletas das altas montanhas, pois sentia o
estômago fervilhar. Mal despertou e foi arrastada
para um mar de preparativos, que se sucediam
interminavelmente.
Sida lhe trouxe o café da manhã e se deteve ali,
enquanto Brianna tentava ingeri-lo. Mas as
borboletas pareciam não ter apetite. Em seguida,
entrou Leoni, solicitando alguns momentos de
privacidade com a filha para lhe entregar o bracelete
de prata e lápis-lazúli que ela usara no seu
casamento.
— Sonhava entregá-lo um dia a uma filha —
afirmou Leoni num tom suave. — Mas nunca
imaginei que ela fosse como você. Sinto-me muito
orgulhosa de tê-la como filha, Brianna, e te amo
muito.
Brianna não pôde evitar as lágrimas. Como
também não conseguiu fazê-lo quando Phaedra veio
ao seu encontro. Mas eram lágrimas de felicidade.
O vestido de noiva era simples, conforme a
tradição em Akora. O tecido era da mais fina seda,
bordado na bainha e no corpete com pequenas
pérolas. Os cabelos de Brianna estavam soltos, com
exceção de uma coroa de flores que
Atreus havia lhe enviado, colhidas nos campos da
montanha onde ele possuía a cabana, e quase a
fizeram chorar. Por fim, retirou a Lagrima do Céu da
caixa e a atou em volta do pescoço.
E então, chegou o momento de ir. Uma vez fora
do quarto, Brianna juntou-se às duas mulheres que
de agora em diante dividiriam o título de mãe. Ao
sair para o pátio, uma salva de palmas e ovações
explodiram e parecia interminável.
As pessoas ocupavam o pátio, mas também se
encontravam no telhado e preenchendo a escadaria,
deixando apenas um caminho por onde a noiva
deveria passar.
Todos a cumprimentavam com uma evidente
aceitação que a deixava estupefata. Envolta por
aquele sentimento, Brianna subiu os degraus que
levavam à plataforma em direção a Atreus.
Ele parecia. oh, magnífico! Forte e orgulhoso,
cheio de vida e mais jovial do que de costume.
Atreus lhe tomou a mão e a levou aos lábios,
ante a ovação dos presentes.
Palavras foram ditas, votos feitos, porém Brianna
sabia que as verdadeiras promessas estavam nos
corações de ambos.
Os recém-casados caminharam entre a população
presente, recebendo os cumprimentos e partilhando
a alegria daquele povo. Brianna riu, divertida,
quando o marido lhe ofereceu pães de mel feitos por
uma senhora idosa, e mais uma vez quando
dividiram uma taça de vinho da melhor safra, e
outra quando Atreus a guiou para a pista de dança,
onde giraram entre os casais ali presentes, velhos e
novos, que formaram um círculo em volta deles.
Ainda com a ovação dos akoreanos ecoando nos
seus ouvidos, recolheram-se ao palácio e ao
aconchego da família. Todos estavam presentes:
Joanna e Alex com Amélia, Kassandra e Royce,
Leoni e Marcus, Phaedra e Andrew, Helena e até
mesmo Polônio, que havia recebido permissão para
comparecer ao evento. Encontrava-se um tanto
inseguro, especialmente diante de Atreus, porém o
rei logo o pôs à vontade.
— Apreciarei a oportunidade de visitar a
Inglaterra — afirmou Polônio, volvendo o olhar a
lady Constance e lorde William. — Foi muito gentil
da parte de vocês me convidarem.
— Será um prazer tê-lo connosco — respondeu
lorde William.
Brianna sabia que o lorde tivera uma reunião
privada com Atreus, quando havia sido informado
das circunstâncias a respeito de Polônio. E a
disposição que mostrava em dar ao jovem a
oportunidade de que ele tanto necessitava fê-la se
afeiçoar ao conde ainda mais.
Quando estavam saciados de vinho e comida,
Kassandra inclinou-se em direção ao marido e sorriu
para todos.
— Mal posso crer que Joanna chegou aqui há
menos de dois anos. Tanta coisa aconteceu, tantos
desafios se sucederam e tantas bênçãos. — Toco o
ventre abaulado. — E ainda tanto por vir. Somos a
família mais afortunada.
— Ao que parece, sempre fomos — interveio
Royce. — Desde os primórdios.
Se fez um profundo silêncio à mesa, e então
Atreus ergueu a própria taça e sorriu para a noiva.
— A todos os antepassados e sobretudo aos que
estão por vir.
A noite prosseguiu com festas dentro e fora do
palácio.
Vozes alegres soavam através do mar que lavava
os rochedos que protegiam o Reino Fortificado
naquele momento e para sempre.
Mais distante, além do que a vista podia
alcançar, o futuro os aguardava.

FIM

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