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14 Maio 2017
Já tinham lido todos os livros, mesmo os que supostamente não tinham sido publicados ou
tinham sido confiscados, mesmo Shakespeare e, por isso, sabiam que quando Cesariny
exclamava You Are Welcome to Elsinore, ele não estava senão a dizer que o reino podre
de Hamlet não era na Dinamarca. Era mesmo aqui, Portugal.
Se olharmos com atenção os rostos percebemos que aqueles rapazes talvez não
sejam assim tão novos. Já viajaram, já perderam mães e pais e irmãos.
Conhecem bem a violência. Já foram meninos prodígio de suas mães, criados
como príncipes nas suas famílias da alta e média burguesia de Portugal e das
Colónias. Já tinham lido todos os livros, mesmo os que supostamente não
tinham sido publicados ou tinham sido confiscados, mesmo Shakespeare e, por
isso, sabiam que quando Cesariny exclamava You Are Welcome to Elsinore, ele
não estava senão a dizer que o reino podre de Hamlet não era na Dinamarca.
Era mesmo aqui, Portugal, e que os emparedados eram eles, em busca de
palavras que cumpram o seu dever de falar.
Sala traseira do Café Gelo em 2017. Nenhum rasto da presença daqueles
rapazes
Mais tarde chega o velho poeta Raul Leal, que fez parte do Grupo Orpheu e
conheceu Fernando Pessoa. Vem, como sempre, acompanhado do amante, um
ex-pugilista, que se sentava ali como se um deles fora. Leal contava histórias dos
dias com “Ferrrnanadinho”, e os rapazes gostavam daquela excentricidade de
quem já tinha gasto três fortunas, vivido em Paris e carregava muito nos “rrr”.
Alguns levantam-se e vão embora. O dinheiro é curto. Quando uns saem outros
parecem de repente ter chegado. Mas não. Estiveram sempre ali sem ninguém
dar por eles. Nunca se sabia para quem ia impender as maldades e as crueldades
nessa noite. Qualquer um podia ser a vitima.
“Na clientela do Café Gelo, nos anos 50-60, não teria homogeneidade etária,
coexistiam tipos dos 8 aos 80, do José Carlos González, caco infantil, ao Raul
Leal, do Orpheu, caquético total. Escassa identidade ideológica, dos fascistas
aos anarcas como o Forte, o Henrique Tavares, o Saldanha da Gama.
Prostitutas, bêbados e maricas. Maluquinhos como o António Gancho.
Nenhuma programação estética. Dali não saiu revista, doutrina, escola que se
aproveitasse. Então?! Havia, isso sim, um espaço de convívio em liberdade
plena, feroz e mútua crítica, nenhuma contemplação pelo arrivismo…” [Luiz
Pacheco]
No circo de feras
Daquela sala traseira do Café Gelo, assim chamado porque terá sido o primeiro
o ter gelo, saíram, na tarde de 1 de fevereiro de 1908, Alfredo Costa e Manuel
Buiça para a praça do Comércio com as carabinas debaixo do casaco. Quem os
visse descer a rua não diria que iam matar o rei D. Carlos e o filho D. Luís Filipe.
Que aquele regicídio que levaria à proclamação da República e com ela uma
mudança de sentido na História de Portugal. Ironicamente os fervorosos
republicanos deste país nunca inscreveram nos seus mitos este lugar que parece
inegavelmente destinado às figuras mudas da história. Aos que não vêm de sitio
nenhum, aos que estão de passagem, sem outro comando que não sejam as suas
paixões e apetites que o mundo julgará sempre como “insanos”.
Evocação do Regicídio, por Costa e Buiça, na sala das traseiras do atual Café
Gelo, no Rossio
Mas não foi por isso que entre 1956 e 1957 o Gelo passou a ser a toca de outros
seres agitados, perseguidos pelos seus fantasmas, violentos, revolucionários de
nenhuma revolução, assassinos de um único rei: eles mesmos. Não eram um
grupo, eram passageiros na noite, nos dias. Não eram os heróis. Eram os fracos,
os que não tinham força para serem aquilo que as famílias, a sociedade, a pátria
queriam que eles fossem: advogados, médicos, funcionários burocráticos
respeitáveis, com uma sexualidade igualmente respeitável e, preferencialmente,
tementes a Deus. Todos, os quase todos sofriam de uma “impericia absoluta de
estar no mundo”, como dirá o poeta Ernesto Sampaio. O que os juntava ali era a
revolta impotente, ou como Helder Macedo, lhe chamou uma “utopia da
negação.”
“O que todos nós, os do Café Gelo, tínhamos em comum era uma atitude de
recusa, uma partilhada vontade de quebrar amarras, um só sabermos o que
não queríamos para podermos deixar um espaço livre para o que pudéssemos
talvez querer. A recusa de normas estabelecidas era a nossa única norma. O
questionamento de valores impostos o nosso único valor. As noites eram os
nossos dias. Se vivíamos num mundo às avessas, tínhamos de conseguir viver
no avesso das avessas. Estávamos todos muito zangados com o que queriam
fazer de nós: o governo, as universidades, as várias polícias que não nos
queriam deixar ser quem ainda não sabíamos que poderíamos querer ser, os
intelectuais estabelecidos que nos queriam ensinar a sermos quem não
queríamos ser. Desdenhávamos rótulos, desprezávamos preconceitos(…) O
que havia de comum em todos nós era um grande nojo partilhado em modos
convergentes de o exprimirmos. A utopia da negação. Uma ‘utopia’ é um não-
lugar. É isso que a palavra etimologicamente significa. É a transformação da
impossibilidade em metáfora, é uma metáfora do desejo inalcançado.” [Helder
Macedo, Camões e Outros Contemporâneos]
Por cima do café Beira-Gare (que ainda existe) na esquina da estação de Comboios do
Rossio, havia umas águas furtadas que uns jovens estudantes de pintura alugaram para
usar como atelier: Gonçalo Duarte, René Bertholo, João Vieira, Costa Pinheiro, José
Escada, Lurdes Castro. Uma assoalhada tão pequena que não dava para estarem lá todos
ao mesmo tempo.
Não se viam como um grupo, não se pensavam como um grupo. E ainda hoje
ninguém encontrou um nome que lhes acente, talvez porque eles não caibam
dentro de nenhum nome, de nenhuma designação. Como sabemos as palavras
são sempre epitáfios da experiência viva.E estes rapazes recusam-se a morrer de
qualquer morte que lhes seja atribuída.
Como sempre, não há história, há acasos que à força da razão juntamos como
contas num rosário para fazermos uma narrativa-prece que nos aquiete. Por
cima do café Beira-Gare (que ainda existe) na esquina da estação de Comboios
do Rossio, havia umas águas furtadas que uns jovens estudantes de pintura
alugaram para usar como atelier: Gonçalo Duarte, René Bertholo, João
Vieira, Costa Pinheiro, José Escada, Lurdes Castro. Uma assoalhada tão
pequena que não dava para estarem lá todos ao mesmo tempo. Nos entretantos
iam para o Gelo, porque era só descer a escada. Por ali começaram a aparecer os
amigos, colegas do liceu recém terminado ou da faculdade recém
iniciada: Helder Macedo, Manuel de Castro, José Manuel Simões, José
Sá Caetano, João Rodrigues.
O Café Gelo não era o espaço de um ritual fechado, embora quem chegasse fosse
submetido a uma cruel iniciação prévia, que consistia em aguentar a ironia, o
sarcasmo, o aviltamento, a má língua. Não, estes não eram bons rapazes. E o seu
gostar uns dos outros exprimia-se muitas vezes de forma distorcida, num pôr à
prova constante a ver se não está podre. Não eram uma irmandade alimentada
pelo elogio fácil. Era uma comunidade irreal, cujos laços se faziam e desfaziam à
passagem das horas, da ansiedade, da força, do medo, da euforia, da quantidade
de álcool ingerida. António Barahona era o mais jovem do grupo, também um
dos mais belos e talvez por isso conquistou as atenções de Cesariny. Rindo
muito recorda: “O Mário gostava muito de andar a pé pela cidade, andar sem
destino e eu acompanhava-o. Outras vezes íamos para o atelier dele ouvir
música. Ficávamos horas deitados no chão a ouvir Chopin. Ele sabia que eu
tinha um romance com a minha prima e por isso a família estava toda contra
mim. Quando fez o quadro veio oferecer-mo e disse na brincadeira: agora dê-me
um beijo como dá á sua prima.”
Durante cerca de cinco anos, entre 1957 e 1962, os que ousaram entraram nessa
arena e permanecer tempo suficiente para se tornarem, à vez, gladiadores e
feras, ficaram tocados pela mesma comoção e pelo mesmo veneno. Não havia
televisão, nem redes sociais que mediassem o desejo de cada um de se tornar
uma lenda. Não se mandavam press releases para os jornais a anunciar uma
terça-feira clandestina no Café Gelo, até porque isso podia atrair as atenções da
PIDE e alguns deles tinham estado envolvidos na campanha do General
Humberto Delgado. Helder Macedo, Herberto Helder e José Manuel Simões
chegaram a estar cooptados para transportar armas para um suposto golpe de
Estado que não houve.
A arte era para eles o resultado de uma terrível agitação interna, provocada,
também, por factores externos. A arte não era uma acessório para vestir nos
salões do regime, era um refugio contra tudo o que era apenas uma aparência. O
ilustrador João Rodrigues enunciava uma revolução em forma de performance
artística:
“…Diria que Manuel de Castro era uma pessoa tímida e sem jeito para o
convívio. Não fazia concessões nem fretes – se lhe liam um poema e se ele não
gostava, dizia-o logo de forma brutal e demolidora ou de maneira delicada,
mas consistente, consoante estava em dia sim ou em dia não. Tinha uma
personalidade vincada e, sobretudo, era um grande poeta a quem nunca foi
dado o merecido valor. Éramos muito amigos. Uma vez até andámos à
porrada (e há lá melhor maneira de selar uma amizade!). Uma piada
envenenada que ele disse sobre a ‘Pirâmide’ e que eu levei a mal. Felizmente
que estávamos ambos com os copos e, diz quem assistiu à cena, que a maioria
dos murros acertou no vácuo. Ele tinha uma direita potente e aleijou os dedos
nos azulejos da parede.”
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José Manuel Simões teve a sua obra poética publicada apenas em 2016, na
Abysmo, Sobras Completas, António José Forte terá a obra completa Uma Faca
nos Dentes editada numa edição definitiva pela Antigona, já este mês. O poeta
Carlos Alberto Machado, vai publicar em 2018/19 a obra completa de José
Sebag, cujo espólio foi descoberto recentemente na biblioteca da cidade da
Horta, nos Açores.
“Aos dezoito anos, aos vinte e oito, a vida posta à prova da raiva e do amor, os
olhos postos à prova do nojo. Entrar de costas no festival das letras, abrir
passagem a golpes de fígado para a saída do escarro. Se não temos saúde
bastante sejamos pelo menos doentes exemplares.” [António José Forte]
Mas vale também a pena ler a descrição que Ernesto Sampaio faz da literatura
portuguesa, no livro Para Uma Cultura Fascinante:
“Ninguém pode viver senão ardendo. Mas aqui gela-se. Aqui a santidade é
loucura, a abjeção virtude. Aqui, no meio da cãozoada portuguesa, um homem
tem que se ocultar, isolar todas as suas virtualidades da influencia dos
espíritos abortados, simisescos, dementes, que enchem páginas e páginas da
hortaliça podre que trazem no cérebro e envenenam o ar com a miséria que
exalam adormecendo a vida”.
Uns voltarão a Portugal mas já não ao Gelo. Outros não regressarão mais, como Helder
Macedo, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, René Bertholo, Saldanha da Gama. António
Barahona casa com a poeta Luiza Neto Jorge e vai viver para Faro.
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Os KWY conseguiram publicar essa revista em Paris entre 1958 e 1964. Saíram
14 números em formato de livro manufaturado onde se juntam vários tipos de
artes plásticas e poesia. Procurando escapar aos vários ismos (academismos,
surrealismos, neorealismos, etc) fazem uma fusão de várias linguagens artísticas
de uma forma e arrojada traduzindo a experiência de uma nova liberdade
impossível aqui em Portugal.
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Helder Macedo desenhado por José Escada, para ilustrar um texto de Alfredo
Margarido sobre o livro Vesperal, 1957
Sem nunca regressar a Portugal José Manuel Simões morre em Paris em 1999,
recusando ser tratado e recusando a ajuda de João Vieira e Sá Caetano que se
meteram num carro e foram a Paris para o trazer, sabendo que ele vivia com
grandes dificuldades.
Ricarte Dácio, depois de uma vida dedicada a ajudar os outros, mata a tiro de caçadeira a
mulher, o filho de 15 anos e o gato. Deixa um bilhete à empregada a pedir desculpa pela
confusão e uma carta a Herberto Helder sobre a qual este nunca disse mais do que estas
palavras: "Obviamente rasguei-a".
Ricarte Dácio, depois de uma vida dedicada a ajudar os outros (durante meses
alojou e cuidou de Cesariny e João Rodrigues para estes poderem ficar a viver
em Londres), mata a tiro de caçadeira a mulher, o filho de 15 anos e o gato.
Deixa um bilhete à empregada a pedir desculpa pela confusão e uma carta a
Herberto Helder sobre a qual este nunca disse mais do que estas palavras:
“Obviamente rasguei-a”.
Como escreve Maria Filomena Molder, poucas coisas têm tanta “força
magnética” como o anonimato. No recuo do Eu engendra-se uma força fecunda:
a reflexão dos que olham. Perante estes quase trinta rapazes, homens, figuras,
poetas, pintores, cineastas, editores, tudo o que podemos fazer hoje, 60 anos
depois, é olhá-los sabendo que tudo o que se pode ver é aquilo que não se vê.
Tudo o que podemos saber é aquilo que não sabemos. Dos mais assíduos apenas
dois estão vivos (Helder Macedo, 81 anos, e António Barahona, 79 anos).
Tocados pelo terror primitivo da luz solar mas sofrendo os efeitos devastadores
da noite, podemos olhá-los mas não os poderemos tocar jamais. Eles não
existem. O Gelo nunca existiu.
http://observador.pt/especiais/cafe-gelo-os-60-anos-de-um-grupo-que-nunca-existiu/
acesso: 15 05 2017