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CAPITULO 1. A IMPRENSA COMO TRIBUNA DOS INTELECTUAIS NO SECULO XIX: O GUANABARA EM DEFESA DA ARTE E DOS ARTISTAS NACIONAIS Débora El-Jaick Andrade Imprensa e modernidade: uma tribuna aberta aos talentos Certa vez, quando era colaborador no Correio Mercantil, Joaquim Maria Machado de Assis escreveu sobre a perspectiva de superagao do livro pelo jornal, em uma coluna intitulada “O jornal e o livro”, em janeiro de 1859." Nessa coluna, arrolava elementos pelos quais o primeiro, acompanhando as transformacées da Revolucdo Francesa, ultrapassaria as fronteiras impostas aos livros e se tornaria uma tribuna comum. O jornal se traduziria como “lite- ratura comum, universal, altamente democratica, reproduzida todos os dias, levando em si a frescura das ideias e 0 fogo das convicc6es”.” A nova técnica de reprodugao dos caracteres, revertida em um formato de literatura barata e de facil assimilac4o, permitiria refletir “nao a ideia de um homem, mas a ideia popular”,’ e se constituiria em uma moderna e democratica “tribuna aberta aos talentos” e também em um “grande banco intelectual”, a partir dos quais grandes ideias seriam sintetizadas e tornadas palataveis ao ptblico leigo. * Machado de Assis, Joaquim Maria. O jornal e o livro. In: Machado de Assis, Joaquim Maria. Obra completa de Machado de Assis, v. lll. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 10 e 12 jan. 1859. Disponivel em: http:/machado.mec.gov.briimages/ stories/pdf/cronica/macr13.paf . 2 idem. 3 Idem. Os Intelectuais e a Imprensa 13 Para essa atividade poderiam ser recrutados jovens sem fortuna ou distin- 40, possuidores de qualidades valorizadas nessa nova “época literaria” e no campo intelectual, caracterizado naquele momento pela baixa especializa¢ao. Conforme ponderava o escritor, o periédico “tem ainda a vantagem de dar posicao ao homem de letras”.* Dessa forma os jornais se configuravam em um espaco simbélico e de sociabilidade, onde contatos eram efetuados, mas que se diferenciavam da troca de favores e sinecuras operadas nos saldes, no Pago e nas festas palacianas, que dependiam da proximidade com a aris- tocracia, bajula¢do e influéncia, uma vez que o reconhecimento do ptblico constitufa-se em um capital fundamental para a ascensao profissional. A im- prensa periddica poderia lancar os jovens literatos estreantes 4 proje¢ao no universo literdrio e seria, igualmente, um meio de perceber algum sustento. O século XIX é 0 culminar do processo de expansio e diversificagéo do publico leitor e consumidor de bens culturais, de constituicao de produtores e empresarios de bens simbdlicos, de multiplicacao de instancias de consa- gracdo competindo pela legitimidade cultural, entre as quais, a imprensa.° Esse processo acompanha a gradual valorizacao do segmento social detentor da palavra escrita, expressa, ainda, através de teorias da arte e da estética procedentes sobretudo da Alemanha, que refletem um processo que Paul Bé- nichou designou “a promogio do escritor” no século XIX.° Tais teorias favo- recem a relativa autonomia do campo artistico e intelectual dentro do campo de poder, definindo regras, fungGes e instancias de autoridade propriamente artisticas e literarias, reconhecidas pelos agentes do campo.’ Os especialistas da palavra escrita tornam-se, segundo Pierre Bourdieu, produtores culturais que detém um poder especifico, o poder propriamente simbélico de fazer que se veja e se acredite.* Assim, o escritor passa a ser visto como aquele individuo dotado de uma missao moral superior, que compreendia educar e contribuir para a unidade nacional. As compensag6es materiais advindas dessa configuracao mais complexa pa- reciam, entretanto, nao acompanhar tal prestigiosa missao. No Brasil, por exem- plo, nos mais diversos escritos, vé-se a reivindica¢ao da primazia do talento so- bre os privilégios de nascimento ou distin¢ao, caso do baronato do Primeiro e * Idem. 5 Bourdieu, Pierre. Economia das trocas simbélicas. Sao Paulo: Perspectiva, 2007, p. 100. © Bénichou, Paul. Le sacre de I’écrivain, Paris: José Corti, 1985. 7 Bourdieu, Pierre. Economia das trocas simbélicas, cit., p. 99-101 * Bourdieu, Pierre. Coisas ditas. S40 Paulo: Brasiliense, 1990, p. 176. 14 Débora El-Jaick Andrade Segundo Reinados, cuja riqueza e honraria provinha do favor pessoal e da nego- cia¢ao politica. Aviltados com a lembranga de um passado recente de “servidio”, 0s literatos ressentiam-se de que os poetas e artistas teriam se dedicado as letras e artes pajeando nobres e governantes, servindo-os com diligéncia, sem alcangar © que entendiam como uma justa compensagao. Sendo assim, de que forma poderfamos interpretar o papel da imprensa nesse processo de valorizacao do escritor e do artista, individuo sem privilé- gios decorrentes de sua condi¢ao de classe, que circula em um campo inte- lectual clivado de hierarquias, ortodoxias e ainda, em larga medida, depen- dente do mecenato? Ela desempenha algum papel no embate contra a velha configura¢ao do campo intelectual ou encampa a dentincia da imoralidade na relacdo entre escritores e mercado editorial? Prontamente percebemos que esse embate também é politico e se mani- festou no engajamento da mocidade letrada nos processos de independéncia latino-americanos, contribuindo para “abalar os tronos” deste lado do Atlantico durante as revolugées politicas e reformas sociais europeias no século XIX. Na Franca e Alemanha a imprensa foi veiculo de disputas estéticas e geracionais, que personificavam o combate da burguesia pujante contra a aristocracia deca- dente. No Brasil, sua importancia crescia no século XIX aos olhos contempo- raneos, 4 medida que se definia como um espaco determinante da formacdo e conformacao da opiniao publica. A opiniao publica, conceito que aparece com 0 liberalismo, em uma das suas acep¢ées de época significa “dizer a sua opiniao votando”.’ Enfim, isso a tornava um poderoso contrapeso nos novos tempos eleitorais, em que os literatos poderiam se destacar na arena politica pela ca- pacidade de convencer. Marco Morel observa a relacdo entre essa atividade no jornalismo e os novos espa¢os ptiblicos que surgem apés a independéncia, nos quais os letrados se inserem: “Os homens de letras se apresentavam como cida- daos e escritores ativos, como construtores da opiniao que almejavam conduzir a sociedade a algum tipo de progresso e de ordem nacional”. Em meados do século XIX a imprensa artesanal dé lugar a imprensa coti- diana ou empresarial, sustentada pelos anunciantes, uma das novidades en- gendradas pela modernidade. Em um texto sobre Paris do Segundo Império, Walter Benjamin caracteriza a imprensa popular como veiculo de ascensao * Bluteau, Raphael. Dicciondrio da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado @ ‘acrescentado por Antonio de Moraes Silva, t. 2. Lisboa: Officina de Sim&o Thaddeo Ferreira, 1789, p. 136. *® Morel, Marcos; Barros, Mariana M. de. Palavra, imagem e poder: 0 surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 43. Os Intelectuais ¢ a Imprensa 15 social dos escritores, até mesmo alcando-os 8 carreira politica. Porém, o fi- lésofo marxista percebe as ambiguidades As quais estdo sujeitos autores e trabalhadores das letras diante das exigéncias e necessidades do mercado, intervindo na representa¢ao que faziam de seu papel social influente no po- sicionamento politico, em meio as lutas sociais de seu tempo. Com base nisso, nos perguntamos se esse processo de valoriza¢ao do ho- mem de letras, que passa pela profissionalizacdo e especializagao do campo intelectual, nao determinaria formas de consciéncia de grupo e projetos cor- porativos que visassem reconhecimento e protecao no século XIX. Conside- rando que a inser¢ao social do escritor e do artista nas sociedades modernas, tanto na Europa quanto no Brasil, foi um caminho tortuoso a percorrer, nao seria o jornal, percebido como “tribuna democratica”, ou ainda a revista, essa novidade novecentista, o veiculo para denunciar, reivindicar, agir politica- mente, veicular certos projetos, nao apenas aqueles de interesse das fra¢des de classe dirigentes, mas aqueles especificos de seu grupo social? Nesse sentido, escolhemos a imprensa literaria para comecar a responder a essas quest6es. Com a Maioridade (apés 1840) e a “pacificacao” das pro- vincias revoltosas, a imprensa deixou de servir exclusivamente como espa¢o simbélico da luta partidaria, de insultos e acusacSes durante as turbuléncias do fim do Primeiro Reinado e Regéncias. Afastado o perigo de radicalizagao e sedicao, consolidada a unidade em torno do Projeto Saquarema"’, a disputa “civiliza-se”. A partir de entdo, as atengées se voltavam a forma¢ao de um ptiblico leitor e eleitor em um sistema eleitoral censitdrio, um eleitorado ori- gindrio das classes proprietarias que nao era necessariamente alfabetizado. Como a imprensa era considerada um espaco de opiniao publica privilegiado, cabia igualmente pautd-lo, tuteld-lo e deixar 0 debate politico estabelecer-se sem radicalismos e dentro da ordem. Ao lado dos jornais, a literatura poderia educar os leitores, pois consistia nao apenas em “sadio” entretenimento, mas possuiria o atributo de ensinar valores morais por meio de manuais, romances, biografias, crénicas e teatro. folhetim, introduzido no Brasil na década de 1840, tornou a literatura mais acessivel e barata. Publicado em fasciculos nos rodapés dos jornais, langava ** 0 termo saquarema, enraizado desde meados dos anos de 1840, se refere aos chefes conservadores fluminenses, proprietarios escravistas da localidade de Saquarema, favoraveis a centralizacao. Eram associados a Rodrigues Torres (futuro conde de Itaboral), Paulino José Soares de Sousa (futuro Visconde do Urugual) e Eusébio de Queiroz e imprimiram a direg8o nos assuntos do governo no ‘Segundo Reinado. 16 Débora ElvJaick Andrade autores desconhecidos e produzia best sellers. Assim, nao havia antagonismo entre jornal e livro, pois o jornal assimilava 0 livro, como demonstrava a tese de Machado de Assis, promovendo-o e popularizando-o, fazendo-o chegar a um numero maior de pessoas.'? Dentro dessa tendéncia do século, havia um género de periédico que to- mou por objetivo cultivar o livro e a literatura. As revistas literarias destina- vam-se a agitar o mundo dos livros, promover novos escritores por meio da critica e da resenha, divulgando varios géneros que hoje nao consideramos estritamente literarios, veicular disputas em torno de concep¢ées filoséficas, estéticas e literarias e debater quest6es nacionais, além de cumprir 0 propé- sito literario, instrutivo e enciclopédico. No Brasil foram varias as tentativas, mas poucas tiveram repercussao antes do segundo terco do século XIX. En- tre elas, mencionamos a Nitheroy (1836), a Minerva Brasiliense (1843-1845) e O Ostensor (1845-1846). A Guanabara se inseria em uma tradi¢4o de projetos de revistas bem intencionadas e interrompidas por falta de leitores e finan- ciamento, obstaculos que seus redatores j4 sabiam que teriam de enfrentar desde o primeiro nimero da revista. Uma revista literaria bastante citada pelos criticos no século XX como porta-voz do romantismo literario merece atengao por ter sido, de certa for- ma, subestimada pela historiografia, qual seja, a Guanabara, revista mensal, artistica e literdria, ou O Guanabara (1849-1855), como seus redatores a nome- aram. Em torno de sua criacao havia grandes nomes da literatura no periodo. De acordo com o ecletismo que presidia o campo literério em sua génese, eles participavam da atividade jornalistica, de instituig6es oficiais, socieda- des e academias literdrias e cientificas, da burocracia de Estado e gozavam de prestigio na Corte. Aproveitando-se desse prestigio, seus principais ide- alizadores e executores, Joaquim Manuel de Macedo, Aratijo Porto-Alegre e Goncalves Dias, fariam das paginas da Guanabara uma tribuna para defender a causa dos literatos e dos artistas na Corte em meados do século XIX. Uma nova revista literaria entra em cena Dentro da tendéncia da segunda metade do século, de um lado, a impren- sa empresarial ganhava terreno; de outro, constatava-se a presenga cada vez maior da literatura, especialmente do folhetim. Na Franca, algumas grandes 2 Machado de Assis, Joaquim Maria. O jomal e o livro, cit. Os Intelectuais ¢ a Imprensa 17 revistas politicas e literarias resistiam e persistiam sem recorrer ao novo gé- nero e especialmente, sem anunciantes. A Revue des Deux Mondes e a Revue de Paris, que apareceram em 1829, apés o fim da censura, eram dois exemplos. Mesmo estas aderiram a febre do momento e publicavam na integra roman- ces, as vezes tradug6es de obras literarias estrangeiras, na categoria folhetim ou na de “variedades”. Jean Yves Mollier observa que revistas desse género estavam reservadas ao publico culto, pouco numeroso e educado, amantes das belles lettres, enquanto aquele da imprensa cotidiana era, em contraste, muito menos socialmente homogéneo, sendo constituido por aqueles que frequentavam cafés e gabinetes de leitura.'* Ana Maria Martins ressalta que “a imprensa guardou desses anos uma di- visao precisa: aos jornais, o debate politico; as revistas, a reflexao cultural”.'* As revistas propunham-se a difundir o saber cientifico e estimular a literatura nacional, compostas de textos ligeiros e amenos, acessiveis a uma popula¢do pouco acostumada 4 leitura.'> Na contracorrente da imprensa popular, que na capital do Império brasileiro era representada pelo Correio Mercantil, pelo Jornal do Commercio ou ainda pelo Diario do Rio de Janeiro, elas sobreviviam a duras penas das assinaturas, da fidelidade dos leitores e do estimulo de seus pares literatos. A revista Guanabara foi, nesse aspecto, exemplar. Com duracao de seis anos, de 1849 até 1855, teve as atividades interrompidas muitas vezes pela substitui¢ao de redatores, por dificuldades financeiras, e terminou patrocina- da pelo préprio Imperador. Apesar disso, permaneceu um empreendimento pioneiro no contexto cultural e editorial do Império, que buscou vincular-se a periédicos literarios anteriores como a Nitheroy, a Minerva, a Jornal da Sociedade Philomdtica, a Revista Nacional e Estrangeira, entre outras.'* Antes da publicacao da revista, entre 1843 e 1845, Francisco Sales Torres Homem e Santiago Nu- nes Ribeiro, entre outros, tinham assumido a empreitada langando a Minerva Brasiliense, que possuia secdes dedicadas a reportar os avangos da imprensa,'” *? Mollier, Jean-Yves. A histéria do livro e da edigdo: um observatério privilegiado do mundo mental dos homens do século XVIII ao século XX. Varia Historia 25 (42), p. 521-537, Belo Horizonte, jul.-dez. 2009, p.531 Martins, Ana Maria. Tempos euforicos da imprensa republicana. In: Martins, Ana Maria; De Luca, Tania. Histéria da imprensa no Brasil. S40 Paulo: Contexto, 2008, p. 52. ‘5 Martins, Wilson. Hist6ria da inteligéncia brasileira, vol. II. 3. ed. S40 Paulo: T. A. Queiroz, 1992, p. 63. © Apresentacdo. Guanabara, Revista Mensal, Artistica e Literéria. Rio de Janeiro: Dous de Dezembro, 1851, 1.1, p. 1. 7 Torres Homem, Francisco de Sales. Progressos do século atual. Minerva Brasiliense, n. 1, p. V, Rio de Janeiro, J. E. S. Cabral, 1843. 18 Débora El-vaick Andrade das ciéncias e das belas artes, entre estas 0 teatro e a literatura (brasileira e estrangeira), assim como de acompanhar seu desenvolvimento na Corte. ‘As revistas literdrias no Brasil foram até entao efémeras e, como grande parte da imprensa, ainda dependentes das assinaturas, em vez de anuncios. Na contracapa de uma das edi¢des de 1849, lia-se: © Guanabara publica-se mensalmente: cada um de seus nimeros conte- 14, pelo menos, 64 paginas de impressao, e ser4 muitas vezes ornado de estampas: cada semestre formara um tomo, e entao os Srs. subscripto- res receberao um frontespicio e um indice geral das matérias."* Os exemplares eram tanto vendidos na Corte quanto remetidos as pro- vincias e alcangavam mesmo o exterior.'? Para aqueles que queriam assina- -la, os locais na Corte para onde os interessados deveriam se dirigir também constavam na contracapa. Vendia-se no escritério da Guanabara, na rua do Regente n. 57, na tipografia do Correio Mercantil, na Agra & Comp. na E. e H. Laemmert, na rua da Quitanda, na Bibliotheca Fluminense, na casa de Manuel de Aratijo Porto-Alegre e na Tipografia Imparcial de Paula Brito, na Praga da Constitui¢ao. Ao lidar com uma fonte impressa, uma questao nos provoca: quem se- riam os compradores da Guanabara? Em fungao das informagées contidas nos tomos disponiveis, seria possivel identificar 0 publico leitor da revista? Na apresentagao os redatores declaravam o seu ptiblico-alvo, o leitor ideal que desejavam atrair: as familias, a mocidade nas escolas, o comércio; e seria “de- dicada as classes da sociedade que procuram um passatempo instrutivo”.?° No Segundo Reinado, para negociantes ¢ fazendeiros, 0 letramento tornava- -se pouco a pouco habilidade imprescindivel ao desempenho de funcdes de diregao, requisito para a insercao nas agéncias estatais, desejavel para a as- censio politica em um sistema bipartidario e censitario, em que a oratéria e a citacdo sdo virtudes do estadista. %® Guanabara, Revista Mensal, Artistica e Literéria, n. 1, |, p. 1, Rio de Janeiro, Typographia do Archivo Médico Brasileiro, 1849. Disponivel em https://archive.org/details/trabalhosdasocie0 1soc. 18 Eo que revela a nota elogiosa de Saint-Hilaire, que a recebeu em Paris, dizendo que esperava que ‘ela demonstrasse aos botnicos franceses os progressos das ciéncias naturais entre os brasileiros, afirmando que fez publicar 0 texto de Freire Alemo para 0 tomo 1 nos Anais das Ciéncias Naturals. Ver Guanabara, cit. t. |, p. 409, Rio de Janeiro, Dous de Dezembro, 1851. 2 ppresentagaio. Guanabara, cit, n. 1,t. |, p. 1. Os Intelectuais ¢ a Imprensa 19 A revista e seus redatores, desejosos de ampliar os espacos em que as revistas literarias se inseriam até entéo, esmeravam-se na busca por divul- gac4o e receptividade entre um publico leitor de novo perfil que surgia, origindrio de setores proprietarios, nao necessariamente aristocratas e re- ligiosos, com alguma instrucao escolar e participantes da “boa sociedade”. O valor da subscri¢ao que consta da contracapa do primeiro tomo fornece um indicio quanto aos consumidores que poderiam adquirir a revista. A as- sinatura custava 5$000 por semestre e 10$000 por ano, tanto para a Corte como para as provincias, pagos na entrega do primeiro nimero,”' o que é um pre¢o alto para os periddicos especializados do mesmo periodo,” porém relativamente barato em relac4o as assinaturas dos jornais cotidianos, que podiam também ser adquiridos avulsos.”* Esse valor equivalia, em média, a 1% dos vencimentos anuais de um professor do Colégio Pedro II** e ao aluguel mensal de um escravo doméstico, mas provavelmente nao era tao elevado, considerando-se os valores atuais das assinaturas de revistas. Seu valor subiu em 1854 para 15$000 por ano por 18 numeros, enquanto os concorrentes mantiveram seus pre¢os mais ou menos no mesmo patamar de 1849.2 E verdade que a riqueza dos fazendeiros multiplicou-se no peri- odo, mas os rendimentos dos profissionais liberais estagnaram-se. Assim, para os novos consumidores desses bens culturais, cuja fortuna provinha de atividades comerciais e agricolas, outros géneros poderiam despertar maior interesse pratico do que a erudita Guanabara. Ao observar a lista de assinantes no final do tltimo tomo de Guanabara, vé- -se um total de 64 individuos, a maioria do sexo masculino, entre os quais mé- dicos, politicos, engenheiros, professores, padres, juristas, alguns negociantes, % Guanabara, cit, n. 1, t. 1, p. 1. 2 & Revista do IHGB custava 4$000 reis por ano; 0 Auxiliador da Indiistria Nacional, Os Annaes de Medicina Brasiliense, jornal da Academia Imperial de Medicina, custavam 6$000 por ano e a Iris, Periédico Mensal de Ciéncias @ Letras, era assinada por 6$000 réis por semestre © 148000 anuais. Almanak Administrative Mercantil © Industrial Laemmert do Rio de Janeiro, Eduardo ¢ Henrique Laemmert, 1849, 23 Em 1849 0 Diério do Rio de Janeiro cobrava 12$000 por ano, tanto para as provincias quanto para ‘@ Corte; 0 Correo Mercantil cobrava 16 por ano, 8$ por semestre em 1849 para a Corte e 188000 e '9$000 para as provincias; e © Jornal do Commercio, 20$000 por ano. Almanak Administrativo Mercantil @ Industrial Laemmert do Rio de Janeiro, cit 2 Esse valor variava entre 1.200 e 720 réis. Almanak Administrativo Mercantil ¢ Industrial Laemmert do Rio de Janeiro, cit., 1850, p. 78. 5 Outras revistas apareceram em 1854, como Agricultor Brasileiro, Jomal das Senhoras e Novo Correio das Modas. Mais baratas, poderiam dividir a ateng&o do publico pelo pragmatismo ou entretenimento. 20 Debora Et-Jaick Andrade witios deles sécios do Instituto Histérico e Geografico do Brasil. Além desse miimero, havia 120 acionistas que recebiam o periddico em fungao de socieda- decom a Tipografia Dous de Dezembro, entre eles o Imperador e a Imperatriz. E justo relativizar esse numero de assinantes supondo que fosse maior nos dois primeiros anos, tendo varios desistido em funcao das interrup¢des cons- ‘tantes dos ntimeros. Ainda assim, podemos supor que 0s leitores “espontane- es", assim como os “incidentais”, fariam parte da mesma confraria de letrados que circulava entre 0 Paco e o Instituto Histérico, que se empregava nas insti- tuigSes da burocracia imperial, que aspirava a titulos e pensGes e que apoiava imcondicionalmente a monarquia constitucional. Isto é, para seu propésito de @tingir as familias, as mocidades nas escolas e os comerciantes, a Guanabara indo conseguiu expandir seu publico leitor para muito além dos limites de um ‘segmento da classe senhorial com que seus redatores se relacionavam, convi- ‘wiam € se encontravam em outros espacos de sociabilidade. A proposta do periédico, reproduzindo as tendéncias da Ilustracao, ‘era ocupar-se das ciéncias, das letras e das artes, afirmando que abordaria © estado intelectual da época e com ele as tendéncias do pensamento da atualidade...”.?° Procurava mesclar assuntos especializados e graves Aque- les mais leves e amenos, esforgando-se em vulgarizar o conhecimento de Botanica, histéria, matematica.”’ Ao lado disso, anunciavam a preferéncia pelos assuntos nacionais que interessariam ao publico leigo, porém instru- fido. As secées de variedades e de noticias diversas concorriam com espa¢o para diversos géneros literarios, como a oratéria do padre Monte Alverne, cartas de Evaristo da Veiga, traducao de cantos da Divina Comédia de Dante, poema inédito de Gonzaga, selecdo de poemas de Colombo (Porto-Alegre), de Timbiras (Goncalves Dias) e da Nebulosa (Joaquim Manuel de Macedo), que depois foram publicados em livros, cuja venda era anunciada na re- wista. No segundo semestre, a “Bibliotheca Guanabarense” publicou uma comédia, A estdtua Amazénica, e flertou com romances folhetim ao publicar ‘@ romance Vicentina, de Joaquim Manuel de Macedo, e Rosa, em capitulos, sem contudo aderir ao género. Nesse sentido, como observou Ubiratan Machado, a revista Guanabara propunha-se a se transformar em jornal-livro,”* o que representaria a fusao Apresentacao. Guanabara, cit. t. |, p. 1, 1851. * idem. ® Essa intenc4o era manifesta pelo redator cénego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro no Epilogo que encerra 0 terceiro @ ultimo tomo, correspondent ao ano 1855. In: Pinheiro, Joaquim Caetano Os Intelectuais e a Imprensa 21 das vantagens dos dois veiculos de comunicag4o.”” A Guanabara era encami- nhada assim aos assinantes, em numeros, encadernado, repleto de poesias, esbocos biograficos, recordacdes de viagem, artigos de interesse histérico, noticias diversas sobre autores e obras em gestacao. Ocupar-se-ia das ci- éncias, das letras e das artes, prometia artigos nas especialidades dos reda- tores, “uma critica animadora e imparcial”, a colaboracdo de notabilidades do cendrio das letras, pretendendo ser o “santudrio da reuniao de todas as inteligéncias, e de todas as crengas polfticas”.*° Se as revistas literrias tiveram muitas vezes como caracterfstica figurar como espaco exclusivo para a colocac4o do literato em letra impressa,*" a Guanabara nao lancou seus redatores, porque estes j4 tinham consideravel renome e eram frequentadores da Corte, a comecar pelo préprio editor, 0 respeitado tipégrafo Paula Brito, diretor de A Marmota Fluminense, que se tornou impressor da Casa Imperial e cuja tipografia, Dous de Dezembro, recebia subsidios dos cofres da Coroa, tendo editado varias obras subvencio- nadas além da Guanabara. Reconhecido por sua pericia e solicitude, era para ele que os redatores recomendavam que os leitores se dirigissem no caso de reclamag6es quanto a parte material da Guanabara.>? A estreia de Guanabara ocorreu em 1849, redigida por “uma associacdo de literatos”. Entre eles, subscreviam o agradecimento oficial ao Impera- dor, na “Apresentac4o” de 1854, Aratijo Porto-Alegre, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Guilherme Schuch de Capa- nema, Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Antonio Claudio Soydo, José Al- bano Cordeiro e o professor de pintura histérica Jodo Maximiano Maffra.? Nesse sentido é possivel afirmar ser a Guanabara um empreendimento entre literatos que eram, além disso, amigos e compadres. As relacdes de compa- drio eram conhecidas: Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro era padrinho de um filho de Aratijo Porto-Alegre;* a filha de Joaquim Norberto, Julia Femandes. Epilogo. Guanabara, cit., 1855, t. 3, p. 359 (48). ® Machado, Ubiratan. Vida literéria no Brasil durante o romantismo. Rio de Janeiro: Uer), 2001, p. 42. p. 1, 1851. * Martins, Wilson. Histéria da inteligéncia brasileira, cit., p. 63. * Apresentacao. Guanabara, cit. * Ros nossos assinantes. Guanabara, cit., t. 2, p. 232, 1854. * Guanabara, cit, t. 3, p. 210, 1855. ™ Cf, Carta de Joaquim Pinheiro a Porto Alegre de 5 de janeiro de 1869, “Cartas a Porto Alegre - do arquivo de Araujo Porto Alegre”. In: Revista do Livro, ano VI, n. 23-24, p. 150-151, jul.-dez., 1961. 22 Débora Elvaick Andrade Norbertina de Oliveira, era afilhada de Porto-Alegre;?* Guilherme Schuch Capanema e Manoel de Aratijo Porto-Alegre eram casados com duas irmas €, portanto, eram concunhados. Isso tornava 0 projeto da Guanabara tam- bém uma iniciativa familiar, que merecia esforcos e propaganda da parte de todos os envolvidos. Alguns colaboradores eram especialistas em seus temas, e esse aspecto era alardeado com 0 intento de promover a revista. Alguns deles foram Freire Alemao, médico e professor da Faculdade de Medicina; Ludwig Rie- del, diretor da terceira segéo do Museu Nacional; Guilherme Schuch de Capanema, atuante na parte de botanica; Candido de Azeredo Coutinho, matematico, lente de quimica, provedor da Casa da Moeda em 1851; Fre- derico L. C. Burlamaque, engenheiro e diretor da secao de mineralogia do Museu Nacional; e Capanema; responséveis pela parte de quimica, todos fundadores da Sociedade Vellosiana, cujas descobertas prometiam publicar na revista.°° Entre os redatores havia algumas “notabilidades”*” que ajuda- vam a alavancar as assinaturas e dar credibilidade a revista, considerada por um de seus redatores “a primeira revista literdria do Brasil”.2° Trés eram escritores da primeira geracao do romantismo e encarregados do trabalho de organizar a pauta e escrever os artigos da revista: Joaquim Manuel de Macedo, Anténio Goncalves Dias e Manuel de Aratijo Porto-Alegre e, a partir de 1854, Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, cénego da Capela Imperial, vice-reitor e capelao do Instituto dos Meninos Cegos, sécio e pri- _ meiro secretario do IHGB, que faria ressuscitar a Guanabara. J. M. de Macedo, nascido na cidade fluminense de Itaguai, filho de um botic4- rio e juiz da localidade, cursou medicina e enveredou pela imprensa e literatura apés seu grande sucesso, A Moreninha (1844). Tornou-se professor de Historia e Geografia do colégio de Pedro Il e membro do IHGB, onde desempenhava a fun- ¢&0 de secretario e orador. Foi jornalista, folhetinista, cronista, critico, escreveu manuais didéticos e teatro. Foi deputado, partid4rio da monarquia constitucio- nal e do Partido Liberal, defendendo o abolicionismo. Goncalves Dias também ®5 Cf. Cartas de Norberto a Porto-Alegre, de 21 de fevereiro de 1872 ¢ 18 de margo de 1877. Publicadas na Revista do livro 150-151, jul.-dez., n. 23-24, ano VI, 1961. Arquivo Porto-Alegre, Academia Brasileira de Letras. %* Noticias diversas. Guanabara, cit., n. 1, t. |, p. 1, 1849. Disponivel em: https://archive.org/streamy trabalhosdasocie0 1soci#page/38/mode/2up, p. 36-40. 57 Apresentagao. Guanabara, cit., tI, p. 1, 1854 ** Pinheiro, Joaquim Caetano Femandes. Epflogo. Guanabara, cit, t. 3, p. 359, 1865. Os Intelectuais @ a Imprensa 23 era um monarquista com ideias liberais. Maranhense de Caxias, filho natural de um portugués com uma mestica, teve os estudos custeados em Coimbra. Ver- sado em poesias e interessado pelo teatro nacional, lancou-se literato na Corte, trabalhou no jornalismo, deu aula em liceus, no Colégio de Pedro II como lente de Latim e Histéria do Brasil, tornou-se sécio e orador do IHGB, celebrizou-se como poeta, mas destacou-se ai como etnégrafo. Foi nomeado para comissoes de investigacao e para funcionario da Secretaria dos Negécios do Império, em que atuou até que, j4 doente, sua remunerago lhe foi cortada. Manuel de Arati- jo Porto-Alegre procedia de Rio Pardo, na provincia de Sao Pedro, filho de pe- quenos comerciantes, trabalhou com relojoeiro, estudou na Corte, tornando-se discipulo de Jean-Baptiste Debret, a quem acompanhou de volta 4 Franca. Com outros estudantes — Sales Torres Homem e Goncalves de Magalhies -, criou em Paris a revista Nitheroy, que teve dois numeros. De volta ao Brasil, foi pintor da Camara Imperial, projetando as festas imperiais, cendgrafo, professor de dese- nho em algumas instituig6es de ensino e pesquisa e na Academia Imperial de Belas Artes, e também diretor do Museu Nacional. Conviveu com politicos de prestigio e com o Imperador, que o nomeou diretor da Academia Imperial de Belas Artes. Foi membro do IHGB, do qual era orador, atuou como vereador, arquiteto e poeta, conseguiu se estabelecer na diplomacia residindo no exterior e recebeu comendas e 0 titulo de barao. Com tantas notabilidades envolvidas na burocracia, magistério, jorna- lismo e politica, era dificil que a revista seguisse regularidade de publi- cacao. Apés quase ter deixado de existir, devido as eximias assinaturas, pelo adoecimento de Joaquim Manuel de Macedo e Aratijo Porto-Alegre em 1850 (época da epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro) e pelo afastamento de Goncalves Dias, em comissao ao norte do Brasil e 4 Eu- ropa, a revista sucumbiu; apés trés anos, voltou a ser publicada gra¢as ao patrocinio do imperador. Apesar desse patrocinio, a Guanabara sofreu do mesmo mal que denunciava; nao conseguiu sobreviver em meio ao desin- teresse geral. O cénego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro conseguiu certa regularidade no langamento dos numeros, causa da desisténcia de muitos assinantes; porém, o desinteresse permaneceu e ele 0 justificou, atribuindo a ma safra de producées literarias: [...] dirfamos que se ha falta de variedade em seus artigos, é esta originada pela atual e momentanea esterilidade da nossa litteratura. O génio esta de incubacdo; grandes obras se preparam; mas o movi- mento litterario é escasso, e diremos quasi mesquinho. Jé uma vez 24 Débora El-Jaick Andrade dissemos - a época é de transi¢ao: quando o thermometro subir, mais __ interessante serd a nossa Revista.** mesmo nas sess6es do ‘Constata-se que a reclamacdo tem procedénci ‘© ano tinha sido parco em trabalhos originais. O epilogo do terceiro tomo, publicado em 1855, marca a despedida do cénego Fernandes Ele demite-se alegando que o surto de colera-morbus de 1855, que As epidemias de febre amarela, contribuiu para “a pouca anima¢ao 's¢ notou na regio das letras”, com pouquissimos literatos dispondo-se ea participar da revista. ‘A Guanabara, tribuna dos literatos Martins sugeriu que a composi¢ao do quadro de redatores indicava consistiu em um “diario oficial” da literatura roméntica no Im- “ Ao lado do cultivo literario, sugerimos que existe um elemento muito te e digno de nota: a vontade de intervir sobre a opiniao ptiblica, constitufda por um restrito publico leitor. Os literatos nao se imagina- como os sabios do passado, enclausurados,"' contemplando a obra de ‘os muros de conventos. Percebiam-se lutando e trabalhando por cau- is, que se localizariam acima dos “mesquinhos interesses”* cotidia- da politica partidaria. Ainda que para alguns a tribuna parlamentar fosse fa- jer, nem ela nem o ptilpito eram os espacos de defender ideias politicas mais ‘ou criticar o partido no poder; a tribuna da imprensa constitufa esse Nesse sentido, ainda que varios deles, inclusive aqueles ligados ao circu- ico, advogassem pelo liberalismo e abragassem a causa abolicionista, )Joaquim Manuel de Macedo e Aratijo Porto-Alegre, ou incorporassem os em sua poesia, como Gongalves Dias e Gongalves de Magalhaes, sua beneficio da cultura nacional estaria em primeiro plano. a atenco na revista o destaque dado as instituicGes culturais impe- 20 Conservatério de Musica, ao estado dos teatros, ao Instituto Histérico e Academia de Belas Artes, a situacao das artes em geral e da literatura ‘Contudo, nJo se trata apenas de informar sobre os avan¢os das letras e Joaquim Caetano Fernandes. Epilogo, cit. t. 3, p. 359, 1855. Wilson. Historia da inteligéncia brasileira, cit., p. 400. JHomem, Francisco de Sales. Progressos do século atual, cit, p. VI. Guanabara, cit, t. 1, p. 1, 1851. Os Intelectuais ¢ a Imprensa 25 ciéncias entre os brasileiros. E certo que a Guanabara dava conta desse progresso quando anunciava a confec¢ao e publicacao de obras importantes, como a Histéria do Brasil, de Varnhagen, Os timbiras, de Goncalves Dias, ¢ A confederasto dos tamoios, de Goncalves de Magalhaes, ou quando aplaudiu a mudanga do Instituto Histérico para as dependéncias mais espacosas do antigo Convento do Carmo.** A nosso ver, entretanto, hd uma inten¢4o muito mais propositiva; a defesa de um projeto politico que pressupée a atribuicao de novas incumbéncias ao Estado, quais sejam, velar pela cultura e elevacdo moral de um povo e assim promover a reforma moral e intelectual na sociedade brasileira. Percebemos, especialmente nas apresentaces dos primeiros dois tomos e no retrospecto literdrio, que geral- mente nao eram assinados, a expressao de um projeto editorial, de vozes coletivas que representavam a associac4o de literatos, sustentaculo da revista. Os redatores, literatos de reputagao, versados em literatura, hist6ria, ciéncias e nos ramos artis- ticos, demonstravam, através de argumentos, a necessidade de socorrer e valorizar as produg6es do espirito, na assertiva de que uma nova légica e novos valores deveriam conduzir os negécios de Estado e da sociedade. Na apresentagao ao primeiro tomo escrito em 1849, encadernado e publi- cado em 1851, os redatores Aratijo Porto Alegre, Goncalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo assumiam a tarefa de concentrar todas as forcas para o desenvolvimento moral e intelectual, tinica base de um seguro e permanente progresso.** Acrescentavam a constata¢ao de que, se a natureza é grandiosa, se 0 meio é proficuo, os brasileiros apresentavam-se como deslocados dessa pai- sagem, em condicdo de inferioridade: “Tudo é grande e prodigioso neste Brasil; tudo se apresenta debaixo das formas mais belas e mais colossais - exceto 0 homem!”5 A ideia de que o homem precisava ser moralmente aperfeigoado, de desenvolver todas as suas potencialidades para poder a sociedade entdo se reformar, é baseada em uma concepcio ligada ao humanismo e a Antropologia romantica de que cada homem porta em si uma particula da divindade que pode se desenvolver. De certa forma, a arte e a poesia s4o os meios primordiais pelos quais esse potencial toma corpo, através da educacao. Nesse sentido, propéem-se a “ajudar a todos os athletas que se achdo na arena [,..] para que em breve possamos unidos entoar o epinicio triunphal de uma época que ha- vemos retardado, que esta langada em divida no grande livro do tempo”.*° Noticias diversas. Guanabara, cit. t. 1, p. 38, 1861. “ Guanabara, cit... p. 2, 1851 * Ibidem. “ apresentagao. Guanabara, cit. t. 1, p. 2, 1851. 26 Débora ElvJaick Andrade, O efeito desse aperfei¢oamento individual, estendido a toda a comunida- de, resultaria em beneficios futuros para a totalidade do corpo social.” E no futuro que depositariam suas esperangas de ver triunfar as letras, a arte e a meméria do génio nacional. Acrescentam: Entdo se ter dado um largo impulso a esse grande inventario de nos- sas riquezas naturais; entdo j4 se ter4 ouvido a palavra do filésofo americano, visto a andlise do quimico brasileiro, escutado 0 canto das florestas, e atendido aos dogmas da experiéncia. Ento estarao colocadas as balizas da estrada do futuro, obtidos séli- dos resultados, e planejado esse sistema de grandeza e de prosperida- de, que dorme entre a poeira do turbilhao e do egoismo. Entio seremos uma nago na América.[...].*® A “época triunfal” da civiliza¢do brasileira por vir prometia um repertério de obras meritérias, de artistas e de génios reconhecidos como tais nos mais diversos campos e géneros literdrios: A nossa literatura tera as bases monumentais que este pais propor- ciona, terd o seu cunho de nacionalidade, o seu cardter préprio; entao seré maior 0 catdlogo dos mortos, que é 0 indice dos monumentos de gloria, o quadro do passado, os pontos luminosos da histéria, e 0 de- pésito de eviternos lauréis. O pafs que deu ao mundo Durao e Caldas, os Gusmaos e os Andradas, Camardo e Abreu, Cairu e S. Leopoldo, promete alguma c quando o tempo for mais apreciado que 0 ouro, e o homem se consi- derar como a primeira alavanca da civilizagao, como motor de todo o impulso progressivo. a mais, Eis os pontos cardeais da nossa fé, eis o espirito que anima a todos os redatores do Guanabara, e o pensamento que os abraca, e que os impe- le a concorrer para aquela grande obra: basta de épocas criticas, basta de imiteis oscilacdes, basta de perda de tempo: — comecemos a nossa época organica.'° (grifos nossos) Nessa “Apresenta¢do” de 1851, sob a intencao de iniciar “nossa época organica” est4 presente a conceps4o da nac4o como uma unidade organi- * Ibidem. Ibidem. * Ibidem, Os Intelectuais e a Imprensa 27 ca, um fenédmeno tnico espacial e temporalmente, que pressupunha que elementos culturais, costumes, usos, religiao, lingua, arte, folclore e mitos formariam uma totalidade harménica, constituindo um sistema de institui- Ges e valores, organicamente entrelacados, que corroboraria a si mesmo.” Para cumprir 0 ideal de ser uma “Nac4o na América” os brasileiros precisa- riam incrementar o trabalho intelectual nas mais diversas 4reas, produzir um repertorio de obras de diversos géneros e ciéncias, de modo a definir 0 carater proprio, que ainda permanecia obscuro, apesar de o pais jA ter dado ao mundo alguns de seus individuos notaveis. Consideravam “os pontos car- deais” da “fé” que animava seus redatores; “a nossa literatura tera as bases monumentais que este pais proporciona”, ou seja, que o homem brasileiro se igualara ao mesmo nivel que a natureza exuberante e fértil e produzira grandes obras dignas da literatura universal, de um Shakespeare, um Dante e um Camées e outros. A Guanabara também se ocupou de publicar biografias e trechos de en- saios de personalidades das letras para que se produzisse o “maior o catdlo- go dos mortos”, “indice dos monumentos de gléria”.*! Publicava a biografia de Monte Alverne, recordava as notabilidades literdrias, publicando textos de José da Silva Lisboa, o Visconde de Caird, jurista, economista baiano e senador do Império, autor de obras sobre economia politica como Principios de economia politica (1804), um poema inédito de Gonzaga e as poesias dos literatos mais célebres do momento, Gongalves de Magalhaes, Aratijo Porto- -Alegre, Gongalves Dias. Sobre a importancia dos literatos na vida nacional, muito ja se escrevia. Pereira da Silva, autor de Plutarco brasileiro, conferiu longo testemunho a revista Nitheroy (1836). Para ele, os literatos cumpririam © papel de “mover os homens, ligados a virtude, ao belo ideal e ao mundo moral”. Com essa convic¢ao de seu papel de vate, de guia moral, de ele- mento de civiliza¢ao, era importante demonstrar que o Brasil fora capaz de produzir tais individuos. No segundo tomo da Guanabara, Porto-Alegre escrevia em um artigo so- bre o desenvolvimento das belas artes: ® Fleishman, Avrom. The English Historical Novel, Walter Scott to Virginia Woolf. Londres: The John Hopkins Press, 1972, p. 19. 5' Apresentagao. Guanabara, cit., t. 1, p. 2, 1851. * Silva, Jodo Manuel Pereira da. Estudos sobre a literatura. Revista Nitheroy, n. 2, p. 216, Paris, Librairie Dauvin et Fontaine, 1836. 28 Débora El-Jaick Andrade Percorra-se o indice de todas as notabilidades de um povo, folhee- -se no livro dos obitos, estude-se esse catalogo de illustragdes purificadas pelo tempo e pela sepultura, que ahi se encontrara o caracter desse povo; porque a histéria de uma nacao esta na bio- graphia dos seus homens. Nota-se que retoma a tematica da apresentacao do primeiro tomo, alu- Gindo ao “indice de todas as notabilidades de um povo” e a necessidade de definicdo do “caracter desse povo”. A compreensao de que “a histéria de tuma nacio esta na biografia de seus homens” remete a assertiva de Tho- mas Carlyle de que a historia universal corresponde a biografia dos grandes hhomens;** ambos provém da mesma fonte, 0 idealismo alemao. Ha a con- cepedo implicita de que alguns individuos encarnam as ideias predominan- tes em cada época; entre esses talentos encontram-se inventores, poetas, artistas, politicos. O pantedo de escritores seria constituido por uma selecao realizada pela geraco contemporanea de homens de letras, para constituir 2 literatura nacional. A tarefa herctilea de produzir biografias de notaveis coube ao Instituto Histrico e Geografico, que desde o primeiro tomo de sua Revista, em 1839, ja vinha sendo realizada pelos seus sécios e oradores. O “indice dos monumentos da gléria” estava sendo realizado pelos literatos ao publicar e relacionar uma série de obras referenciais desde 0 periodo colo- nial. Na literatura, as “bases monumentais” eram erigidas com a publicagao de materiais que pertenciam a uma cultura majoritariamente calcada na oralidade. Nesse sentido, havia barreiras a serem vencidas para que essas obras saissem do prelo, e grande parte corria o risco de desaparecer no esquecimento. Poesias laudatérias, sermoes, aulas, partituras musicais, pecas musicadas ou recitadas nos tempos coloniais nao eram impressas, mas existiam apenas na memoria dos oradores e artistas. Nos anos de 1830, Pereira da Silva queixava-se na revista Ni- theroy (1836) da pobreza de publicagdes que assolava o pais: “O Brasil conta hoje bastantes literatos profundos, porém eles tém-se somente contentado, (com al- gumas exce¢des) em estudar e saber, e nao se tem querido dignar escrever...””* Vinte anos depois, na Guanabara, 0 tom de decep¢ao dos redatores nao mudou muito: explicavam os atrasos e até mesmo o encerramento da revista pela escas- sez das producoes literdrias nos primeiros anos de 1850. ® Porto-Alegre, Manuel de Aratjo. Algumas idéas sobre as Bellas Artes e Industria no Império do Brasil Artigo Ill. Guanabara, cit., t.2, p. 305, 1854. * Cartyle, Thomas, Heroes and Hero-Worship. Londres: Macmillan, 1897, 5 Silva, Jo&io Manuel Pereira da. Estudos sobre a literatura, cit., p. 217, Os Intelectuais ¢ a Imprensa 29 Os escritores e as obras formariam, assim, os mais preciosos monumentos nacionais, tal como os definiu Alexandre Herculano em 1834 em seu artigo para 0 Repositorio Literdrio: “Qual € 0 estado da nossa literatura? Qual é 0 trilho que ela hoje tem que seguir?” Seriam eles os autores e obras que despontariam como simbolos do que existiria de melhor no pafs, portadores de discursos e olhares sobre o Brasil, sua natureza, sua historia, seus habitantes, que eviden- temente pareciam interessantes aos dirigentes naquele momento. No final da “Apresenta¢ao” de 1851, 0 mote “basta de épocas criticas, basta de intiteis oscilacdes, basta de perda de tempo: - comecemos a nossa €poca organica”®* ocupa um lugar muito importante no pensamento roman- tico, como uma espécie de “utopia passadista” compartilhada por muitos intelectuais na primeira metade do século XIX. A utopia de uma “época or- ganica” recuperaria a unidade, e o lugar de cada individuo na comunidade, conforme uma hierarquia, mérito ou potencial, restabelecendo a harmonia social. Ela contém, sobretudo, uma ideia de ordem, a aspira¢ao a seguranca e 4 certeza, perante uma realidade de inseguranga e estagnaco cultural. Progressos e retrocessos da cultura nacional nos anos 1850 Durante as décadas de 1840 e 1850 cresceu a expectativa dos literatos quan- to ao progresso intelectual do pais. Se de um lado, na economia, as técnicas agricolas e manufatureiras de producao ainda eram primitivas e 0 uso da mao de obra escrava extensivo, a estabilidade politica acarretou alguns sinais de “ci- vilidade”. As estradas de ferro, as comunicac6es intensificadas com 0 telégrafo elétrico, a regularidade da partida de navios para a Europa aproximavam mais o Velho Mundo e 0 Novo, agora ligados sob novos termos. As cidades brasilei- ras sofriam expansao e o comércio prosperava. Sao Paulo assistia 4 expans4o cafeeira e a Corte se embelezava, as ruas ganhavam calgamento e ilumina¢ao a gas, mansoes foram construidas em Botafogo, Catumbi e Santa Teresa. Na capital do pais, estabeleceram-se em momentos variados o Museu Nacional (1818), que apés uma reforma receberia novas colecdes; a Academia de Be- las Artes (1826), reformulada com aulas complementares para aos artifices € operarios, além de abrigar aulas de misica; a Escola Militar (1840), que se transformara em Academia de Ciéncias; 0 Observatério Astrondmico (1845), montado com os mais aperfeicoados instrumentos existentes; e 0 Imperial 5 Apresentagdo. Guanabara, cit., t. |, p. 2, 1851. 30 Debora El-Jaick Andrade Instituto dos Meninos Cegos (1854), formulado segundo o modelo francés; a Escola de Medicina no Rio de Janeiro e na Bahia, reformadas inspirando-se nas melhores escolas da Europa, com professores muito ilustrados, igualmen- te instruidos na Europa, que assegurariam o futuro desses estabelecimentos. Podem-se mencionar ainda hospitais, colégios, como 0 Colégio de Pedro II, para os alunos que se dedicavam 4 carreira literdria e cientifica. Diante dessas instituigdes educacionais e culturais, foram aparecendo oportunidades de em- prego para literatos e artistas no magistério, nos trabalhos sob encomenda e na imprensa, com a ascensio do folhetim. Todo esse conjunto de transformacées que agitaram a vida cultural da Corte, em contraste com o resto do pais, era, porém, insuficiente para ga- rantir seguranca financeira aos artistas e escritores brasileiros. O processo de legitimagao dos produtores culturais estava em curso, e a investigacdo da condi¢ao passada e presente dos literatos se tornava estratégica na promo¢ao dos intelectuais do presente. O estabelecimento de uma “época organica” profetizada pelos redatores da Guanabara estava relacionada a organizacao de uma nova cultura em que no sé 0 escritor era “canonizado”, como su- gere Paul Bénichou, mas também implicaria a elevacao cultural e moral dos demais membros da sociedade por meio da reforma de institui¢6es culturais e educacionais, a construcao e manutengao de arquivos e museus, de conser- vatérios e monumentos, de exposicées de arte e de pesquisa. Nesses espacos os literatos poderiam se formar e trabalhar e, mais importante, desfrutariam de patrocinio de suas obras pelo Imperador. Existia a convic¢ao de que os li- teratos formariam uma nova aristocracia de talento, que as vezes antagoniza- ria a aristocracia tradicional. O argumento é que esse grupo deveria nao ape- nas receber honrarias, mas participar do governo e das politicas publicas que promoveriam o bem-estar geral. Essa proposta ja aparecia nas paginas das revistas literarias havia algum tempo. Na Nitheroy, Pereira da Silva, afirmava que: “Sendo a igualdade politica o principio de toda a constituigao filoséfica, 0 governo, que retine em torno de si, e chama aos empregos os homens de ” 37 talento, anima a nacionalidade, faz prosperar a Moral, e as letras...” A particularidade da aristocracia estabelecida nos trépicos em relacao Aquela do Velho Mundo era que, em grande parte, ela era recente, formada por meio dos titulos concedidos pelo segundo Imperador. Como o grande negécio do Império era o café, os cafeicultores na sociedade escravista estavam no topo da hierarquia social, juntamente com os comerciantes de grosso trato. Ao lado 57 Silva, Jodo Manuel Pereira da. Estudos sobre a literatura, cit.. p. 216. Os Intelectuais e a Imprensa 31 da racionalidade para os negécios, essas fragdes de classe interessavam-se pe- las veleidades aristocraticas, obtengao de titulos, comendas, construgdes san- tudrias com o objetivo de enobrecer-se, pois essas seriam formas de reiterar a hierarquia e sua posico no sistema produtivo e na organizaco social. O Esta- do era, sobretudo, o lugar em que a aristocracia e os dirigentes apropriavam-se dos privilégios, honrarias e poderes em proveito préprio. Os literatos que se dedicavam 4s letras constatavam o desinteresse da aristocracia em rela¢4o a cultura nacional, que se manifestava nas acdes - ou auséncia delas — por parte do governo, desde o Primeiro Reinado, seguindo- -o a Regéncia, em efetivar projetos, leis e medidas para garantir a instrugdo primaria, a formacao de professores, a reforma das faculdades e academias, 0 patrocinio de obras de escritores e artistas. Comungavam da filosofia utilita- rista de Bentham e Stuart Mill, que nao despertaria nos individuos a capaci- dade de fazer sacrificios pela patria, ter pensamentos mais elevados, mas sim desprezo pelas artes ¢ a poesia e pela faculdade da imaginagao.* E por esse caminho que enveredam quase todos os artigos que avaliam 0 estado das artes na Corte. Por exemplo, Aratijo Porto-Alegre realizou um diagnéstico sobre as artes e a industria no Brasil em trés artigos intitulados “Algumas ideas sobre as Bellas Artes e a Industria no Imperio do Brasil”, publicados nos tomos 1 e 2, entre 1849 e 1851, na revista Guanabara, O principio geral dos trés artigos é que o florescimento nas artes corresponde a épocas de esplendor nas civilizacGes, e a inércia e auséncia de realizagées, a sua decadéncia. Sugere que é possivel reconhecer o estado de um povo conhecendo-se um dos elementos de civiliza¢do, 0 comércio, a filosofia, a literatura, que, melhor que todas as demais, expressa as ideias de um tem- po.” Ha a compreensao de que todos esses aspectos estao ligados e articu- lados, quer sejam materiais ou imateriais; assim, para fazer progredir um é necessdrio estimular os outros. Essas ideias e as mudancas que nelas se operariam se expressariam também na industria, na qualidade e beleza do vestudrio, na moda, na arquitetura e objetos de adorno e utilidade. O cul- tivo do desenho reverte para a superioridade dos produtos da indistria,® como na Italia sob os Médici, e conclui que os motivos da sua superioridade * Gongalves de Magalhdes, Domingos José. Discurso sobre 0 objeto de importéncia da philosophia, Para a inauguragéo do curso de filosofia do Colégio Pedro Il, sid., p. 16. Seco de Obras Raras da Biblioteca Nacional, ® Idem, Artigo I. Guanabara, t. 1, p. 111, 1851 © Idem, Artigo Il, p. 139. 32 Débora EhJaick Andrade

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