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10 A HISTORIA DO GENERO E A HISTORIA POS-COLONIAL Este capitulo examina algumas das mais dramaticas ampliagdes da temdtica da historia. Cinquenta anos atrds as mulheres eram ignoradas, ¢ os paises do Terceiro Mundo eram tratados desde uma estreita perspectiva ocidental. Hoje, a histéria do género e da mulher é considerada igualmente central 4 compreen- sdo do passado. Enquanto isso os historiadores pds-coloniais estéo ndo sé de- senvolvendo as historias da Africa e da Asia “desde debaixo", mas estdo insis- tindo que a histéria das antigas poténcias coloniais seja reavaliada desde a perspectiva do colonizado. or num mesmo capitulo a histéria do género e a histéria pés-colonial pode pare- cer um procedimento estranho — até mesmo algo aviltante se isso quiser dizer que as mu- theres e as sociedades do Terceito Mundo podem ser emboladas juntas como ornamentos marginais. Meu tratamento de ambos deve climinar tal impressao. A razao para conside- ré-las juntas é que elas propdem oportunidades ¢ problemas parecidos aos historiadores. Ambas aspiram dar voz a grandes clientelas que anteriormente nao tinham lugar nos regis tos histéricos; e, ao fazé-lo, ambas desafiaram 0 que os historiadores realizam, criticando seus métodos ¢ até mesmo a validez de suas priticas. A historia das mulheres ¢ a histéria pés-colonial nio somente representam uma ampliagao incremental ao escopo do estudo hi rico; elas tém a potencialidade de modificar o caréter da disciplina como um todo. A historia das mulheres O resultado parecia set muito improvavel quando a historia das mulheres foi for- mulada pela primeira vez durante a década de 1970. Como descrito no capitulo 1, a his- t6ria das mulheres surgiu como um aspecto da liberago da mulher. Fazia parte da am- pla estratégia feminista contestar os pressupostos do conhecimento académico. Os pio- neiros da histéria das mulheres estavam nao somente curiosos sobre as vidas das mulhe- res no passado; eles entenderam que o resgate daquelas vidas era essencial & formagio de A historia do género e a historia pés-colonial 265 Owenismo Robert Owen (1771-1858) foi um industrial galés cujos experimentos na administragao de uma fiagdo em New Lanark, na Escécia com base nos fundamentos humanitarios cooperativos o levou a fundar o Grand National Consolidated Trades’ Union para representar toda a classe trabalhadora. O sindicato chegou ao fim quando, em 1834, um grupo de trabalhadores rurais de Tolpuddle, em Dorset, foi levado a Australia para prestar um juramento de lealdade a ela. No entanto, os ideais de Owen foram revividos dez anos mais tarde por um grupo de sindicalistas em Rochdale, Lancashire, que fundou o primeiro movimento cooperativo, no qual todos os membros colocaram sua subscrigao num fundo central, que seria utlizado para manter uma Ioja da Cooperativa que poderia vender produtos aos associados por pregos mais baixos que noutros lugares. As lojas Co-Op ainda séo encontradas nas ruas de hoje. Cartismo Um movimento politico da classe trabalhadora das décadas de 1830 e 1840. Derivou seu nome de People's Charter, redigida em 1838, que estabeleceu uma série de propostas de reformas do Parlamento uma plena consciéncia da mulher no presente. Uma parte da necesséria energia politica foi gerada por es- tudos da vida cotidiana das mulheres que realgaram sua subordinagao aos homens. A hist6ria ofereceu algumas das mais convincentes evidéncias para a existéncia de varios séculos do patriarcado, e a cons- ciéncia da amplitude do patriarcado era central 4 to- mada de consciéncia. A outra fonte de energia politi- ca foram as vidas daquelas mulheres que entraram em agio para resistir & opressio politica e social de seus dias, Explicitamente as organizagoes feministas, como as sufragistas e as suftagistas da Inglaterra de Eduardo, foram um foco dbvio. Mais surpreendente foi a revelagio do papel desempenhado pelas mulhe- res em organizagbes como 0 Owenismo ¢ 0 Cartis- mo, que frequentavam as paginas da histéria como sendo redutos masculinos'. O efeito de tais estudos foi demonstrar que as mulheres tinham uma histé- ria, ¢ nao somente num filao separado, mas como elemento integrante da historia “tradicional”. Ao longo do trabalho de coleta de material his- t6rico capaz de apoiar os objetivos feministas, os his- toriadores das mulheres tocaram nas preocupacées de varios ramos estabelecidos da histéria. Inicial- mente seu impacto foi menos no campo da histéria politica, uma vez que até o século XX as mulheres nao tinham papel nos sistemas politicos. O principal impacto da histéria das mulheres foi na histéria so- cial. Esta foi uma consequéncia dbvia da prioridade dada pelo feminismo a vida ordindrias das mulheres, ¢ a histéria social existente estava em posigio frégil ao justificar sua perspectiva predominante sobre papel central mas- culino. Um exemplo da énfase social da histéria das mulheres foi seu envolvimento com ahistéria do trabalhismo. O exame do fluxo ¢ refluxo da empregabilidade feminina des- dea Revolugao Industrial mostrou ser um angulo esclarecedor da dinamica capitalista— seja ao focar nas fiandeiras ¢ tecelas das fabricas de algodao de Lancashire ou nas eraba- Ihadoras de munigéo que substituiram os homens que estayam no front durante a Pri- meira Guerra Mundial’. 1, SCHWARZKOPF, J. Women in the Chartist Movement. |s.1.]: Macmillan, 1991. 2. CE, p. ex, WOOLLACOTT, A. On Her Their Lives Depenrt: munitions workers in the great war. (s.}: Uni- versity of California Press, 1994 266 A busca da historia No final da década de 1960 e inicio da de 1970, o Movimento de Liberagao da Mulher levou a desenvolver uma abordagem {emminista da histria, que procurou destacar a contribugao das mulheres e as muitas formas de opressio que elas sotreram ras sociedades do passado dominadas pelo homem (Corbis Bettmann) E com respeito a familia que se verifica o maior impacto social da historia da mu- Iher. Na década de 1960 historiador do tamanho de um lar e dos niveis de fertilidade, utilizando na maior parte uma andlise conduziram um debate bem limitado que tratou quantitativa’, Outros académicos estudaram a familia através das lentes da literatura di- datica — as homilias que foram escritas em cada geracdo para orientar casais a como se comportar uns com 0s outros € a como educar seus filhos. O novo foco nas mulheres atraiu a atencio & dindmica interna da familia em termos de poder, alimentagao ¢ de- pendéncia. Uma variedade de fontes qualitativas — registros judiciais, didrios, cartas — foram exploradas como evidéncia, nao da norma estatistica, mas da vida como ela era experimentada realmente em familias especificas. Mae angelical Particularmente surpreendente foi a revelago da rea- A imagem, frequentemente encontrada na lidade que estava por detras da ornamental e piedo- literatura vitoriana e na cultura popular, de : are uma mae que é ao mesmo tempo bonita, independente, mais disposta ao trabalho filantrépi-—afetiva,submissa e obedinte sa “mie angelical” da familia vitoriana: ela era mais co fora do lar, e mais disposta a entrar em conflito 3, LASLETT, P. & WALL, R. (orgs.). Household and Family in Past Time. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. A historia do género e a historia pés-colonial 267 com seu marido, ao contririo do que sugeria 0 esterestipo popular’. Como resultado desse ¢ de outros trabalhos, todo 0 campo do privado — como algo distinto do munde ptiblico da histéria convencional — est sendo introduzido no escopo da compreensao histérica. Um estudo de caso pioneiro O livro que melhor resume essa fase da histéria das mulheres é The Prospect Before Her (1995) de Olwen Hufton, uma extraordinariamente ampla e bem informada pes quisa sobre as mulheres na Europa de 1500 a 1800. Ela esta estruturada em torno das fae ses marcantes do ciclo de vida das mulheres desde a mocidade através do casamento & maternidade e depois & viuvez. Atengao especial é dada aquelas que se mantiveram fora da estéria de vida convencional — mulheres solteiras, freiras, trabalhadoras do sexo, ¢ as sim por diante. O livro de Hufton é histéria social em grande escala, na qual as amplas generalizagées estio combinadas com incidentes vividos em vidas individuais. Vista cri- ticamente como uma pega da hist6ria das mulheres, o mais importante ponto sobre The Prospect Before Her é que os muitos contextos histéricos nos quais as mulheres viveram: durante esse perfodo estéo plenamente apresentados ¢ primorosamente entrelacados com as andlises. Isso é particularmente verdadeiro da religiai Reforma e suas profun- das consequéncias para todos os ramos da Cristandade sao destacadas, numa maneira que, para muitos leitores, faz com que superem a distancia histérica existente entre eles ¢ os antepassados do inicio da Modernidade. O trabalho de Hufton também levanta a questo da audiéncia. As primeiras incur- sdes na historia das mulheres foram escritas para um ptiblico que era ndo somente femi- nino, mas que era também feminista, jd que procurava fazer uma leitura politicamente relevante do passado. The Prospect Before Her se destina mais aos historiadores em geral. Ela nao s6 contextualiza a experiéncia da mulher no passado; ela torna aquela experién- cia, de forma clara, parte dos temas mais familiares do perfodo, como pobreza, servigo doméstico e vocagao religiosa. E, portanto, uma importante contribuicao a historia so- cial do inicio da modernidade europeia. A esse respeito Hufton estava de acordo com a geracdo mais jovem dos historiadores das mulheres que estava aparecendo nas décadas de 1980 ¢ 1990. Eles estavam menos interessados em despertar a consciéncia feminista do que modificar a maneira como 0 estudo da hist6ria era feito. Indo além da “histéria das mulheres” Como uma madura pritica histérica, a historia das mulheres € hoje caracterizada por trés princfpios que juntos abrem o caminho a sua integracao & hist6ria tradicional. . 4, DAVIDOFF, L. & HALL, C. Family Fortunes: men and women of the english middle class, 1780-1850. 2 ed. [s.1.]: Hutchinson, 2002. 268 A busca da historia Primeiro, a “mulher” ja nao é mais vista como uma categoria social indiferenciada. Clas- se, raga ¢ crengas culturais sobre diferenca sexual tiveram uma imensa influéncia em como ax mulheres sao percebidas — ¢ também em como elas se percebem ~ ¢ a maioria dos trabalhos histdricos se relaciona a grupos especificos em vez de o serem ao mundo da mulher em geral. Isso estimula o posicionamento da historia das mulheres na historia social, na qual essas distingOes sao centrais. Segundo, assim como a categoria da “mulher” foi desagregada, também o foi a nogao da opressdo uniforme ¢ constante pelos homens O termo “patriarcado” tem sido criticado como implicando que a diferenga sexual ¢ 0 principio fundamental da estratificagao da sociedade humana, presente em todos os pe- tiodos ¢ por decorréncia “fora” da histéria; ao se afirmar que ele explica tudo, ele acaba explicando nada. “Patriarcado” pode ainda assim ser bem utilizado para denotar hierar- quia sexual no lar, particularmente quando os homens controlam a forma da produgao doméstica, como eles faziam na Europa pré-industrial. Mas os registros do passado mos- tram a imensa variedade na extensao da opressao, resisténci comodacao € convergén- cia nas relagdes entre homens e mulheres, ea fungao do historiador € explicar esta varia- sao em vez de agrupé-la sob um principio universal de opressio sexual’. O terceiro ¢ mais desafiador de todos os principios, a histéria das mulheres tem cada vez mais consi- derada a histéria dos homens dentro de seu Ambito: nao os homens na sua tradicional aparéncia de seres auténomos assexuados, mas homens em relagdo 4 outra metade da humanidade. Isso significa que os homens sao considerados historicamente como filhos e maridos, enquanto que na esfera publica a excluséo das mulheres pelos homens se tor- na uma questio para investigacao, em vez. de ser considerada um fato evidente por si. Como Jane Lewis afirmou, nossa compreensio do sistema de sexo/género nao poderd nunca estar comple- to até que facamos uma tentativa deliberada de entender 0 tecido total dos mundos masculinos e a construgao da masculinidade’. A tiltima frase propde uma agenda histérica muito longa. A histéria tem sido um monopélio masculino por séculos, mas entender a masculinidade nao fazia parte do projeto. Como resultado do trabalho nessa érea, agora se considera como algo evidente por si, por exemplo, que os homens que dominaram as trincheiras na Primeira Guerra Mundial estavam motivados nao sé pelo chamado do rei e da patria, mas por um cédigo de masculinidade instilado pela escola, literatura juvenil e organizagGes de jovens’. 5..A clissica exposigao dos prés e contras do patriarcado so as curtas intervengdes de Sheila Rowbotham, Sally ‘Alexander e Barbara Taylor (org,) (ef, People’s History and Socialist Theory. (s..|: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 363-373). 6.LEWIS, J. (org,). Labour and Love: women’s experience of home and family 1850-1940. [s1.]: Blackwell, 1986, introdugao do editor, p. 4. Cf. th. TOSH, J. “What should historians do with masculinity? — Reflections on nineteenth-century Britain”. History Workshop Journal, XXXVIII, 1994, p. 179-202. 7.MOSSE, G.L. The Image of Men: the creation of modern masculinity. Oxford: Oxford University Press, 1996, cap. 6. Ahistéria do género e a historia pds-colonial 269 I Histéria do género c as relagdes entre os sexos Essas novas direcdes na histéria das mulheres acarretaram uma mudanga no nome a histéria do género sinaliz: a aspiragio de se ir além da exclusiva perspectiva da mulher de descjar modificar a redagéo de toda a histéria. De forma alguma esta nao é a tinica corrente dentro da histéria das mulheres, mas é a que mais promete para a disciplina como um todo. No uso corrente “género” significa a organizacao social da diferenga se- xual. Ele solidifica as conjeturas de que a maioria do que passa como sendo naturais (ow concedido por Deus) diferengas sexuais é, na verdade, social e culturalmente construido €, portanto, precisa ser compreendido como o resultado de um proceso histético. (Na- turalmente é aquela confusao entre a natureza ea cultura que deu a estratificagio por gé- nero tal poder de permanéncia, ¢ o que a fez escapar da ateng4o em boa parte do registro histérico.) O foco da histéria do género é menos sobre os apuros de um sexo do que so- bre todo um campo de relagdes entre os sexos. E esse campo inclui nao somente os pon- tos dbvios de contato tais como casamento ¢ sexo, mas todas as relagdes sociais ¢ institui- ges politicas que, nessa visio, so, em graus variados estruturados por géneros: pela ex- clusao das mulheres, pela polarizagio dos atributos masculinos e femininos, e assim por diante. Os homens nao séo menos construidos por genero que as mulheres. Tanto 0 po- der social dos homens e suas qualidades “masculinas” podem somente ser apreendidos como aspectos do sistema de género: nem “natural” nem constante, mas definidos por uma relagdo mutavel com o feminino. Essa perspectiva subjaz os escritos recentes na tor- tuosa evolugao do termo “masculinidade” desde o periodo inicial da Modernidade, ¢ 0 melhor trabalho na histéria da fam(lia’. Porque ambos os sexos podem somente ser cor- retamente compreendidos em termos relacionais, a histéria do género esté conceitual- mente equipada para alcangar um resultado social e plenamente compreensivo ¢ para es- tar presente em qualquer teoria séria da estrutura e modificagao sociais. A hist6ria do género ¢ a Teoria Marxista Comparagées com a histéria marxista so esclarecedoras. A histéria do genero tem experimentada a mesma tensio entre as demandas da explicagao historica e as politicas de emancipacao que a histéria de classe produziu. Com seu potencial para uma andlise social compreensiva, a historia do género também promete ao menos tornar titeis algu- mas das deficiéncias da teoria marxista. Os historiadores marxistas nao se equiparam a quaisquer outros ao analisarem a produgao, mas sua teoria dé muito menos peso & re~ producdo — seja ela vista como um evento bioldgico ou como um processo de socializa- 8 SHEPARD, A. Meanings of Manhood in Early Modern England. Oxford: Oxford University Press, 2003. * TOSH, J. Manliness and Masculinities in Nineteenth-Century Britain. (s.l.]: Longman, 2005. * DAVIDOFE, L. & HALL, C. Family Fortunes. Op. cit. 270 A busca da historia G40. Mais amplamente, a histéria do género tem o efeito de malograr a rigida distingao entre as esferas puiblica c privada que tém informado quase todos os escritos histéricos. O fato de que essa distingao pode ter obscurecido a verdadeira complexidade da vida econdmica ¢ social no pasado é fortemente sugerido por Family Fortunes (1987) de Leo- nore Davidoff ¢ Catherine Haal. Sua tese central é que no inicio do século XIX, na Inglaterra, um dos objetivos centrais do florescente mundo dos negécios foi o de apoiar a familia ¢ a domesticidade — ¢ reciprocamente que os tragos domésticos aprovados dos homens de classe média (sobriedade, sentido do dever, e assim por diante) respondiam As exigéncias da vida empresarial e profissional. Em trabalhos desse tipo, a histérica rela- ao de género ¢ classe comega a ser descoberta em toda sua intrinseca particularidade. Ill Género ¢ a histéria cultural do significado Até aqui eu tenho caracterizado género como um instrumento para aprofundar nossa compreensao das estruturas sociais do pasado. Mas género nao é somente uma questao estrutural. Ele toca na subjetividade ¢ identidade em maneiras profundas. Essas perspectivas sao mais bem consideradas como uma provincia da virada cultural. Elas ngo tém a mesma ressonancia politica como a classica agenda feminista de despertar das consciéncias, o patriarcado ¢ a resisténcia, De fato, a popularidade das abordagens cul- turais & historia das mulheres reflete em muitos casos um desencantamento com o femi nismo politico — como tendo ou ido longe demais ou sendo condenado ao fracasso na tentativa de alcancar mais. A virada cultural esté também afinada com modificagoes contemporaneas mais amplas nos géneros e sexualidade. A diferenga sexual € hoje vista menos como um fato bioldgico dado, e de forma crescente, como uma questao de esco- tha pessoal, mediada pela cultura. Uma vez que a tradicional distingao bindria entre masculino e feminino é modificada para levar em conta a diversidade de géneros que re almente existe, a articulagao das masculinidades ¢ feminilidades torna-se mais ¢ mais uma questao de psicologia e cultura. Por fim, a virada cultural incide sobre a polémica questéo da evidéncia priméria — sempre um problema pata os historiadores empenha- dos em recuperar o passado escondido. A virada cultural torna uma virtude a escassez da documentagao ao ler os textos como “discurso”: nao aprisionado num tinico significa- do, mas aberto a leituras diversas e até mesmo subversiv: A criagao cultural do género Em termos praticos, essa mudanga significa duas coisas. Primeiro, se a diferenga de género nao é principalmente uma questao de natureza ou instinto, ela precisa ser insu- flada. Os pais podem experimentar isso como uma tarefa individual, mas isso é essen- cialmente cultural em cardter, uma vez que os que esto encarregados do cuidado infan- A histéria do género e a historia pés-colonial an til operam dentro de certa compreensio cultural da diferenga sexual ¢ do desenvolvi- mento da personalidade. Género, em sintese, é conhecimento. Até o passado recente, 2 diferenga sexual era naturalizada (e simplificada) em roteiros predeterminados que a maioria das pessoas nao questionava. Aquelas formas de conhecimento assumiram uma variedade de formas: conhecimento explicito sobre o corpo, como nos manus se- xuais como Aristotle's Masterpiece (repetidamente republicado na Inglaterra ao longo do século XVIII e depois); ou em ensinamentos pesadamente moralistas sobre o cardter se- xual, como nos escritos do século XIX sobre a adequagao das jovens; ou, outra vez, as conjeturas sobre a diferenga sexual que perpassam a literatura tanto na sua forma elitista como popular. Historiadores recentes deram estreita atengao a todo esse material, ras- treando suas contradigGes e mudangas sutis de énfase contra as conjeturas fundamentais que permaneceram firmes por geragGes’. A segunda dimensao da abordagem cultural ao género considera a questao da diferen- a. Todas as identidades sociais trabalham parcialmente por um process de exclusio. Nés somos definidos tanto pelo que nao somos como pelo que somos. Frequentemente a estereotipia negativa do que ¢ inaceitavel ¢ tao poderosa como a crenga correspondente no que os membros tém em comum. No caso da diferenga sexual, definir o se/fem relacao ao | “outro” é particularmente marcante na distingao fundamental que se faz entre masculino ¢ feminino. Todos os atributos podem ser mapeados nessa oposigio binéria. Portanto, to- das as definigdes de género sao relacionais, no sentido de que elas surgem da interago com 0 outro sexo ¢ expressam as conjeturas sobre aquele sexo: 0 discurso continuo de “efe- minacao” como um limite a0 comportamento dos Geae ee ton homens constitui amplo testemunho daquilo. O dis- Um dos psicanalistas mais influentes do Curso € vital a esse processo de “estranhamento”, par- século XX. Um freudiano francés, ele —-cialmente porque as estruturas bindrias estao profun- desenvolveu “a psicandlise estrutural’ que ~damente mergulhadas na linguagem (bom versus ruim, explorou a relagao entre linguagem, textos preto versus branco, etc.), ¢ parcialmente porque a lin- © 0 inconsciente, Tornou-se um te6ric0_guagem registra essa oposi¢ao entre masculino e femi- central na virada linguistica, e entao de um influente ramo de estudos culturais. Embora Lacan tenha pouco a dizer sobre historia ele foi inspirador para os historiadores psicanalistas. nino numa variedade sem fim de formas culturais especificas. Na psicandlise a tradigéo associada com Jacques Lacan também coloca énfase na linguagem como meio através do qual as criangas adquirem suas identidades sexuais”. Um campo no qual a abordagem do discurso provou ser particularmente frutifera € ria da sexualidade. Como definido recentemente num trabalho, este é um tema ahis 9. PORTER, R. & HALL, L. The Facts of Life: the creation of sexual knowledge in Britain, 1650-1950. [sl Yale University Press, 1995, cap. 2. * TOSH, J..A Man's Place: masculinity and the Middle-Class home in Vii torian England. {s.L.]: Yale University Press, 1999. 10. Para uma discussao das implicagées de Lacan aos historiadores de géneros, cf. ALEXANDER, 8. Becoming a Woman and Orher Essays in 19th and 20th Century Feminist History. (s.1.]: Virago, 1994, p. 105-110, 225-230. 272 A busca da historia mais amplo do que se poderia imaginar. Ele pode ser estudado através do prisma do co- nhecimento médico, ou como um conjunto de definigdes legais e proibicoes, refletidos nas tradigGes e costumes do dia’'. A abordagem que mais tem ressonancia com as politi- cas sexuais contemporaneas prioriza a questdo da identidade. Em que ponto, por exem- plo, os homens e as mulheres comegaram a se categorizar — ¢ uns aos outros — como “he- terossexual” “homossexual”? E essas categorias eram exclusivas? As respostas dadas pe- los historiadores tornaram-se mais complicadas desde os estudos pioneiros na década de 1970. Matt Houlbrook mostra que, na primeira metade do século XX, “a Londres alter- nativa” nao era constituida de uma tinica identidade sexual. Ele descreve uma variedade de evideéncias pessoais vividas para distinguir trés tipos: o queen performatico efemina- do, 0 discreto homossexual de classe média, e 0 trabalhador que fazia sexo tanto com mulheres como com homens ¢ que se considerava uma pessoa “normal”. No periodo es- tudado por Houlbrook, todos os atos homossexuais ainda cram contra a lei. A est6ri que ele conta é uma que esté interessada com evasio ¢ cilada, assim como com autodes- coberta — uma lembranca que a homofobia tem raizes histéricas profundas”. Género e as novas polaridades do poder A fratura da identidade que é encontrada agora na histéria gay € outros ramos da histéria do género esto muito distantes da énfase feminista anterior na experiéncia co- mum € na opresséo comum sumariadas no termo “irmandade”, Uma vez que a repre- sentago ¢ o discurso sio desvendados, 0 termo “identidade” no pode ser congelado nesse macronivel; dissecar a complexa teia de significados na qual os individuos se situ- am tem 0 efeito de romper com essas grandes categorias abrindo fissuras ao longo das li- has de classe, nagao, etnicidade, regio, idade, sexualidade, e assim por diante. A nogdo que se tem sobre as mulheres como uma coletividade tornou-se dificil de defender. Isso nao significa, no entanto, que o género tornou-se destituido de contetido politico; em ver disso a histéria do género reflete um diferente tipo de politica. Joan Scott argumenta com veeméncia que a abordagem linguistica serve para expor a dimensao do género em todas as relagdes de poder. Seu argumento se articula em duas proposigGes muito rela- cionadas. Primeiro, o género é um elemento estrutural (ou “constitutivo”) de todas as relagGes sociais, desde a mais intima até a mais impessoal, porque hé sempre a presun- Gio, seja da exclusdo de um sexo, ou de uma relacéo cuidadosamente regulada (e usual mente desigual) entre os sexos. Segundo, o género é uma maneira importante na qual as 11. O classico trabalho na categoria médica ¢ LAQUEUR, T. Making Sex: body and gender from the Greeks to sud. (s..]: Harvard University Press, 1990. Para o exame legal, cf. COCKS, H. Nameless Offences: homosexu- al desire in the 19" century. [s..]: LB. Tauris, 3003. BRADY, S. Masculinity and Male Homosexuality in Brita in, 1861-1913. (s.L.|: Palgrave Macmillan, 2005, cap. 4. 12, HOULBROOK, M. Queer London: perils and pleasures in the sexual metropolis, 1918-1957. Chicago: Chicago University Press, 2005. A historia do género e a histéria pés-colonial 273 relagdes de poder sio significadas em termos culturais'’, Considerando um caso recor rente, os inflexiveis termos “masculinos” com os quais a guerra por um longo tempo tem sido referida, servindo para legitimar o sacrificio da vida que os jovens rapazes si0 convocados a suportar. Na era vitoriana a ideia do bem-estar social financiado pelo Estado era condenada como “sentimentalidade” ~ um atributo feminino — pelos seus inimigos". Muitos outros exemplos compardveis podiam ser citados. Além disso, esses significados condicionados pelos géneros nao devem ser vistos como estaticos ou come: dados, e uma tarefa 6bvia para uma andlise politicamente informada é rastrear sua rein= terpretagio ¢ contestagao em diferentes contextos. A histéria do género da variedade cultural pode ser resistente as velhas coletividades sélidas, mas tem muito a contribuir& compreensio de como 0 poder é articulado nas relagdes pessoas e sociais. Esse ponto pode ser ilustrado com referencia & carreira académica de Judith Walko- witz. Seu primeiro livro, publicado em 1980, analisou a prostituigao na sociedade vito- riana através do prisma de classe e género: a obra documentou o duplo padrao sexual da- quele tempo, a exploragéo material das prostitutas, ¢ as estratégias politicas daqueles que desejavam repelir a legislagao draconiana que regulava aquele comércio. A simpatia po- Iitica do livro era simples — de fato a ajuda do Movimento de Libertagao da Mulher ¢ re- conhecida de forma explicit’. Doze anos mais tar- de, Walkowitz deu seguimento com City of Dreadfial Delight (1992), um estudo dos escandalos ¢ discursos sexuais em Londres durante a década de 1880. Den- Draconiana Excessivamente duro. Jack 0 Estripador Este apelido foi dado ao responsavel por uma série de brutais assassinatos de prostitutas em Whitechapel, no Bairro de East End de Londres, em 1888. Especulagdes sobre a identidade do assassino levavaram a se acusar, entre muitos, um famioso pintor e membro da familia real, e acabou criando uma virtual industria de “especialistas em crimes biarbaros”. O fascinio que o caso continua a exercer 6 tao interessante aos historiadores como os proprios assassinatos. tro da perspectiva do livro anterior, a prostituigao infantil e Jack o Estripador — os principais assuntos aqui — teriam pedido uma andlise materialista do mercado do vicio e das relagdes de poder entre cafe- tes, prostitutas e clientes. Essas questdes no sio ig- noradas, mas Walkowitz esta agora menos interes- sada no que aconteceu e mais no que foi representado como acontecendo. O subtitulo do livro, Narratives of Sexual Danger in Late-Victorian London, reflete de forma precisa sua preocupacéo com as estérias que prevaleceram e por qué. Mas, como ela enfatiza, essa é uma questo pro- fundamente politica, uma vez que as nogdes populares sobre o carater ea moralidade se~ 13. SCOTT, J.W. “Gender p. 1.053-1.075. a Usefull Category of Historical Analysis”. American Historical Review, XCI, 1986, 14, COLLINI, S. “The idea of ‘character’ in Victorian political thought”. Transactions of the Royal Historical Society, 5. série, XXXV, 1985, p. 29-50. 15, WALKOWITZ, J.R. Prostitution and Victorian Society. 274 cambridge University Press, 1980, p. ix. Abusca da historia xuais estavam controladas dentro de um discurso regulatério, do qual a imprensa jorna- listica era somente um elemento. City of Dreadful Delight pode softer de alguma carén- cia politica existente no livro anterior, mas é um belo estudo dos processos culturais que fazem alguns discursos de género hegeménicos, enquanto ages outros. Os assassinatos do célebre Jacko Estrpador de 1888 proporcionam um estudo de caso nao sé da crminalidade e da prostituigao na Londres do final da Era Vitoriana, mas também da mentalidade cultural coletva que achava os assassinatos tio fascinantes (TopFoto‘TophamPicturepoint) Pode nao haver, portanto, uma resposta simples a pergunta “O que a histéria do gé- nero contribuiu & disciplina como um todo?” Escrever sobre género tornou-se parte in- tegral tanto da histéria social como da histéria cultural, como a trajetéria de Walkowitz sugere. Nao ¢ mais aceitavel aos historiadores escrever sobre “o povo” ou “a classe traba- Ihadora” sem tratar explicitamente das mulheres. E éimprovavel que o fagam sem quali- ficar com precisao a categoria “mulher” de acordo com 0 contexto histérico especifico. Como Susan Pedersen diz, Sea histéria cultural [...] conseguiu algo, foi questionar a presungio de que se pode avaliar as relacdes de género em diferentes sociedades por um padrao simples" Igualmente, perguntas sobre identidade cultural sio complexas e probleméticas; mas género é sempre parte de um mix — nao sendo uma teoria pronta, mas como um conjunto de questées abertas que dizem respeito a experiencia e a representacao de vidas 16. PEDERSEN, S. Comparative history and women's history: explaining convergence and divergence. In: COHEN, D. & O'CONNOR, M. (orgs.). Comparison and History: Europe in cross-national perspective. {s..]: Routledge, 2004, p. 95. A historia do género e a histéria pés-colonial 215 com género. Por tiltimo, como uma linguagem metaférica, género tem sido considera- do também pelos historiadores politicos, enriquecendo assim nossa compreensio da cultura politica e de sua aquisigao na comunidade politica. IV Pés-colonialismo: um novo paradigma A histéria pés-colonial, como a histéria do género, tem seu ponto de partida na marginalizaco ou despossufdos de uma grande categoria de pessoas no passado. Mas seu Ambito é bem mais amplo, Enquanto os estudos globais ou comparativos sao conhe- cidos na histéria dos géneros, eles tém sido usualmente conceituados nos limites das fronteiras nacionais ¢, frequentemente, em nivel da comunidade local. A histéria pés-colonial, por outro lado, é intrinsecamente global. Estudos locais abundam, mas suas premissas estio no destaque das relagdes globais: nao no sentido anédino tao fre- quentemente considerado pelos analistas da globalizagao contemporanea, mas em termos das relagdes de poder e subordinagao que responde pela incerta condigao de tantas socie- dades do Terceiro Mundo. O projeto colonial de 500 anos de durasao do Ocidente é visto como responsdvel pelo empobrecimento ¢ humilhacao dessas sociedades. Resgatar sua histdria dos esteredtipos condescendentes dos ocidentais é uma precondigao para sua emancipagao. Mas, para os académicos pés-coloniais, um ponto de interrogagao perdura nos discursos académicos da histéria como o Ocidente a compreendeu, ja que os historia- dores estiveram profundamente implicados no silenciamento das tradig6es nao ociden- tais. O resultado tem sido algumas criticas perturbadoras nas quais diividas sérias tem sido levantadas sobre a validade da histéria como uma missio académica. . Sobre a duradoura exclusao das sociedades colonizadas do ambito do estudo histéri- co nao pode haver dtivida. Ao evitar ir além do surgimento da profissio histérica no sé culo XIX, Ranke limitou sua enorme producao de escritos hist6ricos ao subcontinente curopeu. Seu Universal History no qual ele estava trabalhando quando faleceu em 1886, era uma histéria da Europa desde os tiltimos séculos do Império Romano. Seus sucesso- res ¢ imitadores trabalharam dentro do parimetro nacional que as vezes incluiu os cons- trutores de impétios do pasado, mas nao as sociedades que eles rapinaram. Marx tinha fl interesses mais amplos. Ele escreveu com discernimento comentarios sobre os eventos na India, mas ele considerou a India como estando fora da historia porque ao seu modo de produgao faltava uma dinamica interna de mudanga: a fim de partilhar 0 progressivo desenvolvimento das sociedades ocidentais, cla necessitava ser conquistada e adminis- trada por uma dessas sociedades, ¢ é por isso que Marx considerava o dominio britanico da [ndia como amplamente positivo. Pelo menos no nivel tedrico, nao se podia negar quea {ndia ea China tinham uma historia, uma vez que evidentemente havia algum pa- ralelo entre suas estruturas estatais sofisticadas e as da Europa. Mas para a Africa nega- va-se nos estudos histéricos inclusive essa qualificagdo, porque se considerava de forma equivocada que ela nao tinha desenvolvida qualquer estructura estatal. 276 A busca da historia O fim do dominio colonial formal foi um dos aspectos mais surpreendentes da his- téria mundial no século XX. No espago de vinte anos (1947-1966) a maior parte dos paises do sul da Asia e da Africa tornou-se independente. (O tinico precedente foi a emancipagio das coldnias britinicas dominadas pela Inglaterra, Espanha e Portugal en- tre 1776 ¢ 1822.) No entanto, a independéncia produziu igualdade somente no sentido formal: em muitos paises a dependéncia e o empobrecimento que caracterizaram o sta- tus colonial se intensificou durante as primeiras décadas de autogoverno. Ao mesmo tempo, os povos soberanos nao podiam ser apadrinhados da mesma maneira brutal que sob o dominio colonial. Seus lideres eram, em muitos casos, altamente educados e bem versados no pensamento ocidental. Uma das prioridades desses Estados era o desenvol- vimento do sistema educacional moderno, incluindo inteiramente novas instituigdes de educagio superior. A pesquisa histérica foi conduzida nas universidades dos paises do Terceiro Mundo a fim de fornecer 4s escolas um curriculo apropriado para uma nacao independente: uma das razoes praticas por que o tema estava maduro para uma reavalia- cao da relacao colonial e de sua heranga duradoura. Mas as implicagoes da reavaliagao s4o complexas. Num primeiro olhar “pés-colo- nial” é simplesmente um marcador cronolégico conveniente, designando nossa era na qual 0 colonialismo foi desmantelado: ele pode ser considerado inclusive para significar que a era colonial esta no pasado e deve permanecer I enquanto nos focamos no futu- ro. E assim como o rétulo “pés-colonial” é agora interpretado pelos académicos que o adotaram para si. Seu argumento € que o colonialismo utilizou seus controles sobre os recursos de aprendizagem e cultura para estabelecer formas de conhecimento que nao somente deram aos europeus uma imagem distorcida das sociedades coloniais, mas fo- ram internalizadas pelos prdprios colonizados. Aquelas distorgdes ainda persistem, ini- bindo o desenvolvimento das ex-colénias até hoje. Por essa razo a superficial interpre- tagdo temporal do termo “pés-colonial” é rejeitada: 0 colonialismo realmente ainda nao terminou, mas continua em maneiras menos formais ¢ mais disfargadas (as vezes referi- da como “neocolonialismo”). Uma tendéncia ainda mais radical do pés-colonialismo sustenta que porque a aprendizagem ocidental serviu durante largo tempo como meio de subordinar as sociedades coloniais, sua postura intelectual — abragando toda a tradi- Gao iluminista — esta fatalmente comprometida. Neste momento o pés-colonialismo move-se além do mundo colonial ¢ se torna — junto com 0 Pés-modernismo — um feixe adicional de critica negativa da tradicao intelectual ocidental. Teéricos do Terceiro Mundo ¢ 0 Ocidente O pés-colonialismo soa como a auténtica voz do Terceiro Mundo e, em certo sentido, de fato é. Os luminares — Edward Said, Homi Bhabha ¢ Gayatri Chakravorty Spivak — vém ou vieram do Oriente Médio ou Sul da Asia — com a notavel excegao de Said — cujos escri- tos sao abstratos e opacos (pelo menos aos leitores de seus paises de origem). Todos os trés so (ou foram) empregados por universidades americanas. Além disso, a despeito da rejei- 40 do pensamento europeu que as vezes é proclamado pelos académicos pés-coloniais, suas teorias nao sao nativas, mas derivadas de alguns dos mais destacados intclectuais oci- A historia do género e a historia pés-colonial 277 dentais. Mas sao 0s rebeldes ¢ os radicais que as inspiraram, em vez de o serem os liberais ou até mesmo os marxistas. Muito da mais importante influéncia provém de Foucault. Como explicado no capitulo 7, Foucault considerava todos os discursos como formas de poder/conhecimento, que serviram para restringir as pessoas dentro de maneiras especifi- s de compreender 0 mundo e de seu lugar nele. De acordo com Foucault, a linguagem nao é somente uma variagao do poder; é 0 mais importante tipo de poder. Porque os usud- rios de linguagem nao estao conscientes de estarem constrangidos, eles supdem, de forma equivocada, que cla expressa o mundo como de fato ele é. Edward Said, 0 tedrico pés-co- lonial mais influente, aplicou o pensamento de Foucault aos escritos ocidentais sobre 0 mundo dtabe durante os séculos XIX ¢ XX. Said foi um académico literdrio em ver de ser um historiador, mas seu [livro] desbravador Orientalismo (1978) esté profundamente ver- sado em representagées histéricas do Oriente Médio. Sua anilise estava bascada na ideia de que, quando uma cultura busca representar outta, a fungao de poder do discurso é in- tensificada porque est tentando comprometer 0 Outro — um construto cultural percebi- do como um oposto patolégico da cultura de alguém. Repetida durante muitas décadas, a versio do Outro drabe se consolidou num conjunto de julgamentos essencialistas que Said chamou de “Orientalismo”. Isso permitiu que a visio dos “especialistas” do mundo arabe, administradores posicionados nos territérios coloniais no Oriente Médio, ¢ — ainda mais insidioso — muitos arabes educados na tradigio ocidental que foram encorajados a rejeitar sua propria cultura. Orientalismo deu aos imperialistas a confianga para dominar, ¢€ isso minou os recursos culturais dos colonizados. Said resumiu 0 orientalismo como a “ciéncia do imperialismo”, sendo seu objetivo sendo “reduzir os efeitos dos grilhdes impe- rialistas ao pensamento e as relagdes humanas”” . Ni Raga e racismo Um daqueles grilhdes foi o conceito de “raga”. Durante a era colonial, ideologias ra- cistas foram desenvolvidas para explicar a suposta inferioridade dos povos “nativos” — tan- to sua cultura nativa como sua inabilidade de assimilar a cultura ocidental. “Raga” foi tra- tada como algo fixo ¢ biologicamente determinado, o que logicamente significou que a dominagao ocidental deveria durar indefinidamente; de fato, alguns autores racistas argu- mentaram que branco ¢ preto estavam em trilhas evolucionatias diferentes. Esteredtipos altamente ofensivos de outras ragas serviram por sua vez para sustentar uma autoimagem lisonjeira da “raga” briténica — ou da francesa ou alema. A reagao pés-colonial tem assumi- do duas formas contraditérias. Minorias com forte identidade étnica construiram © que pode ser chamado de “discurso reverso”; eles envolvem 0 conceito de “raga” porque o ter- 17. SAID, E. Orientalism. 2. ed. {s.l.]: [s.e.], 1995, p. 354. As visbes de Said sao controversas. Para uma critica J.M. Orientalism: history, theory and the arts. [s.]: Manchester feita por um historiador, cf. MacKE! University Press, 1995. 278 A busca da historia 0s retratos ocidentais da vida oriental enatizaram sua diferenga, mostrando as mulheres como bjetos sexuais e escravas sexuais. As mulheres de Argel (1834) de Eugéne Delacroix é um quadro relaivamente ccomedido de um harém (Bridgeman Art LibrarylLouvre. Paris, ranga/Giraudon), mo retine a descendéncia biolégica ¢ cultural num poderoso amdlgama que maximiza a ncia de outros grupos. Entre os negros nos Estados Unidos ena Inglaterra hd um considerdvel apoio ao afrocentrismo —a crenga num sentido absolu- to da diferenga étnica ea transmissao de uma auténtica tradigao cultural da Africa a0 povo aneira de pensar é mais forte entre coesao grupal e enfatiza a dis negro da dispora moderna. Nao é acidente que e as de descendéncia aft que foi um assalto a sua identidade cultural, assim como a sua dignidade humana. Mas afrocentrismo est baseado em presungdes a-histéricas. [ de racismo branco contra a qual ele se mobilizou. Muito poucas nagées ou grupos ra- as pes » compreensivel a séculos de escravidao Jo essencialista quanto as for m: ciais foram alguma vez etnicamente homogéneos. As sociedades da didspora africana tém estado em contato préximo — e &s vezes intimo — com as comunidades brancas por cinco séculos, ¢ seu carater tem sido profundamente influenciado por aquele contato (assim como ocorre com a sociedade branca). A formagao das identidades nacional ¢ racial nunca éum evento definitivo, mas um proceso continuo 18. HOW, S. Afrocentrisom: mythical pasts and imagined homes. [s.l.]: Verso, 1998. Ahistoria do género e a histéria pés-colonial 279 Em vez de fazer uma imagem espelhada do racismo colonial, uma abordagem mais radical ¢ criticar de uma vez por todas a premissa da raca, ¢ isso é 0 que o pensamento pés-colonial tradicional deseja fazer. A biologia ¢ tratada como irrelevante, porque as dife- rencas fisicas ou sao inexistentes ou superficiais. O que parece ser diferenga “racial” € 0 re- sultado da adaptagao cultural, incluindo contato com outras culturas. O ponto significan- te sobre o discurso colonial foi que ele se apropriou dessas especificidades como evidéncia de um abismo intransponivel entre branco ¢ negro. “Raga” tornou-se um termo central aes para o discurso colonial estimulando a auroconfianga “Vetrpolcosumaye signfcaromesmo 40 Colonizador € marginalizando 0 colonizado. De- que ‘metrépols Na redagéo académica-Monstrar a construgao social de raga nessa maneira €o ela denota uma nagao imperialista que tem mais importante porque o racismo do tipo colonial sido 0 centro de uma rede global de nao desapareceu. Ele ainda marca as relac6es entre 0 comércio @ exploracao (por exemplo, — Qcidente e os paises do Terceiro Mundo, assim come: Inglaterra @ os Estados Unidos). a Hercepeao branca das comunidades negras nas anti- gas metrépoles coloniais tal como a Inglaterra. Uma das raz6es por que 0 pés-colonialismo provou ser um fildo rico para os histo- riadores sdo as diferentes énfases dentro da teoria. Muito tem sido feito sobre algumas contradigées no trabalho de Said. Hé um certo tom indisposto ao compromisso — até mesmo rigido — sobre sua versio do dominio do Ocidente sobre o leste. O orientalismo éapresentado como sendo uma ficgao todo-poderosa que eliminou outras respostas cul- turais por parte dos ocidentais. Mas como Homi Bhabba assinalou, numa relagao colo- nial hd espago para adaptacio cultural, A medida que cada lado foi levado a tratar 0 outro pelo desejo ou pela ambigao: para ele o hibridismo é a chave do encontro colonial”. As fronteiras da coldnia e da metrdpole eram porosas, criando um tinico campo. Um tema relacionado é como discursos coloniais todo-poderosos devem ser considerados. Said inscreve uma distingao bindria de poderoso/frégil no colonizador ¢ no colonizado, per mitindo pouca margem ao tiltimo para dar respostas que nao estejam coreografadas pelo opressor. Outros escritores reconhecem que o sujeito colonial podia manipular as cate gorias discursivas do Ocidente, tornando-as inclusive em instrumentos de resisténcia, com o resultado de que © poder colonial era mais precdrio do que aparentava”. Muito aqui acaba sendo como nés vemos as elites nativas que se apoiavam na cultura tradicio~ - nal e Ocidental: elas eram rebentos do discurso colonial ou atores potencialmente auté nomos? Ao mesmo tempo, esse debate tende a ocorrer num alto nivel de abstracao. E raro encontrar um tedrico pés-colonial que reconhesa um papel para um labor indivi- dual ou mesmo coletivo. 19. BHABHA, H.K. The Location of Culture. (s.l. 20. Ibid. outledge, 1994, 280 A busca da histone VI Historiadores e pés-colonialismo Como entao os historiadores tém feito uso do corpo de teoria que em algumas manei- ras contradiz bem a pratica de sua disciplina? Podemos comegar olhando como os historia- dores responderam mais amplamente ao fim da era colonial. A Africa é 0 exemplo ideal, uma ver. que em lugar algum a ignorancia colonial sobre os nativos foi tao profunda. As décadas de 1960 e 1970 viram uma impressionante produgao de trabalhos académicos so- bre a histéria africana, escrita parcialmente por académicos afticanos treinados no O dente, ¢ parcialmente por jovens ocidentais que se identificaram com as aspiragées da in- dependéncia africana. Eles se posicionaram para destruir as duas presungGes de que a Afri- ca nao tinha histéria além das atividades dos estrangeiros, e que evidéncia histérica alguma poderia substanciar tal histéria. De fato, os recursos documentais provaram ser muito mais valiosos do que qualquer pessoa poderia imaginar. As companhias de comércio euro- peias e as sociedades de missiondrios, que estavam em contato com a Africa desde o século XV e que pelo século XIX tinham penetrado profundamente no interior, tinham preser- vado imtimeros registros; eles inclufam observagao intensa dos lideres locais de cujo apoio os recém-chegados dependiam, assim como as descrigGes da cultura africana ¢ sua socieda- de, Nas regides islamicas do Sahel, 0 Sudio Ociden- Califado de Sokoto O mais poderoso estado islamico da 7 Atrica Ocidental no século XIX, localizado mente na Africa Negra, hd crénicas locais datadas, em onde hoje é o norte da Nigeria. tal ea costa do leste afticano, para onde as fronteiras da alfabetizagao tinham se expandido bem profunda- alguns casos, no século XVI, c até mesmo —em alguns _Expandiu-se por meio da jihad (guerra s a Nto foi submetide domini ag Ga ib 0G Gio 2 So leptin rate Lam ie area oko ea COE britanico no inicio do século XX, mas seu ria — havia um niicleo de registros administrativos. de ne eae tees O mais excitante de tudo foi o desenvolvimento durante toda a era colonial de uma metodologia para a coleta ¢ a interpretagao Gana Estado da Africa Ocidental que floresceu NaCO A entre os séculos IX e XI. A base de sua desaparecer 4 medida que a alfabetizagio se dissemi- _ prosperidade era o comércio através do nava. A primeira geracao da independéncia foi, por- _Saara, paticularmente 0 ouro. 0 estado tanto, um momento privilegiado para capitalizar medieval estava bem ao norte da atual Gana da tradigao oral. Este era um aspecto universal das so- ciedades pré-literdrias, e de modo inverso destinado a “a heranga dos ouvides” (cf. capitulo 11). Entida- des politicas pré-coloniais como os estados medievais siege de Gana e Zimbébue emergiram entéo a luz da his- Estado da htica Central que foresceu t6ria, ¢ os primeiros estégios da incorporagdo do in- gnjre os séculos XI e XIV. E famoso por terior africano ao comércio internacional foram re- sua arquitetura de pedras secas, construidos. O perfodo colonial tinha sido estuda- __notavelmente as rinas do Grande do pelos historiadores, mas desde a perspectiva dos Zimbabue, © modemo Estado de Zimbabue 7 . toma seu nome de seu predecessor colonizadores, como a estéria do desenvolvimento € hae Ahistoria do género é a historia pos-colonial 281 da preparacao de homens de estado para a independéncia. Agora ele apresentava o tema da resisténcia — resistencia armada aos primeiros ocupantes coloniais, e mobilizagio po- Iitica contra o Estado colonial durante a luta pela independéncia. Mas os historiadores também focalizaram as respostas mais tolerantes, particularmente as iniciativas dos camponeses que tinham o objetivo de apoiar 0 inicio da economia de consumo”. Esse trabalho pioneiro na histéria africana foi em larga medida livre de teoria. Seus praticantes estavam em boa parte confiantes de que os métodos bem testados da histo- riografia ocidental lhes serviriam bem. Os registros coloniais demandavam nada mais do que o ceticismo habitual do pesquisador de arquivos. Mesmo 0 novo recurso da tra- digao oral atraiu comparativamente pouca anilise tedrica nessa fase”. Estudos subalternos Foi na India, durante a década de 1980, que a teoria pés-colonial teve um impacto sta foi uma realizagao do grupo de Estudos Subalternos, li- decisivo pela primeira vez. derado por Ranajit Guha. Inicialmente seu ponto de referéncia foi a teoria marxista, es- pecialmente a “hist6ria vinda debaixo” associada com E.P. Thompson. A orientagéo do grupo foi definida por uma profunda rejeicao da eli- Jawaharlal Nehru (1889-1964) te nacionalista na [ndia — homens como Nehru e os Primeiro primeiro-ministro da india, de 1947 i lideres do Congresso Nacional Indiano que tinham canalizado a resistencia popular ao Raj britanico e ti- Antonio Gramsci (1891-1937) nham herdado 0 controle do aparato de Estado em Uma figura lider no Partido Comunista Italiano depois da Primeira Guerra Mundial, Foi aprisionado pelo regime fascistade eens sa oa Mussolini e morteu na prisao. Suaimensa liticos nacionalistas ¢ os historiadores que contaram influéncia deriva de seus escritos tedricos, suas realizag6ées. Ambos pertenciam a “elite bur- os quais ele desenvolveu novas formas dé gués-nacionalista”, bem distante dos interesses ¢ ati- Succ cecen vars ate tudes dos indianos comuns. Deriva dat a escolha do termo “subalterno”: foi obtido do pensador marxista Antonio Gramsci para denotar grupos sociais sem poder. A tarefa dos historiadores radicais era mudar 0 foco do politico profissional a0 subalterno e, em particular, revelar 0 lugar do subalterno no coragao do nacionalismo popular. Essa aspiracao foi mais convincente porque a frequéncia dos distirbios popula- 1947. Ideologicamente, os historiadores subalternos clamaram que havia pouco que escolher entre os po- res de 1919 na India britanica era inegavel: o que estava faltando era um relato histérico que fosse além da resposta e da manipulagao da elite. 21. Ambas as correntes aparecem num importante trabalho da década de 1970. ILIFFE, J. The Modern History of Tanganyika, Cambridge: Cambridge University Press, 1979. 22. Este escritor precisa ser considerado entre esses numerosos trabalhadores de campo ingenuos. Cf. TOSH, J Clan Leaders and Colonial Chiefs in Lango. Oxford: Oxford University Press, 1978. 282 A busca da historia Enquadrados dessa maneira, os Estudos Subalternos eram uma previsivel reagao de uma “historia do povo” contra a historiografia nacionalista (embora valesse a pena assi- nalar que na Africaa rejeicao radical do nacionalismo foi muito mais fraca). Muito rapi- damente, no entanto, os historiadores subalternos ficaram sob influéncia de Said ¢ de outros tedricos pés-coloniais. A énfase mudou do material ao poder cultural, & medida que mais ¢ mais atengao foi dada & desconstrugao daquilo que as autoridades coloniais tinham escrito com tal profusdo. Parte da razo para fazer isso foi demonstrar do que conta (até agora) como conhecimento objetivo representava uma imposigao discursiva pelo regime colonial: na India, a instancia classica é a “casta” (na Africa é a “tribo”). Mas 0 principal propésito desse cuidadoso estudo textual era revelar 0 silenciamento do po- bre que tinha ocorrido ao longo do perfodo colonial e que (foi dito) foi replicado nos es- critos da primeira geragao dos historiadores pés-independéncia. Camponeses ¢ traba- Ihadores seriam trazidos & luz da historia apesar do extensivo analfabetismo sob o Raj: “a voz do subalterno” seria ouvida. Guha e seus colegas se esforcaram para superar a falta de escritos subalternos lendo ao revés volumosas fontes governamentais. O préprio tra- balho de Guha sobre a insurgéncia camponesa na India colonial sugere que uma restau- racio parcial da voz camponesa € possivel, baseando-se para isso na escuta clandestina oficial ou “discurso interceptado”. Como ele explica, a contrainsurgéncia governamen- tal gravou compulsivamente qualquer coisa que parecesse set atividade rebelde — sejam os rumores no bazar, sejam os slogans gritados nas ruas, ou os detalhes casuais apresenta- dos como evidéncia no tribunal”. Vil A teavaliacao pés-colonial da histéria britanica pés-colonialismo surgiu com a determinacao de modificar 0 mapa conceitual através do qual as culturas do Terceiro Mundo eram estudadas. Mas o colonialismo era uma relagao de dupla-face que também alterou a cultura ¢ a mentalidade da socie- dade colonizadora. No passado esse tema recebeu ainda menos atengao dos historia- dores do que o impacto colonial no estrangeiro. No caso britanico, hé uma longa tra- dicdo de considerar o império como estando “a disposicao é fora” — um destino para as empresas britanicas e para a conquista, mas sem deixar uma marca significativa na vida metropolitana. A teoria pés-colonial submete essa presungdo ao exame critico, baseada na proposiao de que a colonia e a metrépole eram partes de um tinico siste- ma, com a influéncia fluindo nas duas diregdes. Como afirmou Antoinette Burton, 0 império “nao era simplesmente um fendmeno “A disposicao | fora’, mas uma parte 23. GUHA, R. Elementary Aspects of Peasant Insurgency in Colonial India. Oxford: Oxford University Press, 1983, p. 14-16. Ahist6ria do género e a historia pos-colonial, 283 constitutiva e fundamental da cultura inglesa e da identidade nacional internamen- te”, Deriva dai que o fim do império tornaa Inglaterra — assim como seus antigos ter- ritérios — uma sociedade pés-colonial. Até aqui, estar “& disposicao Id fora” significava que o império foi parte integral da vida ingles por 300 anos, ¢ tornou-se ainda mais dbvio & medida que se aproximou do fim, Isto nao era simplesmente uma questao de pintar 0 mapa mundial com certa pro- Mansfield Park Novela de Jane Austen, publicada em 1814. Como todas as novelas de Austen, 0 livro se interessa pelas perspectivas de casamento das jovens mocas das classes proprietérias. Nao é uma novela sobre 0 imperio. Ao mesmo tempo, fica claro que a riqueza da familia esta baseada nas plantagées escravagistas das Indias Ocidentais, ¢ as prolongadas auséncias de porgio de cor-de-rosa (uma experiéncia de todos os escolares britinicos). Edward Said sustentou que 0 cinone literdrio dos séculos XIX e XX inglés foi per- meado por uma consciéncia imperial (de uma ma- neira polémica na novela de Jane Austen, Mansfield Park). Mas 0 né do argumento diz respeito as expe- rigncias que foram partilhadas pelo povo inglés como um todo, Em torno de 1900, a maior parte das fami lias tinha algum parente vivendo nas colénias; virtu- almente todos consumiam produtos coloniais cuja Sir Thomas Bertram do lar séo explicadas ‘em termos da necessidade de cuidar de ‘seus assuntos nas Antilhas. origem era cuidadosamente rotulada; a ficcao de aventura € as estérias para meninos eram interpreta- das com base nesse cendrio colonial. Esses eram os constituintes de uma cultura imperial. De fato, o argumento chegou ao ponto de afir- mar que foi o colonialismo que tornou possivel o povo briténico pensar de si (uma dis- tingao entre as identidades britanica ¢ escocesa) como nacao”. A proposi ria a de que a identidade britanica tem uma necessidade radical de redefinigao, jé que 0 império nao existe mais. Nao surpreende, portanto, que os debates em torno dessa ques- to sejam um aspecto nao sé da histéria pés-colonial, mas também na polémica destina~ daa uma audiéncia mais ampla, notavelmente no trabalho de Paul Gilroy”. O trabalho de Said em Orientalismo descreve um Ocidente unificado impondo um discurso unificado ao leste. Mesmo em nivel cultural (com o qual ele estava exclusiva~ mente preocupado) isso agora parece uma simplificagao demasiada. Sem desmerecer a violéncia ¢ 0 autoritarismo do império, os historiadores pés-coloniais enfatizam as in- fluéncias num fluxo bidirecional, sendo que nem todas eram dirigidas diretamente a0 poder. Como Catherine Hall explicou, as histérias da “metrépole” e da “periferia” nao seguem um modelo binério simples”. Em seu livro Civilising Subjects (2002), ela trata 24. BURTON, A. (org,). Afier the Imperial Turn: thinking with and through the nation, [s..]: Duke University Press, 2003, introdugao do autor, p. 3. 25. BURTON, A. Who needs the nation? Interrogating “British” history. In: HALL, C. (org,). Cultures of Empire (s\.|: Manchester University Press, 2000, 26. GILROY, P. Afier Empire: melancholia or convivial culture? (s.l.]: Routledge, 2004, 27. HALL, C. Histories, empires and the post-colonial moment. In: CHAMBERS, I. & CURTI, L. (orgs.). The Post-Colonial Question. |s.1.|: Routledge, 1996, p. 70. 284 A busca da historia Jamaica ¢ Birmingham como locais interconectados do império na metade do século XIX, Somente com esse duplo foco, Hall argumenta, nés podemos entender tanto as atitudes populares britinicas no que se refere ao império como a cultura politica dos ex-escravos no Caribe; ¢ ela dé especial peso aos missiondrios que eram o principal canal de comunicagio entre a Jamaica e Birmingham. Realidades coloniais as vezes afetam a imaginagio metropolitana em maneiras inesperadas. Na década de 1790, Mary Woll- stonecraft apoiou a causa dos direitos da mulher ao Racializago da Londres pobre Na segunda metade do século XIX, as pessoas educadas com frequéncia comparavam os pobres aos ignorantes pagios do exterior. A implicacao era nao somente de que o pobre era cultural € tes na metrépole — assim como “racializagao” da moralmente inadequado, mas que ele fazer uma analogia com a plantagao dos escravos (ha- via mais de oitenta referéncias & escravidao em seu celebrado Vindication of the Rights of Women)". Numa maneira menos construtiva, as ideias coloniais de raga foram superpostas as distingdes sociais existen- Londres pobre na metade do periodo vitoriano”. 0 _pertencia a uma raca separada mais surpreendente de tudo foi o profundo ajusta- mento cultural feito por todas as comunidades de imigrantes vivendo na Inglaterra, que sugere que a nogo de Bhabha de hibridismo tinha maior receptividade na sociedade metropolitana do que nas colénias. O debate sobre as conexées entre a identidade britanica e o império é complicado pelo fato de que diferentes setores da populagao britanica tinham — e tém ~ memérias radicalmente diferentes do império. Parcialmente essa é a dimensio da problematic dos “trés reinos”: os escoceses € 08 irlandeses eram onipresentes nas colénias, enquanto 0s niveis de poder em Londres estavam nas maos do governo dominado pelos ingleses. Mas a questao-chave eram os imigrantes das colénias que se fixaram na Inglaterra. Uma imigragdo negra em larga escala comegou somente na década de 1950, no exato mo- mento em que 0 império estava sendo desmantelado, mas as pessoas de descendéncia africana e asidtica tém estado continuamente presentes na Inglaterra desde o fim do sé- culo XVI, nao s6 como curiosidades, mas em ntimeros suficientes para assegurar seu lu- gar na sociedade urbana, especialmente em Londres e nos principais portos. O fato de que muitos entre eles cram escravos introduziu na metrépole relagGes coloniais ¢ este~ reétipos raciais que perduraram muito depois do fim da escravidao. Como o bicentend- tio da abolicao do comércio escravagista em 2007 mostrou, a escravidao ainda toca um ponto nevrilgico na Inglaterra: para muitos brancos, cla tem sido incluida numa narra- tiva autorreferente de filantropia nacional, que considera o fim da escravidao em vez de sua longa histéria. Para muitos negros, por outro lado, a escravidao € 0 comércio escra- 28. FERGUSON, M. Colonialism and Gender Relations from Mary Wollstonceraft to James Kincaid. Colimbia: Columbia University Press, 1993, p. 8-33. 29, MARRIOT, J. The Other Empire: metropolis, India and progress in the colonial imagination. [s.1.]: Man- chester University Press, 2003, cap. 6. Ahistéria do género e a historia pés-colonial 285 vagista deveriam ser tratados como outro holocausto, com uma obrigagao implicita de compensagio. Raramente a voz dos negros do pasado ¢ ouvida nesse debate, pela sim- ples razao de que eles aparecem tao pouco nas fontes primérias: poucos eram alfabeti (0 dada aos poucos za- dos e menos ainda tinham acesso a esfera piiblica (daf a intensa atenca propagandists negros do século XVIII contra a escravidao). Emigrantes das Antihas(indias Ocidentas) a bordo do SS Empire Windrush (1948), 0 primeironavio a trazer um grande grupo antihanos para a Gré-Bretanha. Os recém-chegados nufiam grandes expecttivas em relagéo & 'mae-patia {que foram duramente destruidas pela hostiidade popular contra eles (Getty Images/Poppertoto) VIII Problemas e obstéculos As dificuldades inerentes a procura de uma voz hist6rica para os subalternos sao su- ficientemente reais. Um importante ramo do pés-colonialismo respondeu questionan- doa validade da disciplina académica que enquadrou seus esforgos: se a pesquisa histéri- ca nao pode gerar uma perspectiva desejada, entao a propria “histéria” precisa ser questio- nada. Desde uma perspectiva subalterna, a pega de acusacao é convincente. Um ponto Sbvio é que durante os séculos XIX e XX muitos historiado! es tomaram parte no projeto orientalista, ¢ Said argumenta que em sua época havia historiadores influentes cuja ex- pertise oriental foi colocada & disposigao do imperialismo ocidental (particularmente 0 americano). Mas hé um argumento mais amplo a ser feito no que se refere ao desequili- brio estrutural entre a histéria ocidental ¢ todas as outras histérias — aquilo que Dipesh 286 A busca da historia Chakrabarty chama de problema da “ignorancia assimétrica”™. Espera-se dos historia- dor legas na Europa ¢ ignorante da histéria da Asia e Africa. A implicagao das “grandes nar- sno Terceiro Mundo que saibam a histéria curopeia, enquanto a maior de seus co- rativas” sobre a experiéncia ocidental — nacionalismo, democracia, capitalismo ¢ assim por diante — séo parametros contra os quais outras sociedades devem ser medidas. Nin- guém faz uma avaliagao ao contratio. Hé também questées problematicas a serem perguntadas sobre o arquivo colonial, que inclui extensa documentagao nas antigas coldnias e também arquivos nacionais nos paises metropolitanos. Nao somente esses arquivos refletem o preconceito e a ignorin- cia dos funciondrios coloniais; eles foram instrumentos do governo, destinados a mol- dara realidade social aos designios do regime colonial: quantidade alguma de “critica ao revés” pode nos levar ao mundo do subalterno. Num artigo desafiador, “Can the subal- tern speak?”, Spivak valeu-se da pratica Hindu bem estudada do sati, que exigia da espo- sa jogar-se viva na pira funeral de seus maridos. Pesquisa histérica documentou em deta- Ihe os debates dentro da administragio britanica que levou a proibigao oficial do sati em 1833, assim como os argumentos em seu favor dos patriarcas tradicionalistas, mas a voz das vitimas permanece obstinadamente silenciosa’'. Na base da critica pés-colonial esta a relagao entre a histéria académica ¢ a nagao-estado. Uma vez que os historiadores tem geralmente observado as fronteiras dos estados, seu trabalho tem tido o efeito de vali- dar a nagio-estado como uma categoria preeminente de organizagao social e identida- de politica. Se a critica ao longo dessas linhas é usual na Inglaterra, ela é ainda mais pertinente num pais como a India, onde o efeito do foco na “nagao” é o de excluir lar- gas categorias sociais da agenda da histéria. Como Chakrabarty afirmou, a histéria é cimplice “na assimilacao aos projetos do moderno estado de todas as outras possibili- dades da solidariedade humana””. O secularismo da historiografia ocidental esta aberto a ataques em termos similares, como uma posigéo ideolégica que é manifesta- damente incapaz de se envolver com a espiritualidade das culturas islimicas. Alguns académicos pés-coloniais iriam ainda um pouco mais longe, desconsiderando as de- clarages universais da tradicao iluminista como uma apologia do Ocidente contra to- dos os Outros”. Pelo menos em teoria, o caminho esté aberto nao s6 para histérias au- tenticamente terceiro-mundistas, mas para inteiramente novas perspectivas no Ociden- te — aquilo que Chakrabarty chama de “provincializagao da Europa”. 30. CHAKRABARTY, D. “Postcoloniality and the artifice of history: who speaks for ‘Indian’ pasts?” Represen- tations, XXXVII, 1992, p. 1-3. 31. SPIVAK, G.C. Can the subaltern speak? In: WILLIAMS, P. & CHRISMAN, L. (orgs.). Colonial Discourse and Postcolonial Theory. a reader. (s.1.]: Harvester Wheatsheaf, 1993, p. 94-104. 32. CHAKRABARTY, D. “Postcoloniality and the artifice of history: who speaks for ‘Indian’ pasts?” Op. cits, p.23. 33. NANDY, A. “History forgotten doubles”. History and Theory, 34, 1995 ledigéo temética). Ahistoria do género e a historia pds-colonial 287 Reconhecendo a virada cultural Ler Dipesh Chakrabarty sobre a hist6ria pés-colonial ou Joan Scott sobre a histéria do género é duvidar do futuro da disciplina da hist6ria como ela € praticada pela maioria dos académicos de hoje. Esses escritores (e outros como eles) desafiam os ideais acadé- micos tradicionais de distanciamento, recriacdo auténtica ¢ andlise com base empirica, atacando os que subscrevem a eles. O tom ¢ similar ao adotado pelos pés-modernistas, ¢ isso nao é acidente. As visoes mais radicais sobre 0 género ¢ 0 pés-colonialismo que eu decidi descrever sao compativeis com o Pés-modernismo: de fato os escritos tedricos de Joan Scott sao geralmente colocados sob aquele titulo. No entanto, nao se deve presu- mir que as criticas radicais se tornarao 0 critério aceito da profisséo no futuro. Os histo- riadores praticantes na grande maioria se distanciam das plenas implicagdes da teoria pés-colonial ou de género. A influéncia do género e do pés-colonialismo na erudigao histérica deve ser medida nao em virtuosidade tedrica, mas na mancira com que cles projetaram novas e esclarecedoras perspectivas na arena académica. ‘Ao mesmo tempo, desenvolvimentos recentes na histéria do género e na histéria pés-colonial demonstram claramente os custos que se paga por se abragar a virada cultu- ral. Nessas perspectivas foi dado pouco espago para o material basico que trata da estrati- ficagao social ou do labor coletivo de grupos sociais que perseguem seus fins politicos. O fato de que 0 poder — seja ele exercido sobre uma colénia ou sobre um sexo subordinado — tenha uma dimensao cultural nao significa que seja um fendmeno cultural rout court. Os académicos podem ser enganados pelo poder das palavras ¢ das imagens, mas, para mui- tos dos grupos que eles estudam, o poder foi experimentado em formas materiais niti- das. Aquela verdade foi mais evidente na primeira geracéo dos estudos nesses campos do que é agora. Um novo envolvimento com a tradigio, sem perder os insights da andlise cultural, seria oportuno. da fami Esta é uma das dreas onde a histéria do género tem feito uma contribui siva, Para muitas pessoas “a histdria da familia” significa a recuperagao de sua prépri genealogia e detalhes pessoais sobre seus antecedentes. Historiadores, por outro lado, esto principalmente interessados na familia como um alicerce da sociedade. Os pri- meiros estudos foram demogréficos. Eles se baseavam muito nos registros de censos, focando no tamanho da familia, migragao ¢ relagdes com parentes (como, por exem- plo, o livro Family Structure in Nineteenth-Century Lancashire, de Michael Ander- son, 1971). Os historiadores de género colocaram os holofotes na familia como um local formativo na aquisicao do género e das identidades sexuais. Isto envolve uma mudanga nos métodos de pesquisa, com uma énfase maior nos documentos pessoais, tais como cartas ¢ didrios (cf., p. ex., VICKERY, A. The Gentleman's Daughter, 1998). A histéria da familia trabalhadora ainda corre atrds, devido & maior escassez desses materiais. 288 A busca da historia Independéncia no sul da Asia e Africa O perfodo entre 1945 ¢ 1980 marcou 0 fim da era colonial, depois de quatro sé- culos da expansao curopeia no estrangeiro. Todas as poténcias coloniais — Inglaterra, Franca, Holanda, Portugal e Bélgica — abandonaram suas colénias. Em alguns casos, clas foram forgadas a fazé-lo por movimentos de libertagio nacional; em outros, elas se retiraram de boa vontade na esperanga de reter influéncia no futuro. A retirada bri- tinica da {ndia e do Paquistao em 1947 foi marcada por severa violéncia comunal. A independéncia de Gana em 1957 colocou em marcha uma rdpida sequéncia de des- colonizagao, levando & independéncia da Nigéria (1960), Quénia (1963), e de mui- tos outros paises. Independéncia para Zimbabue (1980) marcou o fim dessa fase. Hong-Kong nfo foi transferido & China até 1997. Orientalismo No século XVIII os académicos europeus desenvolveram um interesse especial pela hist6ria ¢ cultura do “Oriente”, um conceito que eles utilizaram para uma drea que se estende desde o subcontinente indiano até a China e o Japao. Em livro de 1978, Orientalismo, 0 académico de literatura Edward Said argumentou que esse in- teresse de fato refletia o sentido da prépria superioridade do Ocidente sobre o que eles viam como sendo um leste romantizado ¢ “misterioso”. Leitura adicional BUSH, B. /mperialism and Postcolonialism. |s.l.]: Longman, 2006. DOWNS, L.L. Writing Gender History. (s.1.]: Hodder Arnold, 2004. HALL, C. (org,). Cultures of Empire. |s.l.]: Manchester University Press, 2000. HALL, C. & ROSE, $.0. (orgs.). At Home with Empire: metropolitan culture and the imperial world. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. HUFTON, O. The Prospect Before Her: a history of women in Western Europe, 1500-1800. [s.l.]: Harper Collins, 1995. NEALE, C. Writing “Independent” History: african historiography, 1960-1980. [s.L.]: Greenwood Press, 1985. SAID, E. Orientalism. 3. ed. [s.1.]: Penguin, 2003. SCOTT, J.W. Gender and the Politics of History. Colimbia: Columbia University Press, 1988. SMITH, B.G. The Gender of History: men, women and historical practice. [s.l.): Har- vard University Press, 1988. TOSH, J. Manliness and Masculinities in Nineteenth-Century Britain, (s.1.]: Longman, 2005. A historia do género e a historia pos-colonial 289

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