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e-Spania

Revue interdisciplinaire d’études hispaniques


médiévales et modernes
11 | juin 2011
Légitimation et lignage

Para além da linhagem


Poder e sucessão régia no feminino

Maria Joana Gomes

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/e-spania/20282
DOI: 10.4000/e-spania.20282
ISBN: 978-2-919448-70-8
ISSN: 1951-6169

Editora
Civilisations et Littératures d’Espagne et d’Amérique du Moyen Âge aux Lumières (CLEA) - Paris
Sorbonne

Refêrencia eletrónica
Maria Joana Gomes, « Para além da linhagem », e-Spania [Online], 11 | juin 2011, posto online no dia
05 março 2013, consultado o 02 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/e-spania/20282 ;
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Para além da linhagem 1

Para além da linhagem


Poder e sucessão régia no feminino

Maria Joana Gomes

O problema da sucessão de Afonso VI


1 O reinado de Urraca I, filha de Afonso VI, correspondeu, de acordo com os relatos
cronísticos coevos, a um período crítico da história peninsular. Contrastando com a
idealização positiva da época do seu pai, o reinado de Urraca passou à história como um
tempo conturbado, durante o qual, aos olhos dos redactores dos textos que versaram
sobre este período, a «ordo mundi» deixada pelo rei anterior se viu muitas vezes abalada.
Coincidindo ou não com a realidade histórica, o facto é que esta visão, embora com
ênfases diversas, foi veiculada por um número razoável de testemunhos produzidos ainda
durante o reinado de Urraca ou pouco depois da sua morte. Assim, se a Historia
Compostellana (HC)1 nos fala dos atentados que ameaçam a ordo eclesiástica secular e a
Primeira Crónica Anónima de Sahagun2 acentua os problemas enfrentados pelo clero regular,
chamando a atenção para a ausência de um líder protector, tal não significa que tudo se
tenha passado tal como os textos descrevem3.
2 No entanto, e apesar da convergência de posições no que diz respeito à negatividade do
período do reinado de Urraca, estes textos não assumem uma posição unânime no que diz
respeito à figura da rainha. Dependendo das motivações por trás da produção de cada
texto, a imagem do reinado sobrepôs-se, ou não, à da rainha acabando por prevalecer,
com o passar do tempo, a imagem mais negativa de Urraca4.
3 Contudo, desde muito cedo, um dos argumentos invocados por alguns textos para
fundamentar a associação entre a rainha Urraca e o clima de desordem e de guerra civil
originado pelas contendas várias que manteve com o seu marido Afonso I, por um lado, e
com os partidários de seu filho e de Raimundo da Borgonha, o futuro Afonso VII, por
outro, foi a sua incapacidade governativa5, uma incapacidade inevitavelmente originada
não tanto em qualidades e competências individuais, mas determinada por uma
característica generalista e de género, isto é, pela sua condição de mulher. Estes textos

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são pois um bom exemplo da ideia da incompatibilidade entre o género feminino e a


governação, a res publica, sendo a sua conjugação considerada como algo a evitar. Embora
não o digam explicitamente, indiciam que a subida de Urraca I ao trono foi uma solução
de recurso para uma situação política desesperada cujo epicentro reside na inexistência
de um sucessor masculino para a dinastia reinante em Leão e Castela. É possível pois
levantar a hipótese de que a crise exposta pelos textos historiográficos mais antigos que
discorrem sobre o reinado de Urraca, existiria já em potência no reinado de Afonso VI, ou
pelo menos depois da morte, em 1107, de Sancho, o único filho varão do monarca.

O modelo social-genealógico
4 O modelo de organização político e social da época, assente num de sistema de parentesco
baseado numa estrutura combinação estrutural de relações de tipo biológico
(consanguinidade) com vínculos de ordem social (afinidade) permite encarar esta
hipótese com mais propriedade. A designação/nomeação de um herdeiro régio estava
limitada por este tipo de organização social na qual as relações de parentesco eram
determinantes e fundamentais para o direito sucessório. De um modo geral, a transmissão
do património fazia-se de acordo com as regras do direito privado, isto é, o património
paterno era distribuído pelos seus herdeiros de forma mais ou menos equitativa, tendo-
se, nos finais da Idade Média, concentrado o património no filho mais velho 6. Contudo, no
que diz respeito ao exercício do poder régio, a questão torna-se mais complexa. Segundo
Ramos Loscertales, a sucessão régia navarra aceitava as mulheres como herdeiras do
território, muito embora encarasse o domínio feminino como uma espécie de
menoridade, onde estas não podiam exercer nenhum tipo de soberania efectiva ou de
tenência, sendo esse cargo atribuído a um «tutor»7. Tendo em conta a ascendência
navarra de Afonso VI não é demasiado estabelecer uma relação entre a origem da crise
associada pelos textos ao reinado de Urraca e os finais do seu reinado, quando o monarca,
confrontado com uma descendência no feminino, se vê na necessidade de encontrar uma
solução para o problema.
5 Mas poderia a designação deste sucessor recair num parente do rei relacionado com ele
por outro tipo de laços que não os de filiação? É reconhecido que, desde Ramiro I, a
sucessão ao trono do reino de Astúrias-Leão e depois de Leão e Castela se faz tendo por
base um modelo linear agnático8. Esse tipo de organização sucessória parece ter vindo a
impor-se sobre modalidades anteriores em que as mulheres e a estrutura de parentesco
entendida numa perspectiva cognática (bilinear e tendencialmente horizontal)
desempenhavam um papel determinante na designação de um novo rei9. Assim sendo,
dizer que a sucessão por filiação agnática se verifica desde o século IX na monarquia
asturiana não equivale a dizer que a mesma se baseava num quadro mental que aceitava
e/ou reproduzia exclusivamente um sistema linear no que toca à transmissão do
património familiar, quer seja ele material ou simbólico. De facto numerosos estudos
sobre a nobreza peninsular demonstram que, ao longo do século XII, coincidiram
temporal e espacialmente diferentes sistemas de estruturação do parentesco10. Estudos
mais recentes permitem mesmo afirmar que a prática de uma sucessão linear regida pelo
privilégio da primogenitura e da masculinidade, segundo o modelo das dinastias régias,
não se conseguiu afirmar de forma exclusiva em âmbito aristocrático11.
6 No que diz respeito ao caso concreto da sucessão de Afonso VI, a possibilidade de sucessão
«linear» foi posta em causa não pela ausência de descendência per se, mas em última

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análise pela inexistência de um descendente masculino. O facto de a Historia dita Silense,


redigida entre 1109 e 1118, apontar como o herdeiro designado de Afonso VI o seu
desafortunado irmão Garcia12 e não qualquer das filhas, parece indicar que, na
impossibilidade de a sucessão se dar cumprindo estas duas condições (linearidade e
masculinidade) a segunda teria prioridade sobre a primeira. A morte de Garcia em 1090
impede que se possa verificar se de facto a sucessão se materializaria num parente
consanguíneo colateral, assim como a morte do único filho varão de Afonso VI, Sancho
Afonso em 1107 virá a inviabilizar a solução «agnática»13. Daí que, na ausência de
descendente directo ou parente consanguíneo próximo masculino, os únicos receptores
que restam sejam as suas filhas, entre as quais Urraca.
7 Contudo, e por ser mulher, Urraca não está habilitada a cumprir plenamente as funções
que herda sem o exercício de um poder tutelar. Embora investida da auctoritas que o seu
nascimento lhe confere, o seu género não lhe permite exercer a potestas, o poder efectivo.
Esta ideia é usada na Primeira Crónica Anónima de Sahagún, como justificação para o
casamento de Urraca: depois de descrever as exéquias de Afonso VI os nobres e condes da
terra urgem a filha do falecido monarca a casar-se para poder governar14. Assim, o poder
simbólico do rei é ainda mais simbólico na rainha, porque surge esvaziado de qualquer
potencial de acção. Viúva à data da sua subida ao trono, Urraca será impelida para um
novo casamento como forma de assegurar o pleno cumprimento da função que herda.
Deste modo, o problema potencial da descendência de Afonso VI parece resolvido até que
o divórcio de Urraca dá corpo a uma nova forma inaceitável de exercício de poder. O
tempo em que Urraca governa sozinha não pode deixar de ser um momento político
estranho e ameaçador porque a confluência da autoritas e da potestas numa mulher,
provoca entropia num sistema de organização social onde o lugar e o papel de cada um
dos géneros/sexos estão bem definidos consignados15. Será então sobretudo a partir do
momento em quepassa a exercer o poder sem tutela masculina16 que mais premente se
tornará, consoante os casos, legitimar ou atacar a posição da rainha17.
8 Torna-se pois fundamental chegar a uma explicação que justifique ao mesmo tempo a
escolha de Urraca como sucessora de Afonso VI e os mecanismos de selecção (implícitos e
explícitos) invocados para fundamentar essa opção. E o que nos importa aqui é não chegar
à veracidade dos factos, mas aos mecanismos de representação expressos pelos textos
historiográficos que procuram racionalizar esta ocorrência. Uma vez que estamos perante
uma crise sucessória numa sociedade onde se verifica uma concepção genealógica da
transmissão do poder, é compreensível que seja esse o quadro conceptual no qual
procuramos perceber as formas coevas de a representar. Tendo em conta esta ideia, a lista
comentada das mulheres de Afonso VI, esboçada pela primeira vez por Pelaio, bispo de
Oviedo, apresenta-se não apenas como um relato informativo mas como um trecho
textual cujas razões vão para além de um propósito documental. Porque, na idade média,
genealogia, parentesco e matrimónio são categorias políticas, a sua concretização prática
invocada num determinado contexto exprime uma visão determinada pelos interesses
particulares que o texto em que surge representa.
9 O catálogo das mulheres de Afonso VI encontra-se amplamente disseminado pela
historiografia medieval. Porém, neste estudo focarei a minha atenção sobre apenas dois
textos que considero fundamentais. O primeiro, é o Chronicon regum Legionesium do
arcebispo Pelaio de Oviedo, redigido entre 1121 e 1130, portanto provavelmente ainda
durante o reinado de Urraca, que veio a ter grande difusão na historiografia medieval
peninsular dos séculos XII e XIII. O outro, mais tardio, é o primeiro relato historiográfico

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a propor uma versão alternativa ao Catálogo das mulheres de Afonso VI de Pelaio de


Oviedo, redigido meio século depois da morte da rainha leonesa e em terrenos mais a
oriente: refiro-me ao Liber regum. Começarei por analisar o texto do bispo de Oviedo,
contrastando em seguida essa análise com o texto navarro, procurando entender aquilo
que os aproxima e aquilo que os afasta no que a este episódio sucessório diz respeito.

Pelaio de Oviedo: Posição perante a situação e


organização do texto
10 O texto, a que se convencionou chamar Chronicon regum Legionensium (CRL) 18 terá sido
redigido por Pelaio, bispo de Oviedo entre 1121 e 113219 e terá sido o primeiro a oferecer
um relato acabado do reinado de Afonso VI20. Começando por relatar os acontecimentos
relativos ao reinado de Vermudo II e terminando com a descrição do enterro de Afonso VI
em Sahagun, o Chronicon, não menciona nem a entronização de Urraca nem fornece
nenhuma informação explícita sobre o seu reinado. No entanto, o CRL vai presentificar
esses tempos recorrendo a uma estratégia retórica que remonta ao texto bíblico. De facto,
a descrição da parte final do reinado de Afonso VI assenta em episódios de toada
escatológico-profética como o do milagre da catedral de Leão, cujo manancial de água é
interpretado como o choro de Deus pelas tribulações futuras da Espanha21 e a secção final
do texto que corresponde à descrição do funeral do rei22que assinalam a vinda de tempos
funestos, tempos esses que qualquer leitor coevo facilmente identificaria com o reinado
de Urraca23. Estrategicamente colocado entre estes dois episódios, o quadro dedicado à
política matrimonial e descendência de Afonso VI, parece ser semanticamente coerente
com ambos, muito embora o faça utilizando outro tipo de estratégia discursiva.
Considerando que a transmissão de poder político é feita com base numa lógica de
parentesco, a explicitação das relações de afinidade e filiação do rei parece ser, não só um
assunto de ordem familiar, mas também uma explicação para o sofrimento vindouro 24. A
ideia da perda da figura paternal por parte dos habitantes do reino é reforçada, quando,
tendo por base o quadro genealógico traçado por Pelaio de Oviedo, se percebe que o rei
não tinha filho varão vivo que lhe sucedesse. A crise social é portanto apresentada como
uma consequência de uma «falha» genealógica que, ao possibilitar a subida ao trono de
uma mulher, gera um problema sucessório25.

Catálogo das mulheres (descrição)

11 Contudo, a leitura deste catálogo não se esgota aqui.


12 Pelaio de Oviedo conta que Afonso VI teve ao longo da vida uma relação de tipo conjugal
com sete mulheres diferentes. Estas são agrupadas em dois conjuntos, de acordo com o
estatuto da relação que o rei com elas manteve. Assim, o texto regista em primeiro lugar o
grupo mulheres legítimas (habuit V. uxores legitimas), (Agnete, Constantia, Berta,
Helisabeth, Beatrice) e depois o grupo das concubinas, (habuit etiam duas concubinas), onde
figuram Ximena Munhoz e Çaida26. As mulheres legítimas são seriadas através de ordinais
(primam, secundam, tertiam, quartam, quintam) e as concubinas recorrendo a dois
advérbios temporais (priorem/posteriorem) o que pressupõe uma ordenação cronológica
das relações27. A informação aduzida sobre cada uma das mulheres é mínima (Agnes só
temos o nome) e, em geral, a identidade de cada mulher é quase exclusivamente definida
pela sua contribuição para a descendência do rei (Isabel, Ximena Munhoz). Nos casos em

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que não há descendência são dados de tipo geográfico que garantem a definição da
identidade (Beatriz, Berta)28. Duas excepções: Zaida, que foi mãe do único filho varão de
Afonso VI, Sancho Afonso, cuja definição identitária combina um dado de origem
geográfica-genealógica com o dado relativo à sua prole29. E a de Constança que é
(juntamente com a sua filha Urraca) diferenciada das restantes mulheres de Afonso VI,
pela atribuição do título «regina».
13 Resulta claro que Pelaio de Oviedo se mune de uma série de critérios com vista a
estabelecer uma hierarquia das mulheres do rei. É a posição que estas mulheres ocupam
na teia matrimonial tecida pelo rei Bravo que determina acima de tudo o seu estatuto no
seio do grupo. A divisão entre mulheres legítimas e concubinas resultará em termos
práticos numa diferenciação entre a descendência legítima e a descendência bastarda 30: as
filhas de Constança (Urraca) e Isabel (Sancha e Elvira) se sobrepõem em estatuto a Elvira e
a Teresa, filhas de Ximena Munhoz31.
14 Visto que, ao que tudo indica, as relações legítimas e as relações ilícitas estão
cronologicamente registadas, a descendência procedente de cada uma destas relações
estará hierarquizada segundo um critério de primogenitura. Assim, Urraca seria a filha
legítima mais velha de Afonso VI enquanto que entre as bastardas seria Elvira a ocupar
esse lugar.
15 Embora a aplicação conjunta destes dois critérios coloque desde logo Urraca num lugar
cimeiro na hierarquia, Pelaio utilizará ainda o título rainha para reforçar a posição de
Urraca face às suas meias-irmãs32. Ainda que a associação deste título a Urraca não deixe
de estar ligada à função governativa que desempenhou, a atribuição exclusiva deste, entre
as mulheres, a Constança e a Urraca tem como corolário Isabel e Ximena Munhoz e as
suas filhas são afastadas do estatuto simbólico que esta titulação confere 33.

Conclusão parcial

16 A elaboração do quadro de relações conjugais e de filiação do rei Afonso VI integra um


conjunto de episódios que anuncia a negatividade dos tempos do reinado de Urraca. No
entanto, e embora possa parecer algo paradoxal, este catálogo funciona também como
uma defesa da posição da rainha, de quem Pelaio de Oviedo era próximo34. Sem rasurar a
incompatibilidade entre o sexo feminino e a governação, o CRL parece construido de
modo a postular que, na constelação de mulheres que rodeava Afonso VI, Urraca é aquela
que lhe deve suceder35.
17 A estratégia de legitimação de Urraca depende assim da combinação de três critérios, os
quais revelam uma relação com a genealogia:
1) um de tipo «legalista/jurídico», e que estabelece uma distinção tipológica das relação
de afinidade de Afonso VI com várias mulheres, com consequências para a descendência
que delas procede;
2) um de tipo biológico-social, o da primogenitura, e que ordena a descendência de
Afonso VI dentro dos dois grupos criados pela aplicação do critério anterior;
3) um de tipo «político-funcional», rainha, mas ao qual Pelaio dá uma conotação
genealógica (ao atribuí-lo primeiro a Constança e depois a Urraca).
18 Todos estes critérios concorrem para reforçar a posição da rainha leonesa relativamente à
sua «sororia». A defesa da rainha torna-se particularmente importante se se tiver em
conta que Urraca enfrentou a sua meia-irmã Teresa de Portugal, e que esta reivindicou

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para si um estatuto régio como filha de Afonso VI, empregando o título rainha na sua
documentação36.

O Liber regum e as mulheres de Afonso VI


19 A enumeração comentada de Pelaio de Oviedo foi amplamente utilizada pelos textos
historiográficos subsequentes que o transmitiram sem proceder a alterações de grande
monta37. Contudo, o Liber regum (LR)38, obra de carácter genealógico e composta em
Navarra entre o final do século XII e o início do século XIII39, vai reinventar a lista
documentada no CRL e propor uma nova construção do catálogo.
20 Não parece haver dúvidas que o LR toma conhecimento do CLR através do texto da Crónica
najerense40. Esta propusera já algumas alterações ao texto pelagiano, sobretudo no que diz
respeito aos episódios de carácter profético já mencionados, eliminando a descrição do
funeral régio e justapondo à lista das mulheres o retrato do rei em vez do milagre da
catedral de Toledo. Contudo, no que diz respeito ao catálogo das mulheres de Afonso VI, a
atitude dos redactores da Crónica najerense é outra, demonstrando uma fidelidade quase
total ao texto do bispo asturo-leonês.
21 Outra atitude será tomada pelos redactores do LR. De acordo com a sua orientação
genealógica. O LR vai eliminar os episódios de carácter mais narrativo, retendo apenas o
catálogo. A enumeração comentada das mulheres de Afonso VI é assim despojada da
ressonância profética que possuía no texto ovetense e integrada na parte dedicada à
sucessão «linear»/temporal dos reis de Castela.
22 Mas as alterações ao nível do catálogo propriamente dito não são menos radicais: assim, a
lista viu-se substancialmente reduzida, de modo a ser encaixada na estrutura lacónica do
texto navarro. Da panóplia de mulheres de Afonso VI, o LR menciona apenas três:
Constança, Ximena Munhoz e Çaida. De fora ficam aquelas que, como Inês, Berta ou
Beatriz, não contribuíram para a prole do rei, o que se percebe num texto destinado a
registar descendências a longo prazo, ou que, como Isabel, tiveram descendência que
pouca importância viria a ter para a dinâmica das genealogias régias peninsulares 41.
23 Mas o LR propõe ainda outras modificações ao catálogo das mulheres de Afonso VI:
– uma inversão na ordem de apresentação das mulheres, colocando Çaida em primeiro
lugar, seguida de Ximena Munhoz (com Elvira e Teresa), e Constança (e Urraca) em
último;
– a introdução de uma nova forma titular qualificativa, «ifant», atribuída a Sancho Afonso
e às filhas de Ximena Munhoz42, enquanto que Constança e Urraca mantêm a titulação
«rainha»;
– a abolição da distinção formal entre mulheres legítimas e ilegítimas.
24 Estas alterações parecem traduzir uma mudança mais profunda que se regista ao nível
dos critérios utilizados na ordenação das mulheres de Afonso VI. O critério de
legitimidade, que assumia um lugar fundamental na hierarquização das mulheres do rei
no CLR parece perder a sua importância. Essa ideia pode ser aferida não apenas pela
abolição da distinção explícita entre mulheres legítimas e ilegítimas como também pela
atribuição dos títulos infantes aos outros membros da prole afonsina.
25 Embora a concessão do título de rainha a Constança possa evidenciar ainda o carácter
ilegítimo de algumas das relações do rei, a atribuição generalizada do titulo «infante» aos

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filhos de rei que, quer bastardos, quer legítimos, não herdaram reino, parece resultar
numa diluição do estatuto negativo da bastardia. Tal benevolência para com os filhos
bastardos é facilmente explicada se se atentar nos objectivos que presidiram à elaboração
do LR: a defesa e a legitimação de Garcia Ramires, o restaurador da dinastia navarra que
se via marcada por esse «pecadilho» genealógico43.
26 Perante estes propósitos, é natural que o critério de legitimidade deixasse de ser o
ordenador mais importante. A colocação de Çaida, mãe do único filho varão do rei (ainda
que bastardo) em primeiro lugar na lista parece indicar que o critério da legitimidade é
substituído, por um critério de masculinidade.
27 Tendo em conta não só estas alterações textuais, mas sobretudo as alterações resultantes
do câmbio de propósito de legitimação que geram uma alteração do substrato ideológico
no qual a argumentação dos redactores do LR é baseada (atenuação da negatividade da
bastardia, reformulação da importância dos critérios sucessórios com especial destaque
para a valorização da masculinidade), a personagem de Urraca deixa de ser o objecto do
discurso legitimatório, como era em Pelaio de Oviedo, para se tornar num instrumento
desse projecto no LR. Será como figura integrada numa cadeia de sucessão dinástica, na
qual comparece como rainha e antepassada de Afonso VIII, que Urraca vai encontrar a sua
utilidade. Apesar de o LR, por razões já conhecidas44, colocar em destaque a transmissão
do poder régio por via feminina, a afirmação/exibição do poder de Urraca como rainha
mostra a existência de um elo fraco na cadeia dinástica dos reis castelhanos. Assim, a
intromissão de uma mulher na esfera do poder político masculino, colocaria a dinastia
castelhana em desvantagem «simbólica» perante a dinastia navarra restaurada, cuja
mácula consistia numa bastardia, que o LR através dos elementos já mencionado,
procurava disfarçar ou escamotear. Sem que esta deixe de ser uma mancha no curriculum
genealógico, torna-se em comparação com a passagem de uma mulher pelo trono
castelhano, numa falta menor.
28 O título rainha atribuído à pessoa de Urraca mostra como a argumentação do LR se baseia
na sobreposição de várias realidades e no uso de uma terminologia polissémica e ambígua
45
. Numa primeira acepção, o termo relaciona-se com a esfera das relações de afinidade
via matrimónio. Urraca, como muitas outras mulheres mencionadas no texto, ostenta o
seu título régio por ser consorte de um rei, neste caso do rei de Aragão46. Numa segunda
acepção, já relacionada com a esfera das relações de filiação, o título de rainha é
excepcionalmente transmitido de pai para filha e portanto, o equivalente feminino da
forma «rei», traduzindo assim a ideia do poder efectivo de Urraca. É nesta duplicidade de
sentido que o estatuto de Urraca como uma legítima rainha de ilegítimo poder é
construído47.

Conclusões
29 O confronto com as representações textuais permite testar os modelos teóricos pelos
quais procuramos entender as práticas genealógicas medievais. Neste caso concreto a
análise do catálogo das mulheres de Afonso VI permitiu observar de que modo dois textos
de tipo diferente, separados no tempo e no espaço manusearam várias categorias
relacionadas com os modelos de transmissão de poder e como estas categorias são
integradas de modo a fazer valer as preocupações legitimatórias de cada texto.

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30 Pelaio de Oviedo exibe um quadro mental que se encaixa sem dificuldade no que se virá a
afirmar mais tarde com aquilo a que tem a ideologia linhagística, Na impossibilidade de se
valer do critério da masculinidade48, Pelaio manuseia outros preceitos que veiculam a
noção paradigmática da ordem do mundo masculino (linearidade, legitimidade,
primogenitura) para o mundo feminino de modo a atingir os seus objectivos: defender
Urraca como rainha perante as suas irmãs.
31 O LR procedeu a várias alterações ao catálogo das mulheres de Afonso VI com vista a
integrá-lo na narrativa genealógica que é, e a utilizá-lo na defesa e legitimação dos
restauradores navarros. A bastardia da dinastia reinante obrigou a uma mudança de
perspectiva no que diz respeito aos critérios ordenadores utilizados por Pelaio de Oviedo,
levando à secundarização do critério de legitimidade. Embora a distinção das relações
conjugais do rei (rainha vs s/título) obedeça, embora de modo menos explicito, a esse
mesmo preceito, o seu efeito é atenuado ao nível da descendência pela atribuição do título
infante a todos aqueles (legítimos e ilegítimos) que não herdaram o trono, esbatendo
assim a negatividade da bastardia.
32 A dicotomia estabelecida por estes dois títulos (rainha/rei e infante) vem marcar ainda
uma distinção entre aqueles que receberam reino e os que não foram contemplados com
essa dignidade. Contudo, não é seguro dizer que esta diferenciação implica uma distinção
exacta entre primogénito e filhos segundos. Daí que, e ao contrário do que sucedia no
texto de Pelaio de Oviedo, a lista das mulheres de Afonso VI contida no LR não permita
formular uma ideia conclusiva no que diz respeito à aplicação do princípio da
primogenitura referencial neste caso de sucessão feminina.
33 Para além destes critérios, O LR mostra uma vertente genealógica linear acentuada ao
omitir a referência às mulheres das quais não resultou descendência ou cuja importância
seria despicienda para os seus objectivos legitimatórios.
34 Neste processo de legitimação, a assunção do poder de Urraca adquire no LR matizes mais
complexos do que no CRL: o seu estatuto duplo de rainha por direito (e de facto) e por
matrimónio reforça e dilui simultaneamente a sua autoridade. O pressuposto normativo
que a mulher não deve governar e a necessidade legitimadora do LR confluem na figura de
Urraca: a exposição do poder de uma mulher-rainha resulta na desvalorização da dinastia
que esta integra e consequentemente na desvalorização de todo um reino.
35 Perdida pela «condição», salva pela «filiação», o poder vai-lhe sendo retirado ao longo da
História, remendo-a para um estatuto tutelar de mera transmissora. Depois de Urraca (e
de Teresa), não voltaria a haver uma mulher no trono dos reinos peninsulares, somando
autorictas e potestas até Isabel, a Católica, se assenhorar do trono de Leão e Castela.

BIBLIOGRAPHIE
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TORRES SEVILHA, Margarita, «La nobleza leonesa y sus estructuras de parentesco (siglos IX-
XIII)», in: Aragon en la Edad Media: Familia y sociedad en la Edad Media (siglos XII-XV), Sesiones de
trabajo del seminario de Historia Medieval, Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 2007, p. 95-117.

UBIETO ARTETA, Antonio (ed.), Crónicas anónimas de Sahagún, Zaragoza: Anubar, 1987.

ANNEXES

Texto Chronicon regum Legionensium Liber regum Villarensis

(ed. Sanchéz Alonso p. 86-87) (ed. Cooper, p. 34-35)

e-Spania, 11 | 2011
Para além da linhagem 11

Catálogo Hic habuit V. uxores legitimas: «Est rei don Alfonso prisomuller la Çaida, qui era
das sobrina d'Auenalfage, e baptizola e fo christiana. Et
mulheres ouo en ella fillo al ifant don Sancho, al que
primam Agnetem;
dixieron Sanch Alfons. Pues que mataron moros
secundam Constanciam en la batalla d'Ucles.
Reginam, ex qua genuit
E pues ouo el rei don Alfonso otra muller, qui ouo
Urracam Reginam coniugem
nomne Xemena Munnioz, et ouo en ella dos
comitis Raimundi, de qua ipse
fillas:la ifant dona Abira et la ifant dona Taresa.
genuit Sanciam et Adefonsum
Caso la ifant dona Taresa con el comte Henrric &
Regem;
ouieron fillo al reu don Afonso de Portogal. Caso
tertiam Bertam, Tuscia la otra filla la ifant dona Albira con el comte
oriundam; Ramon de Sant Gili et qui fo a la preson de
quartam Helisabeth, ex qua Iherusalem & ouieron fillo al comte n'Alfons, al
genuit Sanciam coniugem que dixieron Alfons Iordan qui fo padre del otro
comitis Roderici, et Geloiram comte Ramon.
quam duxit Rogerius Dux Est rei don Alfonso priso pues adu otra muller, la
Cicilie; reina dona Costança et ouo en ella una filla, la
quintam Beatricem, que, moruo reina dona Urracha.
eo, rependauit in patriam Esta reina dona Urracha casaronla con el comte
suam. Ramon & ouieron fillo al emperador de Castiella,
Habuitetiam duas concubinas, et un filla, la ifant dona Sancha. E pues la reina
tamen nobilissimas, dona Urracha, la madre del emperador, caso se
con el reu don Alfonso d'Aragon, el que priso
priorem Xemenam Munionis, ex Çaragoça de moros e non ouieron nengun fillo. (p.
qua genuit Geloiram, uxorem 34-35)».
comitis Raimundi Tolosani,
patris ex ea Adefonsi Iordanis,
et Tarasiam uxorem Henrici
comitis, patris ex ea Urrace,
Geloire et Adefonsi;

posteriorem nomine Ceidam,


filiam Abenabeth Regis
Yspalensis, que babtizata fuit
uocitata; ex qua genuit
Sancium, qui obiit in lite de
Ocles.

NOTES
1. Emma FALQUE REY (ed.) Historia Compostellana, Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis,
70, Turnholt: Brepols, 1987.
2. Antonio UBIETO ARTETA (ed.) Crónicas Anónimas de Sahagún, Saragoça: Anubar, 1987, p. 9-129.
A validade das duas Crónicas de Sahagún foram postas em causa por Charles GARCIA, que
considera o texto altamente manipulado ou intervencionado durante o reinado dos reis católicos
(ver Charles GARCIA, «Le pouvoir d’une reine»,e-Spania [En ligne], 1 | juin 2006, mis en ligne le 16

e-Spania, 11 | 2011
Para além da linhagem 12

août 2010, § 9. No entanto, quer Thérèse MARTIN, Queen as King: Politics and Architectural
Propaganda in Twelfh-Century Spain Brill: Leiden, 2006, quer Maria do Carmo PALLARES e
Ermelindo PORTELA, La reina Urraca, Donostia-San Sebastián: Nerea, 2006, têm em conta o
testemunho da primeira crónica para os seus trabalhos. Rosário FERREIRA, «Urraca e Teresa: O
Paradigma Perdido», Guarecer on-line [on line], 8|2010. Consultado a 5 de Janeiro de 2011. URL:
http://www.seminariomedieval.com/ineditos.html, §. 5, propõe argumentos em favor da datação
e dos argumentos propostos por Ubieto Arteta, op. cit., p. 6 , argumentos esses que me parecem
válidos para que se continue a ter em consideração este texto.
3. Se a posteriori vieram a existir textos que se mobilizaram para criar uma legenda negra da
rainha Urraca, é provável que a contestação da sua posição à frente dos reinos de Leão e Castela
se fizesse sentir já durante o seu reinado. Essa contestação pode ser auferida pelo grande esforço
de legitimação do seu poder que Urraca desenvolveu, e que se expressou de diversas formas: em
termos diplomáticos, através do emprego, nos documentos régios, de intitulationes que procuram
afirmar a relação com o seu pai e predecessor, Afonso VI, e em termos arquitectónicos, pela
edificação de uma nova igreja no mosteiro de Santo Isidoro de León, construção ligada não
apenas ao patrocínio habitual das rainhas leonesas a este cenóbio, mas também, uma vez mais, a
necessidade de fazer perdurar a relação de continuidade entre Afonso VI e a sua filha (ver
T. MARTIN, op. cit., p. 97).
4. Segundo Maria do Rosário FERREIRA, art. cit. p. 14 os textos historiográficos do século XII
foram mais benévolos para com Urraca do que algumas obras posteriores, elaboradas já durante
o século XIII.
5. Quer o Chronicon Compostellanum (CC) quer a Historia Compostellana (HC) se preocupam em
salientar a inadequação da condição feminina para o exercício do poder e para a governação. A
História Compostellana redigida entre 1111 e 1140, em louvor do bispo e posteriormente arcebispo
de Compostela, Diego Gelmirez, afirma que «Animus mulieris infirmus est et instabilis et cito exorbitat
» (HC, ed. cit., I, 107, 25-26, p. 181), reforçando esta afirmação com uma citação bíblica retirada do
eclesiastes: «Melior est iniquitas uiri quam benefaciens mulier» [ecc 42: 14] (HC, ed. cit., I, 107, 26-27,
p. 181). Na mesma linha de pensamento equipara, nas consequências, a governação feminina a
uma menoridade: «Sed maledicta terra ubi puer regnat et mulier principatum tenet (HC, ed. cit, I,
107, 126-127, p. 183) O Chronicon Compostellanum redigido pouco tempo depois da morte da rainha
em 1126, faz convergir em Urraca a «governação feminina» e a tirania: Emma FALQUE,
«Chronicum Compostellanum», Habis, 14, p. 73-83, p. 82: «Illo autem mortuo, filia eius Urracha
legitima ab eo genita totum regnum Ispanie obtinuit, quia ipse masculam prolem, que sibi in regnum
succederet, non habebat. Regnauit autem tirannice et muliebriter X et septem annos et apud castrum
Saldanii VI idus martii in era MCLXIIII in partu adulterini filii uitam infelicem finiuit». A Primera Crónica
Anónima de Sahagun (PCAS) atribui as dificuldades experimentadas durante ao reinado de Urraca
não tanto à sua condição feminina, mas a uma consequência dessa condição: o mau casamento
celebrado entre Urraca e Afonso I: «Mas como el poderoso Dios dispusiese de querer açotar a Espanna
con el bastón de su sanna, consintió e pirmitió que los yniquos e malos consejos prebaleçiesen, ca venidos los
condes e nobles al castillo que diçen Munnón, allí casaron e ayuntaron a la dicha doña Urraca con el rei de
Aragón» (PCAS, ed. cit., p. 28).
6. Maria Isabel LORING GARCÍA, «Sistemas de parentesco y estructuras familiares en la Edad
Media»,in: José Ignacio de la IGLESIA DUARTE (coord.), La familia en la Edad Media, Nájera: Instituto
de estudios riojanos, 2001, p. 13-38, p. 5.
7. José Maria RAMOS y LOSCERTALES, «La sucesión de Alfonso VI», Anuario de Historia del Derecho
Español, 13, 1936-1941, p. 36-99, p. 59. Dizer qual dos dois modelos se impôs neste momento é
difícil, já que, na verdade, a subida ao trono de Urraca rompe com os dois sistemas.
8. Houve certamente excepções ao cumprimento deste preceito. O caso de Sancha de Leão (filha
de Afonso V e herdeira do reino por morte do seu irmão Vermudo III em 1038) e de Elvira,
condessa de Castela (irmã do infante Garcia, assassinado em León) são dois exemplos mais

e-Spania, 11 | 2011
Para além da linhagem 13

conhecidos. Contudo, o paralelismo com a situação de Urraca não é perfeito, já que tanto Sancha
como Elvira já se encontravam casadas (com Fernando de Castela e Sancho III de Navarra
respectivamente) quando se tornaram detentoras da autoritas régia respectivamente do reino de
Leão e do condado de Castela.
9. Rosário FERREIRA, «Paradigmes du pouvoir féminin en Ibérie médiévale: une enquête en
cours», conferência apresentada ao «Séminaire moyen âge espagnol» do Colégio de España, Paris,
29-03-2010, mostra como na monarquia asturiana até Ramiro I o sucessor do trono não seria
necessariamente o primogénito do rei, mas sim o marido da filha do rei ou o parente mais
próximo da filha do rei.
10. Ver José MATTOSO, «Problemas sobre a estrutura da família na Idade Média», in: Portugal
Medieval: Novas interpretações, Lisboa: Círculo de Leitores e Autor, 2002, p. 181-192, p. 186, para a
nobreza do norte de Portugal, e Simon BARTON, The aristocracy in twelfth century León and Castile,
Cambridge - New York - Melbourne: CUP, 1997, p. 222, para a nobreza castelhana-leonesa. O
mesmo autor alerta para o facto de a consciência de linhagem entre a nobreza leonesa e
castelhana se ter começado a desenvolver ao longo do século XII. Margarita TORRES SEVILHA,
«La nobleza leonesa y sus estructuras de parentesco (siglos IX-XIII)», in:Aragón en la Edad Media:
Familia y sociedad en la Edad Media (siglos XII-XV), Sesiones de trabajo del seminario de Historia
Medieval, Zaragoza: Universidad de Zaragoza, p. 95-117, p. 117, situa o início da mudança de
paradigma no reinado de Fernando I.
11. Ver o trabalho de José Augusto PIZARRO publicado neste mesmo número da e-Spania.
12. JustoPÉREZ de URBEL e Atilano GONZÁLEZ RUIZ-ZORRILLA (ed.), Historia Silense, Madrid,
1959. Embora a apresentação desta justificação possa ter como propósito atenuar a culpa de
Afonso pela captura do irmão tal não invalida o seu significado. Ao ser invocada como justificação
significa que esta hipótese sucessória não seria totalmente rejeitada pois tal neutralizaria a forca
do argumento. Parece pois haver nesta ideia uma interferência dos esquemas de passagem de
património da nobreza (de tipo horizontal) que a monarquia (ou alguém por ela) emula quando
esta se vê confrontada com uma ausência de herdeiro masculino directo.
13. Pode dizer-se que o partido que apoiava Afonso Raimundes, que contava entre as suas fileiras
com proeminentes figuras da Galiza como o arcebispo de Compostela e Pedro Froilaz conde de
Traba, seguia esta linha de orientação. A decisão de Afonso VI não ter herdado directamente
Afonso VII terá certamente causado perplexidade e até mesmo desconforto em alguns meios.
Alguns textos mais tardios procuram explicar esta decisão, que lhe pareceria provavelmente
estranha recorrendo a uma explicação de tipo sentimental: o desamor do rei pelo primeiro
marido da filha, Raimundo da Borgonha, tê-lo-ia levado a excluir o filho do conde borgonhês da
sucessão. Os textos do século XII não oferecem para esta decisão qualquer tipo de explicação,
muito embora a Historia Compostellana, partidária declarada do futuro Afonso VII, procure
estabelecer uma ideia de co-governação entre mãe e filho. Contudo, PALLARES e PORTELA, op.cit.,
p. 74-75, argumentam que mesmo que o pequeno Afonso Raimundes tenha adquirido desde muito
cedo a dignidade régia tal não significa que essa se faça acompanhar de um exercício efectivo de
poder. Para todos os efeitos, Urraca continuava a somar auctoritas e potestas no reino de Leão e
Castela. Por seu lado, J. M. RAMOS y LOSCERTALES, art. cit., p. 45, inclina-se para a ideia de que
que Urraca foi de facto a única herdeira dos domínios de seu pai.
14. PCAS, ed. cit., p. 26: «E el dicho rey ya enterrado, ayuntáronse los nobles e condes de la tierra e
fuéronse para la dicha doña Urraca, su fija, diçiéndole ansi: ‘Tu non podrás governar, nin retener el reino de
tu padre e a nosotros regir, si non tomares marido. Por lo qual te damos por consejo que tomes por marido
al rei de Aragón’...»
15. M. C PALLARES e E. PORTELA, op. cit., p. 22.
16. Segundo M. C. PALLARES e E. PORTELA, op. cit., p. 77, Urraca estaria já divorciada antes de
Outubro de 1114.

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Para além da linhagem 14

17. Entre o ano da subida de Urraca ao trono de Leão e Castela (1109) e os anos imediatamente
posteriores à sua morte ocorrida em 1126 foi produzido um número considerável de textos
historiográficos: a Primeira Crónica Anónima de Sahagún (por volta de 1117), a Historia dita Silense
(depois de 1109), o Chronicon regum Legionensium de Pelaio de Oviedo (entre 1121 e 1130), o
Chronicon Compostellanum (depois 1126) e a Historia Compostellana (redigida em várias fases entre os
anos de 1111 e 1140). Se é perfeitamente admissível que o boom de produção historiográfico que
se verificou nos territórios dos reinos de Leão e Castela e Galiza durante a primeira metade do
século XII não tenha como única explicação a necessidade de defender ou atacar a posição de
Urraca como rainha de direito e de facto, também não é de descartar a hipótese de que essa
necessidade possa ter motivado uma maior produção textual. Contudo, esta elevada actividade
historiográfica, quer esteja directamente relacionada com a instabilidade social então vivida,
quer fosse motivada por uma genuina vontade de defender a posição da rainha contra o partido
aragonês, ou vice-versa, parece estar inevitavelmente associada à figura da rainha.
18. Sigo a edicção de Benito SÁNCHEZ ALONSO, (ed)., Crónica del Obispo don Pelayo, Madrid: JAEIC,
1924, mas prefiro a designação utilizada por Simon BARTON e Richard FLETCHER (ed. e trad.), The
world of el Cid: chronicles of the Spanish reconquest, Manchester: MUP, 2000.
19. Sobre a problemática relativa à datação da obra de Pelaio de Oviedo ver S. BARTON e R.
FLETCHER, op. cit., p. 71-72.
20. A Historia dita Silense que se propunha, segundo o próprio prólogo, a relatar o glorioso
reinado de Afonso VI, não chega curiosamente a descrever o reinado do Bravo, terminando a
matéria que diz respeito a Afonso VI no momento em que este, regressado do exílio toledano,
ascende ao trono conjunto de Leão, Castela e Galiza.
21. CRL, ed. cit., p. 85-86: «Hoc signum nichil aliut protendit nisi luctus et tribulationes que post mortem
predicti Regis euenerunt Hispaniae; ideo plorauerunt lapides et manauerunt aquam».
22. Ibid. p. 87-88: «...flentibus cunctis ciuibus et dicentibus: Cur pastor oues deseris? Nam commendatum
tibi gregem et regnum inuadent enim eum Sarraceni et maliuoli hominess».
23. O retrato do rei, que, juntamente com a lista das mulheres e do casamento, constitui a parte
central desta «litania» contribui também para o adensar do abismo entre o tempo de Afonso VI e
de Urraca, não só porque o retrato de Afonso VI é o mais completo e extenso dqueles fornecidos
pelo texto do bispo de Oviedo, mas também porque ao estabelecer uma relação entre a pax
regnorum e a governação de Afonso VI, Pelaio mostra que se o reinado do «pai» implica todas
estas coisas, o reinado da «filha» implicará o contrário.
24. Obviamente que a opção por esta explicação implica que os receptores do texto reconheciam
a genealogia como um preceito organizador social. Segundo Gabrielle SPIEGEL, «Genealogy: Form
and Function in medieval historiography», in: The Past as Text: the theory and practice of medieval
historiography, Baltimore and London: John Hopkins University Press, 1997, p. 99-111, a
genealogia é exactamente uma das categorias ordenadoras da percepção da realidade na época
medieval.
25. Também a crise do reinado de Vermudo II é explicada por Pelaio de Oviedo como tendo
origem nas relações afectivas estabelecidas por aquele rei. No entanto, a diferença que o opõe a
Afonso VI é flagrante: no caso de Vermudo II a vinda de Almançor está relacionada com o pecado
de tipo genealógico que Vermudo incorre ao cometer incesto com duas irmãs (CRL, ed. cit., p. 61:
«Habuit duas nobiles sorores...»). No caso de Afonso VI não estamos perante um atropelo do
interdito do incesto, apenas perante um má gestão/sorte nas escolhas matrimoniais e extra-
conjugais de Afonso VI.
26. M. TORRES SEVILLA, art. cit., p. 105, levanta a hipótese de os casamentos dos reis leonses com
mulheres oriundas de outros reinos expressarem uma política racional e consistente da dinastia
asturo-leonesa desde os tempos de Afonso III: «Quizás para escapar de estas redes peligrosas (casar
com mulheres nobres do reino), la monarquia volvió sus ojos hacia el reino de Pamplona. El matrimonio
de Alfonso III con Jimena, y algunos de los sucesivos de sus hijos y descendientes con damas navarras,

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Para além da linhagem 15

garantizaban cierta independencia, aunque non total hasta el cambio dinástico del XI, a partir del cual se
prescinde de los desposorios con mugeres de la aristocracia del reino, que quedarán relegadas al papel de
amantes pero no de reinas».
27. Uso de ordinais no caso das mulheres legítimas: primam, secundam, tertiam.
28. Origem geográfica, no caso de Berta, e destino, no caso de Beatriz e origem geográfica-
genealógica, no caso da Çayda. Contudo, se a origem destas mulheres é mencionada, tal
informação não parece elevar aquelas a que se refere acima do critério organizativo da
legitimidade (Çaida, apesar de ser filha de rei, não recebe o título de rainha, nem deixa de ser
considerada como concubina).
29. O facto de que Sancho Afonso aparece mencionado em último lugar em nada afecta o seu
estatuto. Como único filho varão de Afonso VI, a «mácula» da ilegitimidade seria certamente
irrelevante para a contabilidade sucessória. Aliás Sancho já emitia documentos em conjunto com
o seu pai (ver e esse gesto parece indicar uma intenção por parte de Afonso VI de garantir a
sucessão do trono leonês-castelhano para o seu filho (ver Andrés GAMBRA, Cancillería Curia y
Imperio, 1, Estudio, León: Centro de Estudios e Investigación «San Isidro», 1998, p. 486). A sua
legitimidade advém-lhe do género a que pertence e sobrepõem-se à primogenitura ou à
dicotomia legítimo/ilegítimo. Como se dissesse nenhum filho homem é ilegítimo, especialmente
em circunstâncias onde não havia outra hipótese. M. C. PALLARES e E. PORTELA, op. cit. p. 21,
referem que a extra-conjugalidade era amplamente aceite quando os casamentos legítimos não
produziam o herdeiro varão desejado. De qualquer modo a morte de Sancho em Uclés em 1108
torna obsoleta qualquer preocupação com aquele que teria sido, ao que tudo indica rei de Leão e
Castela.
30. A importância que a ascendência materna adquire como estratégia político social de
ascenção e/ou manutenção de um estatuto superior por parte dos grupos mais favorecidos da
antiguidade tardia, veio a cimentar um modelo social onde ambas as ascendências (paterna e
materna) se revelam importantes para a construção do prestígio e estatuto social de um
determinado indivíduo. (ver M. TORRES SEVILLA, art. cit., p. 98-99). A existência do paradigma
bilinear em Leão e Castela do século XII pode ser observado na documentação emitida pela
chancelaria da própria Urraca (ver M. C PALLARES e E. PORTELA, op. cit. p. 107).
31. Segundo M. TORRES SEVILLA, art. cit., p. 110: «La vigilancia sobre las uniones orientadas por el
grupo familiar no cuestiona, sin embargo, la existencia de otras paralelas que puedan generar
descendencia, una prole que, en funcion del rango del otro progenitor, queda relegada o no a una posicion
secundaria dentro del clan». Portanto, e neste caso concreto, o estatuto da descendência resultante
de cada relação de Afonso está acima de tudo dependente do estatuto da mãe (legal e
genealógico).
32. T. MARTIN, op. cit., p. 7-8, nota 12, menciona esta opção do bispo ovetense.
33. Contudo, ao transformar essa designação quase num «título hereditário» por via feminina,
vinculando-o ao universo genealógico feminino, o argumento de Pelaio de Oviedo acaba, a longo
prazo, por enfraquecer o poder simbólico de Urraca, em vez de o fortalecer.
34. A estreita colaboração de Pelaio de Oviedo com a rainha Urraca foi já notada por diversos
autores como por exemplo T. MARTIN, op. cit., p. 7, nota 12, M. C. PALLARES e E. PORTELA, op. cit.,
p. 160.
35. Pelaio de Oviedo não menciona o enlace de Urraca com Afonso I de Aragão, muito
provavelmente porque à data da redacção da sua obra, o casamento já teria sido anulado. No
entanto, Pelaio mantém a referência ao casamento de Urraca com Raimundo de Borgonha sem
aludir a sua morte ocorrida em 1107. Tal estratégia pode estar relacionada com o facto de até
1124 o trono pontifício ter sido ocupado por Calixto I, irmão de Raimundo. Interessaria pois à
consolidação da posição da rainha leonesa mostrar como esta estava ligada por laços de afinidade
ao papa. A própria rainha invocou essa mesma ligação em inúmeros documentos. Ver M. C.
PALLARES e E. PORTELA, op. cit., p. 108, 156. Por outro lado há que ter em atenção que o titulo

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Para além da linhagem 16

régio é atribuído no masculino ao filho de Urraca. Embora a crónica pareça mostrar que o
estatuto régio do futuro Afonso VII decorre do estatuto régio de Urraca e não o contrário, outras
leituras são possíveis: ao intitularAfonso como regem pode também apontar para a situação real
em que Afonso se tornara desde 1119 rei de Toledo e da Extremadura (ou pelo menos assim se
identificava na sua documentação), ou até mesmo para uma inconsistência do autor que, tendo
redigido ou terminado a obra já durante o reinado de Afonso VII, poderia, nesta passagem, ter
sobreposto passado e presente.
36. Ver Marsilio CASSOTTI, Dona Teresa, Lisboa: A esfera dos livros, 2008. Segundo apuraram
M. C. PALLARES e E. PORTELA, op. cit., p. 89, Teresa passou a empregar regulamente o título
rainha na sua documentação a partir de 1117. As reacções de Urraca às movimentações políticas
da meia-irmã são estudadas por Maria João BRANCO, «Portugal no reino de León: Etapas de uma
relação (866-1169)» in: El Reino de León en la Alta Edad Media, 6, León: Centro de Estudios e
Investigación «San Isidoro», 1993, p. 537-625; e Gregoria CAVERO DOMÍNGUEZ, «El perfil político
de Urraca y Teresa, hijas de Alfonso VI», in: Actas do 2° Congresso histórico de Guimarães, 2,
Guimarães: Universidade do Minho, 1996, p. 7-23, 1996, entre outros.
37. Juan ESTÉVEZ SOLA, (ed.), Chronica naierensis, Corpus Christianorum, Continuatio medievalis,
Chronica Hispana s. XII, 71A, Turnhoult: Brepols, 1995.
38. Uma nova titulação para o Liber Regum foi recentemente proposta por Georges MARTIN, «
Libro de las generaciones y linajes de los reyes ¿Un título vernáculo para el Liber regum?», e-
Spania [en ligne], 9|2010, mis en ligne le 03 août 2010, consultado a 3 de Janeiro de 2011.
39. G. MARTIN, art. cit., §. 3, nota 11, dá conta das propostas de datação para o LR.
40. Alberto MONTANER FRUTOS, « El proyecto historiográfico del Archetypum Naiarense» e-
Spania 7, juin 2009 , mis en ligne le 17 août 2010, § 35, afirma que o Liber Regum conheceu uma
versão da Crónica najerense através de um exemplar hoje perdido que o autor designa como
Exemplar Pampilonese. Juntamente com a Historia dita Silense foram ambos as fontes utilizadas pelos
redactores do Liber regum para o reinado de Afonso VI. Uma vez que a Historia dita Silense não faz
nenhuma referência às relações de Afonso VI é seguro afirmar que a matéria do catálogo das
mulheres de Afonso VI transita para o Liber regum por meio deste exemplar.
41. Sancha e Elvira casaram respectivamente com Rogério da Sicília e com Rodrigo de Lara.
Teresa por sua vez casou com Henrique de Borgonha dando origem à dinastia dos reis de Portugal
e Elvira casa na família dos condes de Toulouse, com a qual Aragão mantém laços de afinidade (o
bisneto de Elvira Raimundo VI casa com a filha de Afonso II de Aragão).
42. É fácil entender que um texto com traços orientadores de tipo genealógico/geracional
elimine referências espúrias, concentrando-se sobretudo na sucessão linear das dinastias régias
de Castela, Aragão e Navarra.
43. G. MARTIN, Les Juges de Castille: Mentalités et discours historique dans l’Espagne médiévale, Paris:
Klincksieck, 1992, p. 176.
44. Ver G. MARTIN, «Libro de las generaciones y linajes de los reyes...», p. 7.
45. Tal como as palavras «linaje» e «geraçon» detém no Liber regum um valor polissémico notado
por Georges MARTIN, art. cit., p. 5-6, creio que essa mesma polissemia está presente no título
«rainha». Esse cruzamento de múltiplos significados em palavras que representam conceitos
chave no tabuleiro político-genealógico por onde se movem os redactores do Liber regum é uma
estratégia fundamental para que os objectivos legitimatórios a que o texto se proopõe sejam
alcançados.
46. Para além de Urraca existiram, no intervalo temporal que o texto do Liber Regum cobre, outras
duas mulheres que herdaram o reino dos seus parentes masculinos mais próximos: Sancha de
Leão e Perona de Aragão. Infelizmente, a menção que delas faz o Liber regum não permite
estabelecer um termo de comparação claro com o caso de Urraca: no caso de Sancha de Leão
porque o seu nome nem sequer é mencionado no Liber regum (já que omite todos os nomes
relacionados com o reino de Leão). O caso de Perona de Aragão revela-se mais complexo já que a

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Para além da linhagem 17

Versão Navarra do Liber regum, a mais antiga, está truncada antes de fazer referência a Perona de
Aragão. O editor do Liber regum supre esta lacuna completando o texto truncado fornecendo em
nota o texto da Versão Toledana (Louis COOPER, op. cit. p. 8 e 38, nota 92), publicada pelo padre
Flórez. Esta versão menciona o casamento de Perona com o conde de Barcelona e a subida do
casal ao trono de Aragão: «...e ovo della una filla, que ovo nombre Dona Perona, que casaron com el
Comde de Barcelona: e ovo el Reyno Daragon.» A formulação dúbia permite estabelecer duas
interpretações: Perona recebeu o reino depois do casamento, ou o conde de Barcelona recebeu o
reino depois de casar com a herdeira. De qualquer modo parece claro que, mesmo que tenha sido
Perona a recebê-lo, que o acesso ao trono aragonês por parte da filha de Ramiro de Aragão só se
tornou possível depois do matrimónio com o conde de Barcelona.
47. De facto, foi rainha por filiação (Leão e Castela) e afinidade (Aragão). Pelaio de Oviedo não
menciona este enlace, muito provavelmente porque à data da redacção da sua obra o casamento
já teria sido anulado tendo sido invocado o tradicional argumento da consanguinidade. Pelaio
prefere no entanto manter a referência ao casamento de Urraca com Raimundo de Borgonha
como se este fosse ainda vivo. Tal estratégia pode estar relacionada com o facto de até 1124 o
trono pontifício ter sido ocupado por Calixto II irmão de Raimundo. Interessaria pois para ainda
mais legitimar a posição da rainha leonesa mostrar como Urraca estava ligada por afinidade ao
papa. A própria rainha invocou essa mesma ligação em inúmeros documentos. Ver M. C.
PALLARES e E. PORTELA, op. cit., p. 156.
48. E contudo o critério da masculinidade parece estar implícito, pois um Sancho vivo invalidaria
a necessidade de toda a argumentação. A breve nota sobre a morte de Sancho em Uclés parece ter
como finalidade mostrar que, neste caso, era impossível uma sucessão masculina (directa).

RÉSUMÉS
A subida de Urraca I (1109-1126) ao trono do reino de Leão e Castela como sucessora de Afonso VI
(1072-1109) representou, como atestam vários testemunhos escritos, um acontecimento
problemático para os seus contemporâneos. Consoante a posição que assumem perante este
facto, os textos historiográficos peninsulares não deixaram de fornecer argumentos e
justificações que favoreciam ou que, pelo contrário, atacavam o papel da filha de Afonso VI.
Partindo da análise do catálogo das mulheres de Afonso VI em dois desses textos -O Chronicon
Regum Legionensium e o Liber Regum Villarensis-, este artigo procura problematizar não apenas o
lugar de Urraca no quadro genealógico das mulheres e da descendência de Afonso VI, mas
também avaliar de que modo estas relações genealógicas são apresentadas por cada um destes
textos, para legitimar ou denegrir a rainha de Leão e Castela e, através dela, a dinastia a que esta
pertence.

Comme on le constate à travers plusieurs témoignages écrits, l’accession au trône de León et


Castille d’Urraque (1109-1126), succédantà Alphonse VI (1072-1109), fut perçue par ses
contemporains comme un fait de nature problématique. Selon la position qu’ils adoptent, les
textes historiographiques hispaniques fournissent autant d’arguments et de justifications
favorables ou hostiles au rôle politique de la fille d’Alphonse VI. À partir de l'analyse de la liste
des femmes d’Alphonse VI dans le Chronicon regum Legionensium de Pélage d’Oviedo et du Liber
regum Villarensis, cet article s’intéresse non seulement à la place d’Urraque dans la généalogie des
femmes et de la descendance d’Alphonse VI mais tente aussi de montrer comment ces relations

e-Spania, 11 | 2011
Para além da linhagem 18

généalogiques sont présentées dans chacun de ces textes afin de légitimer ou discréditer la reine
de Léon et Castille et, à travers elle, sa propre dynastie.

INDEX
Mots-clés : Alphonse VI, batârdise, Liber regum, lignage, Pélage d’Oviedo, pouvoir féminin,
primogéniture, Thérèse de Portugal, Urraque Ière
Palavras-chave : Afonso VI, bastardia, Chronicon regum Legionensium, linhagem, Pelaio de
Oviedo, poder feminino, primogenitura, Teresa de Portugal, Urraca I

AUTEUR
MARIA JOANA GOMES
SMELPS/Universidade do Porto, Bolseira da FCT

e-Spania, 11 | 2011

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