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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS

E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO
DOS DIREITOS HUMANOS

Volume II
Janaína Machado Sturza
Evandro Luis Sippert
ORGANIZADORES

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS


E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO
DOS DIREITOS HUMANOS

Volume II

Porto Alegre, 2017


© Dos autores - 2017
Todos os direitos reservados

Conselho editorial:
Vera Lucia Maciel Barroso (FAPA)
Valdir Pedde (FEEVALE)
José Eduardo Zdanowicz (UFRGS)
Clésio Gianello (UFRGS)
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Evangraf - evangraf@terra.com.br
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


E79 Estado, políticas públicas e direito à saúde : diálogos ao encontro dos
direitos humanos : volume II / Janaína Machado Sturza, Evandro
Luis Sippert, organizadores. – Porto Alegre : Evangraf / Criação
Humana, 2017.
200 p.

Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-88022-51-5

1. Direito à saúde. 2. Direitos humanos. 3. Políticas públicas.


4. Direitos fundamentais. I. Sturza, Janaína Machado. II. Sippert,
Evandro Luis.

CDU 342.7:614
CDD 342.085
(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio e para qualquer
fim, sem a autorização prévia dos autores. Obra protegida pela Lei dos Direitos Autorais.

Impresso no Brasil – Printed in Brazil


SUMÁRIO

PREFÁCIO
Marcos Rolim ........................................................................................................................... 7

APRESENTAÇÃO
Andressa Fracaro Cavalheiro............................................................................................. 15

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE: A SAÚDE NO


BRASIL COMO DIREITO FUNDAMENTAL E A (IN)EFETIVIDADE DO
ESTADO FRENTE ÀS DEMANDAS SOCIAIS
Janaína Machado Sturza & Evandro Luis Sippert ...................................................... 21

ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS


PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER: ENTRE AVANÇOS E
RETROCESSOS
Karine de Castro Kotlewski & Júlia Menuci.................................................................... 51

A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL


CONTEMPORÂNEO
Claudine Rodembusch Rocha & Jaqueline Tramontina Rhoden............................ 77
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO
ÓBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Fabiana David Carles & Sabrina Cassol ......................................................................... 95

JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE: UMA


VISÃO INTERDISCIPLINAR SOBRE O ACESSO À SAÚDE E AOS DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL
Francine Nunes Ávila & Lucas Gonçalves Abad ........................................................111

RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UNIDADE DE


TERAPIA INTENSIVA NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO
Cibele Thomé da Cruz & Gisele Elise Menin ................................................................125

ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-


NASCIDO: UM DIREITO À SAÚDE
Sandra da Silva Kinalski & Sandra Leontina Graube & Vivian Lemes Lobo
Bittencourt..........................................................................................................................139

SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS


HUMANOS: A VISÃO DOS EMPRESÁRIOS DAS PEQUENAS E MÉDIAS
EMPRESAS
Roseli Fistarol Krüger & Denize Grzybovski ................................................................151

INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS:


ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E O DIREITO À SAÚDE
Carla Rosângela Binsfeld & Edson Luiz André de Sousa..........................................169

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


6 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

PREFÁCIO
INTERFACE ENTRE
DIREITOS HUMANOS E SAÚDE

Marcos Rolim1

O leitor tem em mãos uma edição com textos articulados em torno


da interface dos Direitos Humanos com a Saúde. O elogiável esforço de
organização de Janaína Machado Sturza e Evandro Luis Sippert  permi-
tiu a reunião dessas reflexões sobre uma relação ainda pouco debatida,
o que deverá ser útil não apenas para os operadores do Direito, mas
para todos os que acompanham com preocupação os riscos inerentes
a um período marcado, particularmente no Brasil, por retrocessos em
várias políticas públicas.
Cada um dos trabalhos aqui reunidos permite vislumbrar a complexi-
dade da luta pela garantia do direito fundamental à Saúde, desde a abor-
dagem jurídica até a realidade vivida em nossas prisões ou no cotidiano
das mulheres, passando pela Psicanálise, pelos dilemas situados no âmbito
das políticas públicas, pela saúde dos recém-nascidos e pela responsabili-
dade empresarial. O mosaico de situações e abordagens indica trilhas que
deverão ser seguidas e/ou refeitas, estimulando nossa visão crítica.
Para todos nós que defendemos e construímos a perspectiva dos
Direitos Humanos sempre foi decisivo lidar com determinados pressu-

1 Doutor e mestre em sociologia (UFRGS). Especialista em Segurança Púbica (Universidade de Oxford-


UK) e jornalista (UFSM).

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DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 7
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

postos conceituais. Assim, por exemplo, afirmamos a noção de que “as


pessoas nascem livres e iguais”, e que são “titulares de determinados
direitos”, independentemente de suas origens, características ou atos,
porque a ideia da universalidade é essencial para a afirmação da digni-
dade humana.
Recolher a humanidade de todos como um ponto de partida, ali-
ás, ao contrário do que se pode imaginar, não constitui tarefa simples.
Em muitas oportunidades, trata-se de um gesto de extrema coragem
que tem colocado os defensores e as defensoras dos Direitos Humanos
em situações de extraordinário risco em todo o mundo. Com efeito, em
determinados contextos de luta social, exigir o respeito aos direitos de
populações fragilizadas costuma produzir reações violentas de grupos
poderosos, econômica e politicamente. Entre esses, há quem não vaci-
le em matar os que se contrapõem aos seus interesses. O Poder Públi-
co no Brasil, como regra, não se interessa por esse tipo de violência, o
que premia os autores com a impunidade.  Pior do que isso: não raro,
a violência contra os ativistas dos Direitos Humanos é perpetrada por
agentes do Estado ou por bandidos que agem sob a proteção de insti-
tuições públicas.
Só afirmamos que as pessoas nascem livres e iguais, entretanto,
porque isso é necessário diante de uma situação fática pela qual, sabe-
mos, as pessoas não nascem livres e iguais. É preciso que se atribua aos
seres humanos esse sentido, esses significados de liberdade e igual-
dade, o que, por óbvio, é uma construção histórica que emerge como
uma ruptura conceitual. Por milênios, desde o início da civilização, os
seres humanos foram concebidos como naturalmente desiguais e se
considerou, sem sobressaltos, que alguns fossem escravos e outros
fossem senhores. Não por acaso, não encontramos na Bíblia e, como
regra, em nenhum dos textos sagrados, qualquer condenação à escra-
vidão. Pelo contrário, temos várias passagens onde ela é referida sem
qualquer contestação como parte de um mundo onde a própria ideia
de humanidade ainda não fazia sentido. No Antigo Testamento, aliás,

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8 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

em algumas passagens, Deus impõe a escravidão como castigo. Assim


ocorre, por exemplo, com a descendência de Abraaão condenada a
mais de 400 anos de escravidão (Gênesis, 15,13).
A igualdade entre os seres humanos, assim como sua condição de
liberdade, surgem em um espaço artificial criado pela política. Nas pa-
lavras de Bobbio2:
[...] a liberdade e a igualdade dos homens não são um dado de
fato, porém um ideal que deve ser perseguido; não uma existên-
cia, porém um valor; não um ser, mas um dever [...].
O sentido desses direitos é uma criação histórica que nos oferece uma
segunda natureza: para além das diferenças individuais que nos caracteri-
zam e para além das amarras que nos prendem às necessidades biológicas,
há uma dimensão onde é possível nos reconhecer como iguais e essencial-
mente livres. Esse espaço é o da cidadania, resultado do ideal republicano
e democrático. Estamos nos referindo, então, a uma ideia que é moderna
por definição. Quando lembramos essa gênese, entretanto, vinculamos os
Direitos Humanos à política e não mais às justificativas metafísicas que os
descrevem como “inerentes à condição humana”. Nessa moldura histórica,
os Direitos Humanos adquirem uma determinada plasticidade e se pode
perceber, com mais precisão, tensões em seu interior.
A noção de que os Direitos Humanos são “indivisíveis e interde-
pendentes”, usual tanto nos documentos das Nações Unidas quanto na
doutrina, virou uma espécie de mantra para os ativistas. Seu sentido é
o de exigir que os governantes assumam compromissos integrais com
a plataforma dos Direitos Humanos. A escolha, não obstante, solidifica
uma compreensão não hierárquica entre os direitos que, a par das suas
intenções, tende a acarretar impasses políticos de monta. Nas palavras
de Mendéz (2004)3:

2 BOBBIO, Norberto. Presente y futuro de los derechos del hombre. In:. El problema de la guerra y las vías
de la paz. Barcelona: Gedisa, 1982.
3 MENDÉZ, E.G. Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: Reflexões para uma nova agenda. In:
Revista Sur, revista internacional de direitos humanos. Edição V. 1 - N. 1 - Jan/2004

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PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

Da mesma forma, visto que quando tudo é prioritário na verdade


nada é prioritário, quando tudo é direitos humanos (a começar
por situações que não implicam responsabilidade alguma por
parte do Estado), nada é direitos humanos.
O tema que me parece de maior repercussão prática diz respeito à
importância que atribuímos aos direitos civis e políticos, notadamente
quando em comparação com os chamados direitos econômicos, sociais
e culturais. Trata-se, então, de refletir sobre o contraste entre a primeira
e a segunda dimensões (ou gerações) de Direitos Humanos.
Os Direitos Humanos nasceram como direitos civis. Nos EUA, berço
da primeira declaração de Direitos Humanos, essa associação é tão for-
te que “direitos civis” (civil rights) é expressão equivalente a Direitos Hu-
manos. O leito da mais forte tradição em Direitos Humanos é, não por
acaso, o liberalismo político. Os direitos econômicos, sociais e culturais
são reconhecidos como universais e passam a integrar o ideário dos
Direitos Humanos muito tempo depois, já no século XX. Especialmen-
te a partir da “Guerra Fria”, esses direitos de bem estar, que projetam
conquistas fundamentais de igualdade e proteção social, são os que
passam a ser valorizados pelas posições político-ideológicas situadas
à esquerda. As exigências por liberdade, que já constituíam o centro
do liberalismo político, são então esgrimidas nas disputas ideológicas
contra os países ditos socialistas, enquanto a igualdade se incorpora à
propaganda da esquerda. Ambos os discursos são instrumentalizados
conscientemente para que as inequidades sociais do capitalismo, por
um lado, a as posturas liberticidas do socialismo real, por outro, fossem
relativizadas.
O que parece incontornável é que as exigências em torno dos direi-
tos civis possuem uma natureza distinta daquelas relativas às deman-
das por bem estar. Pelas primeiras, se assinala as chamadas “liberdades
negativas”, vale dizer, aquelas liberdades que são negadas ao Estado e
que visam à proteção do indivíduo diante do arbítrio. Nessa dimensão,
trata-se do espaço de liberdade que a cidadania requer para o exercí-

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10 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

cio da autonomia e, portanto, de menos Estado. As demandas de bem


estar, pelo contrário, exigem “mais Estado” e dizem respeito ao aten-
dimento de reivindicações que são, conceitualmente, infinitas, porque
traduções de necessidades humanas condicionadas social e historica-
mente.
Os direitos civis dizem respeito ao tipo de exigência que assinala
princípios ou, se preferirmos, “direitos fortes” que são, no mais, inegoci-
áveis. Assim, por exemplo, quando tratamos da tortura ou da violência
policial, não há doses de respeito a barganhar, nem limitações orça-
mentárias a considerar. O mesmo vale para todos os demais direitos
civis, como a garantia da liberdade de expressão, por exemplo. Não há
liberdade de expressão pela metade. Trata-se de direito que pode e
deve ser regrado no sentido de que seu uso pressupõe responsabilida-
des e, eventualmente, sanções pela violação de outros direitos (como o
sigilo legal, a intimidade, a honra ou a dignidade das pessoas), mas não
há como tolerar a restrição à liberdade de expressão ou a censura – no
sentido do controle prévio de conteúdos. Já os direitos econômicos, so-
ciais e culturais são, claramente, limitados pelas possibilidades reais do
Poder Público, especialmente aquelas de natureza orçamentária e são,
por isso mesmo, constantemente negociados. As demandas aqui con-
figuram direitos de outra natureza, não derivados de princípios, mas de
metas ou objetivos de dignidade.
Em língua inglesa, se emprega comumente duas expressões para
“direitos”. A primeira, que equivale às garantias indiscutíveis é “rights”.
Já as pretensões de direito são designadas como “claims”. Entendo que
os direitos civis e políticos são “rights”, enquanto os direitos econômi-
cos, sociais e culturais não o são propriamente. Como regra, pelo me-
nos, poderíamos dizer que os direitos de bem estar seriam “claims”.
A princípio, parece fazer todo o sentido reconhecer aos direitos ci-
vis e políticos uma superioridade ontológica. Essa posição, sustentada
por alguns teóricos como Emilio García Mendéz, por exemplo, é, não
obstante, francamente minoritária entre os ativistas em Direitos Huma-

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DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 11
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

nos. Além disso, os espaços para a reflexão em torno da gramática dos


Direitos Humanos parecem despovoados pela indisposição.
A pouca clareza sobre o caráter decisivo dos direitos civis e políti-
cos entre nós – garantias sem as quais se interdita a luta por quaisquer
outros direitos - está correlacionada ao baixo envolvimento dos ativis-
tas do setor nas pautas da prevenção à violência, na luta pela reforma
de nosso modelo de polícia e pela reforma prisional, para citar apenas
algumas dentre as questões mais urgentes vividas em países como o
Brasil.
Diante da importância do acesso à Saúde e à Educação para uma
vida digna, talvez ambos devessem integrar uma espécie de platafor-
ma inegociável, pelo menos no que diz respeito aos níveis fundamen-
tais de atenção. Nos termos propostos por Mendéz (2004), seria o caso
de considerar os direitos à Saúde e à Educação como direitos políticos,
vale dizer: como direitos fortes para além da cláusula “até o limite dos
recursos disponíveis”. Isso, entretanto, corresponde a outro debate e à
necessidade de hierarquizarmos os Direitos Humanos.
Mantida a dogmática atual, as demandas por atenção na área da
Saúde seguirão alcançando decisões judiciais que obrigam o Poder
Público a fornecer determinados medicamentos, entre outras provi-
dências como internação hospitalar, realização de cirurgias, etc. Esse
processo, conhecido como “judicialização da Saúde”, entretanto, tem
impactado radicalmente os orçamentos de Municípios e Estados fora
de qualquer escala de prioridades públicas; um fenômeno que, via de
regra, termina por prejudicar as pessoas mais pobres e mais necessita-
das que dependem de programas e iniciativas governamentais.
A discussão sobre a efetividade dos direitos fundamentais segue
sendo atualíssima no Brasil. A experiência recente de governos distin-
tos, orientados por ideologias variadas, mas muito aparentados em
suas éticas corsárias, desnudou uma carência fundamental: o Brasil se
ressente de políticas públicas eficientes em quase todas as áreas. De
fato, a gestão pública segue sendo marcada pela improvisação e pela

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


12 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

reatividade e permanecemos distantes de um padrão de respeito às


evidências e de medição dos resultados produzidos por programas e
iniciativas governamentais. O resultado dessa incúria é o desperdício
dos recursos públicos e o menosprezo por reformas orientadas pelo
interesse público.
O quadro mais amplo, assim, sublinha a importância de publica-
ções como este segundo volume de “Estado, Políticas Públicas e Direito
à Saúde: diálogos ao encontro dos Direitos Humanos”.

Boa leitura!

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 13
PREFÁCIO: Interface entre Direitos Humanos e Saúde

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


14 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Começo esta apresentação falando do meu júbilo em não só ser


convidada a fazê-la mas, especialmente, por ter tido a felicidade de ler
textos tão importantes para o desenvolvimento de um temática cuja
essencialidade é indiscutível. Assim, agradeço à profa. Dra. Janaína Ma-
chado Sturza e ao mestrando Evandro Luis Sippert pelo convite.
Esta obra – Estado, Políticas Públicas e Direito à Saúde: diálogos ao en-
contro dos direitos humanos – já no seu segundo volume, nos apresenta 9
(nove) artigos que explicitam, de forma lúcida, várias das questões atinen-
tes à efetividade das políticas públicas de saúde e a própria efetivação des-
te direito, bem como ao seu processo de judicialização, seu acesso aos en-
carcerados e aos neonatos sob tratamento médico terapêutico intensivo.
Também podem ser vistas questões atinentes à atenção integral à mulher,
ao aleitamento materno e, ainda, discussões sobre a sustentabilidade em-
presarial e direitos humanos, bem como sua interface com a psicanálise.
Assim, no primeiro trabalho, da lavra da Dra. Janaína Machado Stur-
za e de Evandro Luis Sippert, temos uma rica discussão acerca do direi-
to à saúde no Brasil e a efetividade – ou não – do Estado frente às de-
mandas sociais. Partindo do pressuposto de que o modelo capitalista
globalizado é segregador e, portanto, incapaz de fornecer aos chama-
dos excluídos um mínimo de bem-estar em seus níveis social, mental
e físico, o argumento central do trabalho aponta como pode o efetivo
acesso à saúde, possibilitar uma real melhora na qualidade de vida das
pessoas, servindo de base para a minimização (talvez até a eliminação)
de injustiças, opressões e exclusões sociais.
O trabalho seguinte, escrito por Karine de Castro Kotlewski e Júlia
Menuci, debruça-se os avanços e retrocessos do direito à saúde e as po-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 15
APRESENTAÇÃO

líticas públicas de atenção integral às mulheres. Partindo da premissa


do Estado Social de Direito como resposta às deficiências resultantes
do liberalismo, analisam as autoras as políticas públicas como instru-
mentos para o alcance do bem-estar social, relacionando-as, de forma
muito clara e precisa, com a questão sanitária para então, ato final, as-
socia-la a reivindicação específica das mulheres à ações e políticas sani-
tárias. Suas conclusões apontam para perquirições advindas da singu-
laridade da saúde feminina, de onde decorrem sólidos apontamentos
de dificuldades, tais como a falta de estrutura e planejamento econô-
mico e a falta de debate sobre as relações de gênero, numa sociedade
que é binária, multicultural e multifacetada.
Claudine Rodembusch Rocha e Jaqueline Tramontina Rhoden, con-
tribuem com a presente obra, fazendo uma interpelação acerca da po-
sitivação do direito à saúde no direito constitucional contemporâneo
brasileiro. Partindo de uma análise dos direitos fundamentais no sis-
tema constitucional pátrio, as autoras trabalham não só o conceito de
saúde, mas também como as políticas públicas, enquanto programas
de ação governamental para atingimento de objetivos socialmente re-
levantes, constituem-se em instrumento essencial de governo. Neste
diapasão, é apresentado o Sistema Único de Saúde como a mais impor-
tante das políticas públicas de estado, com o que, não posso deixar de
concordar!
O artigo de Fabiana David Carles e Sabrina Cassol, trata da judicia-
lização da saúde, mas não da já usual maneira, ou seja, de sua impor-
tância para a concretização dos direitos fundamentais; não, as autoras
trazem um enfoque bastante inovador e, por isso, muito interessante: a
judicialização como obstáculo à concretização dos direitos fundamen-
tais. A partir da inferência da saúde como direito fundamental social,
discorrem as autoras acerca da reserva do possível e do mínimo exis-
tencial, apontando, quanto a este último, a necessidade de harmoniza-
ção com o que denominam uma “compreensão constitucionalmente
adequada”. Daí entra em pauta a judicialização da prestação do direito

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


16 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
APRESENTAÇÃO

à saúde, concluindo-se, de forma bastante arguta, pela impossibilidade


de sustentação do sistema criado pelos tribunais ao responder às de-
mandas de saúde.
Inaugurando o que se pode, eventualmente, chamar de segunda
parte do livro, temos o artigo de Francine Nunes Ávila e Lucas Gonçalves
Abad, trazendo-nos uma visão interdisciplinar sobre o acesso à saúde e
os direitos humanos, tendo como pano de fundo a justiça restaurativa, a
segurança pública e o cárcere. O trabalho parte da constatação de que o
Estado brasileiro nunca teve por completo o monopólio do uso legítimo
da violência, bem como nunca conseguiu transferir para si a administra-
ção plena da justiça. É este um ponto de partida bastante interessante,
já que reverte-se em fundamento para a apresentação da justiça restau-
rativa como possibilidade eficaz de solução de controvérsias, inclusive
em âmbito penal. Os autores prosseguem em seu intento não sem con-
siderar o que se pode entender como um dos principais problemas em
relação a esta modalidade de solução de conflitos: sua carência de poder
simbólico. De todo modo, analisando a segurança pública sob um viés
social e defendendo o acesso à saúde e aos direitos humanos durante
a execução penal, defendem os autores a ideia de dessa maneira será
possível, ao cárcere, aperfeiçoar sua função restaurativa, permitindo uma
real ressocialização aos inseridos e egressos do sistema prisional.
Dando sequencia à esta interrelação do direito com outras áreas,
temos o trabalho de Cibele Thomé da Cruz e Gisele Elise Menin, que
traz à baila o tema da retinopatia de bebês prematuros em tratamento
na unidade de terapia intensiva. No contexto desta patologia, o judici-
ário pode desempenhar papel fundamental, posto que em muitos ca-
sos somente assim poderá haver avaliação e eventual tratamento com
profissional habilitado. Temos, então, um interessante contraponto ao
trabalho de Carles e Cassol, posto que aqui, a judicialização pode ser
benéfica.
O aleitamento materno, sempre assunto pertinente e passível de
controvérsia, é o foco do trabalho de Sandra da Silva Kinalski, Sandra Le-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 17
APRESENTAÇÃO

ontina Graube e Vivian Lemes Lobo Bittencourt. Através de interessante


embasamento científico, concluem as autoras que conscientizar as ges-
tantes quanto à importância do aleitamento materno na primeira hora
de vida do recém nascido não é só simples questão de escolha, mas, sim,
decorrência de um dever legal, já que permitir ao recém-nascido o aleita-
mento materno é uma forma de concretizar o direito à saúde.
Os direitos humanos são o ponto principal do trabalho desenvol-
vido por Roseli Fistarol Krüger e Denize Grzybovski, ao tratar da sus-
tentabilidade empresarial na visão de pequenos e médios empresários.
Considerando as diferentes abordagens entre os valores sociais e os va-
lores empresariais, as autoras demonstram como é possível colocar em
exercício o desenvolvimento sustentável, utilizando-se não só de rica
revisão bibliográfica, mas de dados empíricos coletados junto ao Muni-
cípio de Ijuí, no Estado do Rio Grande do Sul. Certamente um trabalho
cuja leitura será não só agradável, mas certamente enriquecedora.
E encerrando esta bela obra científica, temos o trabalho de Carla
Rosângela Binsfeld e Edson Luiz André de Sousa, trazendo uma inter-
face entre a psicanálise e os direitos humanos. A ideia a nortear o texto
reside na reflexão, com viés psicanalítico, das diferentes perspectivas
que a Saúde Pública tem pautado, no âmbito do Sistema Único de Saú-
de, acerca do binômio saúde como direito humano e dever do Estado.
Assim, realizaram as autoras um riquíssimo percurso histórico dos ce-
nários político, econômico e social para tratar da importância não só do
acesso aos serviços de saúde, mas também da própria elaboração do di-
reito ligado ao SUS. É a partir desta contextualização que se interrogam
as autoras em como seria possível não pensar em “sujeito e legislação”,
justamente num mundo de “esquizofrenia e falta simbólica”. A alterna-
tiva, segundo elas, pode estar no surgimento de uma nova economia
psíquica, porque embora o sujeito possa estar amparado pelos servi-
ços de saúde, pode não encontrar apoio para o mal estar civilizatório,
muitas vezes densificado por virtualidades. Desta feita, segundo asse-
veram, a educação em direitos humanos torna-se de suma importância.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


18 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
APRESENTAÇÃO

A riqueza do livro talvez não tenha sido alcançada nesta pequena


narrativa, mas que isto não desestimule o leitor, que certamente terá
não só uma leitura bastante aprazível, mas terá elementos de reflexão
que o guiarão para uma compreensão cada vez maior do Estado, das
políticas públicas e do direito à saúde.

A todos, uma excelente leitura!

Andressa Fracaro Cavalheiro


Doutora em Direito pela UFRGS
Professora Adjunta da Unioeste
Membro Titular da Rede Ibero-Americana de Direito Sanitário
Eterna defensora do SUS

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 19
APRESENTAÇÃO

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


20 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À
SAÚDE: A SAÚDE NO BRASIL COMO DIREITO
FUNDAMENTAL E A (IN)EFETIVIDADE DO
ESTADO FRENTE ÀS DEMANDAS SOCIAIS

Janaína Machado Sturza 1


Evandro Luis Sippert 2

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A percepção da grandeza e importância dos direitos fundamentais


compreende-se por meio da contextualização histórica dos mesmos,
pois mesmo sendo construções não lineares, foram sendo desenvolvi-
dos e ampliados pelos indivíduos, em contraponto e, principalmente
como forma de proteção do oprimido em relação ao opressor, salva-
guardar o mais fraco em relação ao mais forte, sobretudo quanto aos
(des)mandos do Estado.

1 Pós doutora em direito pelo PPG em direito da Unisinos, Doutora em Direito pela Escola Internacional
de Doutorado em Direito e Economia Tullio Ascarelli, da Universidade de Roma Tre/Itália. Mestre em
Direito, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas e Graduada em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora no Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos –
Mestrado e na graduação em Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul – UNIJUÍ. Professora na graduação em Direito da Faculdade Dom Alberto/Santa Cruz do Sul.
Advogada. Contato: janasturza@hotmail.com
2 Mestrando em Direito pelo PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Regional
do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Bacharel em Direito pela Universidade de Cruz
Alta - UNICRUZ, Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUC/RS, MBA em Gestão das Tecnologias de Informação e Comunicação em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS, Pós-Graduação em Docência do Ensino Superior
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Contato: evandro.sippert@gmail.com.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 21
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Devido a sua grande importância a proteção e o acesso à saúde


foram positivados como direito fundamental. Tal premissa baseia-se
na Constituição Organização Mundial de Saúde e na Declaração dos
Direitos do Homem, cujo teor expressa o direito de todo ser humano à
prestação sanitária.
No Brasil, é na Constituição Cidadã, de 1988, que se encontra o
conceito de saúde, bem como os parâmetros que norteiam a ordem
constitucional e infraconstitucional buscando a efetividade dos ideais
do Estado Democrático de Direito.
Muito embora seja um direito de todos, o atual modelo econômico
vigente não privilegia os excluídos pelo modelo capitalista globalizado,
que segrega e deixa muitas pessoas em condições de miséria, os quais
necessitam da tutela do Estado para que possam ter uma vida digna
e obter condições de exercer sua cidadania plena, principalmente por
meio da eliminação ou diminuição da pobreza, e em favor da igualdade
entre as pessoas, com fulcro no atendimento das necessidades essen-
ciais de todos.
Devido às dificuldades do Estado em conseguir cumprir este im-
portante ditame constitucional, no sentido de efetivar e promover esta
prestação social de forma satisfatória, sendo que os Poderes Públicos
constituídos, não conseguiram produzir ainda o resultado esperado
carecendo de uma efetivação concreta o que reflete na vida e no bem
estar das pessoas.
Destarte, o presente estudo tem por escopo, fazer uma abordagem,
mesmo que breve, da evolução dos direitos fundamentais, a constitu-
cionalização do acesso à saúde como um direito fundamental e a sua
importância para que os indivíduos possam ter um ter um melhor aces-
so à saúde pública e uma melhor qualidade de vida, que redunda em
desenvolver um completo, ou um mínimo bem estar, mental, físico e
social, o que implica boas condições de trabalho, lazer, educação, saú-
de, meio ambiente e segurança, enfim, condições ao seu pleno desen-
volvimento.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


22 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

1 Acesso à saúde como direito fundamental

A crise conjuntural e estrutural, que atinge o mundo todo e suas


instituições, também se faz presente na sociedade brasileira. Isto faz
(re)pensar o modelo de Estado neoliberal e a sociedade vigentes em
uma nova concepção de relações sociais. É um mundo multifacetado e
com grandes tensões, pois ao mesmo tempo em que aproxima as pes-
soas pelas novas tecnologias, redes sociais e fluidez no intercâmbio das
informações, assim como segrega e desintegra laços, também promo-
ve rupturas, sobretudo em questões de diversidades de raça, gênero,
religião, condições econômicas e financeiras que acabam por semear o
medo e a angústia nos indivíduos.
Porém, dentre as questões que mais inferem na vida das pessoas
destaca-se a hipossuficiência econômica, provocada pelo atual mode-
lo, que de forma desigual e injusta distribui bens e serviços permitindo
uma concentração de capital na mão de poucos privilegiados e faz com
que a maioria da população sofra as consequências adversas da globa-
lização.
Nesse sentido, a proteção e o acesso ao direito à saúde são pressu-
postos para que o ser humano possa ter uma vida digna, principalmen-
te integrante de uma sociedade democrática e participativa.
Assim, é com a implementação e positivação dos direitos funda-
mentais sociais, ante o que o Estado deve(ria) minimizar estas diferen-
ças e proporcionar de forma equitativa uma melhor qualidade de vida,
para que estas tensões advindas da (des)ordem econômica principal-
mente, possam atingir aqueles indivíduos através de prestações esta-
tais afirmativas e inclusivas.
No Brasil, destaca-se o acesso à saúde pública previsto na Carta
Magna como direito social de todos e muito embora estejam positiva-
dos no ordenamento jurídico, a sua efetivação na prática está longe de
ser implementada de forma eficaz, influenciada por diversos fatores,
principalmente econômicos, políticos, operacionais, entre outros.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 23
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Ter e dispor de saúde são condições essenciais para uma boa qua-
lidade de vida. Sem estas, torna-se improvável que o indivíduo tenha
uma vida digna e possa exercer a sua cidadania de forma plena, com
condições de efetivar a (re)construção dos direitos humanos numa so-
ciedade cada vez mais globalizada e sectária. Pois o acesso à saúde é
um direito humano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão
fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto
expressamente na Constituição, chegou a haver um reconheci-
mento da saúde como um direito fundamental não escrito(im-
plícito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na
verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucio-
nal que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade
física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que
onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a prote-
ção prevista para a vida e integridade física (SARLET, 2007, p. 3).
Em virtude da não concretização dos direitos sociais, e quando o
Estado não garante um direito fundamental, acaba por não permitir
também a efetivação dos Direitos Humanos, acarretando um grande
número de pessoas vivendo em condições precárias, sem vida digna
e em condições de miserabilidade. Entretanto, ao dar proteção e re-
conhecimento, o Estado de Direito permite ao indivíduo, por meio da
cidadania, pelo menos a esperança de melhorar suas precárias condi-
ções de vida.

2 Características do surgimento e efetivação dos direitos


fundamentais

A percepção da grandeza e importância dos direitos fundamentais


compreende-se por meio da contextualização histórica dos mesmos,
pois foram sendo construídos em contraponto e como forma de prote-
ção do oprimido em relação ao opressor, salvaguardar o mais fraco em
relação ao mais forte.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


24 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

No tocante à diferença entre a concepção de direitos humanos e


direitos fundamentais, que podem ser utilizados muitas vezes como si-
nônimos, Canotilho (2002) leciona que
[...] direitos do homem são direitos válidos para todos os povos
e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista):
direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institu-
cionalmente. Os direitos humanos arrancariam da própria natu-
reza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal:
os direitos fundamentais seria os direitos objetivamente vigentes
numa ordem jurídica concreta (CANOTILHO, 2002, p. 369).
Como são construções não lineares, cada sociedade ou Estado,
construiu a sua maneira, rompendo paradigmas e criando (ou tenden-
do a criar) uma sociedade mais justa. De acordo com Moraes (2011, p.
6-7) a origem dos direitos fundamentais do homem vem dos tempos
remotos:
A origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada
no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já
eram previstos alguns me­canismos para proteção individual em
relação ao Estado. O Código de Hammurabi (1690 a.C.) talvez seja
a primeira codificação a consagrar um rol de direitos co­muns a
todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dig-
nidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis
em relação aos governantes. [...] surgiu na Grécia vários estudos
sobre a necessidade da igualdade e liberdade do homem, desta-
cando-se as previsões de participação política dos cidadãos (de-
mocracia direta de Péricles)[...].
Observa-se que os direitos fundamentais, surgiram como produto
da fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas ci-
vilizações, até a conjugação dos pensamentos filosófico-jurídicos, das
ideias surgidas com o cristianismo e com o direito natural. Conforme
Moraes (2011, p. 7-10) complementa quefoi no Direito romano onde
primeiramente se estabeleceu um “[...] complexo mecanismo de inter-
ditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios es-
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 25
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

tatais. A Lei das doze tábuas pode ser considerada a origem dos textos
escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos
direitos do cidadão”.
Para Cretella Neto (2012), alguns instrumentos legais também são
considerados embriões dos modernos direitos humanos, pois garan-
tiam a liberdade dos cidadãos, pois uma vez que na sociedade euro-
peia e americana ainda houvesse escravos, e os direitos das mulheres
fossem mais limitados que os dos homens, não se pode afirmar que
estes textos proclamavam uma verdadeira igualdade das pessoas. Em
que pese servirem de alvorada para a igualdade dos seres humanos e
seus direitos fundamentais, deve-se ter cuidado e atenção ao momen-
to histórico e às características da sociedade na época em que foram
redigidos.
A Magna Carta, como é abreviadamente conhecida a Magna Car-
ta Libertatum seu Concocordian inter regem Johannem et Barones
pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliae (Carta Magna
das liberdades ou Concórdia entre o Rei João e os barões para a
outorga das liberdades da Igreja e do reino inglês), de 15.06.1215,
a qual, embora fosse um instrumento que vinculava o rei e os
barões feudais – e sequer mencionasse o povo – representa o re-
conhecimento de que o monarca deveria se submeter à lei, ainda
que ele próprio fosse o legislador. Também o clero e a nobreza
deveriam submeter-se às leis, o que lhes limitava os privilégios e
poderes;
a Lei de Habeas Corpus inglesa, de 27.05.1979, promulgada du-
rante o reinado de Carlos II, (1630-1685), que conferiu eficácia ao
instituto que já existia antes mesmo da Carta Magna;
a Bil of Rights (Declaração de Direitos) inglesa, de 16.12.1689,
abreviatura de Na Act Declaratory of Rights and Liberties of the Sub-
ject and Settlingth Sucession of the Crown (uma lei Declaratória dos
Direitos de Liberdades dos Súditos e que estabelece a Sucessão
da Coroa), que limitou os poderes governamentais e garantiu as
liberdades individuais, além de atribuir ao Parlamento as funções

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


26 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

de legislar e de criar tributos. Trata-se de um dos mais importan-


tes textos constitucionais britânicos, assegurando liberdade ao
Parlamento em eleições e no funcionamento, a salvo da interfe-
rência do monarca;
a Declaração de Direitos da Virginia, de 12.06.1776, a qual reco-
nhece os direitos inatos da pessoa humana, que não estão sujei-
tos à alienação ou à supressão por decisões políticas, bem como
de que todo poder emana do povo, e os governantes estão a ele
submetidos, além de reafirmar a igualdade de todos perante a
lei. Esse instrumento afirma, ainda, que os homens tem o direito
de se rebelar contra governos inadequados e influenciou textos
legais posteriores, como a Declaração de Independência dos Es-
tados Unidos da América do Norte (1776), o United States Bill of
Rights(1789) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e
do Cidadão (1789). A Declaração americana de 1789 é formada
pelas primeiras dez Emendas à Constituição Americana;
a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do
Norte, de 04.07.1776, que afirma a igualdade jurídica entre ho-
mens livres, lançando as bases democráticas para a jovem nação.
Além disso, assentou pilares da sociedade americana, a defesa
das liberdades individuais e a submissão dos governos ao con-
sentimento popular;
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26.08.1789,
que suprimiu os privilégios monárquicos e feudais e proclamou
os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução
Francesa de 1789;
a Constituição Francesa, de 03.09.1791, que acrescentou diversos
direitos à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, que lhe serviu de Preâmbulo;
a Constituição Francesa, de 04.05.1848, que aboliu a pena de mor-
te em matéria política e instituiu deveres sociais do Estado para
a classe trabalhadora e para os necessitados em geral, além de
abolir a escravidão na França e em todos os territórios franceses
(CRETELLA NETO, 2012, p. 664-665).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 27
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Essas ideias encontravam um ponto fundamental em comum, a


necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio
Estado e de suas autoridades constituídas. Guerra (2013) menciona que
desde as declarações formais de direito, passou-se a sua incorporação
nos textos constitucionais, ganhando força na medida em que os tex-
tos institucionais erigem seus ditames como princípios informadores
e de validade de toda a ordem jurídica, quanto à proteção da pessoa
humana.
Pode-se dizer que os direitos fundamentais foram colocados como
uma das previsões absolutamente necessárias a todas as Constituições,
no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a li-
mitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade
humana.
Como se podem observar os elementos que compõem os direitos
fundamentais não se desenvolveram na mesma época. Pelo contrário,
tiveram seu desenvolvimento e apogeu em contextos históricos dis-
tintos, tanto os direitos civis quanto os políticos e os sociais tiveram
momentos de ligação. Entende-se que os elementos políticos e os so-
ciais contribuíram, por haver interligação em alguns momentos entre
eles, para a formação dos direitos fundamentais quanto as constitui-
ções, bem como, as convenções que lutaram para a liberdade humana
(GUERRA, 2013).
No entanto, os direitos fundamentais chegam ao século XXI com
grande força e vitalidade, sendo largamente utilizados em manifesta-
ções da sociedade civil, na política, para pleitear direitos, enfim, nas
mais distintas reivindicações.
Guerra (2013, p. 34) preceitua que os direitos fundamentais são
direitos humanos que buscam a dignidade, igualdade e liberdade da
pessoa, garantidos pelo ordenamento jurídico nacional e internacio-
nalmente. Para Moraes (2011, p. 20) os direitos fundamentais são um:
Conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser huma-
no que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


28 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o esta-


belecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento
da personalidade humana.
De acordo com o mesmo autor, os direitos humanos fundamen-
tais relacionam-se diretamente com a garantia do Estado na esfera in-
dividual e consagração da dignidade humana, sendo reconhecido por
parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconsti-
tucional e por tratados e convenções internacionais.
Para Dias (2012, p. 17) os “[...] direitos fundamentais podem ser de-
finidos como atributos inerentes a todo ser humano, derivados de sua
própria natureza e da necessidade de ter uma existência com dignida-
de.” Neste conceito a pessoa é reconhecida como indivíduo conscien-
te, racional e livre, devendo-se então ser promovida e respeitada a sua
integridade.
Guerra (2013, p. 38) complementa que os “[...] direitos fundamen-
tais são aqueles aplicados diretamente, gozando de proteção especial
nas Constituições dos Estados de Direito, e são prove­nientes do ama-
durecimento da própria sociedade.” Ou seja, os direitos fundamentais
da pessoa humana têm por finalidade resguardar a dignidade e con-
dições de vida adequadas do indivíduo, além de proibir excessos que
possam ocorrer por parte do Estado ou particulares.
Caberia aqui destacar a diferença na conceituação de princípios,
regras e normas porém este estudo modestamente não comporta tal
aprofundamento, razão pela qual singelamente tenta-se apenas eluci-
dar algumas questões históricas e introdutórias, inclusive por tal assun-
to já ser amplamente discutido e massificado pela doutrina majoritária.

3 Direitos fundamentais no Brasil: a (in)efetividade do


Estado frente às demandas sociais

Os direitos fundamentais, que estão positivados na Constituição,


envolvem, desde os denominados direitos básicos ou essenciais, direi-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 29
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

tos civis e políticos, até os mais recentes, como os direitos econômicos,


sociais e culturais, e os de terceira geração, que incluem um ambien-
te ecologicamente equilibrado, amparado pelo ordenamento jurídico
brasileiro, sendo que J. J. Canotilho e Vital Moreira lecionam que “os
princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a
colectividade política e o Estado e enumerar as principais opções polí-
tico-constitucionais” (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 66).
Sobre os princípios fundamentais constitucionais, Bastos (1998, p.
153) aduz que são aqueles que guardam valores fundamentais da or-
dem jurídica, não tem por escopo guardar situações específicas, mas
sim cuidar de todo mundo jurídico, pois a posição que ocupam permi-
tem “[...] sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que
uma norma estabelecedora de preceitos. Portanto, o que o princípio
perde em carga normativa ganha com força valorativa a espraiar-se por
cima de um sem-número de outras normas” (BASTOS, 1998, p. 153).
Outra função muito importante dos princípios é servir como critério
de interpretação das normas constitucionais, seja ao legislador originá-
rio, no momento de criação das normas infraconstitucionais, seja aos
juízes, no momento da aplicação do direito, seja aos próprios cidadãos,
no momento da realização dos seus direitos (BASTOS, 1998).
São os princípios constitucionais aqueles valores hierarquicamente
superiores aos demais em um ordenamento jurídico, pois são eles, a
chave de todo o sistema normativo. Abrigados pela Carta Constitucio-
nal possuem a finalidade de dar sistematização ao texto da Lei Maior e
servir como parâmetro para interpretações e estender os seus valores
sobre todo o mundo jurídico. Paulo Bonavides aduz que os princípios
constitucionalizados “são o oxigênio das Constituições na época do
pós-positivismo. É graças aos princípios que os sistemas constitucio-
nais granjeiam a unidade de sentido e auferem a valoração de sua or-
dem normativa” (BONAVIDES, 2004, p. 255-286).
Na melhor doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, os princí-
pios fundamentais na Constituição, são definidos como

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


30 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,


disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas
compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata
compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica da
racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica
e lhe dá sentido harmônico (MELLO, 2011, p. 966).
Sobre a importância e o suporte que os princípios fundamentais
representam para todo o ordenamento jurídico, destaca ainda o Emi-
nente Doutrinador que
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma
qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a
um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucio-
nalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque repre-
senta insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e
corrosão de sua estrutura mestra (MELLO, 2011, p. 967).
No Brasil, é na Constituição Federal de 1988, que o constituinte ori-
ginário instituiu o Estado Social e Democrático de Direito. Na visão de
Mayorga (1988) apud Streck (2014, p. 81) a América Latina – onde se
inclui o Brasil – jamais estabeleceu-se e consolidou-se como na Europa
social democrática o Estado de Bem-Estar. Muito embora positivado no
ordenamento jurídico, a sua efetivação prática está longe de ser imple-
mentada, influenciada por diversos fatores, pois,
[...] tem agora menos perspectivas de desenvolvimento do que
há décadas atrás e os processos de redemocratização em anda-
mento encontram-se num contexto de crise econômica genera-
lizada, não havendo capacidade para resolver os problemas da
acumulação, distribuição equitativa dos benefícios econômicos
e, simultaneamente, democratizar o Estado (MAYORGA, 1988 in:
STRECK e MORAIS, 2014, p. 81).
Percebe-se que nas últimas décadas o Estado tem tido dificuldades
em se democratizar e transformar os recursos de que ainda dispõe em
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 31
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

prol de benefícios sociais. O próprio modelo de gestão dos bens públi-


cos de forma patrimonialista3 em que são confundidos e usados como
se fossem privados, torna reduzida a possibilidade de uma prestação
social digna, que valorize o indivíduo e dê a ele condições de participar
ativamente na cidadania política do seu país. Nesse diapasão Streck e
Morais (2014, p. 81) complementam que
As peculiaridades do desenvolvimento dos países da América Latina
– processo de colonização, séculos de governos autoritários, indus-
trialização tardia e dependência periférica – não permitiram a ges-
tação e o florescimento de um Estado de Bem-Estar Social ou algo
a que a ele se assimilasse. O intervencionismo estatal confunde-se
historicamente com a prática autoritária/ditatorial, construindo-se
o avesso da ideia do Estado Providência, aumentando as distâncias
sociais e o processo de empobrecimento das populações. Assim,
a tese de que em países periféricos, de desenvolvimento tardio, o
papel do Estado deveria ser o de intervenção para a correção das
desigualdades não encontrou terreno fértil em terras latino-ameri-
canas. Ao contrário, a tese intervencionista sempre esteve ligada ao
patrimonialismo das elites herdeiras do colonialismo.
Em se tratando do Brasil, Streck e Morais (2014) trazem a perfeita
aplicabilidade do intervencionismo estatal, cuja condição para a reali-
zação da função social do Estado, serviu tão somente para a acumula-
ção de capital e renda em favor de uma pequena parcela da população.
A distribuição da renda e a consecução dos fins sociais, que deveriam
ser um objetivo a ser atingido pelo Estado intervencionista e utilizado
pelo capitalismo, “[...] como projeto salvacionista em face do cresci-
mento dos movimentos de massa, tornou-se na verdade, o embrião da
construção das condições da etapa que sucedeu nos países desenvol-
vidos o Estado Democrático de Direito. E isso não ocorreu no Brasil”.

3 Fato que vem, normalmente, acompanhado dos fenômenos do centralismo estatal, do clientelismo
político em grande escala, do caudilhismo e personalismo no exercício do poder e do analfabetismo
de parte da população. O termo é empregado para caracterizar uma específica de dominação política,
na qual a administração pública está a serviço de seus agentes ou de pessoas a ele relacionadas
(BEDIN e NIELSSEN, 2012, p. 110).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


32 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Em virtude da não concretização dos direitos sociais, e quando o


Estado não garante um direito fundamental, não permite também os
Direitos Humanos, que são preteridos e não são efetivados, acarretan-
do um grande número de pessoas vivendo as margens da sociedade.
A fetichização do Estado é um dos riscos que correm as posturas
que fundamentam dos direitos humanos por ele. Por mais de-
mocrático, social, constitucional e “de direitos” que se pretenda
ser o Estado, este não pode se considerar, em última instância,
de maneira radical, o fundamento de direitos humanos. Afinal de
contas, esse Estado democrático, social, constitucional e de direi-
tos é produto da práxis histórica e, como tal, há de estar aberto a
novidade que produz de novas práticas históricas de libertação
(MARTÍNEZ, 2015, p. 97).
Bobbio (1992, p. 72) leciona que os direitos sociais exigem uma
intervenção ativa do Estado, pois exigem para sua realização prática,
ou seja, de uma passagem de declaração puramente verbal para a sua
proteção efetiva. O reconhecimento dos direitos sociais permitiu o sur-
gimento de outras classes de sujeitos de direito,
[...] através do reconhecimento dos direitos sociais, surgiram –
ao lado do homem abstrato ou genérico, do cidadão sem outras
qualificações – novos personagens como sujeitos de direito, per-
sonagens antes desconhecidos nas Declarações dos direitos de
liberdade: a mulher e a criança, o velho e o muito velho, o doente
e o demente, etc (BOBBIO, 1992, p. 72).
Por isso o Estado, principalmente no Brasil, deve ter políticas efetivas
de inclusão e deve também estar conectado com o tempo social atual,
pois na concepção de Bauman (2000), a sociedade passa de uma moder-
nidade sólida para uma modernidade com fluidez e liquidez, onde tudo é
volátil, a informatização da informação faz com que ela seja instantânea.
Nesse sentido, espera-se que o Estado, principalmente nos Poderes Exe-
cutivo e Legislativo, consigam dar estas respostas, pois em não conse-
guindo satisfazer estas pretensões, torna-se inoperante.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 33
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Cabe salientar com isso, que no período em que as Constituições


brasileiras se desenvolveram, ocorreram em determinadas ocasiões as
convenções que realizaram declarações sobre os direitos fundamen-
tais, dando força para igualdade e dignidade humana, conforme Mo-
raes (2011).
As declarações e os tratados internacionais relacionados aos direi-
tos humanos incorporavam-se nas constituições brasileiras, contribuin-
do na estruturação de um sistema de proteção do ser humano, com
efeito, a dignidade e igualdade da pessoa humana, entre outros prin-
cípios que prevaleceram aos direitos fundamentais da Constituição Fe-
deral de 1988 (CASTILHO, 2013).
Nesse contexto de necessidade de proteção e afirmação dos direi-
tos fundamentais, a mudança do Estado Liberal para o Estado Social,
ocorre num viés de permitir acesso e defesa do bem-estar o qual deve
ser efetivado pelo Estado, pois a proteção dos direitos sociais [...] “re-
quer uma intervenção ativa do Estado” (BOBBIO, 1992, p. 72), sendo
assim os “[...] poderes constituídos são proibidos de prejudicarem o de-
senvolvimento individual, bem como devem promover as condições
básicas para atingir tal finalidade, nomeadamente pela consagração e
implementação dos direitos sociais” (LEITE, 2014, p. 105),
Para que isso se realize é necessária a repartição igualitária dos
bens sociais em busca de uma sociedade substancialmente justa
(justiça distributiva), principalmente por meio da eliminação da
pobreza, ou melhor, em favor da igualdade material entre as pes-
soas com fulcro no suprimento das necessidades essenciais de
todos (justiça social) (LEITE, 2014, p. 105).
Nesse mesmo ínterim leciona Leite (2014), que a evolução do con-
ceito de direitos fundamentais juntamente com os direitos sociais, mos-
tra que tão somente uma declaração de direitos não traz a felicidade do
homem, pois um ideal de justiça só é atingido com a máxima realização
destes direitos, permitindo ao homem alcançar seu pleno desenvolvi-
mento individual e social.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


34 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Independente da declaração formal em Constituição, os direitos


sociais são frutos de um importante marco político que é a ele-
vação do homem como cerne das formulações jurídico-constitu-
cionais, tanto em termos de liberdade individual frente ao poder
político (limitação de poder), como em igualdade material por
meio de prestações sociais essenciais ao ser humano (eliminação
da carência) (LEITE, 2014, p. 106).
Em decorrência, cria-se uma relação obrigacional entre o Estado
que é quem deve fazer as prestações positivas e o indivíduo, que é o
credor desses serviços, porém em países como o Brasil, a afirmação
desses direitos na Constituição, não produz o resultado esperado care-
cendo ainda de uma efetivação concreta.

4 A Constitucionalização do acesso à saúde: a saúde no


Brasil como direito fundamental

O direito à saúde com um viés social, e estendido a todos os cida-


dãos brasileiros e estrangeiros, no Brasil, se efetivou a partir da Cons-
tituição Federal de 1988, sendo positivado no Art. 6º, e reconhecida-
mente, como um direito social. Portanto, são direitos de igualdade,
e “[...] Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na
medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferi-
mento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição
mais compatível com o exercício efetivo da liberdade” (SILVA, 2005,
p. 287).
Verifica-se assim a clara importância que o poder constituinte ori-
ginário inseriu na legislação maior no tocante à positivação do direito
fundamental à saúde, criando então uma relação obrigacional entre o
Estado e sociedade.
Sarlet (2007) assinala que a saúde prevista na nossa ordem jurídico-
constitucional, possui fundamentalidade formal e material, as quais re-
vestem os direitos e garantias fundamentais na ordem constitucional.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 35
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

A fundamentalidade formal encontra-se ligada aodireito consti-


tucional positivo e, ao menos na Constituição pátria, desdobra-
se em três elementos: a) como parte integrante da Constituição
escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde),
situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se,
pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de normas
fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram-se
submetidos aos limites formais (procedimento agravado para
modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim
denominadas “cláusulas pétreas”) da reforma constitucional; c)
por derradeiro, nos termos do que dispõe o artigo 5, parágrafo
1, da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias
fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamen-
te as entidades estatais e os particulares(SARLET, 2007, p. 2-3).
Em relação à fundamentalidade material, Sarlet (2007, p. 3), aduz
que [...] esta encontra-se ligada à relevância do bem jurídico tutelado
pela ordem constitucional, o que - dada a inquestionável importância
da saúde para a vida (e vida com dignidade) humana”.
Com a Promulgação da Carta Magna de 1998, amparado no dispõe
o seu art. 5º, parágrafo 2º, a nossa Constituição manteve,
abertura material de nosso “catálogo” de direitos fundamentais,
que abrange, além dos direitos previstos nos tratados internacio-
nais em matéria de direitos humanos, os assim chamados direi-
tos implícitos e decorrentes do regime e dos princípios, mas tam-
bém alcança direitos fundamentais expressa e implicitamente
positivados em outras partes da Constituição, para alémdaqueles
elencados no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais)2,
detal sorte que também os dispositivos (e as respectivas normas)
referidos (arts.196 a 200, da Constituição) poderão comungar -
ao menos naquilo que dizemcom os elementos nucleares de um
direito à saúde - da já aventada dupla fundamentalidade me sen-
tido material e formal (SARLET, 2007, p. 4-5).
Desta forma, na lição de Figueiredo (2007), pode-se dizer que os
valores de preservação da vida humana, a garantia de níveis progressi-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


36 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

vamente mais altos de saúde, a proteção da integridade física, mental e


emocional, conduzem à atuação dos particulares e do Estado na efeti-
vação do direito à saúde, pois segundo a lição de Bobbio,
[...] o problema grave do nosso tempo, com relação aos direitos
do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de prote-
gê-los. [...] Não se trata de saber quais e quantos são esses direi-
tos, [...] mas sim qual é o modo mais seguro de garantí-los para
impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continua-
mente violados. [...] (BOBBIO, 1992, p. 25).
Nesse mesmo ínterimleciona Leite (2014), que a evolução do con-
ceito de direitos fundamentais juntamente com os direitos sociais,
mostra que tão somente uma declaração de direitos não traz a felici-
dade do homem, pois um ideal de justiça só é atingido com a máxima
realização destes direitos, permitindo ao homem alcançar seu pleno
desenvolvimento individual e social, sendo que ter acesso à saúde e
dispor de uma vida saudável, torna-se condição indispensável para sua
própria sobrevivência.
Também o direito à saúde não pode, portanto, continuar sendo
reconduzido exclusiva e irrefletidamente à condição de direito
público subjetivo, já que manifesta sua atuação também na esfe-
ra das relações entre particulares, ainda que se possa admitir que
a assim denominada “eficácia horizontal” dos direitos fundamen-
tais, em suma, a vinculação dos sujeitos privados, não possa ser
tratada de modo similar à vinculação do poder público (SARLET,
2007, p 6).
No Brasil, destaca-se o acesso à saúde pública previsto na Carta
Magna como direito social de todos e muito embora estejam positiva-
dos no ordenamento jurídico, a sua efetivação na prática está longe de
ser implementada de forma eficaz, influenciada por diversos fatores,
principalmente econômicos, políticos, operacionais, entre outros.
Como direito fundamental da pessoa humana (e não apenas dos
brasileiros e estrangeiros residentes no país) o direito à saúde tem

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 37
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

sido considerado como um direito social, integrando, portanto, a


assim denominada segunda dimensão (ou geração) dos direitos
fundamentais, que marcou a evolução do Estado de Direito de
inspiração liberal-burguesa, para um novo modelo de Estado e
Constituição que se convencionou denominar de Estado Social
(ou Estado social de Direito) (SARLET, 2007, p. 7).
Para Sarlet (2007), em se tratando do direito à saúde no caso con-
creto e, partindo-se da classificação dos direitos fundamentais em di-
reitos de defesa que podem ser direitos negativos e tambémdireitos a
prestações positivas, pode ser alocado em ambas as categorias, o que
suscita influência na esfera da sua eficácia e efetividade.
Assim, o direito à saúde pode ser considerado como constituin-
do simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir
ingerências indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde
do titular, bem como - e esta a dimensão mais problemática - im-
pondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem
a efetivação deste direito para a população, tornando, para além
disso, o particular credor de prestações materiais que dizem com
a saúde, tais como atendimento médico e hospitalar, forneci-
mento de medicamentos, realização de exames da mais variada
natureza, enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a
realização concreta deste direito à saúde (SARLET, 2007, p. 8).
Quanto à responsabilidade do Estado, em relação aos direitos fun-
damentais, no tocante a dimensão negativa do direito a saúde temos
que,
o direito à saúde não assume a condição de algo que o Estado
(ou a sociedade) deve fornecer aos cidadãos, ao menos não como
uma prestação concreta, tal como acesso a hospitais, serviço mé-
dico, medicamentos, etc. Na assim chamada dimensão negativa,
ou seja, dos direitos fundamentais como direitos negativos (ou
direitos de defesa), basicamente isto quer significar que a saúde,
como bem jurídico fundamental, encontra-se protegida contra
qualquer agressão de terceiros. Ou seja, o Estado (assim como os
demais particulares), tem o dever jurídico de não afetar a saúde

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


38 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

das pessoas, de nada fazer (por isto direito negativo) no sentido


de prejudicar a saúde (SARLET, 2007, p. 10).
No tocante à chamada dimensão prestacional ou também chama-
da de positiva do direito à saúde, referem-se aos direitos que podem
ser exigidos do poder público, pelo titular do direito, que segundo nos-
sa Constituição Cidadã, pode ser qualquer pessoa,
[...] com base nas normas constitucionais que lhe asseguram este
direito, exigir do poder público (e eventualmente de um particu-
lar) alguma prestação material, tal como um tratamento médico
determinado, um exame laboratorial, uma internação hospitalar,
uma cirurgia, fornecimento de medicamento, enfim, qualquer
serviço ou benefício ligado à saúde (SARLET, 2007, p. 11-12).
O conceito de saúde, como um marco referencial, está no preâm-
bulo da Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), que é
uma agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU)
voltada para a saúde, que dispõe que A saúde é um estado de comple-
to bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência
de doença ou de enfermidade.
O direito à saúde também se encontra positivado em outro impor-
tante documento Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH),
e que foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Pa-
ris, em 10 de Dezembro de 1948. É um marco significativo na história
dos direitos humanos pois foi elaborada com o intuito de estabelecer
a proteção universal a estes direitos. É no seu artigo XXV, 1, que a De-
claração Universal dos Direitos do Homem faz referência ao direito à
saúde e bem-estar determinando que:
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de asse-
gurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimenta-
ção, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 39
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Para Schwartz (2004), a saúde como direito do homem está basea-


da na Declaração dos Direitos do Homem, cujo teor expressa o direito
de todo o ser humano à prestação sanitária, o que, em consequência,
levou a maioria das Constituições modernas positivarem a saúde como
um direito fundamental do homem.
No Brasil, onde se seguiu essa ordem mundial, muito embora ino-
portunamente em detrimento de outros países do mundo, o direito
à saúde faz parte do conjunto de direitos sociais elencados na nossa
Carta Magna, juntamente com a educação, a alimentação, o trabalho,
a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro-
teção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.
A Constituição Federal já traz no seu preâmbulo a instituição de
um Estado Democrático, o qual tem por finalidade precípua assegurar
os direitos de liberdade, segurança, bem-estar, ao desenvolvimento,
a igualdade e também à justiça como valores da sociedade brasileira,
que deve ser fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na har-
monia social.
Assim, podemos dizer que os direitos sociais, como dimensão dos
direitos fundamentais do homem, são prestações positivas pro-
porcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em
normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de
vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização
de situação sociais desiguais (SILVA, 2005, p. 286-287).
O ser humano que não possuir acesso a qualquer um dos direitos
sociais garantidos, mas principalmente a serviços básicos de saúde, não
poderá desenvolver-se nem como pessoa, nem como cidadão, pois não
há condições de autodeterminação, nem condições física ou mental, se
não tiver a efetivação do serviço social à saúde (LEITE, 2014). Desta for-
ma o indivíduo
[...] necessita do real cumprimento pelo Estado dos deveres de
defesa, proteção e promoção da saúde, com a participação do
setor privado nessa seara, pois sem a oferta de condições ele-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


40 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

mentares de salubridade (p. e., saneamento básico), medidas pre-


ventivas de manutenção de uma vida saudável (p. e., vacinação),
bem como, bens e serviços com o objetivo curativo (p. e., medi-
camentos e procedimentos médicos), não pode o indivíduo guiar
sua própria vida nem bem prover sua família (LEITE, 2014, p. 106).
O direito à saúde com um viés social, e estendido a todos os cida-
dãos brasileiros e estrangeiros, no Brasil, se efetivou a partir da Consti-
tuição Federal de 1988, sendo positivado no Art. 6, e reconhecido como
um direito social.
São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Va-
lem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na me-
dida em que criam condições materiais mais propícias ao auferi-
mento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condi-
ção mais compatível com o exercício efetivo da liberdade (SILVA,
2005, p. 287).
Verifica-se assim a clara importância que o poder constituinte ori-
ginário inseriu na legislação maior no tocante à positivação do direito
fundamental à saúde, criando então uma relação obrigacional entre o
Estado e sociedade.
No Brasil, as Constituições anteriores a de 1988, não traziam nenhu-
ma garantia para todas as pessoas, mas somente ao trabalhador, o que
denota que saúde era um direito apenas da classe trabalhadora. Tal pa-
radigma só será rompido com a Promulgação da Carta Magna de 1998,
que inovou ao trazer no seu art. 196.
Por isso a Constituição Cidadã, que inovou ao trazer no seu art. 196
a positivação desse importante direito fundamental:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Na mesma vertente da Constituição, a Lei nº 8.080/90 normatizou a
atuação do Estado, que deve dar uma assistência universal e igualitária,

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 41
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

sendo que no seu § 3º restou claro que o dever do Estado não exclui
o dever das pessoas, da família, das empresas e da sociedade, tratando
assim a questão sanitária como uma obrigação de todos. Na lição de Sar-
let (2007), o direito à saúde pode é considerado como “[...] constituindo
simultaneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências
indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular, bem como
(...) impondo ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a
efetivação deste direito para a população” (SARLET, 2007, p. 08).
A partir do desenvolvimento do conceito de saúde, principalmente,
após o término da 2ª Guerra Mundial, onde o mundo e principalmente
a Europa, recuperava-se de uma grave crise, constata-se a dificuldade
de efetivar pois
[...] o conceito não é operacional, pois depende de várias escalas
decisórias que podem não implementar suas diretrizes. Vários são
os fatores que afetam negativamente nesse sentido, sendo que o
principal, pode-se dizer, é que, a partir do momento em que o
Estado assume papel destaque no cenário da saúde, a vontade
política é instrumento de inaplicabilidade do conceito da OMS,
uma vez que as verbas públicas correm o risco de não serem sufi-
cientes para a consecução do pretendido bem-estar físico, social
e mundial (SCHWARTZ, 2001, p. 36).
A importância do bem-estar para o desenvolvimento do país, as-
sim também como a correta aplicação dos recursos sanitários, que mui-
tas vezes são escassos, possibilita dar condições mínimas para que o
indivíduo possa exercer sua cidadania, e viver dignamente. Outro gran-
de óbice à possibilidade de poder atingir a definição de “bem-estar” é
que, segundo Schwartz (2001), o conceito visa à imperfeição inatingí-
vel, uma vez que quantificar a perfeição é algo impossível, além do que
é subjetivo, e depende muito da evolução e da sociedade e da tecno-
logia disponível.
Nesse sentido como dispõe a Constituição da Organização Mun-
dial de Saúde é que “os Governos têm responsabilidade pela saúde dos

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


42 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de me-


didas sanitárias e sociais adequadas”. No Brasil é assegurado constitu-
cionalmente e de forma infraconstitucional, o direito à saúde como um
direito humano e fundamental, e o Estado deve assegurar e promover
a todos de maneira universal, pois somente com a efetivação do direito
à saúde é que se terá a valorização da pessoa humana, a qual cabe ao
[…] Estado a realização de políticas públicas que busquem a efe-
tivação deste direito para a população, tornando, para além disso,
o particular credor de prestações materiais que dizem com a saú-
de, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de
medicamentos, realização de exames da mais variada natureza,
enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização
concreta deste direito à saúde (SARLET, 2007, p 08).
Na prática, tanto o sistema Público, no tocante aos Poderes Execu-
tivo e Legislativo com ações sociais que visem à inclusão do indivíduo,
quanto o Privado com suas ações, convergem para a consecução do
acesso à saúde e a real alcance de seus fins sociais, porém o Estado tem
dificuldade de cumprir este mandamento constitucional, e muito em-
bora positivado no ordenamento jurídico, a sua efetivação prática está
longe de ser implementada.
Percebe-se que nas últimas décadas o Estado tem tido dificulda-
des em se democratizar e transformar os recursos de que ainda dispõe
em prol de benefícios sociais. Em se tratando do Brasil, Streck e Morais
(2014) trazem a perfeita aplicabilidade do intervencionismo estatal,
cuja condição para a realização da função social do Estado, serviu tão
somente para a acumulação de capital e renda em favor de uma peque-
na parcela da população.
A distribuição da renda e a consecução dos fins sociais, que de-
veriam ser um objetivo a ser atingido pelo Estado intervencionista e
utilizado pelo capitalismo, “[...] como projeto salvacionista em face do
crescimento dos movimentos de massa, tornou-se na verdade, o em-
brião da construção das condições da etapa que sucedeu nos países

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 43
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

desenvolvidos o Estado Democrático de Direito. E isso não ocorreu no


Brasil”.(STRECK e MORAIS, 2014, p. 81).
Porém, o que por vezes se depreende, é que a busca à saúde e o
acesso à saúde pública, muito embora consagrados como direito fun-
damental e positivados no ordenamento jurídico pátrio, não se ali-
nham com a realidade fática do dia-a-dia das pessoas, existindo uma
enorme incongruência entre o que está previsto entre o ser e o dever
ser. É imprescindível, segundo Leite (2014), reconhecer a importância
da constitucionalização do direito à saúde no Brasil, pois além de decla-
rar a saúde como direito fundamental social, dá o norte necessário aos
poderes constituídos, principalmente ao Poder Político, que tem por
dever estabelecer as políticas públicas de efetivação da saúde.
Para Sousa (2015) a saúde no Brasil encontra-se num nível mui-
to aquém do aceitável para garantir e efetivar o direito à vida como a
dignidade assegurada ao ser humano conforme consagrado no texto
constitucional,
A Constituição de 1988, enquanto “Constituição dirigente”, deve-
ria atuar além, servindo como instrumento de governo, estipu-
lando metas a serem realizadas não podendo apenas a se limitar
e impor, mas atuar visando o cumprimento destas imposições,
sendo inclusive objeto de uma interpretação dinâmica. O Estado,
assim deve atender às atuações econômica e social e não apenas
legislativa (SOUSA, 2015, p. 72).
A implementação dos direitos sociais garantidos na Constituição
somente será efetivada por meio da [...] intervenção de todos os po-
deres estatais, sejam os políticos nas formulações das necessárias po-
líticas públicas, como pelo Poder Judiciário no controle do excesso ou
falta de ação dos outros Poderes, inclusive no campo da saúde pública
[...] (LEITE, 2014, p. 107).
Assim, o Direito à Saúde é o segundo dos direitos sociais, confor-
me o art. 6º da Constituição Federal, logo após a educação. Surge
como um direito subjetivo público que não pode ser negado a

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


44 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

nenhuma pessoa sob pretexto algum, apesar de, na maioria das


situações da vida diário, ele estar sendo constantemente nega-
do, devendo ser assegurado pelo judiciário e não pelo sistema da
saúde. Todavia, este direito se rege pelos princípios da universa-
lidade e da igualdade de acesso às ações e serviços respectivos,
onde estes são de relevância pública e por isso devem ficar intei-
ramente sujeitos à regulamentação, à fiscalização e ao controle
do Poder Público (STURZA, 2008, p. 40).
Portanto, na lição de Sturza (2008), a consagração constitucional da
dignidade humana no ordenamento jurídico brasileiro é resultante da
obrigação do Estado em garantir à pessoa um patamar mínimo de re-
cursos, capazes de garantir direitos básicos como a saúde, diretamente
vinculados ao direito à existência digna. O cumprimento de prestações
positivas pelo Estado, como a proteção e a garantia ao direito à saúde,
mediante políticas sociais e econômicas, tem por objetivo garantir o
acesso de forma universal e igualitário às ações e serviços para promo-
ção, proteção e garantia da saúde enquanto um bem imprescindível à
vida.
Essas questões pertinentes ao acesso e efetivação de tão importan-
te aplicação do direito fundamental do acesso à saúde como um direi-
to social deve dar condições pelos Órgãos competentes cumprindo as
missões Constitucionalmente previstas para a eliminação ou minimiza-
ção das injustiças, opressões e exclusões, e pelo acesso generalizado e
igualitário aos bens exigidos para se poder levar uma vida digna de ser
vivida.
O atual modelo econômico não privilegia os excluídos pelo modelo
capitalista globalizado, que segrega e deixa muitas pessoas em condi-
ções de miséria, os quais necessitam da tutela do Estado que precisa
passar por um ressignificação para poder atender as demandas e os
óbices que impedem uma efetiva prestação social, com fulcro da efeti-
vação do direito fundamental, principalmente suas implicações na con-
secução do direito à saúde.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 45
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Considerações finais

Desde a antiguidade até os tempos atuais, a saúde da pessoa, é


condição fundamental para viver, sendo que a evolução principalmen-
te das legislações, permitiram a positivação do Direito à saúde, e a pres-
tação por parte do Estado nas sociedades modernas.
Denota-se que a falta do acesso à saúde, ou a sua disponibilização
precária, por si só já seria suficiente para não permitir ao cidadão a sua
dignidade, o que se coaduna com a falta de outras prestações sociais
fundamentais, como falta de alimentação e de nutrição adequada, que
possibilite uma vida saudável, um bom sistema imunológico com baixa
ou nenhuma incidência de doenças, habitação e saneamento básico,
que proteja o individuo e sua família, que sirva de lar e aconchego fa-
miliar.
A prestação efetiva do acesso à saúde permite que se viva da me-
lhor forma possível e que se consiga ter um acesso à saúde de forma
eficiente, para a eliminação ou minimização das injustiças, opressões e
exclusões como forma de garantia para a e efetivação dos direitos fun-
damentais e humanos, pois mesmo não sendo ainda o modelo ideal de
prestação sanitária, a positivação dos direitos fundamentais e a Consti-
tucionalização do direito à saúde, permitiu uma melhora nas condições
de vida do indivíduo, assegurando-lhe direitos básicos, que são inatos
da pessoa humana.
Destarte, verifica-se que uma das questões mais recorrentes atu-
almente é que as demandas sanitárias e sociais têm por necessidade
básica satisfazer condições de exclusão social que o modelo do capital
globalizado impõe e também como consequências sociais de um mun-
do multifacetado e com inúmeras tensões sociais, sobretudo em ques-
tões de diversidades de raça, gênero, religião, condições econômicas e
financeiras e de hipossuficiência econômica, que de forma desigual e
injusta faz com que as pessoas se tornem excluídas e, não dando con-
dições para viver com dignidade e exercer seus direitos.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


46 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

Por isso, ante o atual modelo globalizado e suas implicações nas


relações sociais e no surgimento de novas demandas, se faz necessário
uma ressignificação do Estado, das políticas públicas e do direito, com
objetivo de atender as reivindicações da sociedade, como a garantia e
a proteção dos direitos fundamentais, entre eles o acesso à saúde pú-
blica, os quais são imprescindíveis para que o indivíduo consiga ter e
exercer dignamente sua cidadania.

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STRECK, Lenio Luiz. MORAIS. Jose Luis Bolzan de. Ciência política e teoria do
Estado. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
STURZA, Janaína Machado. O Direito À Saúde na Sociedade Contemporâ-
nea: A figura jurídica do dano biológico na Itália e a proteção à saúde no
Brasil. 2008. Disponível em: <www.unisc.br/portal/images/stories/mestrado/
direito/.../janaina_machado_sturza.pdf.> Acesso em: 27 jul. 2016.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 49
A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ACESSO À SAÚDE

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


50 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À


SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO
INTEGRAL À MULHER: ENTRE AVANÇOS E
RETROCESSOS

Karine de Castro Kotlewski1


Júlia Menuci2

Considerações iniciais

Após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial a população


global se transformou de maneira significativa. Valores e costumes se
modificaram, tornando as reivindicações populares distintas, e fazendo
com que a intervenção estatal também precisasse se expandir. A par-
tir das demandas coletivas, as prerrogativas sociais se diferem do que
outrora foram. A burocracia governamental transparece uma série de
insuficiências sociais, requerendo da governança maior cuidado e aten-
ção à real efetivação de direitos e garantias, na busca pelo equilíbrio so-
cial e econômico. Em virtude das carências concebidas pela população

1 Mestranda em Direitos Humanos pelo PPGD da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (UNIJUI), Ijuí-RS. Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de
Santo Ângelo (IESA), Santo Ângelo-RS. Advogada. E-mail: karine.ck@gmail.com
2 Mestranda em Direitos Humanos pelo PPGD da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul (UNIJUI), Ijuí-RS. Especialista em Processo Civil pela FAVENI-MG. Graduada em Direito
pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria-RS. Advogada. E-mail: juliamenuci@
hotmail.com

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 51
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

marginalizada, a intervenção estatal visava diminuir as diferenças, para


que isso fosse possível, inicia-se a caminhada com a criação e a positi-
vação de regras para reger a nova ordem governamental.
O advento do Estado Social de Direito surge como resposta para as
deficiências primárias pelas quais as comunidades padeciam em virtu-
de dos resultados do liberalismo demasiado, que mascarou a liberdade
coletiva pela troca de direitos individuais e de propriedade. A participa-
ção no poder, a divisão econômica e os próprios direitos trabalhistas e
previdenciários evidenciaram transmutações significativas para a me-
lhoria das condições de vida dos excluídos. A mudança se ilustra no iní-
cio dos anos 20, juntamente com as ideias iluministas, a preocupação
estatal era aglutinar o povo e melhorar sua qualidade de vida, ainda
que de forma a comandar e adquirir mais poder para o Estado sob bons
argumentos.
Em que pese o binômio direito e política andarem de mãos dadas,
suas relações sempre foram frágeis, justamente pela influência que um
causa no outro, dessa forma, no Estado Social não foi diferente. Ain-
da que a legislação solidária estivesse positivada abarcando temas de
cunho assistencial e de amparo, tal como a saúde, a população poderia
facilmente ser dominada pelo poder que a própria solidariedade per-
passava para os governantes. Assim, a divisão dos poderes se torna ine-
vitável, tornando o executivo o ator primário das mudanças necessárias
para alcançar o bem-estar social. A questão sanitária ganha espaço em
consequência das doenças e pestes que atacavam e dizimavam comu-
nidades inteiras, consequentemente, a saúde torna-se direito e integra
as preocupações governamentais.
A saúde se transformou em objetivo primordial do Estado Social
a partir de princípios de dignidade que visavam agregar condições
mínimas de suporte e assistência à organização social. Esse entendi-
mento ultrapassa as fronteiras, à nível internacional, muitos tratados
e normas são criadas para garantir que os cuidados à saúde serão real-
mente efetivados pelos líderes de governos. Diante da evolução social

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


52 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

e da transformação do Estado Social para além de seus limites, novas


formas de reivindicações são criadas pelas populações que demandam
modos distintos de sobreviver e requerem do Estado maior cuidado e
dignidade. Para isso, a governança cria formas contemporâneas de cui-
dados e a sociedade pleiteia por direitos solidários, se aglutinando em
movimentos sociais específicos para cada grupo, exigindo do Estado a
tomada de atitudes para garantir as normas contidas em leis.

1 Sobre o Estado Social De Direito e o destaque dado o


Executivo: As políticas públicas como instrumento para
o alcance do bem-estar

O modelo do Estado Social, que conforme Marques, Pedroso e San-


tos (1995), teve seu enraizamento e desenvolvimento a partir do Se-
gundo Pós-Guerra, foi marcado pela preocupação com a real efetivação
de direitos e garantias, com a busca pelo equilíbrio social e econômico
desmantelados pelos excessos acobertados (ou “institucionalizados”)
pelo Estado Liberal, com a previsão de direitos de extensão coletiva,
natureza promocional e protetiva, tais como os de cunho trabalhista,
previdenciário, sanitário etc. Este
[...] novo instrumentalismo jurídico traduz-se em sucessivas ex-
plosões legislativas e, consequentemente, numa sobre-juridifica-
ção da realidade social, que põe fim à coerência e à unidade do
sistema jurídico (MARQUES; PEDROSO; SANTOS, 1995, s.p.).
Pode-se dizer que a ideia de Estado Social de Direito, embora não
esteja relacionada “[...] a um aspecto da ação do Estado [...] exclusiva
do nosso tempo, visto que o Estado da época do absolutismo tardio
também foi qualificado como Estado de bem-estar” (PELAYO, 2009, p.
02), exsurgiu a partir do momento em que a proteção às liberdades in-
dividuais e a conduta negativa estatal não mais atendiam aos anseios
sociais e não se coadunavam com a complexidade de que se revestiam
as relações estabelecidas entre sujeitos (tanto a nível regional, como

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 53
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

nacional e internacional), nem tampouco se moldavam aos novos ru-


mos econômicos, políticos, tecnológicos e jurídicos que balizavam o
curso (e o dinamismo) da sociedade daquela época.
Assim, a partir de tal constatação passou, o Estado, a “[...] suprir ca-
rências e aplainar dificuldades, nomeadamente no bojo do segmento
mais carente da sociedade” (ALBERTO, 2012, p. 20), iniciando-se, nota-
damente, pela edição de regras “[...] de conteúdo axiológico e voltadas
à solidariedade” (ALBERTO, 2012, p. 20), de modo que “[...] os direitos
sociais representam direitos de participação no poder político e na dis-
tribuição da riqueza social produzida” (GOZZI, 1998, p. 401).
Tal como nos explica Gustavo Gozzi (1998), algumas das primeiras
nuances do que viria a ser chamado ulteriormente de modelo de Esta-
do Social (englobando-se, aí, suas variações de nomenclatura) podem
ser visualizadas, ainda que de forma tímida e despretensiosa, na Ingla-
terra, no ano de 1601, onde havia sido editada lei que fornecia certo
amparo econômico àquelas pessoas menos abastadas, muito embo-
ra, consoante explica o autor, a incidência desta norma “[...] constituiu
mais uma tentativa de eliminação dos pobres do que de eliminação da
pobreza. Toda comunidade que tinha de prover ao sustento dos seus
pobres procurou, na realidade, expulsá-los e deixar entrar o menor nú-
mero possível (GOZZI, 1998, p. 403).
Contextualizando a temática sob a perspectiva inglesa, o autor nos
explica que
até o início do século XIX, a tarefa assistencial era confiada às
corporações de artes e ofícios. O fim das corporações foi levada
avante pelas sociedades de socorro mútuo, às quais cabiam tam-
bém atribuições previdenciárias. Ao fim, a previdência social se
impôs como uma necessidade em face dos riscos acarreados pela
Revolução Industrial, que trouxe aos trabalhadores condições de
maior pobreza e os relegou em vastos aglomerados urbanos, pri-
vados dos laços de solidariedade que encontravam na comuni-
dade rural (GOZZI, 1998, p. 403).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


54 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

No que toca à dogmática que lastreia os estudos do Estado moder-


no, doutrinadores como Pelayo (2009), vinculam o surgimento da no-
ção de Estado Social com as propostas encontradas no pensamento de
Lorez von Stein. Afora todas estas perspectivas, é de se constatar que,
guardando uma certa semelhança com o desenvolvimento do modelo
liberal, impulsionado pela classe burguesa em ascensão (a qual, con-
forme já referenciado, valeu-se dos discursos ideológicos dissipados
pela Revolução Francesa e dos simpatizantes iluministas apenas como
discurso de convencimento e legitimação), a estipulação de propostas
de assistência e seguridade social, muitas delas, dissimulavam os reais
interesses daqueles que detinham o poder, em suas formas variadas. A
fim de elucidar melhor esta perspectiva, explica, Gozzi, que,
as primeiras formas de Welfare visavam, na realidade, a contras-
tar o avanço do socialismo, procurando criar a dependência do
trabalhador ao Estado, mas, ao mesmo tempo, deram origem a
algumas formas de política econômica, destinadas a modificar
irreversivelmente a face do Estado contemporâneo (1998, p. 403).
Segundo Regonini (1998), nas décadas de 20 e 30 do século passa-
do , as problemáticas desenfreadas pela explosão da Primeira e Segun-
3

da Guerra Mundial (as quais, dentre outras consequências, fomentaram


a alta da inflação, endividaram os países, solaparam os potenciais das
relações consumeiristas e trabalhistas, desestruturaram as relações po-
líticas e econômicas no âmbito não só externo, mas interno também...)
corroboraram, indubitavelmente, para se repensar a estrutura e as fun-
ções estatais:
mas é preciso chegar à Inglaterra dos anos 40 para encontrar a
afirmação explícita do princípio fundamental do Welfarestate: in-
dependentemente da sua renda, todos os cidadãos, como tais, têm
direito de ser protegidos — com pagamento de dinheiro ou com

3 No caso brasileiro, foi, igualmente, na década de 30, notadamente com a edição da Constituição
Federal de 1937, na Era Vargas, que direitos e garantias de cunho trabalhista passaram a despontar no
cenário constitucional nacional.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 55
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

serviços — contra situações de dependência de longa duração


(velhice, invalidez...) ou de curta (doença, desemprego, materni-
dade...) (REGONINI, 1998, p. 417) [grifo do autor].
É de bom tom salientar que, malgrado as modificações constata-
das, o Estado Social de Direito não rompeu com o modelo de Estado
Liberal4 (que o antecedeu), mas sim, veio a agregar um elemento que,
diante das novas configurações, se impunha: o “social” e, desta forma,
o que irá diferenciar substancialmente o modelo do Estado interven-
tivo contemporâneo, como Estado do Bem-Estar, dos precedentes
modelos assistenciais é o fato de a regulação não significar a troca de
garantias pela liberdade pessoal [...]” (MORAIS, 1996, p. 93)
De outra banda, “a adjetivação pelo social pretende a correção do
individualismo liberal por intermédio de garantias coletivas” (MORAIS;
STRECK, 2012, p. 96), sendo que, desta forma, “[...] projeta-se um mode-
lo onde o bem-estar e o desenvolvimento social pautam as ações do
ente público” (MORAIS; STRECK, 2012, p. 96)5.Portanto, neste segundo
modelo de Estado, cujas principais cartas constitucionais demarcató-
rias deste momento, são, conforme assinala Sobrinho (2003), a Cons-
tituição Mexicana de 1917 e Constituição alemã de 1919, passou-se a
verificar, diante das novas nuances, a necessidade de uma maior inter-
venção estatal; de uma reanálise e, consequentemente, um rearranjo
no que concerne aos instrumentos de que se valia o Estado para a con-
secução de seus fins.
Se era notável a proeminência desta nova conjuntura a orientar as
relações entre economia e política, campos estes que sempre tiveram

4 Conforme leciona Pelayo “os valores básicos do Estado democrático-liberal eram a liberdade, a
propriedade individual, a igualdade, a segurança jurídica e a participação dos cidadãos na formação da
vontade estatal através do sufrágio. O Estado social democrático e livre não nega esses valores; pretende
torna-los mais efetivos na medida em que lhes dá uma base e um conteúdo material” (2009, p. 14).
5 Diferentemente da forma de interpretar a racionalidade no modelo Liberal, “o Estado Social [...]
parte da experiência de que a sociedade, deixada, total ou parcialmente, a seus mecanismos auto-
reguladores, conduz à pura irracionalidade” (PELAYO, 2009, p. 11), pelo que a intervenção estatal era
necessária e vista como condição à perpetuação da lógica racional que mantinha soerguido o edifício
estatal.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


56 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

conexões delicadas entre si, não seria diferente com um campo cujas
fronteiras entre direito e política revelavam-se tênues: versa-se sobre o
direito constitucional. Sob este prisma, verifica-se que as próprias cons-
tituições/cartas constitucionais promulgadas sob a influência do Esta-
do Social de Direito chamaram para si matérias de cunho social, assim
como passaram a positivar em seus textos novo conjunto de direitos
que passaria a integrar as políticas públicas do Estado (novo ferramen-
tal de que lançaria mão, o Estado Social, na tentativa de alcançar seus
objetivos), erigindo o Poder Executivo como poder primeiro a impul-
sionar as atividades rumo à consecução do modelo social e, as políticas
públicas como instrumentos por meio dos quais o Estado agiria neste
afã.
Políticas públicas, aqui, são vistas como conjuntos de programas,
atividades, ações, atos que emanam de quem controla o poder estatal,
esses programas podem ser desenvolvidos diretamente pelo Estado ou
indiretamente, visam atingir a população, um grupo ou parcela dela,
elas exigem a participação de entes públicos ou privados para que se-
jam efetivadas. As políticas públicas tentam sanar deficiências sociais,
ou efetivar direitos de cidadania, como por exemplo, temas que tan-
gem sobre a área da saúde, educação, meio ambiente, etc. Essas polí-
ticas versam sobre direitos assegurados constitucionalmente, mas que
sofrem de alguma debilidade para serem cumpridos, assim, o ente pú-
blico recorre as necessidades e demandas da comunidade para incor-
porar medidas que melhorem a vivencia social. A formulação das políti-
cas públicas ocorre por meio das reivindicações sociais, podendo partir
do próprio Estado ou das propostas da população. Essa concepção de
políticas públicas explana que essas atitudes são conjuntos de ações
partidas do próprio governo, voltadas para a solução de problemas en-
contrados na sociedade. Elas se traduzem como um sistema de metas e
planos que partem dos entes federativos, União, Estados e Municípios
abarcando todas as moléstias que uma comunidade pode ter (LIMA,
2012).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 57
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

Nesta senta, nota-se que,


distintamente do modelo liberal, que privilegiava a atuação do
legislador, no Estado social a prevalência do Poder Executivo
sobre os demais Poderes é uma condição para efetivar políticas
públicas por meio da capacidade de intervenção na economia.
Um dos mecanismos utilizados para reorganizar o quadro so-
cial e garantir esta atuação promotora do Estado foi o ordena-
mento jurídico que, com as mudanças orgânicas e funcionais
promovidas pelo Estado intervencionista, altera sua orientação
política e passa a representar um instrumento de interferência e
assistência estatal para a promoção de políticas sociais (LUCAS,
2005, p. 181).
Embora tendo como parâmetro ora o Estado alemão, ora o espa-
nhol, em seu estudo, Pelayo (2009) aponta algumas das principais ca-
racterísticas que emolduram o modelo de Estado Social, dentre elas:
1. O fato de haver a previsão de um salário mínimo a ser observado no
âmbito das contraprestações trabalhistas, de modo a proteger a rela-
ção empregador/empregado e assegurar o poder aquisitivo do traba-
lhador. 2. A previsão de instrumentos de seguridade social a proteger o
segurado em condições vulneráveis de saúde e desemprego. 3. Função
gestora/administrativa do Estado em vez da legislativa. 4. Foco na justi-
ça distributiva ao invés da comutativa. 5. Preconização da participação
do povo na construção e execução dos projetos do Estado para além
do tradicional exercício do direito de voto, incluindo-se mecanismos
de participação democrática direta e instituições representativas de
classes sociais diversas. 6. Estado que conta com “[...] um sistema de-
mocraticamente organizado [...] onde a sociedade não só participa pas-
sivamente como receptora de bem e serviços” (PELAYO, 2009, p. 35),
outorgando-se primazia à chamada democracia social (com reflexos
nas mais distintas dimensões). 7. Advento de novas instituições e ato-
res sociais que acabam por retirar da instituição estatal o monopólio de
atuação pública, seja no trato político, seja no econômico.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


58 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

Tendo, portanto, sido apresentadas, ainda que de forma sumária,


as nuances que conferem singular tonalidade ao modelo do Estado So-
cial, que, conforme sinalizado, buscou dar especial ênfase a matérias
de ordem social e coletiva, cuja consecução ficaria, principalmente, a
cargo do ente estatal. Como decorrência desta perspectiva, elegeu-se o
Poder Executivo como órgão competente para levar a cabo as mudan-
ças necessárias ao alcance do bem-estar social (através, principalmente,
da constitucionalização de direitos e da adoção de políticas públicas),
tornando-o agigantado e forte tanto quanto se entendesse necessário
para dar conta dos objetivos estatais em voga. Todas estas modifica-
ções, por evidente, irão se refletir no modo de envolvimento entre o
Estado Social, seus mecanismos de atuação e, a imbrincada relação sua
com a questão sanitária (seu desenvolvimento, conceituação/dimen-
são, normatização e relação com o meio estatal e social), o que passa a
ser discorrido adiante.

2 O Estado Social, sua audaciosa pretensão de alcance de


bem-estar e a questão sanitária: alguns apontamentos

Conforme anteriormente asseverado, o modelo de Estado Social


projetou-se como uma alternativa à superação das mazelas deixadas
pelos excessos legados do liberalismo, tais como a pobreza, desigual-
dades sociais, prevalência do critério econômico para definição das
condições de possibilidade e acesso a bens básicos humanos, incluin-
do-se, aqui, a questão sanitária.
Malgrado a relação compassada entre desenvolvimento do mode-
lo social e preocupação com a questão sanitária (e, ainda, com a res-
ponsabilidade do Estado nesta seara), imprescindível se faz ter em con-
ta que
antes do século XIX, houve em relação ao direito à saúde escas-
sas referências, encontradas em trabalhos escolares ou em do-
cumentos oficiais. Todavia, havia um senso de responsabilidade

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 59
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

estatal, ou, pelo menos, comunitário, em relação à saúde pública


desde as antigas civilizações. Desde os primórdios da história, as
autoridades vêm tomando medidas para melhorar essa área. A
reunião de certas comunidades que se esforçavam em aplicar
uma política de saúde era usualmente indicada pela expressão
‘saúde pública’ (CURY, 2005, p. 30).
Ieda Cury (2005), no desenvolver de sua obra nominada “Direito
fundamental à Saúde: evolução, normatização e efetividade”, promo-
ve uma interessante digressão acerca da perspectiva sanitária em sua
historicidade. Neste sentido, aponta a autora que já em Roma havia
uma preocupação em fiscalizar práticas públicas pelos administrado-
res, através de uma comissão de saúde, cujas atribuições consistiam na
“[...] supervisão dos banhos públicos, incluindo testes dos aparelhos de
aquecimento, a conservação das ruas, inclusive mantê-las planas e sua
limpeza, pela qual se responsabilizavam também os proprietários das
casas” (CURY, 2005, p. 32). Já Germano Schwarz refere que “o primei-
ro conceito de saúde pode ser atribuído aos gregos da cidade-estado
de Esparta. O brocardo ‘Mens Sana In Corpore Sano’ é, em realidade, o
marco primeiro da definição do que é ter saúde” (SCHWARTZ, 2001, p.
29).
No período da Idade Média, no continente europeu,“[...] outras
atividades públicas de saúde foram tomadas. Medida importante foi
a criação de um mecanismo administrativo para a prevenção de do-
enças, a supervisão sanitária e a proteção da comunidade na área da
saúde, sistema que persistiria até o século XIX” (CURY, 2005, p. 33). O
escopo, até então, era promover medidas relacionadas com “[...] a pre-
venção de enfermidades e a supervisão sanitária, visando a proteção
da saúde comunitária em geral. A natureza desse sistema está ligada à
natureza da administração da municipalidade medieval” (CURY, 2005,
p. 33), muito embora não se possa descurar do fato de que antes das
atribuições de cuidado pelas pessoas e entes estatais, a Igreja já desen-
volvia um importante papel no âmbito sanitário, notadamente quanto

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


60 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

à cura de moléstias, claro, oportunidade em que legitimava e reforçava


seu discurso religioso. Fato é que, neste momento e, por um bom tem-
po ainda, irá imperar a noção de “[...] saúde como ausência de doenças
[...]” (SCHWARTZ, 2001, p. 32).
As gravosas epidemias que ceifaram um percentual considerável
da população europeia na Idade Média, dadas as poucas condições de
saúde e higiene dispensadas às pessoas, de um lado, e,
em razão da aglomeração territorial urbana das habitações ope-
rárias, pela falta de planejamento e de saneamento das vilas que
formavam cinturões ao redor das fábricas, propiciou a prolife-
ração de doenças. Ocorrendo a contaminação dos operários, as
doenças alastravam a todas as classes sociais, o que levou os pro-
prietários das indústrias a terem uma maior preocupação com
seus funcionários (SOBRINHO, 2003, p. 121).
Ademais, a preocupação secundária com este quesito pelos deten-
tores de poder político e econômico representaram um elemento de
considerável pressão para se repensar com mais afinco e comprome-
timento a saúde pública, fazendo com que, entre o século XVIII e XIX
fossem criadas disposições normativas tendentes a reger a questão sa-
nitária e fornecer melhorias à saúde das pessoas em geral6.
Mas, consoante nos explica Cury (2005) somente com o advento da
Revolução Industrial e seus impactos é que o debate em torno da ques-
tão sanitária passou a ganhar corporificação mais consistente. E essa
modificação no pensar a saúde, espantosamente, não se deu por uma
mudança de reflexão acerca da saúde humana, mas sim, porque dadas
as péssimas condições a que os trabalhadores eram submetidos nas
fábricas, de um lado, e da perda econômica que representava para as

6 Conforme Cury a“[...] saúde foi objeto de inúmeras convenções internacionais. Na Europa, no século
XIX, foram concluídas, contra a cólera, as Convenções de Paris (1825), Viena (1874), Veneza (1892),
Dresden (1893) e Paris (1894). Sobre a peste bubônica, foi assinada uma convenção em Veneza
(1897)” (2005, p. 40), ao passo que, “na América, as convenções sobre matéria sanitária se sucederam:
a do Rio de Janeiro (1887), entre Argentina, Paraguai, Brasil e Uruguai; a de Montevidéu (1904); a de
Washington (1905), que criou a Repartição Sanitária PanAmericana; a de Havana (1924) [...]” (CURY,
2005, p. 40).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 61
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

indústrias um trabalhador doente, não restava outra alternativa a não


ser intervir na questão da saúde.
Desta forma, “a sociedade industrial, desenvolvendo um trabalho
nada saudável e vivendo em péssimas condições, gerou sérios proble-
mas de saúde, inclusive doenças epidêmicas, tais como a cólera em
1832” (CURY, 2005, p. 36), o que passou a representar um risco ao lucro,
e, somente em virtude disso, e, a partir desta premissa, é que se passou
a lançar um olhar mais protetivo, no caso, à classe trabalhadora. Ger-
mano Schwartz, nesta perspectiva, aponta para o fato de que “a saúde,
basicamente, tinha uma concepção liberal: a de repor o indivíduo ao
trabalho” (2001, p. 33).
Nota-se, portanto, que,
a sociedade industrial do século XIX passa, portanto, a aliar ao
conceito de saúde como ausência de doenças um novo compo-
nente: o trabalhador não pode adoecer porque prejudica o pro-
cesso de acumulação capitalista pelo simples fato de não poder
produzir (SCHWARTZ, 2001, p. 33),
fazendo-se imperar um conceito de “[...] saúde ‘curativa’, ligada ao
que a moderna doutrina atual chama de aspecto negativo da saúde:
ausência de enfermidades” (SCHWARTZ, 2001, p. 33).
Para não nos restringirmos ao caso inglês, explica Cury (2005) que
ações semelhantes foram levadas a cabo também pela Alemanha:
constatou-se, desse modo, a necessidade de intervenção estatal
para assegurar as condições mínimas de sobrevivência digna do
homem. Tal constatação culminou com o reconhecimento de al-
guns direitos por parte do Estado, os chamados direitos sociais.
Entre estes, destaca-se o direito à saúde, de natureza pública sub-
jetiva, exigível do Estado (2005, p. 38).
As grandes evoluções levadas a efeito, a nível internacional e, pos-
teriormente, com reflexos nacionais, em vista das propostas prevale-
centes no Período do Pós-Guerra, através da criação de instituições in-
ternacionais e da promulgação de documentos oficiais comprometidos

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


62 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

com o fortalecimento do regime democrático, da limitação do Estado e


do resgate das condições dignas e básicas de todos os seres humanos,
contribuíram, sobremaneira, para elevar o direito a saúde, sua norma-
tização e efetivação, a um patamar jurídico, político, constitucional e
institucional até então inédito.
No âmbito conceitual, denota-se que “a tese ‘preventiva’ da saúde
começa a tomar corpo com a ideia de Welfare State surgido após as
grandes guerras [...]” (SCHWARTZ, 2001, p. 34).
A título exemplificativo, a criação da Organização Mundial da Saúde,
em 1946, representou, à época, um ato de bravura, já que as propostas
de atuação, atribuição e gerenciamento da questão sanitária, com refle-
xos no bojo da soberania de diversos países, configuravam-se em marcos
que pretendiam colocar fim a uma história de sangue, morte e desampa-
ro, ocasionado pelas guerras mundiais, recentissimamente encerradas,
ao passo que denotavam a existência de um real compromisso com a
condição humana, nas suas diversas dimensões e complexidades, ainda
que hoje não seja difícil encontrar críticas à tímida e opaca atuação da
OMS7.Quanta a esta organização e sua importância para o delineamento
dos principais contornos do conceito de saúde, Schwartz assim leciona:
[...] o marco teórico-referencial do conceito de saúde foi erigido
em 26 de julho de 1946. O preâmbulo da Constituição da Organi-
zação Mundial da Sáude (OMS), órgão da ONU, refere que a saúde
é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a au-
sência de doenças. Tal conceito é o primeiro princípio básico para
a felicidade, as relações harmoniosas e a segurança de todos os
povos (SCHWARTZ, 2001, p. 35).
Sinaliza-se, também, a participação da Organização Internacional
do Trabalho enquanto instituição internacional que, restrita à sua área

7 “Primeiramente, a OMS deveria utilizar seus poderes legislativos para adotar convenções elucidando
as obrigações estatais com relação ao direito à saúde. Em segundo lugar, a OMS deveria aplicar mais
severamente os procedimentos contidos em seus relatórios anuais. Deveria proceder igualmente com
relação ao relatório da Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ou seja,
influenciando mais ativamente suas regras” (CURY, 2005, p. 45).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 63
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

de atuação, busca promover condições dignas de saúde no bojo labo-


rativo.
Ainda no âmbito internacional, mas sob o prisma normativo, a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada no ano de
1948, em seu art. 25, instituiu a saúde como direito inerente a todo
ser humano8 e firmou, com os países signatários, o compromisso de
não envidar esforços para dar concretude a bens básicos inerentes ao
homem, tal como o é com a temática da saúde. Igualmente, o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aderido e
publicado pelo Brasil em 1992, contempla a questão sanitária em duas
oportunidades: no seu artigo 10, item 3, enfatiza a necessidade de pro-
teger as crianças e adolescentes quanto à realização de trabalhos que
possam vir a ofender a sua saúde e, no artigo 12, item 1, que reconhece
“o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saú-
de física e mental”9, estabelecendo-se, como via dupla, a obrigatorieda-
de do ente estatal de dirigir seus esforços e ações nesse sentido.
Sem negligenciar a existência de outros documentos e instituições
internacionais que, de forma direta ou indireta, contribuíram e contri-
buem para o reconhecimento da saúde como direito básico à condi-
ção humana, bem como, dever do Estado, e, ainda, tendo em conta

8 Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde,
bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou
outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas
dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.
9 Artigo 10
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem que:
(...)
3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência em prol de todas as crianças e
adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se
proteger as crianças e adolescentes contra a exploração econômica e social. O emprego de crianças e
adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à moral e à saúde ou que lhes façam correr perigo
de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento norma, será punido por lei.
Artigo 12
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais
elevado nível possível de saúde física e mental.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


64 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

que o grau de recepção, normatização e efetivação destas tendências


e discursos internacionais pelas diversas nações está relacionado com
questões peculiares, tais como adesão e vontade da classe política em
aderir e efetivar, seja, igualmente, com relação à (im) possibilidade de
recepção em vista dos tipos de sistemas políticos/econômicos, impen-
de tecer considerações sobre o caso brasileiro.
Autores como Schwartz (2001, 2004), Cury (2005) e Sobrinho (2003)
convergem no sentido de que o advento da Constituição Federal de
1988 representou um marco fundamental para a saúde em nosso País.
Positivou com força inédita o direito à saúde, estabeleceu novos parâ-
metros para entender os limites e possibilidades deste bem tão caro,
assim como viria a estipular, de forma prospectiva, a atuação estatal
junto com o apoio social, em matéria sanitária. Todo este arcabouço
nos leva a refletir no sentido de que
[...] a saúde deveria não ser mais apenas um ‘poder comprar a cura’,
mas sim direito de que ‘todos tenham acesso à cura’. O Estado in-
terventor deveria, pois, proporcionar a saúde aos seus cidadãos
mediante serviços básicos de atividade sanitária (SCHWARTZ,
2001, p. 34).
Consoante nos explica Schwartz (2001), fazendo-se uma análise da
linha histórica constitucional brasileira, verifica-se que Constituição de
1824 nada fala sobre saúde; aqui, “não cabia ao Estado interferir nessa
questão, quanto mais um Estado Liberal como aquele apregoada pela
Constituição do Império” (2001, p. 44), o que pode ser estendido para
uma abordagem à luz da Constituição de 1891. A de 1934, de forma tí-
mida, trouxe algumas pontuações de natureza social, não esmiuçando
a temática de saúde; Já a de 1937, conforme Sobrinho,
[...] não se referiu ao tema da saúde, visto que a principal preocu-
pação do texto constitucional era fortalecer o poder do Executi-
vo, dando-lhe também atribuições do Legislativo e concentrando
o poder na figura do presidente da República, que tinha o poder
de veto e de legislar (2003, p. 94),

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 65
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

enquanto que a de 1967 apenas estipulou como sendo competên-


cia da União estabelecer planos nacionais de saúde.
Da leitura do art. 196 da vigente Constituição brasileira, denota-se
que houve uma preocupação, por parte do legislador constituinte, em
abarcar, no conceito de saúde, todas as estruturas conceituais que no
passado, sozinhas, integraram sua noção sanitária. Abrange, o conceito
referido, a prevenção, a proteção, a recuperação e, ainda, a qualidade
de vida. Permite, o direito à saúde e seu acesso, assumir duas feições
distintas, porém, igualmente importantes: a feição de direito social (di-
fuso/coletivo) e a feição de direito subjetivo, o que só contribui para a
ampliação das demandas e reivindicações sobre saúde. Ademais, se-
gundo bem pontua Schwartz (2001), o direito à saúde reveste-se de
tamanha dimensão e complexidade, além de ser uma constante, inaca-
bado em seu conteúdo, que é possível identifica-lo em todas as gera-
ções de direitos10.
Além da saúde em si, não podemos descurar da relação desta com
outros direitos e temáticas, tais como os direitos inerentes ao caput do
art. 6º (moradia, educação, etc.), nas relações consumeiristas, de traba-
lho, ambiente, seguridade social, entre outras, o que só vem a reforçar
quão abrangente hoje é tal direito em sua natureza e perspectiva, cuja
agregação do elemento risco, nesta área (Schwartz, 2004), assim como
desafios decorrentes de novas realidades, tais como o aumento da ex-
pectativa de vida e envelhecimento da população (Cury, 2005), torna
a concretização da saúde a todosum dos maiores desafios do Estado e
sociedade civil contemporânea.
No âmbito infraconstitucional, por exemplo, a criação do SUS, atra-
vés da Lei n. 8.080/90, assim como,
as reformas setoriais dos anos 80 do século XX, visando acesso uni-
versal, integralidade da atenção, ênfase em ações de promoção e
10 1ª geração – relacionada com a possibilidade de o sujeito, por si, acessar a saúde; seu direito de livre
procura; 2ª geração – saúde vista como prestação positiva do Estado; 3ª geração – saúde como direito
transindividual – coletivo e difuso; 4ª geração – direito à saúde englobando direitos genéticos; 5ª
geração – direito à saúde e implicações à realidade virtual, conforme Schwartz (2001).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


66 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

proteção da saúde, descentralização e participação social, adquiriram


expressão legal e institucional com a CRFB/88 e com a integração dos
serviços de saúde pública através do SUS” (CURY, 2005, p. 94).
É sabido que o sistema de saúde brasileiro é misto, comportando
a conjugação do setor público e privado, mas, atentando ao primeiro,
constata-se que muito recentemente, apenas, foi inserida, na supraci-
tada lei, alteração legislativa que positiva e assegurava uma aborda-
gem sanitária específica para a mulher11. Esta triste realidade, além da
evidente cena de discriminação (seja racial, social etc.), conforme (HE-
RINGER, 2010), no âmbito sanitário e a incoerência com a qual se bus-
ca, por vezes, a todo custo, uma pretensa, cega e falaciosa igualdade,
corrobora com o cenário ainda primário da busca de alcance de saúde
à mulher, Conforme Gama, já
ao longo da década de 1990, os relatos de mulheres vinculadas
aos movimentos sociais, ONGS que trabalham em saúde, e a pro-
dução acadêmica mais recente vêm expressando frustrações pe-
los atropelos de que são objeto os serviços de saúde (2006, p. 80),
problemática esta que será, com mais vagar, discorrida a seguir.

3 Da expansão do conceito de saúde e do comprometimento


estatal em ofertá-la ao advento de novos atores sociais: a
reivindicação de grupos específicos por ações e políticas
sanitárias: o caso da mulher

A luta por direitos femininos e as discussões sobre o papel da mu-


lher na sociedade e atuação no espaço público representa uma con-

11 Consoante dispõe o At. 7º, inciso XIV, da Lei n. 8.080/90, com redação dada pela Lei nº 13.427, de 30
de março de 2017.:As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as
diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
(...)
XIV – organização de atendimento público específico e especializado para mulheres e vítimas de
violência doméstica em geral, que garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico
e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013.

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DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 67
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

traposição a um ideário histórico, patriarcal, enraizado já nas grandes


civilizações, como as gregas e romanas. Tanto é que uma das princi-
pais figuras do direito romano, partindo das lições tecidas por Colling
(2000), temos que o paterfamilias, até pouco tempo refletia seus efeitos
para nossa ordem civilista, através da outorga à mulher de condição
de incapaz, acarretando a supressão de uma gama de direitos de sua
órbita.
O despertar para os discursos de gênero, tal como encadeado pelo
feminismo, não se estancou desde que teve início com o movimento
feminista. Enquanto que a primeira onda do movimento, no final do sé-
culo XIX e início do século XX se ocupava com necessidades primárias
de atuação social, como por exemplo, o sufrágio, os direitos civis e po-
líticos e a saúde feminina, desde a segunda onda feminista na década
de 60, as mulheres lutam pela atuação no âmbito público e pela profis-
sionalização, da mesma forma como os homens alcançaram a intelec-
tualidade. Porém, como bem coloca Betty Friedan, em seu livro Mística
Feminina (1971), após a explosão do movimento feminista, que levou
as mulheres para as ruas em busca da conquista de direitos exclusivos
de homens, ainda havia muitas mulheres que não pensavam em ter
uma vida fora da esfera doméstica.
Tanto no espectro político, como social e legislativo, desde os seus
primórdios, a mulher já se encontrava em desvantagem perante o ho-
mem. Assim, iniciando na Grécia e se estendendo até o século XIX, a
mulher sempre foi tida como frágil e secundária nas comunidades, não
sendo compatível com sua natureza o intelecto e a capacidade da pa-
lavra. Desde o início dos tempos a mulher é condicionada a ocupar um
lugar que na verdade nunca foi seu. Todos esses comportamentos pré
-estabelecidos chegam ao século XIX com força, refletindo na mulher
uma posição que não deveria ter sido enraizada, a de sujeito passivo.
Entre estes séculos acima referenciados, justamente quando a te-
mática social e sanitária passaram a integrar a agenda de discussão da
época, e, seguindo o compasso do desenvolvimento do movimento

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


68 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

feminista, a saúde da mulher passa a ser outro aspecto relevante do


movimento. No início das reivindicações a saúde aparece como fator
imprescindível para outras formas de libertação se consumar, para o
próprio conhecimento feminino a respeito de seu corpo e de sua biolo-
gia (BEAUVOIR, 1980).
Ocorre que todas estas ligações e discursos a balizar a questão fe-
minina ao longo de sua história, destacando-se, aí, a imposição levada
a efeito pela religião e pelo patriarcado, irão determinar as formas de
construir, abordar e alcançar a saúde à mulher, ou, sob outro prisma,
irão justificar as lacunas teóricas e práticas que permeiam a questão de
saúde da mulher. Não é por acaso que ao longo das décadas do século
passado, no Brasil, as políticas públicas voltadas às mulheres focaliza-
vam-se, tão-somente, nas temáticas relacionadas à maternidade.
Isto não é de modo algum surpreendente, já que, nesta senda, não
podemos descurar do fato de que em um passado recente, o entendi-
mento do feminino era resumido como a falta do falo; que, por muito
tempo, a menstruação estava ligada a doença e a impurezas, em que
pese esse fenômeno não era entendido, tampouco estudado a fun-
do, a menstruação era concebida como punição divina, somente pela
mulher ser o que é; que o útero era taxado como um animal que vivia
dentro delas, sempre com fome, condição que determinaria as carac-
terísticas tidas como intrínsecas femininas, tais como a sensibilidade,
a dissimulação, a sexualidade exacerbada, dentre outras. Não se tinha,
por conseguinte, a ciência de como o corpo feminino funcionava, tam-
pouco os cuidados básicos de saúde não eram direcionados ao femini-
no, abrindo uma grande fenda na saúde pública e no entendimento da
mulher como ser humano. Nesta perspectiva, conforme Gama,
Estudos internacionais também vêm apontando que a saúde
das mulheres é fortemente afetada pela extensão e pela quali-
dade dos serviços de saúde. Esses estudos identificam maiores
iniquidades de gênero o acesso aos serviços e na forma com que
homens e mulheres são tratados pelos sistemas de saúde. Em

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 69
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

primeiro lugar, as mulheres são as maiores usuárias dos serviços


de saúde, bem como compõem a maior parte dos trabalhadores
do sistema, entretanto, elas ainda estão pouco representadas nos
processo de decisão e de formulação de políticas públicas de saú-
de. Em segundo lugar, pouco cuidado é dispensado às desigual-
dades e às diferentes necessidades entre homens e mulheres na
definição da qualidade da atenção em saúde, ou seja, aos aspec-
tos de gêneros (2006, p. 80).
Mas, positivamente, ao longo das décadas, com o avanço de mo-
vimentos em torno dos Direitos Humanos, de movimentos específicos
tais como o feminista, a pauta de reivindicações foi modificada. Confor-
me as ciências em sentido amplo e a tecnologia iam se desenvolvendo,
o saber e o conhecimento se democratizavam e tornavam-se acessí-
veis, e, agora com mais consciência de si e de seu papel de agente de
transformação social e sujeito de sua própria história, aos poucos, as
mulheres passavam a tomar ciência de que o seu papel, sua biologia
e, até mesmo, sua biografia, não estavam adstritas àquelas balizas que
tradicionalmente orientavam sua existência, reivindicando seu espaço
e seus direitos para muito além do espectro doméstico e materno.
Posteriormente, com a tímida mas gradual inserção da mulher no
mercado de trabalho, políticas públicas relacionadas à sexualidade,
controle de natalidade e prevenção de doenças gerais passaram a inte-
grar a pauta estatal, perquirindo-se, hoje, a prevenção, proteção e ob-
tenção de qualidade de vida da mulher não como ser singular, mas de
acordo com suas peculiaridades (tais como estágio de vida, região do
país em que vive, critério racial, etc.)12.
A par destas considerações, temos que hoje, versar sobre gênero
no âmbito das políticas públicas, requer, também, um olhar atento para
as (re)construções em torno do corpo, dos sentimentos, da identidade,

12 Nos explica, Carneiro (2001), ser necessário que em qualquer planejamento de ações de saúde da
mulher, além do enfoque de gênero, sejam incorporadas também as questões relativas à raça/etnia,
ou seja, o “quesito cor” na saúde, porque eles diferenciam as necessidades de cada mulher, políticas
públicas devem ser criadas para atender as demandas da mulher negra que vive em situação de risco.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


70 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

da subjetividade, do papel social, político e ideológico, de novas repre-


sentações, simbologias, e desconstruções de conceitos e estereótipos
femininos e, “a partir de uma noção de saúde integral, a qualidade da
atenção estará referida ao conjunto de aspectos sociais, psicológicos,
biológicos, sexuais, ambientais e culturais do bem-estar” (GAMA, 2006,
p. 86).
Tendo como premissa a complexidade do conceito de saúde, no-
tadamente aquele positivado no art. 196 de nossa CRFB, e, os mais
completos e abrangentes pontos de partida para se entender e alcan-
çar uma noção de saúde integral, que contenha os elementos acima
delineados, é forçoso convir que as políticas públicas de atenção à saú-
de da mulher ainda estão muito aquém do esperado para um cenário
constitucional como o vigente.
Mais uma vez restringindo-se à esfera federal, da consulta ao sítio
do Ministério da Saúde, verificamos, em um primeiro momento, a exis-
tência da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, edi-
tada em 2004.Malgrado possa ser considerada evoluída, nota-se que
sua gestão e aplicação prática, mais de dez anos após sua primeira edi-
ção, se desenvolveu a passos lentos. Isto porque, no âmbito das esferas
estatais, o foco de atenção à mulher ainda é restrito a esferas primárias
como controle e métodos de contracepção, atendimento a gestantes
(pré-natal e acompanhamento da gestação, parto...)13. Veja-se que em
diversas passagens da cartilha da “PAISM”, o próprio ente estatal rela-
ciona as dificuldades de sistematização e abordagem individualizada e
plena da saúde da mulher. Tais dificuldades partem de diversos itens,
dentre os quais, listam-se os seguintes:

13 Da listagem de políticas e ações públicas de atenção integral da mulher, constante do sítio do


Ministério da Saúde, ainda é possível perceber quão distantes estamos de fornecer subsídios mínimos
para o alcance da saúde integral à mulher. No site < http://www.spm.gov.br/assuntos/saude-
integral-da-mulher/direitos-e-legislacao>, publicado 09/09/2014, última modificação 07/01/2015,
acesso em 17. Jul. 2017 elencam-se os seguintes direitos/ações contempladas: Atenção Obstétrica,
Atendimento prioritário à gestante, Acompanhamento durante o parto, Recebimento de ajuda do pai
do bebê,Atenção Clinica ginecológica, Ligadura de trompas (SUS), Câncer de mama e do colo do útero
gratuitos (SUS), Reconstrução de mamas e,Atenção em DTS, Aids e Hepatites Virais.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 71
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

1. A falta de estruturação e valores financeiros para dar conta da de-


manda em prol da saúde integral da mulher, cada momento mais ampla
e complexa (sinala-se que muitas das alterações legislativas no âmbito do
sistema público de saúde outorgaram considerável autonomia aos muni-
cípios para execução de tais demandas, porém, dentre as esferas estatais, é
sabido que as municipalidades são menos abastadas de recursos e condi-
ções de possibilidades para assumir com afinco este papel, embora não se
descure da importância dos municípios na adequação das demandas em
vista de sua proximidade com o perfil das destinatárias de saúde;
2. O despreparo que envolve os próprios profissionais de saúde,
ou, ainda, a própria falta de ferramental, estrutura e informações bá-
sicas para o correto desenvolvimento de suas atividades, notavelmen-
te, diante das novas tendências e problemáticas que acompanham o
conceito de saúde, hoje, a questão da qualidade de vida e os inéditos
avanços em torno da temática de gênero;
3. As dificuldades de angariar espaços públicos de debate demo-
crático em torno da temática gênero, considerando que ainda encon-
tra-se arraigada em nossa sociedade uma postura não raro patriarcal,
discriminatória, elitista e clientelista, o que se configura em resistência
à evolução de tais temáticas, tais como as novas, inéditas e ampliadas
demandas envolvendo gênero e saúde da mulher, ainda mais se for
considerado que ainda pugnamos, diariamente, por direitos básicos
dos quais muitos cidadãos brasileiros sequer têm acesso, revelando-se
o descompasso e a disparidade social nacional;
4. As dificuldades em uma sociedade plural, multicultural, comple-
xa e multifacetada, inserida em um ambiente demográfico pautado
pelas desigualdades e contrastes de história, de clima, de tradições, há-
bitos e costumes, de se elaborar perfis de usuárias do acesso à saúde
pública, de modo a contemplar o maior número de demandas no que
concerne à saúde integral da mulher;
Portanto, embora as evoluções em matérias de positivação de di-
reito ao acesso à saúde integral, de um lado, as ações estatais neste

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


72 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

sentido, de outro, das pressões levadas a cabo por movimentos espe-


cíficos, tal como o feminista, a questão do acesso integral à saúde da
mulher, meta primordial de um Estado de cunho social, tal como o bra-
sileiro, ainda está distante de se ultimar, já que as políticas públicas vi-
gentes ainda buscam resguardar temáticas muito primárias, deixando
de lado as considerações e propostas evolutivas que, desde a década
de 1960, tem instado o movimento feminista a pugnar pela ampliação
de sua tutela a cargo do Estado. Mas este processo em si jamais será
estanque, já que, ao fim e ao cabo, a própria“[...] saúde é um processo
sistêmico, significando que é uma meta a ser alcançada e que varia de
acordo com sua própria evolução e com o avanço dos demais sistemas
com os quais se relaciona, em especial o Estado e a própria sociedade”
(SCHWARTZ, 2001, p. 39).

Considerações finais

Com o advento do Estado Social de Direito muitas das demandas


civis se transformam, a preocupação com necessidades coletivas e a
ratificação dessas em forma de lei torna as obrigações Estatais signifi-
cativas. A responsabilidade de tornar o direito à saúde algo palpável e
de acesso universal faz com que medidas sejam tomadas de modo a re-
fletir na criação de leis e tratados para tal. Em que pese existam muitos
dispositivos legais que tratam da temática da saúde, é preciso mais do
que isso para que ela aconteça de verdade.
O desenvolvimento de forma global das atividades sociais e econô-
micas acarreta em uma série de inevitabilidades que começam a surgir.
Tendo em vista que a sociedade de 1820 estava direcionada para o la-
bor industrial, as péssimas condições de trabalho, as jornadas incessan-
tes de labor exaustivo e a pouca qualidade de vida e de contrapresta-
ção estatal, faz com que as mazelas de uma comunidade abandonada
socialmente e focada no viés econômico seja afetada diretamente por
problemas de saúde. Além de se tornar um grande inconveniente, a fal-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 73
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

ta de saúde e de dignidade da população incide diretamente nos lucros


destinados à nação. Ainda que a saúde tenha um caráter ulterior, uma
vez que sanava o indivíduo para recoloca-lo no labor, ela precisava ser
cuidada e evidenciada pelo Estado.
No decurso da evolução humana, a saúde passa a ser item de ex-
trema relevância social e indicadora de níveis governamentais de vi-
vência populacional. A partir da união da população em grupos sociais,
as reivindicações se tornam reflexo das debilidades civis. Em que pese
a valoração dos Direitos Humanos tenha se tornado muito mais reco-
nhecida a partir da promulgação dos Direitos do Homem e do Cida-
dão, os direitos femininos ficaram à margem da tomada de decisões.
Como resultado das lutas feministas, a inserção da mulher no mercado
de trabalho faz com que políticas públicas relacionadas à sexualidade,
controle de natalidade e prevenção de doenças integrem as discussões
estatais, repercutindo na contemporaneidade com a prevenção, prote-
ção e obtenção de qualidade de vida das mulheres de forma conjunta
mas respeitando as peculiaridades de cada grupo.
Apesar do esforço advindo do governo, muitas ainda são as fragili-
dadespara efetivar a saúde feminina, justamente por sua singularidade.
Dentre as dificuldades encontradas, a falta de estrutura e planejamen-
to econômico se destaca. Também, os profissionais da saúde algumas
vezes não estão preparados para atender as particularidades de cada
mulher. Outro fator de importância é a falta de debate sobre as relações
de gênero e sobre as dicotomias impostas por uma sociedade binária,
assim como o enfrentamento para a transformação social de forma
multicultural e multifacetada. Muito embora essa falta de informação
e de total desconhecimento perante a figura feminina ainda acarrete
em muitas demandas sem respostas, o debate de gênero e da própria
efígie da mulher vem sendo colocada no centro das discussões e das
políticas públicas, na tentativa de minimizar as desigualdades sociais e
de gênero que acometem a sociedade brasileira.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


74 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

Referências

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 75
ESTADO SOCIAL BRASILEIRO, DIREITO À SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS DE ATENÇÃO INTEGRAL À MULHER

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


76 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE


NO DIREITO CONSTITUCIONAL
CONTEMPORÂNEO

Claudine Rodembusch Rocha1


Jaqueline Tramontina Rhoden2

Considerações iniciais

O presente artigo aborda os Direitos Fundamentais no Sistema


Constitucional Brasileiro, tendo como enfoque os Direitos Fundamen-
tais e Sociais e especialmente o Direito à Saúde. Foi analisado o concei-
to de saúde, bem como as Políticas Públicas de Saúde, dentre as quais
se destaca o Sistema Único de Saúde (SUS).
A Constituição Brasileira de 1988 em seu Título II – Dos Direitos e
Garantias Fundamentais, através do artigo 6º, elencou diversos direi-
tos sociais, entre eles o Direito à Saúde, sendo direito de todos e de-
vedor do Estado (leia-se União, Estados, Distrito Federal e Municípios
solidariamente). A Carta Magna reservou ainda os artigos 196 a 200 que
tratam especificamente da prestação do direito à saúde, tamanha im-

1 Doutora pela Universidade Federal de Burgos-Espanha em Direito Público, Mestre em Direito pela
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Pós-graduada em Demandas Sociais e Políticas pela
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, Advogada, Professora da Pós-Graduação Lato Sensu em
Direito da Faculdade Imed, pólo Porto Alegre. E-mail: claudinerodembusch@yahoo.com.br.
2 Bacharel em Direito pela Universidade FEEVALE, Assessora de Secretaria, vinculada à Secretaria
Municipal da Saúde e Assistência Social da cidade de Feliz/RS. E-mail: jaquelinet.rhoden@gmail.com.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 77
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

portância do tema, tendo inclusive criado, dentro da própria Constitui-


ção algumas competências do Sistema Único de Saúde, com base nos
princípios da universalidade, igualdade e integralidade.
De tal forma, através do método de pesquisa doutrinário e juris-
prudencial, o presente artigo abordou os Direitos Fundamentais no
Sistema Constitucional Brasileiro, tendo como enfoque os Direitos Fun-
damentais e Sociais e especialmente o Direito à Saúde. Foi analisado o
conceito de saúde, bem como as Políticas Públicas de Saúde, dentre as
quais se destaca o Sistema Único de Saúde (SUS).

1 Direitos fundamentais no sistema constitucional


brasileiro

1.1 O Direito à Saúde

Uma das finalidades essenciais do Estado, bem como razão de sua


existência, pode ser considerada a proteção da vida e da integridade
física do ser humano. Existe uma forte relação do direito à vida com
outros direitos fundamentais, como podemos apreciar no que segue.
Dignidade da pessoa humana e vida possuem relação, porém não se
confundem, em virtude do valor da vida segundo o ordenamento jurí-
dico e também porque “a vida é o substrato fisiológico (existencial no
sentido biológico) da própria dignidade, mas também de acordo com
a premissa de que toda a vida humana é digna de ser vivida”. (SARLET,
2011, p. 354).
Outra relação que pode ser percebida é a conexão entre o direito à
integridade física (corporal) e psíquica e o direito à vida. Muito embora
esses direitos devam receber tratamentos autônomos, Sarlet (2011) in-
dica uma quase identidade entre eles. Isso porque a violação do direito
à vida sempre contará também com a violação da integridade física e
corporal e ao mesmo tempo quando a integridade física é afetada pode
inclusive dar causa à violação do direito à vida.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


78 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

O direito à saúde também possui forte conexão com a tutela à vida,


muito embora eles não devam ser confundidos, pois
[...] o direito à vida não pode ser lido de forma a abranger a ampla
proteção à saúde, o que é relevante especialmente em ordens
constitucionais como a alemã ou a norte-americana, onde apesar
de estar consagrado o direito à vida, não há menção explícita a
um direito à saúde. Por outro lado, a ligação cresce em importân-
cia quando, diante da ausência de previsão de um direito à saúde,
o direito à vida (naquilo que evidentemente guarda relação com
o direito à saúde) opera como fundamento para o reconhecimen-
to de obrigações com a saúde.(...) Em síntese, isso significa que a
partir do direito à vida (o mesmo no caso do direito à integridade
corporal) são deduzidos deveres estatais de proteção e promo-
ção da saúde. (SARLET, 2011, p. 354-355).
Schwartz (2001, p. 52-53) cita o entendimento de Costa, definindo
o direito à saúde, como um direito absoluto, em virtude de vincular-se
e possuir a mesma categoria jurídica do direito à vida, sendo portanto,
“irrenunciável, intransmissível, indisponível e extrapatrimonial”.
Pode-se afirmar que é relacionado ao direito à saúde que percebe-
mos o maior vinculo, referente à proteção e promoção da saúde, com
o direito à vida e a dignidade da pessoa humana. Para Schwartz (2001)
existe uma íntima ligação entre o Estado Democrático de Direito e a
saúde, devendo o Brasil, por obrigação do texto constitucional, concre-
tizar ações para uma aplicação efetiva da saúde, sendo ela um instru-
mento de justiça social.
Segundo Figueiredo, os efeitos do direito à saúde podem ser reco-
nhecidos tanto nas relações de direito público, quanto entre particulares:
O direito fundamental à saúde alcança a proteção do indivíduo
pela garantia de condições de vida, de meio ambiente e de traba-
lho que não comprometam esse bem essencial, bem como pela
existência de estruturas públicas voltadas à prestação de cuida-
dos adequados à manutenção e à recuperação do bem-estar pes-
soal. (2007, p. 95).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 79
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

Apesar da expressão legal do direito à saúde, existem dificuldades


em identificar os efeitos que podem ser extraídos da norma, estabele-
cendo mais exatamente o objeto do direito à saúde, bem como limites
subjetivos e objetivos. Dentro do mesmo contexto surge o questiona-
mento de qual a limitação quanto à exigência da prestação particular
perante o Estado, bem como qual a possibilidade do poder público re-
conhecer um direito individual subjetivo, sendo obrigado a realizar a
prestação do mesmo, existindo o questionamento e divergência sobre
quais níveis devem ser garantidos pelo Estado:
[...] pergunta-se se o particular (qualquer um ou apenas os que
comprovarem carência de recursos para a manutenção de um
plano de saúde privado?) poderá ter acesso, por exemplo, além
dos serviços essenciais na esfera médica, a atendimento odon-
tológico, psicológico, serviços de fisioterapia etc. Ademais, será o
Estado obrigado a prestar saúde de acordo com os padrões míni-
mos, suficientes, em qualquer caso, para assegurar a eficácia das
prestações, ou terão os particulares direito a serviços gratuitos
da melhor qualidade (equipamentos de última geração, quarto
privativo em hospitais etc.). (SARLET, 2011, p. 577-578).
Ao encontro do tema existe o dilema sobre o dever do Estado de
garantir apenas o mínimo necessário para a prestação do direito à saú-
de, ou se deve, assegurar o direito ao acesso de ótimo padrão a todos
os serviços de saúde.
Conforme Sarlet (2011, p. 579), o direito assegurado pela Constitui-
ção é do acesso ao sistema público de saúde a todos, porém não que
qualquer sujeito, independente da situação, terá o direito de receber
do Estado “qualquer prestação que envolva proteção de sua saúde”.
Ainda complementando que o “simples argumento de que quem con-
tribui (impostos) já está a pagar pelo acesso à saúde pública não pode
vingar no contexto de uma sociedade acentuadamente desigual”.
Para Schwartz (2001), o direito à saúde poderá ser objeto de tutela
judicial, ou mesmo administrativa, para os casos em que o Estado não

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


80 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

cumpra com o seu dever de garantir tal direito, visto a saúde ser consi-
derada um direito público subjetivo. Sarlet (2011, p. 582-583) corrobora
com o entendimento elucidando que, em se tratando o direito à saúde
de uma garantia fundamental (e direito subjetivo), exigível judicialmen-
te, segundo entendimento dos Tribunais Superiores, o Brasil destaca-se
quanto ao número e diversidade de ações judiciais envolvendo o direi-
to à saúde, assim como o número de condenações à que foi sujeito o
Poder Público. A “judicialização da saúde”, porém tem se tornado um
fenômeno em escala mundial, merecendo especial atenção, tendo em
vista o impacto dessas decisões sobre o orçamento público, bem como
o sistema de políticas públicas.

1.2 O conceito de saúde

A Organização Mundial da Saúde define, no preâmbulo de sua


Constituição, a saúde como “um estado de completo bem-estar físico,
mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de en-
fermidade”. (CONSTITUIÇÃO DA OMS, 2013). Já a Constituição Federal
de 1988 delimita que o direito à saúde deverá ser garantido pelo Esta-
do, através de políticas que objetivem a redução do risco de doença e
outros agravos, bem como o acesso igualitário às ações e serviços para
promoção, proteção e recuperação da saúde. Essa disposição é reite-
rada pelo §1° do artigo 2° da Lei n° 8.080 de 19 de setembro de 1990.
(2013). O artigo 3° da lei citada complementa as disposições gerais da
mesma, delineando, exemplificadamente, os fatores determinantes e
condicionantes de saúde: alimentação, moradia, saneamento básico,
meio ambiente, trabalho, renda, educação, transporte, lazer e acesso
aos bens e serviços essenciais.
Conforme Cruz (2009, p. 29), “o processo saúde-doença é um con-
ceito central da proposta de epidemiologia social, que procura caracte-
rizar a saúde e a doença como componentes integrados de modo dinâ-
mico”, onde “cada situação de saúde específica, individual ou coletiva,

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 81
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

é o resultado, em dado momento, de um conjunto de determinantes


históricos, sociais, econômicos, culturais e biológicos”. A autora com-
plementa ainda, dispondo o entendimento de Rouquayrol, segundo o
qual deve ser dada atenção ao “estudo da estrutura socioeconômica,
a fim de explicar o processo saúde-doença de maneira histórica, mais
abrangente, tornando a epidemiologia um dos instrumentos de trans-
formação social”.
Figueiredo (2007, p. 89-90) cita o entendimento de Morais, de que
a essência do conceito de saúde é a qualidade de vida. A saúde é um
direito de cidadania, já que tem por objetivo a promoção da vida. A
autora complementa ainda, citando a concepção de direito à saúde,
que para Milanez, “compreenderia as obrigações de respeitar, proteger
e implementar.” Quanto ao respeito, cabe a não intervenção do ente
público, com vistas a não reduzir a saúde das pessoas. Sobre a proteção
cabe ao Estado a defesa da saúde do indivíduo em oposição à violação
dela por terceiros. Finalmente quanto à implementação cabe ao Estado
subsidiar serviços e bens que atendam às necessidades essenciais do
direito à saúde.
Somente em 1988, 40 anos após a Declaração Universal dos Direi-
tos do Homem, que o Brasil, através da chamada Constituição Cidadã,
assegurou constitucionalmente o direito à saúde. Schwartz (2001, p.
47-48) afirma que é “cristalino o atraso constitucional brasileiro no que
tange à colocação do direito à saúde, como princípio constitucional e
elemento de cidadania dos brasileiros”.
A dimensão da importância da proteção do direito à saúde pode ser
visualizada pela forma com que o mesmo foi tratado na Constituição
de 1988, onde o legislador destinou uma seção do capítulo, referente à
Seguridade Social (Título VIII – Da Ordem Social – Capítulo II – Seção II),
para tratar exclusivamente da tutela desse direito, dispondo:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garanti-
do mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


82 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e re-


cuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde,
cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua re-
gulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser
feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa
física ou jurídica de direito privado.
Nessa esteira, Lima (2009, p. 110) afirma que estabelecer as obriga-
ções sociais do Estado para com o indivíduo pode ser considerado um dos
fatos mais importantes da Carta Magna de 1988: “as previsões atinentes
a saúde (art. 196, CF), educação (art. 205, CF) etc., estão na condição de
direitos públicos subjetivos e deveres estatais para com a coletividade”.
A Carta Magna também cria o Sistema Único de Saúde, fixando as dire-
trizes do mesmo (descentralização, atendimento integral e participação da
comunidade)3, oportunizando ainda a participação da iniciativa privada,
em nível complementar4 e exemplifica as atribuições do próprio SUS:
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atri-
buições, nos termos da lei:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de
interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos,
equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica,
bem como as de saúde do trabalhador;

3 Art. 198 - CF/88: As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada
e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais;
III - participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da
seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.
4 Art. 199 - CF/88: A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde,
segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as
entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 83
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;


IV - participar da formulação da política e da execução das ações
de saneamento básico;
V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento cien-
tífico e tecnológico e a inovação;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle
de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consu-
mo humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte,
guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxi-
cos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendi-
do o do trabalho.
No próximo tópico serão abordadas as políticas públicas, através das
quais o Poder Público busca a concretização de parte dos direitos funda-
mentais, inclusive o direito à saúde, conforme previsto na Carta Magna.

2 Políticas públicas

As Políticas Públicas, conforme Bucci (2002, p. 241), são “programas


de ação governamental visando a coordenar os meios de disposição do
Estado e as atividades para realização de objetivos socialmente relevan-
tes e politicamente determinados”. Assim, podemos entendê-las como
um conjunto organizado de normas e atos (atividade governamental)
destinado à realização de objetivos previamente determinados.
Santos (2006, p. 80) divide as políticas públicas em três elementos
centrais: busca de metas, objetivos ou afins; utilização de meios ou ins-
trumentos legais; temporalidade (de forma a realizar-se uma atividade
– contínua – e não um simples ato). Segundo a autora, esses elementos
“formam uma noção dinâmica de atividade, pela qual pode-se definir
políticas públicas simplesmente como o conjunto organizado de nor-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


84 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

mas e atos tendentes à realização de um fim público determinado”. (grifo


da autora).
Dandolini (2005, p. 161) utiliza-se das lições de Frischeisen e
Cappelletti, afirmando que a implementação das políticas públicas pre-
vistas na ordem constitucional cabe ao administrador, sem julgamento
de oportunidade e/ou conveniência, pois o mesmo já foi definido pelo
legislador, de forma que “a Constituição deixa de ser vista como mera
proclamação de intenções político-filosóficas e se afirma como norma
jurídica, vinculante e superior à lei ordinária”.
Assim, o Estado realiza através das políticas públicas uma atuação
positiva, para a efetivação dos Direitos Fundamentais, previstos consti-
tucionalmente. A definição dessas políticas porém, não advêm de um
processo simples, muito pelo contrário. A definição das políticas públi-
cas fazem parte “do processo político de escolha de prioridades para
o governo”, trazendo consigo, consequentemente, uma carga política
elevada, o que torna o processo de definição ainda mais complexo.
(SCHWARTZ , 2006, p. 161).
Para Bucci (2002, p. 250-251), porém, é de fundamental importân-
cia que se conheça os princípios jurídicos que norteiam a Administra-
ção Pública, em virtude de serem necessários inúmeros instrumentos
administrativos para a efetiva execução das políticas públicas. A auto-
ra conclui que “o direito administrativo interessa às políticas públicas,
assim como as políticas públicas interessam ao direito administrativo,
devendo haver, portanto, uma aproximação entre as noções de direito
público e política pública”.
Limberger (2009, p. 190) complementa o entendimento, explican-
do que mesmo tratando as políticas públicas como “arranjos comple-
xos, típicos da atividade político-administrativa”, e não de uma catego-
ria instituída e definida pelo direito, este deve estar preparado para in-
tegrar a atividade política ao universo jurídico, já que “a política pública
visa à implementação pelo Poder Executivo de um comando constitu-
cional”. (2009, p. 193).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 85
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

Segundo Costa (2013, p. 451), o planejamento de políticas públi-


cas constitui-se como instrumento essencial ao governo, na medida
em que serve a redução das desigualdades econômicas e sociais, pro-
pondo-se a “assegurar o pleno gozo do direito à dignidade humana”.
Portanto, a definição de tais políticas públicas, é função dos poderes
Legislativo e Executivo (prerrogativa decorrente da democracia repre-
sentativa/participativa), devendo o Estado promover o bem-estar so-
cial, através do planejamento e concretização dos direitos protegidos
constitucionalmente. (SCHWARTZ, 2006).
No mesmo contexto, Santos discorre sobre as competências dos
poderes Legislativo e Executivo quanto às políticas públicas:
[...] ao Legislativo cabe o papel central de definição das políticas
públicas, mediante especificação das diretrizes constitucionais.
Isso por uma questão democrática e de separação de poderes,
pois o Legislativo é encarregado de dar expressão à soberania po-
pular. Mas quando a liberdade e igualdade formais da lei deixam
de legitimar o poder, essa legitimidade poderá passar a se fundar
basicamente na realização de finalidades públicas concretizadas
programaticamente, isto é, na adoção de políticas públicas, o que
se dá pelo Executivo, que assim passa a ter maior destaque, afe-
tando a harmonia e o equilíbrio entre os poderes. (2006, p. 88-89).
Sendo a saúde um direito previsto na Constituição Federal de 1988,
conforme já elucidado, tendo o texto constitucional inclusive referido
a concretização desse direito através de políticas públicas de saúde, se-
gundo Schawartz e Ractz, as mesmas “devem ser de forma organizada,
planejada, a fim de atingir os objetivos consagrados constitucional-
mente, e assim, a efetivação desse direito”. (2006, p. 163-164).
Ademais, especificamente sobre Políticas Públicas de Saúde, o art.
2º, §1º da Lei nº 8.080 de 1990, estabeleceu que
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formu-
lação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à
redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabe-
lecimento de condições que assegurem acesso universal e igua-
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
86 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

litário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e


recuperação. (BRASIL, 2013).
Nesse contexto, afirma Damião (2010, p. 315), que “as linhas gerais
das políticas públicas estão previstas na Constituição Federal”, consti-
tuindo projetos que ultrapassem um mandato de governo, ou seja, são
projetos de longo prazo, mesmo que relacionados “com a qualidade do
processo administrativo que a antecede e que a implementa”. A autora
(2010, p. 316) complementa ainda, que em virtude de a própria Carta
Magna definir o Sistema Único de Saúde como “instrumento de concre-
tização do direito à saúde”, as políticas públicas de saúde já não podem
ser consideradas meras normas programáticas.
Assim, o Estado tem o dever de formular e executar as chamadas
políticas públicas de saúde, as quais versam sobre as diferentes formas
de fornecimento das diversas prestações preventivas, curativas, ou de
promoção da saúde, como por exemplo, o fornecimento de medica-
mentos, suplementos alimentares, ou custeio de tratamentos.
Conforme estudo do Ministério da Saúde (2008), as políticas públi-
cas de saúde podem ser analisadas através de seis aspectos. A primei-
ra etapa diz respeito quanto à segurança de determinado produto ou
serviço a ser disponibilizado. A segunda versa sobre a eficácia, ou seja,
qual o efeito global que pode ser alcançado a partir de determinada
intervenção. O terceiro aspecto é referente ao efeito real da interven-
ção, ou seja, a efetividade. O quarto aspecto analisa a eficiência do pro-
cedimento, ou seja, a efetividade mais os recursos necessários para a
prestação do mesmo. Já a quinta etapa considera a disponibilidade do
procedimento para quem dele necessita. E oúltimo aspecto é referente
à distribuição das tecnologias, analisando perdas e ganhos na escolha
de uma intervenção em substituição a outra.
No próximo tópico será abordada brevemente a maior Política Pú-
blica de Saúde do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), bem como
seu funcionamento.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 87
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

2.1. O Sistema Único de Saúde

O Sistema Único de Saúde (SUS), conforme já mencionado foi uma


criação da Constituição Federal de 1988, resultado de um longo processo
histórico e social, marcado por inúmeros movimentos sanitaristas. Nos
artigos 198, 199 e 200 da Constituição Federal de 1988 encontram-se as
diretrizes e atribuições do SUS. Mais tarde, em setembro de 1990 houve
a promulgação da Lei 8.080, que regulamenta o artigo 200 da CF, dispon-
do sobre as condições de promoção, proteção e recuperação da saúde,
bem como acerca da organização e funcionamento dos serviços, sendo
a mesma complementada pela Lei 8.142 de dezembro do mesmo ano.
O novo formato do SUS prevê uma descentralização das responsa-
bilidades, de forma a envolver todas as esferas de governo:
A nova concepção do sistema de saúde, descentralizado e ad-
ministrado democraticamente com a participação da sociedade
organizada, prevê mudanças significativas nas relações de poder
político e na distribuição de responsabilidades entre o Estado e a
sociedade e entre as distintas esferas de governo – nacional, es-
tadual e municipal –, cabendo aos gestores setoriais papel funda-
mental na concretização dos princípios e das diretrizes da refor-
ma sanitária brasileira. (CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS
DE SAÚDE, 2011, p. 32).
As funções da gestão do SUS podem ser definidas como um “con-
junto articulado de saberes e práticas de gestão necessários para a im-
plementação de políticas na área de saúde”. (MACHADO, 2009, p. 56-
57). Nesse sentido podemos identificar quatro macrofunções gestoras
na saúde:
* formulação de políticas/planejamento;
* financiamento;
* coordenação, regulação, controle e avaliação (do sistema/redes
e dos prestadores públicos ou privados);
* prestação direta de serviços de saúde. (MACHADO, 2009, p. 59).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


88 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

Para que possam ser definidos os papeis e atribuições de cada esfera


de governo na gestão dos SUS, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990)
estabeleceu atribuições comuns às três esferas5, bem como as exclusi-
vas à União6, Estados7 e Municípios8.

5 Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo,
as seguintes atribuições:
[...]
I - administração dos recursos orçamentários e financeiros destinados, em cada ano, à saúde;
[...]
V - elaboração de normas técnicas e estabelecimento de padrões de qualidade e parâmetros de custos
que caracterizam a assistência à saúde;
[...]
VIII - elaboração e atualização periódica do plano de saúde;
IX - participação na formulação e na execução da política de formação e desenvolvimento de recursos
humanos para a saúde;
X - elaboração da proposta orçamentária do Sistema Único de Saúde (SUS), de conformidade com o
plano de saúde;
[...]
XVIII - promover a articulação da política e dos planos de saúde;
XIX - realizar pesquisas e estudos na área de saúde;”
6 Art. 16. A direção nacional do Sistema Único da Saúde (SUS) compete:
[...]
III - definir e coordenar os sistemas:
a) de redes integradas de assistência de alta complexidade;
b) de rede de laboratórios de saúde pública;
c) de vigilância epidemiológica; e
d) vigilância sanitária;
[...]
X - formular, avaliar, elaborar normas e participar na execução da política nacional e produção de
insumos e equipamentos para a saúde, em articulação com os demais órgãos governamentais;
XI - identificar os serviços estaduais e municipais de referência nacional para o estabelecimento de
padrões técnicos de assistência à saúde;
XII - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde;
XIII - prestar cooperação técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o
aperfeiçoamento da sua atuação institucional;
[...]
XV - promover a descentralização para as Unidades Federadas e para os Municípios, dos serviços e
ações de saúde, respectivamente, de abrangência estadual e municipal;
[...]
XIX - estabelecer o Sistema Nacional de Auditoria e coordenar a avaliação técnica e financeira do SUS
em todo o Território Nacional em cooperação técnica com os Estados, Municípios e Distrito Federal.
7 Art. 17. À direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) compete:
I - promover a descentralização para os Municípios dos serviços e das ações de saúde;
II - acompanhar, controlar e avaliar as redes hierarquizadas do Sistema Único de Saúde (SUS);
[...]
IX - identificar estabelecimentos hospitalares de referência e gerir sistemas públicos de alta
complexidade, de referência estadual e regional;
8 Art. 18. À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:
I - planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços
públicos de saúde;

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 89
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

Tal descentralização permite uma maior participação da população


nas decisões sobre as políticas de saúde, tendo em vista a criação de
uma série de instâncias de negociação que envolve os três níveis de
gestão, inclusive com espaços de representação para que possam ser
levados os interesses da sociedade em geral. (MACHADO, 2009).
Em se tratando da participação social uma das diretrizes do Siste-
ma Único de Saúde, a participação dos Conselhos de Saúde (seja Mu-
nicipal, Estadual ou Nacional) e a realização de Conferências de Saúde
(igualmente nos três níveis de gestão) “são os principais mecanismos
legais que asseguram a participação da comunidade e o controle social
do setor”. Dessa forma os “conselheiros de saúde, em conjunto com os
gestores e outros atores estratégicos, têm a responsabilidade de facili-
tar e acelerar a definição de prioridades e tomar as medidas necessárias
para atendê-las”. (GOULART , 2012, p. 16-17).
Para SCHWARTZ (2001, p. 108), a diretriz do atendimento integral,
também considerada um princípio, “significa que todas as ações e ser-
viços de saúde (promoção, proteção ou recuperação) são uma realida-
de una, e, portanto, inseparável, constituindo-se em um todo que atua
de modo harmonioso e contínuo”.
Segundo Gondim e Bomfim, existindo a fundamentação de um sis-
tema de saúde na integralidade da atenção, devendo entre as estraté-
gias adotadas
[...] estar desenhados os percursos assistenciais realizados pelo
maior número de pessoas decorrentes de situações de saúde
II - participar do planejamento, programação e organização da rede regionalizada e hierarquizada do
Sistema Único de Saúde (SUS), em articulação com sua direção estadual;
[...]
IV - executar serviços:
a) de vigilância epidemiológica;
b) vigilância sanitária;
c) de alimentação e nutrição;
d) de saneamento básico; e
e) de saúde do trabalhador;
[...]
X - observado o disposto no art. 26 desta Lei, celebrar contratos e convênios com entidades prestadoras
de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução;

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


90 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

semelhantes, conforme o que se chamou de “linhas de cuida-


do”, construídas, preferencialmente, com base na atenção bási-
ca. A concepção de linhas de cuidado deve representar, neces-
sariamente, um continuum assistencial composto por ações de
promoção, prevenção, tratamento e reabilitação e pressupõe
um conjunto de ações orientadas pelas necessidades de saúde.
(2009, p. 103).
Assim, delineando as linhas do cuidado, torna-se possível definir
uma programação local de saúde, de acordo com as necessidades
identificadas, de forma a caracterizar um espaço coletivo de desenvol-
vimento de ações em saúde.
De acordo com o princípio da universalidade, os serviços ofereci-
dos pelo Sistema Único de Saúde devem estar acessíveis a todos os
brasileiros, não podendo ser restringido. Essa oferta, porém, deve ba-
sear-se em protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, formando um
conjunto de serviços sanitária e socialmente necessários.

Considerações finais

O presente trabalho objetivou analisar que a partir das garantias


constitucionais de 1988, ocorreu uma grande evolução sanitária no Bra-
sil, tendo em vista que esse direito passou a ser assegurado constitucio-
nalmente. A Constituição Federal de 1988 não define especificamente
o conceito de direito à saúde, mas identifica-se como conceito para tal,
embora também subjetivo, o utilizado pela Organização Mundial da
Saúde, segundo o qual a saúde não é apenas a ausência de doença ou
enfermidade, mas um estado de completo bem estar, abrangendo os
elementos físico, mental e social.
Constatou-se ainda que as Políticas Públicas constituem-se como
instrumento essencial de governo, visto que as mesmas se prestam à
redução de desigualdades econômicas e sociais, além de instrumenta-
lizar meios para a concretização dos direitos previstos na Carta Marga.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 91
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

Nesse contexto, concluiu-se que o Sistema Único de Saúde (SUS),


constitui-se como uma das mais importantes (se não a mais importan-
te) Políticas Públicas na área do direito à saúde, possuindo como dire-
trizes principais o acesso universal e integral, além da descentralização
e participação social. O Sistema prevê a descentralização das responsa-
bilidades, de forma a envolver todas as esferas de governo.

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 93
A POSITIVAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO DIREITO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


94 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A
SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE
PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Fabiana David Carles1


Sabrina Cassol2

Considerações iniciais

Abordar a temática da judicialização da saúde – referindo-se aqui


a generalidade que a assunto necessita –, tornou-se tarefa demasia-
damente delicada, porque o movimento doutrinário e jurisprudencial
brasileiro no sentido da busca de efetivação daquilo que se pode deno-
minar de “insinceridade” normativa da Constituição clarificou o caráter
imperativo das normas – inclusive das normas constitucionais – na bus-
ca do reconhecimento da força normativa das normas constitucionais.
A partir daí os teóricos da ciência do direito começaram a traçar as
linhas mestras que levaram a constatação da fundamentalidade dos di-
reitos sociais e em contrapartida estabeleceram que enquanto direitos

1 Fabiana David Carles. Doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PUC/SP; Mestre em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília - UNIVEM; Professora de
Direito da Universidade Federal do Acre – UFAC; Advogada. E-mail: fabi.carles@gmail.com.br
2 Sabrina Cassol. Mestre em Direito; Especialista em Direito Processual Civil; Professora de Direito da
UFAC – Universidade Federal do Acre, UNINORTE – União Educacional do Norte e IESACRE – Instituição
de Ensino Superior do Acre; Advogada. E-mail: binacassol@yahoo.com.br

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DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 95
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

fundamentais contidos nas normas constitucionais deveriam ter apli-


cação imediata, baseando-se na disposição constante no §1º do artigo
5º da Constituição Federal Brasileira.
Devidamente delineada a necessidade de efetivação dos preceitos
contidos na Carta Magna, houve uma abertura do sistema para a per-
cepção de que aos direitos previstos e não efetivados pela Administra-
ção Pública seria possível buscar a tutela jurisdicional dada a omissão
estatal no cumprimento dos ditames constitucionais.
No âmbito do direito à saúde e do fornecimento gratuito de me-
dicamentos pelo Estado que não constavam na lista do SUS, o Poder
Judiciário passou a ter um papel ativo e decisivo nas ações propostas
individual e coletivamente que visavam a satisfação de direitos relati-
vos à saúde.
O aumento significativo das demandas judiciais por “saúde” origi-
nou o que se conhece atualmente como judicialização da saúde, e a
este fenômeno estão sendo tecidas diversas críticas acarretando o sur-
gimento de divergências inclusive no âmbito da doutrina e da jurispru-
dência nacional.
Com base no contexto apresentado passou-se a indagar: afinal,
houve um desvirtuamento da função jurisdicional no intento de “obri-
gar” a Administração Pública a efetivação dos direitos sociais presta-
cionais, em especial o direito à saúde? É possível manter a vinculação
aos princípios do acesso universal e igualitário do direito à saúde sem a
observância de critérios de judicialização bem delineados?
Para estudar os questionamentos apresentados achou-se por bem
fundamentar o estudo da temática proposta a partir das decisões judi-
ciais, isto é, dos recentes posicionamentos do STJ e STF.

1. Direito Social à Saúde como Direito Fundamental Social

Estudar o direito à saúde e o fenômeno contemporâneo da judi-


cialização deste direito contempla inicialmente a necessidade de com-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


96 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

preensão da fudamentalidade inerente a ele ao lado do estudo dos


compromissos implícitos e explícitos no Texto Magno, como se fará no
presente título.
O texto constitucional de 1988 está repleto de direitos tidos como
fundamentais com um rol extenso de direitos fundamentais estes aca-
baram sendo doutrinariamente divididos em dimensões relativamente
ao contexto histórico que os originaram somados a postura estatal re-
querida por estes direitos. Não é de hoje que se sabe a posição do direi-
to à saúde dentro do rol de direitos sociais, direitos estes conceituados
como prestacionais, os quais necessitam de uma atuação positiva por
parte do Estado a fim de garantir sua efetivação.
Evidente é o fato de que o direito social à saúde faz parte do rol de
direitos fundamentais contidos no texto constitucional. Logo, a ele foi
dada a proteção jurídica diferenciada atinente ao catálogo dos direitos
fundamentais.
Em contrapartida a esse fato Sarlet (2007), revela que ao consagrar
o direito à saúde como direito fundamental da pessoa humana a Cons-
tituição Federal de 1988 clarificou a necessidade de se leva-lo a sério.
A tese da fundamentalidade resvala nos aspectos formal e material
apresentados pela doutrina, na qual busca compreender a extensão
dessa previsão.
Segundo Sarlet e Figueiredo (2010)o vínculo dos direitos funda-
mentais aos aspectos formal e material da fundamentalidade, advém
do seu caráter de bens jurídicos que, para o constituinte, são intrinseca-
mente dotados de relevância e essencialidade, independentemente se
expressos ou implicitamente enunciados no texto constitucional, logo
carecem de uma proteção jurídica e normatividade diferenciada, mais
precisamente superior a outras normas constitucionais.
Do conceito de fundamentalidade formal pode-se extrair ao menos
três elementos basilares para sua construção, inicialmente o fato dos
direitos sociais constarem formalmente no texto constitucional – assim
como direito à saúde – e integrarem o topo de todo ordenamento, ade-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 97
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

mais enquanto normas constitucionais fundamentais os direitos sociais


submetem-se aos limites formais – que regram o procedimento de al-
teração das normas constitucionais –, somado aos limites materiais da
reforma constitucional, e, por fim, destaca-se que o artigo 5º, parágrafo
único, da Carta Magna, determina que as normas que tenham como
conteúdo direitos e garantias fundamentais devem ser aplicadas de
forma imediata e tem o poder de vincular diretamente tantos as enti-
dades estatais quantos os particulares.
Nesse sentido, Figueiredo (2017, p. 222 – 223) afirma que
A fundamentalidade do direito à saúde está calcada, em termos
materiais, na relevância da saúde como condição fática essencial
para a manutenção da vida humana e fruição, pelo indivíduo, dos
demais direitos, fundamentais ou não.
[...]
[...] a fundamentalidade formal do direito à saúde decorre do re-
gime jurídico de proteção reforçada que lhe foi outorgado pelo
texto constitucional, abrangendo: (a) a superior hierarquia axio-
lógica de que gozam os direitos fundamentais, entre os quais
está a saúde, uma vez que refletem a opção constitucional por
uma certa e determinada ordem de valores, vigentes e acorda-
dos pela sociedade em certo momento; (b) a especial salvaguar-
da do direito à saúde na hipótese de reforma constitucional, que
se dá pela exigência de um procedimento legislativo agravado
e complexo para a modificação dos dispositivos constitucionais
que o consagram (limites formais), assim como pela salvaguarda
do próprio conteúdo dessas normas, notadamente por traduzi-
rem decisões fundamentais do constituinte originário (limites
materiais); (c) a aplicabilidade direta e imediata das normas cons-
titucionais que consagram e densificam o direito à saúde, numa
interpretação conjugada das cláusulas insertas nos §§ 1º e 2º do
artigo 5º da Constituição Federal.
Dada a relevância do direito à saúde para uma vida com dignida-
de, apresenta-se como um ponto que dispensa maiores comentários

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


98 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

o caráter fundamental do direito à saúde. Ademais, enquanto direito


social fundamental, deve, em princípio, ser considerado como dotado
de plena eficácia e, não obstante, direta aplicabilidade.

2. A reserva do possível e o mínimo existencial: aspectos


gerais

Tendo em vista que o presente trabalho propõe uma análise do


arcabouço teórico atinente à prestação do direito à saúde, conjunta-
mente com o fornecimento de medicamentos fora a lista do SUS, deli-
neando o contraponto da teoria e de suas implicações práticas a partir
da análise das recentes decisões judiciais sobre a temática, passar-se-á
apresentação dos aspectos gerais dos princípios da reserva do possível
e do mínimo existencial. Não obstante, para apresentação de uma co-
erência textual no padrão exigido para a escrita científica os primeiros
apontamentos versarão sobre e reserva do possível e posterior do mí-
nimo existencial, como se segue.
É fato que o conceito da reserva do possível encontra-seno limítro-
fe à realização dos direitos sociais, que são o princípio da legalidade e o
princípio da legalidade orçamentária. (NUNES, 2009)
Logo, tem-se de um lado o princípio da legalidade orçamentária
que expressa a própria ideia de liberdade, pois é também o princípio
de limitação do poder do Estado e, do outro, a legalidade orçamentá-
ria que não confunde-se com a administrativa. O orçamento autoriza a
despesa pública, que realiza-se de acordo com as leis administrativas.
(TORRES, 2000)
Com efeito, não se pode fechar os olhos para a possibilidade da
utilização da reserva do possível advenha da efetiva falta de recursos
que respeita a ordem fática, é um impedimento que traz dificuldade se
questionado. “Cabe esclarecer que esta insuficiência de recursos deve
ser provada e não apenas alegada, sob pena de responsabilidade do
administrador”. (CALIENDO, 2010, p. 180)

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 99
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

O problema no âmbito do direito à saúde é o fato deste fazer parte


do rol de direitos sociais prestacionais que por inúmeras vezes encon-
tram seu óbice na falta de recursos suficientes para suprir a demanda
social. (SARLET; FIGUEIREDO, 2010)
O problema de efetivação dos direitos sociais prestacionais acabou
os condicionando ao que se denominou de reserva do possível, cuja
compreensão em sentido amplo, abrange fatores estranhos a escassez
orçamentária determinantes a não efetivação dos direitos em pauta.
(AMARAL, 2010)
Sarlet (2009) ressalta que aos direitos sociais prestacionais é impres-
cindível prestações fáticas e jurídicas, com vistas a proteção da pessoa
contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência
com dignidade, verificação que, em linhas gerais, tem-se utilizado como
base de um direito fundamental a um mínimo existencial, no sentido de
ser dado aquele que precisa um conjunto de prestações que lhe asse-
gure não apenas a vida, mas sim uma vida digna. O conceito de mínimo
existencial apresentado pelo autor não coaduna com o conceito de míni-
mo vital, indispensável a garantia da sobrevivência do indivíduo.
A justificativa do Estado quando da promoção de um mínimo exis-
tencial diz respeito a tentativa de sanar as desigualdades e, por conse-
guinte alcançar a dignidade para os indivíduos enquanto seres huma-
nos que convivem em sociedade.
Segundo Torres (2000), o conteúdo do que vem a ser o mínimo
existencial não é específico e esse fato traz grandes problemas no mo-
mento de sua aplicação prática.
O Ministro Marco Aurélio (2017), na elaboração de seu voto no jul-
gamento do Recurso Extraordinário nº 566.471 que versava sobre a
concessão pelo Estado de medicamentos de alto custo entendeu que a
inexistência de políticas públicas que garantam ao indivíduo o acesso
ao medicamento é fundamento suficiente para a atuação jurisdicional
na busca de garantir o mínimo existencial que se sobrepõe a tese da
reserva do possível.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


100 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

Na mesma linha de raciocínio Figueiredo e Sarlet (2010) alertam que


a não concretização do mínimo existencial corrobora com a relativiza-
ção da dignidade da pessoa humana, pois, seu limitador passa a ser o
orçamento estatal, aquele estabelecido como princípio e fundamento
da República Federativa do Brasil passa a ser uma escolha – alicerçada
na organização orçamentária – ou de concretização por parte do Estado.
Interpretado como direito fundamental, o mínimo existencial,
seu objeto e conteúdo, deverá harmonizar-se com uma compreensão
constitucionalmente adequada tanto do direito à vida, quanto do direi-
to da dignidade pessoa humana, na posição de princípio constitucional
fundamental.
Com efeito, o mínimo existencial pode ser entendido como um
conjunto de prestações materiais necessários à garantia de vida digna
para os indivíduos em sociedade, e na seara da saúde, no sentido de
vida saudável.
Destarte, independe de expressa previsão constitucional o reco-
nhecimento à garantia do mínimo existencial, é irrefutável pois prote-
gea vida e a dignidade da pessoa humana. (SARLET; FIGUEIREDO, 2010)
O direito saúde enquanto direito social abarca a garantia de um mí-
nimo existencial, sobremaneira, não podem e nem deve ser reduzido a
mera concretizaçãodo que é possível, mas sim do necessário a garantia
da dignidade da pessoa humana.
A partir das bases até aqui construídas passa-se a analisar como se
deu – em linhas gerais –, a judicialização da saúde e qual é a posição
dos estudiosos e aplicadores do Direito nesse novo ambiente.

3. A judicialização da prestação do direito à saúde em pauta

Não é recente a discussão acerca da promoção do direito à saúde


por meio de demandas judiciais – denominada contemporaneamen-
te de judicialização da saúde para a doutrina e para jurisprudência–,
esse fato tornou-se recorrente, visto que, enquanto direito de segun-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 101
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

da dimensão gera a necessidade da ação positiva do Estado por meio


de políticas públicas que garantam a sua prestação ao cidadão. Dada a
essa omissão estatal e a intrínseca ligação com o direito à vida viu-se no
Judiciário o meio mais eficaz de garantir a sua efetivação.
Do ponto de vista da recente história das novas formulações dou-
trinas de efetividade do texto constitucional trouxe à tona o fato de que
se constar no texto constitucional é norma, e se é norma deve ser cum-
prida. Logo, com base nas teorias do constitucionalismo pós-positivista
emergiu a necessidade de aplicação da Teoria dos direitos fundamen-
tais pensada por Robert Alexy, aplicável quando verificada a ocorrência
de colisões dentro das disposições constitucionais, cabe elucidar aqui
de forma sucinta regramento que apresenta a possível solução no caso
de colisão entre princípios constitucionais:
[...] em uma ordem jurídica pluralista, a Constituição abriga prin-
cípios que apontam em direções diversas, gerando tensões e
eventuais colisões entre eles. Esses entrechoques podem ser de
três tipos: a) colisão entre princípios constitucionais, como, e.g.,
a livre iniciativa versus a proteção do consumidor, na hipótese
se pretender tabelar os preços de determinado medicamento; b)
colisão entre direitos fundamentais, como, e.g., o direito à vida e
à saúde de uma pessoa versus o direito à vida e à saúde de ou-
tra pessoa, na hipótese de ambos necessitarem com urgência de
transplante de determinado órgão, quando só exista um dispo-
nível; c) colisão entre direitos fundamentais e outros princípios
constitucionais, como, e.g., o direito à saúde versus a separação
de Poderes, no caso de determinadas opções legais ou adminis-
trativas acerca de tratamentos a serem oferecidos.
[...] Cabe à autoridade competente – que poderá ser o legislador
ou o intérprete judicial – proceder à ponderação dos princípios
e fatos relevantes, e não a subsunção do fato e regra determina-
da. Por isso se diz que princípios são mandados de otimização:
devem ser realizados na maior intensidade possível, à vista dos
demais elementos jurídicos e fáticos presentes na hipótese. Daí
decorre que os direitos neles fundados são direitos prima facie –

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


102 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

isto é, poderão ser exercidos em princípio e na medida possível.


(BARROSO, 2009, p. 38) (grifo do autor)
A teoria acima apresentada passou a ser base para as decisões de
demandas que buscavam tutelar direitos inerentes à saúde. Por con-
seguinte, a judicialização da saúde propagou-se no país e por parte da
doutrina foi vista como uma saída necessária a garantia da promoção
de um direito previsto na Constituição Federal como fundamental. Em
contrapartida, outra parte da doutrina opôs-se a “solução” encontrada
para efetividade do direito à saúde, tendo como argumentos basilares
os princípios da prestação universal e igualitária.
A questão da judicialização da saúde voltou de forma acentuada a
pauta da contenda dos operadores e cientistas do direito com publica-
ção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que afetou o Recurso Especial
nº 1.657.156, ao decidir pela suspensão de todos os processos que ver-
sem sobre o fornecimento de medicamentos pelo Estado.
Importa esclarecer que o enfoque do presente estudo é analisar se
a decisão relata de forma indireta uma postura na contramão da ju-
dicialização da saúde, bem como os fundamentos da posição exposta
pelos ministros do Superior Tribunal Federal (STF), sob a temática até a
data final de confecção do presente artigo.
Barroso (2009) explica que houve uma conquista por parte da Cons-
tituição no que tange a conquista de força normativa e efetividade.
Esse fato se deu em consequência da chegada de uma nova percepção
das normas constitucionais, a qual afastou o caráter meramente políti-
co do texto, no sentido de ter sido por vezes concebida apenas como
“mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram
a desfrutar de aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais”.
(BARROSO, 2009, p. 35). O fato aqui relatado teve como consequência
o surgimento de um grande vulto de jurisprudências que tinham por
conteúdo a concessão de direitos dentro da temática do direito à saú-
de, bem como o fornecimento de medicamentos que não constavam
na lista do Sistema Único de Saúde (SUS).
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 103
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

Em detrimento do fenômeno da força normativa da Constituição


e efetividade de suas normas diversos direitos passaram a sem direitos
subjetivos plenos – no sentido de que poderão ter a sua prestação efe-
tivada por meio da prestação de tutela judicial específica –, em verdade
o Poder Judiciário passou a determinar ações à Administração Pública
visando que as promessas constantes na Carta Magna fossem realiza-
das. (BARROSO, 2009)
“O sistema, no entanto, começa a apresentar sintomas graves de
que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de
critérios e de voluntarismos diversos”. (BARROSO, 2009, p. 35). O alerta
sobre a possível “morte do sistema” se dá com base nas decisões ju-
diciais extravagante e por vezes muito mais emocionais que técnicas,
que oneram demasiadamente a Administração, somado a inexistência
de critérios efetivos para definição de qual entidade estatal deve res-
ponder por qual tipo de medicamento. (BARROSO, 2009)
Em artigo publicado no dia 2 de junho de 2017, Sarlet (2017) apresenta
uma análise das recentes decisões tomadas pela corte alemã e as contra-
põe com as atuais decisões dos tribunais pátrios, no seguinte sentido:
O que chama atenção, contudo, é que diferentemente da Alema-
nha, onde o TFC – nas decisões (atual e pretérita) referidas – im-
põe exegese restritiva à exceções, no Brasil o caminho tem sido o
oposto, pois as “exceções” se multiplicaram, sem que, para além
da distinção entre medicamentos novos e experimentais, outros
critérios sejam utilizados além do mínimo existencial e a proibi-
ção de proteção insuficiente, eventualmente do risco de vida.
Muito embora a exceção ainda não se tenha transformado em
regra, o número de casos tidos como excepcionais e o impacto
das respectivas decisões sobre o sistema de saúde e o orçamento
público, seguem sendo motivo de reflexão, em especial quanto
aos critérios invocados para justificar a sua imposição ao poder
público e mesmo aos planos de saúde privados, quando não pac-
tuados e se tratando de medicamentos ou outras prestações que
sequer constam no catálogo do SUS.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


104 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

O acima descrito é consequência de uma prática recorrente no Po-


der Executivo que expressa a incapacidade de organização dos precei-
tos basilares de políticas públicas de atuação que sejam praticáveis e
efetivas naquilo que em tese almejou atingir quando da sua elaboração
combinada com outra prática que traz preocupação aos estudiosos do
direito no sentido de ter-se um Judiciário abarrotado não apenas em
número de processo, mas também amplo em assuntos que original-
mente seriam de competência de outro poder seja ele o Legislativo ou
o Executivo.
Quando da leitura do voto do Ministro Luís Roberto Barroso, o ar-
gumento que sofre iminente destaque diz respeito aos critérios atuais
aplicados na análise das demandas por saúde, mas em momento al-
gum nega-se que em situações excepcionais deve o Judiciário decidir
sobre a existência ou não dos direitos constantes nas demandas.
Nesse sentido Sarlet (2017), ao expor o seu parecer em uma au-
diência pública sobre a judicialização da saúde buscando apresentar
critérios capazes de estabilizar o Judiciário como meio de consolidação
de casos excepcionais no âmbito da saúde afirmou que:
[...] se o Supremo avançar com súmulas vinculantes e com deci-
sões vinculantes nessa seara, o que se espera e pode ser produti-
vo, se estiver em caráter geral de coordenação, também se espera
que o Supremo não feche as portas para o exame responsável do
caso, das distinções do caso concreto. Este diálogo é necessário e
efeitos colaterais que realmente acontecem, com alguns abusos
e excesso de decisões judiciais, são efeitos colaterais, como tam-
bém temos efeitos colaterais da política, do desmando adminis-
trativo; são efeitos colaterais que o sistema deve produtivamente
minimizar, mas com os quais deve conviver. A solução melhor
não é afastar os tribunais do direito à saúde.
Não se busca aqui fazer a crítica pela crítica – visto que, está não é
capaz de contribuir com a problemática exposta –, de outro modo ob-
jetiva-se tecer considerações sobre decisões e mais precisamente sobre
o sistema e critérios adotados para a sua tomada, não se pode negar a
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DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 105
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

necessidade de atuação do Judiciário em questões que digam respeito


à saúde, mas não se pode perder de vista que o sistema atual não se
sustentará por muito tempo, pois este onera demais a Administração e,
por conseguinte, não será passível de execução em longo prazo.

Considerações finais

A judicialização de forma geral é uma preocupação atual, já que


tem-se um Judiciário abarrotado de demandas que por vezes não es-
gotaram, ao menos, as vias administrativas a fim de alcançar o direito
que entende fazer jus.
Com efeito, a busca pela efetividade das normas constitucionais
deixou latente que os direitos fundamentais contidos no texto consti-
tucional, são exigíveis – quando não garantido pela Administração Pú-
blica – por meio de demanda judicial.
Se por um lado esse sistema é eficaz instrumento para contemplar
efetividade a direitos fundamentais como é o caso do direito à saúde,
por outro, deve-se ter cuidado ao utilizá-lo, pois, este foi pensado para
atender as exceções sociais comuns a qualquer grupo social, indepen-
dentemente do país.
No caso brasileiro a judicialização – da forma que tem sido ope-
racionalizada pelo Judiciário –, acabou por apresenta uma dualidade
preocupante, enquanto aqueles que demandam ações objetivando a
satisfação de seu direito fundamental juridicamente consagrado, qual
seja o direito à vida por meio da prestação do direito à saúde, come-
çaram a ser apresentadas as consequências ao todo social, visto que,
frente a decisão judicial que determina condena o Estado a prestação
de algum tratamento específico, operações ou mesmo fornecimento
de medicamento de alto custo que não constam na lista do SUS, acaba
por atingir de forma reflexa os direitos de todos aqueles que não bus-
cam o Judiciário para efetivar seus direitos, – independentemente dos
motivos.

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106 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO A SAÚDE NO BRASIL ENQUANTO OBICE PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS...

O que se busca atualmente é definir critérios específicos para es-


tabelecer quais são as exceções no momento da análise da demanda
proposta, bem como, agir com o fito de vincular a Administração Públi-
ca a cumprir seu papel de operacionalização da efetivação das normas.
Em suma, a mentalidade dos operadores e cientistas do direito re-
quer mudanças, no sentido de preocupar-se em resolver de forma ge-
nérica o problema seja de omissão ou ineficácia das políticas pública no
Brasil, e não, passar ao Judiciário o encargo de resolver toda e qualquer
situação de omissão ou incompetência do administrador.
Não deve o Judiciário passar a ser o poço dos desejos daqueles que
se sentem – e por vezes foram – lesados na efetivação de seus direitos
basilares.
Vale ressaltar que o estudo não buscou explorar todas as vertentes
da temática, mas sim apresentar algumas ideias para contribuir com
reflexos que se entenderam fundamentais no estudo da problemática
abordada.

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110 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA


PÚBLICA E CÁRCERE: UMA VISÃO
INTERDISCIPLINAR SOBRE O ACESSO À
SAÚDE E AOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Francine Nunes Ávila1


Lucas Gonçalves Abad2

Considerações iniciais

A violência e o delito parecem ser, de uma forma geral, componen-


tes inseparáveis de uma sociedade. Desde os primórdios, nas socieda-
des antigas em que o Estado não havia se constituído, os indivíduos
compunham seus conflitos por meio da vingança, mas também de uma
forma intermediada, como no caso de comunidades que, por meio de
um indivíduo atribuído deste poder, conciliava as partes envolvidas
com o escopo de encerrar o círculo de vingança.
Porém, quando pensamos na resolução dos conflitos por meio da
justiça restaurativa, por mais que pareça ser evidente a necessidade de
uma alternativa ao processo penal e ao derradeiro sistema prisional, é

1 Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RS.
Integrante do Grupoo de Pesquisa em Criminologia - GEPCRIM, da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUC/RS. Presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB – Subsecção Bagé.
Professora de Direito Penal da Faculdade Ideau. Advogada.
2 Tecnólogo em Gestão de Serviços Jurídicos e Notariais, pelo Centro Universitário Internacional
UNINTER e Graduando em Direito pelo Instituto de Desenvolvimento Educacional de Bagé – IDEAU.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 111
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

difícil conceber que a resolução dos conflitos possa se dar de uma for-
ma mais reflexiva, racional e humanitária.
Isso porque o sistema penal brasileiro, como um todo, carece de
aspectos legitimadores de uma consciência de restauração do confli-
to, pois nem mesmo o Estado, detendo o monopólio de aplicação do
Direito Penal, foi capaz de gerenciar de forma inteligente e acertada as
questões referentes à administração da justiça. Conforme Misse:
O problema é que, no Brasil, o Estado nunca conseguiu ter com-
pletamente o monopólio do uso legítimo da violência, nem foi
capaz de oferecer igualmente a todos os cidadãos acesso judicial
à resolução de conflitos. O que significa que o Estado brasileiro
não deteve, em nenhum momento completamente, a capacida-
de de ter o monopólio do uso da força em todo território, nem o
de ser capaz de transferir para si a administração plena da Justiça.
(MISSE, 2008, p.374)
Talvez pelo mesmo fundamento que ao primeiro olhar parece de-
sacreditar na possibilidade da aplicação da composição dos conflitos
na seara penal, podemos afirmar que o encarceramento não é a respos-
ta acertada para diminuição da violência na sociedade, pois nasceu de
uma ideia mal concebida e fadada ao insucesso (FOCAULT,1987).
Entretanto, o discurso punitivista da sociedade brasileira é mui-
to presente e está cada vez mais insuflado pela mídia e pelo próprio
discurso raso dos cidadãos e dos seus representantes políticos. Possi-
velmente o aumento da criminalidade e a forma violenta e retributiva
-punitiva de pensar a segurança pública e a saúde no cárcere, cria um
senso comum de revanchisvo e de perseguição.
As respostas que perpassam as discussões sobre a segurança pú-
blica geralmente são tratadas pelos governantes e legisladores como
uma promessa de maior repressão e, consequentemente, no pensar
equivocado de muitos atores da segurança pública, como alguns mem-
bros do judiciário e Ministério Público, uma necessidade de maior en-
carceramento.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


112 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

A opinião da maioria dos brasileiros é de que, proteger direitos hu-


manos e tutelar o direito à saúde dos encarcerados, é o mesmo que pri-
vilegiar aqueles que cometem crimes, os“bandidos”. Isso muito se deve
a uma visão dualística de entender o agente que cometeu um delito
como “outro”, alguém que não “eu”, que não faz parte da minha convi-
vência, da minha espécie, do meu “tipo de pessoa”, da “minha socieda-
de”. O outro é então um nada, alguém abjeto, um ser que não merece
empatia e, por isso, não pode ser detentor de direitos humanos, ou de
qualquer outro direito disposto difusamente a toda população, como o
direito à vida, à saúde, à justiça, etc.

1 A justiça restaurativa como possibilidade de solução de


conflitos

Diante da dicotomia, existente entre aceitar uma sociedade tole-


rante e que juntamente com o Estado, tutele direitos daqueles que de
alguma forma ceifaram direitos alheios, e uma sociedade que rechace
qualquer direito daqueles considerados delinquentes, ou dos que, des-
viados do sistema normativo-legal, devam ser ainda mais marginaliza-
dos e penalizados com a ausência de tutela jurisdicional ou social aos
seus direitos humanos e de sobrevivência, como o direito à saúde, en-
tende-se que é necessário considerar a justiça restaurativa como possi-
bilidade de solução de conflitos e como via capaz de ceifar a causa da
violência, trazendo um enfretamento diferenciado do próprio autor do
fato delituoso, baseado na reflexão, enfrentamento da atitude, culpa e
perdão.
A execução penal é, de todos os pontos do processo penal, o mais
escamoteado, de mais difícil penetração, aquele em que a justiça pare-
ce ficar em segundo plano, para que a estrutura administrativa faça seu
papel para o cumprimento da pena, sobretudo quanto se tratam de
penas privativas de liberdade.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 113
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

Essa dificuldade de publicidade e acesso já se mostra o primeiro en-


trave para possibilidade de composição dos conflitos através da justiça
restaurativa.
Ao mesmo tempo, se tem neste quesito uma forte justificação para
o uso de tais medidas, pois o juiz da execução, muito embora seja ne-
cessário para aplicação de determinadas faltas e sanções, é figura ab-
solutamente alheia ao conflito, às normas internas do cárcere e aos
acontecimentos que levaram os apenados a entrarem em conflito e a
gerarem derradeiro processo disciplinar.
Assim, um olhar interno sobre o problema, a crise e a resolução,
oportunizando as próprias partes a resolverem o impasse, baseados
nas normas de conduta e convívio específicos do ambiente prisional,
parece ser a forma mais acertada e promissora de diminuição de violên-
cia entreos apenados e, principalmente, da própria violência produzida
pelo Estado em relação aos detentos.
Talvez, um dos principais problemas a ser enfrentado em relação
à solução de conflitos de forma extrajudicial seja a carência do poder
simbólico que se identifica no judiciário e não se vê revestido, pelo me-
nos em um primeiro momento, nos atores do processo da justiça res-
taurativa.
O judiciário parece possuir a capacidade de impor força além da-
quela legalmente e institucionalmente atribuída, um poder que emana
de uma mentalidade do meio social, da forma como o poder é visto e
entendido, assim entendido e conceituado por Pierre Bourdieucomo
poder simbólico:
“O poder simbólico como poder de construir o dado pela enun-
ciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a
visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto
o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente
daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao
efeito específico da mobilização, só se exerce se for reconhecido,
quer dizer, ignorado como arbitrário” (BOURDIE, 1989, p.227)

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


114 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

Outro aspecto de importante relevo é a permeabilidade do siste-


ma prisional pelas facções e seus respectivos conflitos territoriais, bem
como opoder exercido por esse grupos nas normas e costumes do cár-
cere.
Mesmo que tenhamos bons resultados na solução dos conflitos
nos moldes da justiça restaurativa, talvez os agentes e atores do proce-
dimento não tenham a possibilidade de livremente escolher a solução
que melhor atenderia um processo restaurativo.
Quando estamos diante de conflitos que envolvem disputas inter-
nas de espaço e poder entre facções, o que representa um alto índice
de todas as ocorrências relacionadas aos delitos e incidentes envol-
vendo o cumprimento da pena, não podemos imaginar que os atores
do conflito sejam livres para escolher uma solução, já que seguem um
mandamento superior, sendo sua própria conduta fruto da sua condi-
ção enquanto integrante de um conjunto maior.
Importante salientar que, conforme mencionado por Dias (2009),
as facções possuem seus próprios meios de resolução de conflitos, o
que dificilmente será modificado por meio de uma justiça restaurativa
no que diz respeito ao sistema penitenciário. Nas palavras da autora:
O protagonismo do PCC aparece claramente tanto como alvo de
decisões administrativas e atos legislativos com objetivo repres-
sivo, como também como importante interlocutor para efetivar
acordos complexos e pouco transparentes que produzem perío-
dos de trégua nas prisões paulistas cujas rupturas desestabilizam
completamente o sistema de segurança pública do Estado. (DIAS;
SILVESTRE, 2009)
Assim, imperioso analisar a questão da justiça restaurativa no âm-
bito carcerário um passo ainda mais difícil do que do âmbito social, em
virtude das próprias regras ditadas pelas facções e do poder emanado
não do Estado, mas dos grupos paralelos a ele.
Ao refletir sobre as possibilidades dos métodos da justiça restaura-
tiva e os mecanismos para introdução no sistema de justiça, faz-se mis-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 115
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

ter tecer alguns comentários sobre o sistema de resolução de conflitos


já aplicado pela justiça no âmbito cível e suas falhas, para que somente
depois possamos pensar no âmbito da solução de conflitos criminais.
Os mediadores judiciais exercem uma função extremamente rele-
vante no processo de composição dos conflitos e são subjugados na
medida em que não recebem qualquer remuneração, sendo incerto
seu futuro nos cargos em que exercem ao analisarmos a perspectiva de
governo no Rio Grande do Sul, o que tem impacto direto no (in)sucesso
do projeto.
Os mediadores não possuem uma aptidão especialmente voltada
para a solução do conflito, fazendo o papel acessório do juiz de direito,
como nítido desafogamento do judiciário, conforme elucidouMello:
[...] convém destacar outra questão importante acerca da imple-
mentação da mediação e da conciliação como medidas judiciais:
a busca prioritária dos tribunais por celeridade. Ela nos faz ques-
tionar se o uso desses mecanismos alternativos estão a serviço
dessa busca apenas para esvaziar as prateleiras dos tribunais.
Muitas mudanças empreendidas no processo brasileiro atual
visam, ao invés de melhorar a qualidade dos procedimentos ju-
diciais e da prestação jurisdicional, desafogar o Judiciário. Vê-se,
então, um notório abismo entre as expectativas dos cidadãos e
os objetivos dos tribunais, contraste este resumido no binômio
qualidade x quantidade que hoje representa bastante bem os
critérios de administração e gestão dos tribunais. (MELLO; BAP-
TISTA, 2010, p.119)
Prova disso é a compulsoriedade da audiência promovida pelo CE-
JUSC (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania), o que
vai contra o princípio básico da voluntariedade da justiça restaurativa,
tornando apenas o processo mais moroso, sobretudo quando se trata
da área de família, consumidor, dentre outras.
Talvez por esses entraves que já se visualiza em matéria cível na
solução de conflitos de forma judicial, se vislumbra maior sucesso nas
formas de composição de conflitos nos âmbitos comunitários.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


116 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

Portanto, entende-se que a justiça restaurativa é uma via legíti-


ma e capaz de solucionar conflitos, mas que encontra, sobretudo no
sistema prisional, a problemática do escamoteamento, da norma pa-
ralela, da impossibilidade do agir livre, da imposição das facções e
da violência e subjugação estatais que dificilmente proporcionarão
todos os espaços necessários para a busca da alternativa pelos atores
envolvidos.

2 A segurança pública sob o olhar da sociedade

Além dos fatores que constroem a opinião de uma sociedade pou-


co crítica como a brasileira, tais como a mídia, a qual constrói um cená-
rio de insegurança e caos, além do que efetivamente se tem, notician-
do tragédias e ajudando as plataformas políticas a se construírem de
forma desajeitada e duvidosa sobre tais problemas, temos o próprio
processo penal como fator determinante a esta caçada irrefreável ao
culpado, como se somente quando o desfecho desejável é o derradeiro
aprisionamento.
A dicotomia que tanto se discute está presente no sistema proces-
sual penal brasileiro, que, nas palavras do Professor Geral Prado, pode
ser assim representado:
A naturalização dos elementos do “sistema acusatório”, com a
adoção, sem maior explicitação, de um dos sentidos pelos quais
é possível conceber a dicotomia acusatório-inquisitório tende a
ser relativamente comum e, em consequência, a crítica que com-
pete à doutrina, em relação ao direito vigente, por igual arranca
de um suposto consenso conceitual que, como ficou registrado,
não existe na realidade. (PRADO, 2014,p.11)
O próprio processo penal é revestido por esses elementos inquisi-
tórios que não condizem com um Estado Democrático de Direito, po-
dendo dizer que é permeado por autoritarismos típicos de um estado
de exceção, como se tivéssemos uma mistura híbrida entre instrumen-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 117
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

tos legais democráticos e instrumentos inquisitórios, o que também


contribui para este profundo declínio de soluções para os conflitos.
A forma como se opera o processo penal deixa poucos espaços
para as formas de pacificação das populações, trazendo um poder exa-
cerbado ao processo que busca uma verdade real que não pode ser
assim considerada.
Ademais, forte crítica merece a atuação do Ministério Público em
sua percepção institucional e na forma como opera como um grande
acusador, enquanto na verdade deveria ser um dos principais liames
entre a persecução da autoria de um delito e a proteção dos direitos
humanos do próprio acusado, vez que é um garantidor da lei.
Destarte, o discurso punitivo relacionado à segurança pública em
nosso país não comporta o uso lógico das informações, sendo essa for-
ma atuarial de colecionar dados e transformá-lo em informações úteis
e necessárias algo muito distante das propostas dos governantes e dos
anseios da própria população que aposta no policiamento ostensivo
como única forma de erradicar a criminalidade.
Existe uma grande dificuldade de elaborar um retrato na criminali-
dade no Brasil, pois os métodos utilizados não categoriza e classificam
o crime de maneira adequada, acarretando na dificuldade de se produ-
zir uma política de segurança pública direcionada à problemática de
determinado local por se desconhecer a realidade específica de cada
comunidade, cidade ou localidade.
Além disso, a forma basicamente ostensiva de agir da polícia militar
não consegue antever o problema, não pode tratar o conflito de forma
preventiva, preocupando-se e combatendo tão somente o resultado.
As ações que levam em consideração apenas o resultado são ine-
ficazes no que tange à segurança pública, porque o resultado já é a
lesão de um bem jurídico tutelado extremamente caro a quem dele é
ceifado.
Assim, o modelo de polícia ostensiva, tão desmerecido pelas pes-
quisas que apontam as questões de segurança e cidadania no Brasil,

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


118 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

pode ser apontado como umdos principaisproblemas a serem ataca-


dos no que diz respeito à segurança pública, o que reflete diretamente
nas próprias questões de militarização da polícia, espaços de exceção
em um Estado Democrático de direito e a própria forma de policiamen-
to sob o ponto de vista institucional, além do acesso e respeito aos di-
reitos humanos.

3 Saúde e direitos humanos: acesso e afirmação na execução


penal

A respeito da atuação do Estado, quanto ao direito à saúde, Caon &


Abad (2016. p.248), ressaltam que, hodiernamente, a saúde não é mais
vista como mera manutenção da ausência da doença, devendo o Esta-
do tutelar esse bem, de forma a garantir a efetividade deste direito.
Dessa forma, a efetivação da tutela do direito à saúde, ainda que
seja responsabilidade de todos, numa percepção lato, deve ser res-
guardada preferencialmente pelo Estado, no que diz respeito aos su-
jeitos encarcerados.
Observa-se que, de acordo com Moutinho &Puckar (2016. p.04), “a
atual realidade prisional, traz em si resquícios de uma história marcada
pela crueldade”, uma vez que a mudança do cenário carcerário ocorre
paulatinamente na direção de resguardar tantos os direitos inerentes à
vida e à saúde dos sujeitos, quanto os direitos humanos àqueles que se
encontram privados de sua liberdade.
Quando omisso, o Estado, no seu dever-agir de assegurar a manu-
tenção da ausência de doença aos sujeitos encarcerados, estabelece
uma dupla punição, de forma que na representação da pena, o sujeito
exaure-se psicologicamente e fisicamente, uma vez que para além dos
direitos humanos violados, está o direito à subsistência de sua precária
vida encarcerada.
De um lado o Estado inerte, omisso, na sua relação de dever-agir
em proteção aos sujeitos encarcerados, de outro lado o cidadão lesa-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 119
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

do, ávido de seu desejo de justiça e vingança, em detrimento daqueles


que cometem atos delituosos, transformam as relações suscetíveis ao
julgamento livre de uma sociedade que não medirá esforços para punir
o já apenado, seja privando-o do acesso ao convívio social, ou mesmo
às condições básicas de subsistência de sua saúde.
A prática de tortura, presente nos discursos de ódio e favor à im-
posição de sanções mais punitivas àqueles que cometem atos ilícitos
socialmente reprováveis, destaca uma violação ao Direito Internacio-
nal, onde a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Pe-
nas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 28 de
setembro de 1984, de onde o Brasil é país signatário, reflete a proteção
em relação à defesa do ser humano livre de qualquer tipo de tortura,
tratamento ou penas cruéis, desumanas ou degradante.
Essa simplória confusão entre aceitação dos direitos humanos e
pensamento punitivo vai além do senso comum, ingressando também
no pensar dos juízes, promotores de justiça, políticos, delegados e poli-
ciais, o que importa em uma difícil mudança da concepção e aplicação
dos direitos humanos com os quais o Brasil comprometeu-se a obser-
var mediante tratados e convenções internacionais, desrespeitando-os
reiteradamente.
Então esta lógica de necessidade de processualizar de todo o con-
flito gera uma enorme burocratização dos empasses que poderiam ser
dirimidos de uma maneira pacificada e restaurativa, criando um des-
crédito quanto às próprias instituições que devem perseguir culpar e
julga-los respondendo aos anseios sociais.
A abrangência da proteção aos direitos humanos se mantém in-
dependentemente de tratado internacional, declarações ou constitui-
ções, uma vez que se está diante de exigências de respeito à dignidade
humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou
não, de acordo com Comparato (2006, p.227).
Para Mondaini (2006, p. 12), “os direitos humanos devem ser obser-
vados como o conjunto articulado e interdependente dos direitos civis,

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


120 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

políticos, sociais, econômicos e culturais, fundados para além da ideia


de universalidade, no princípio da indivisibilidade”.
Ainda para o autor, no decurso da história da afirmação dos direitos
humanos no Brasil, as pressões estabelecidas para que uma sociedade
igualitária socialmente, pudesse ser capaz de integrar uma nação dividi-
da de maneira abissal, em termos materiais, percebe-se que existe uma
expansão de direitos nos planos dos direitos sociais, seguido de direitos
individuais que resguardarão o sujeito enquanto objeto de uma socieda-
de humanitária e igualitária, na perspectiva humanista do direito.

Considerações finais

Pensar a justiça restaurativa como forma de resolução de conflitos


que entendam a priori, a atuação precípua do Estado, como agente re-
gulador de políticas restaurativas, além de entender que a sociedade
deve tutelar os direitos referentes à vida, à dignidade da pessoa huma-
na, à saúde e ao bem estar de todos, faz com que os conflitos sejam re-
solvidos de maneira pacífica e harmoniosa, sem geral prejuízos maiores
aos apenados ou mesmo aqueles que ainda estão sob o crivo meticulo-
so de uma sociedade que preza pela justiça e segurança.
A discussão sobre o sistema prisional, dentro de sua dicotomia
existencial, acerca da naturalização de um sistema acusatório, mesmo
revestido de elementos inquisitórios, dificulta o papel pacificador do
Estado frente às políticas de segurança pública em prol da proteção
dos direitos humanos da sociedade carcerária.
O grande entrave, certamente está na dificuldade em manter uma
sociedade que ofereça credibilidade ao sistema carcerário, deixando
apenas a este a função de ressocialização do sujeito, sem a intervenção
de meios de força violenta e injusta, na busca por uma punição mais
permanente e efetiva.
Reconhecer que o Estado tem o dever de manter saúde sobre os
aspectos da prevenção e cautela a qualquer sujeito que, tutelado juri-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 121
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

dicamente pelo Estado, esteja sob sua proteção e responsabilidade, é


o primeiro passo para acessar o entendimento de que, apesar dos res-
quícios de uma humanidade marcada pela crueldade, e ávida de justiça
e segurança pública, todos humanos merecem proteção e atenção in-
tegral à saúde e à vida, reconhecendo então a efetividade dos Direitos
Humanos de maneira holística e integral.
Ainda assim, proporcionar meios de acesso a uma justiça restaura-
tiva, traçando políticas públicas eficazes, em uma visão interdisciplinar
sobre o acesso à saúde e aos direitos humanos, proporcionam ao cár-
cere, aperfeiçoamento de sua função restaurativa, de forma que os su-
jeitos assim, tutelados pelo Estado possam ser ressocializados, em uma
sociedade livre, justa e igualitária.

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


122 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
JUSTIÇA RESTAURATIVA, SEGURANÇA PÚBLICA E CÁRCERE

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 123
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
124 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO
CONTEXTO DA UNIDADE DE TERAPIA
INTENSIVA NEONATAL E O PROCESSO DE
JUDICIALIZAÇÃO

Cibele Thomé da Cruz 1


Gisele Elise Menin 2

Considerações iniciais

O paciente nascido prematuro está mais sujeito aos efeitos da toxi-


cidade do oxigênio, pois, no meio intraútero, vive sob baixa tensão de
oxigênio (aproximadamente de 22 a 24 mmHg). Após o nascimento,
ocorre um aumento dramático nas concentrações de oxigênio. Com o
início do metabolismo aeróbico a relativa hiperóxia pode aumentar a
produção de fator de crescimento endotelial vascular (VEFG). A admi-
nistração de oxigênio suplementar pode levar a uma hiperóxia susten-
tada onde os níveis elevados de VEFG estimulam a neovascularização
da retina que pode resultar em fibrose e descolamento de retina. Re-
petidos ciclos de hipóxia–hiperóxia favorecem a progressão da ROP.
O uso restrito de oxigênio reduz o risco relativo da ocorrência da ROP

1 Enfermeira, Mestre em Atenção Integral à Saúde, Especialista em Enfermagem em Terapia Intensiva.


Hospital de Caridade de Ijuí/RS. Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:ci_thome@hotmail.com
2 Docente no curso de enfermagem na Universidade Ritter dos Reis - UniRitter, Especialista em Pediatria
e cuidados intensivos Neonatais pela FPP- Curitiba/PR. Mestranda em Ensino na Saúde pela UFCSPA -
Porto Alegre/RS. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. E - mail: gi.menin@yahoo.com.br

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 125
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

(Pierce EA, Foley ED, Smith LE, 1996).


A retinopatia da prematuridade (ROP) é uma enfermidade vaso-
proliferativa, secundária à vascularização inadequada da retina imatura
dos recém-nascidos pré-termo. A Classificação Internacional da ROP
(ICROP) define a doença de acordo com sua gravidade (estágios 1-5),
localização (zonas I - III) e extensão (em horas, 1-12h), com ou sem a
presença de doença plus (dilatação arteriolar e tortuosidade venosa)
-indicador de atividade da doença (An international classification of
retinopathy of prematurity. 1984; International Committee for the Clas-
sification of Retinopathy of P. 2005)
Nesse contexto, as Unidades de Terapia Intensiva Neonatais pre-
cisam de profissional que avalie e faça o diagnóstico de retinopatia da
prematuridade, o qual pode ser realizado por um oftalmologista. No
entanto o tratamento efetivo, requer um profissional retinologo, difícil
de conseguir, visto que as UTINs não dispõe de um profissional como
referência e/ou de um centro de referência para transferência desses
pacientes. Aí inicia um processo decisivo, pois pode implicar em ce-
gueira no recém-nascido, se esse tratamento tardar.

1 A retinopatia na uti neonatal

Na UTI Neonatal os profissionais precisam avaliar criteriosamen-


te o recém-nascido, com sinais e sintomas clínicos, exames de la-
boratoriais e de imagem para utilizar adequadamente o oxigênio,
evitando hipóxia e hiperóxia, que são condições que podem agra-
var o quadro de retinopatia. É importante, manter PaO2 entre 45-
80 mmHg, quanto aos limites de saturação de oxigênio ideal para
recém-nascidos prematuros: prematuros com IG maior do que 32
semanas, manter saturação de oxigênio entre 85-95%; recém-nas-
cidos com IG inferior ou igual a 32 semanas, manter saturação de
oxigênio entre 85-93%. (Chow LC, Wright KW, Sola A, 2003; Sola A,
Chow L, Rogido M, 2205)

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


126 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

Para realizar avaliação oftalmológica o RN precisa seguir alguns cri-


térios: RN com peso de nascimento de 1500 gramas ou menos e/ou com
IG igual ou menor que 32 semanas ao nascimento. Apresentar como
fatores de risco: Síndrome do desconforto respiratório; Sepse; Transfu-
sões sanguíneas; Gestação múltipla e Hemorragia intraventricular (Zin
A, Florencio T, Fortes Filho JB, Nakanami CR, Gianini N, Graziano RM et
al,2007; Brasil 2014).
O primeiro exame deve ocorrer entre a 4ª e 6ª semana de vida, por
oftalmologista com experiência em exame de mapeamento de retina
em recém-nascido prematuro e conhecimento da retinopatia da pre-
maturidade, para identificar a localização e as alterações retinianas
sequenciais, utilizando o oftalmoscópio binocular indireto. Durante o
exame para triagem da ROP, é recomendado o uso de medidas não
farmacológicas para alívio da dor. Meta-análise de Sun X, Lemyre B,
Barrowman N, O’Connor M, 2010, evidenciou que o uso de sacarose/
glicose oral 25% 2 minutos antes do procedimento e sucção não nu-
tritiva são medidas eficazes para diminuir o desconforto durante esse
procedimento. A associação de medidas para alívio da dor potenciali-
za a analgesia durante os procedimentos dolorosos (Zin A, Florencio T,
Fortes Filho JB, Nakanami CR, Gianini N, Graziano RM et al).
Após a avaliação oftalmológica, o agendamento de exames subse-
quentes será determinado: Retina madura (vascularização completa):
avaliação com 6 meses de vida (avaliação do desenvolvimento visual fun-
cional, estrabismo, ametropias). Prematuros apresentam 46% de chance
de apresentarem alguma dessas alterações oftalmológicas: Retina ima-
tura (vascularização não completa) ou presença de ROP < pré-limiar: ava-
liação de 2/2 semanas; Retina imatura, zona I: exames semanais; ROP pré
-limiar 2: exames 3-7 dias; ROP pré-limiar 1 (zona l, qualquer estágio com
plus; zona l, estágio 3; zona 2, estágio 2 ou 3 plus) e limiar: tratamento em
até 72 horas (Holmstrom M, El AzaziM, Kugelberg U, 1998).
O preparo para o exame implica em dilatação da pupila com colí-
rios de tropicamida 1% ou ciclopentolato 1% e fenilefrina 2,5%. Uma

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 127
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

gota de cada com intervalo de 5 minutos em cada olho, 40 minutos an-


tes do exame. E no momento do exame colírio anestésico. É importante
que a avaliação seja registrada na Caderneta de Saúde da Criança. Após
a avaliação oftalmológica, definirá se o bebê necessita de avaliação
por profissional Retinólogo e/ou tratamento imediato com laser. Nesse
sentido o bebê deverá ser encaminhado se tiver condições clínicas, ou
o profissional retinólogo deverá vir até a UTIN para realizar a avaliação
e se necessário for fazer o tratamento com laser (Brasil, Resolução nº
197/17 – CIB/RS).
Ressalta-se que a responsabilidade no exame e acompanhamento
dos RNs potencial são definidos por cada UTIN. E os pais e / ou res-
ponsáveis pela criança precisam ser informados e orientados sobre a
doença, agravos e suas consequências, assim como da necessidade
de acompanhamento. Salienta-se que por qualquer motivo a crian-
ça precise ser transferida de unidade de intensivísmo, o tratamento e
acompanhamento precisa ser garantido. Após alta hospitalar, quando
necessário de prosseguir com acompanhamento oftalmológico, é res-
ponsabilidade dos profissionais de saúde, orientar e esclarecer os pais
sobre os riscos de cegueira e enfatizar que o acompanhamento correto
faz parte para o sucesso no tratamento, e todas as informações preci-
sam ser dadas da forma oral e escrita aos pais e /ou responsáveis (Brasil,
2014).
Ao considerar que a ROP somente se desenvolve a partir de algu-
mas semanas após o nascimento algumas associações definem os cri-
térios para avaliação como na Inglaterra que desde 1996 a Royal College
of Ophthalmologist e a British Association of Perinaltal Medicine definem
que todo RNP menor de 1500 gramas e ou com IG igual ou menor que
31 semanas irão realizar a triagem para ROP, não considerando as con-
dições clínicas, e os exames serão realizados a partir da 6ª semana até
que seja comprovada a vascularização correta da retina Zona III. Nos
Estados Unidos definiu-se pela American Academy of Ophthamologist e
a American Academy of Pediatrics no ano de 2001 que todo RNP menor

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


128 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

de 1500 gramas e com IG igual ou menor que 28 semanas e todo RN


que identificado pelo neonatologista com fatores de risco ao ROP de-
verão iniciar os exames entre a 4ª e a 6ª semana pós-natal (Fortes Filho
JB, 2006).
O Ministério da Saúde em nota técnica nº11/2015 orienta serviços
públicos e privados para prevenção da ROP assim como critérios de
risco e tratamento. No que se refere a tratamento define baseada nos
achados no ensaio clínico “Early Treatment for Retinopathy of Prematuri-
ty (ETROP)”, no qual demonstrou a eficiência do tratamento precoce, ao
ser comparado ao convencional, evidenciando redução no risco de bai-
xa visão (19,5% vs. 14,5%; P= 0,01) e de dano estrutural ao olho (15,6%
vs. 9,1%; P <0,001). Na existência do laser, tem sido uma das opções
de tratamento utilizadas devido a diminuição de riscos e complicações
oculares a longo prazo. Outra opção de tratamento quando disponível
é a crioterapia, a qual é utilizada quando ocorre opacidade dos meios
em se ocorre necessidade de retratamento. A cirurgia vitreo-retiniana
não alcança resultados satisfatórios no estágio 5. No estágio 4 os resul-
tados já são melhores. Porém se torna uma decisão muito criteriosa em
operar e precisa ser realizada por um cirurgião experiente (Brasil, 2015).

2 A judicialização para o tratamento da retinopatia

O tratamento padrão da ROP é ​​a fotocoagulação a laser (LPC), e


mais recente o bevacizumab, um inibidor do fator de crescimento en-
dotelial vascular (VEGF) tem sido utilizado com resultados positivos. Em
um estudo desenvolvido no Hospital Guillermo Grant Benavente, no
Chile com 17 crianças VLBW foram analisadas com idade gestacional
média 26,4 ± 1,7 semanas e peso médio ao nascer 850 ± 141 g. Todos
os 6 pacientes tratados com bevacizumab em associação com LPC não
exigiram reintervenção. Dos 11 neonatos que receberam apenas beva-
cizumab, 36,3% necessitaram de tratamento adicional. Em nenhum dos
grupos de estudo foram identificados efeitos adverso a qualquer uma

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 129
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

das estratégias terapêuticas, no entanto, a taxa de cura foi de 100% nos


pacientes submetidos a terapia combinada e de apenas 63,6% daque-
les que 24 receberam apenas bevacizumab intravítreo. No segundo
grupo, 36,4% dos pacientes necessitaram ser submetidos a tratamento
de resgate através de fotocoagulação a laser (BANCALARI A, et al. 2013).
Pesquisa realizada com 172 neonatos de uma UTI Neonatal de Pon-
ta Grossa, em que 98 (57%) eram do sexo masculino. A média IG e PN
foram respectivamente 29,4(±2,4) semanas e 1.171,9(±226,8) gramas.
Conforme o desfecho clínico os prematuros foram distribuídos em dois
grupos, o grupo controle que continha 154 (89,5%) prematuros e o gru-
po caso onde 18 (10,5%) neonatos desenvolveram ROP. A frequência da
ROP analisada foi de 10,5%, onde 10 (55,6%) neonatos do grupo caso
desenvolveram o estadiamento III. No que se refere ao estadiamento III,
o mais encontrado. Em 38,9% dos prematuros com ROP a fotocoagu-
lação foi necessária, evidenciando o desenvolvimento de quadros mais
graves. Portanto, evidencia-se a necessidade de ampla triagem dos
prematuros expostos aos riscos, visando à detecção de estágios iniciais
da ROP e a prevenção de estágios mais graves, os quais evoluem para
cegueira. (Silva FC, Falco HCB, Silva FG, Carvalho PK, 2016)
Estudo acompanhou neonatos admitidos na UTIN, com idade ges-
tacional menor que 32 semanas e/ou peso ao nascimento inferior a
1.500 gramas, por um período de dois anos para avaliar a incidência
de ROP e sua associação com fatores de risco conhecidos. A incidência
observada foi maior do que a encontrada na literatura, percebe-se que
as ocorrências de retinopatia da prematuridade permanecem altas en-
tre lactentes com muito baixo peso ao nascer. O desenvolvimento de
ROP foi inversamente proporcional ao peso e idade gestacional ao nas-
cimento. Nesse sentido, a prevenção da prematuridade e precaução
no uso de oxigênio em unidades de terapia intensiva neonatal pode
contribuir para reduzir a incidência futura de retinopatia da prematuri-
dade. (Gonçalves E, Násser LS, Martelli DR, Alkmim, Mourão TV, Caldeira
AP et al, 2014)

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


130 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

Estudo de coorte institucional e prospectivo conduzido de 2002 a


2010 e incluiu no grupo 1 todos os prematuros tratados para a retino-
patia da prematuridade nascidos na instituição e no grupo 2 todos os
prematuros tratados para a retinopatia da prematuridade transferidos
para o tratamento. Todos os pacientes incluídos tinham peso de nasci-
mento (PN) ≤1.500 gramas e/ou idade gestacional (IG) ≤32 semanas. As
principais consideradas foram a idade pós concepção (IPC) por ocasião
do tratamento e os resultados do tratamento ao final do 1º ano de vida
dos pacientes nos 2 grupos. As variáveis consideradas foram: peso de
nascimento, idade gestacional, estadiamento e localização da retino-
patia da prematuridade por ocasião do tratamento.
O grupo 1 incluiu 24 prematuros nascidos na instituição. As médias
do PN e da IG foram 918 ± 232 gramas e 28,2 ± 2,1 semanas, respectiva-
mente. A mediana da idade pós-concepção ao tratamento foi de 37 se-
manas. O grupo 2 incluiu 14 pacientes transferidos para o tratamento.
As médias do PN e da IG foram 885 ± 188 gramas e 28,2 ± 2,4 semanas,
respectivamente. A mediana da idade pós-concepção ao tratamento
foi de 39 semanas. As médias do PN e da IG eram similares nos dois
grupos (P=0,654 e P=0,949, respectivamente), mas a diferença entre a
idade pós-concepção ao tratamento foi significativa entre os 2 grupos
(P=0,029). (Filho JBF, Eckert GU, Valiatti FB, Santos PGB, Costa MC, Pro-
cianoy RS, 2011.
Desse modo, os pacientes nascidos na instituição foram tratados
para a retinopatia da prematuridade durante a 37ª semana de idade
pós-concepção enquanto os pacientes transferidos foram tratados
após a 39ª semanas de idade pós-concepção em média. Os piores re-
sultados do tratamento assim como do seguimento de um ano obser-
vados entre os pacientes do grupo 2 podem ser explicados, em parte,
pelo tempo maior decorrido para o tratamento da retinopatia da pre-
maturidade.
Os resultados encontrados na pesquisa, corroboram com o que se
vivencia no dia-a-dia de uma UTI Neonatal, pois as unidades que não

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 131
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

dispõe de retinólogo para avaliação e consequentemente para o trata-


mento com laser, sofrem com a esperar por uma vaga para transferên-
cia do paciente. Em algumas situações os pais são orientados a entra-
rem com processo via judicial para agilizar o tratamento da ROP, visto
que a espera pode implicar em graves consequências para o bebê.
Nesse sentido, estudo observacional transversal retrospectivo in-
cluindo 148 recém-nascidos com idade gestacional ≤32 semanas e/ou
peso ≤1.500 g internados na UTI Neonatal do Hospital de Clínicas da Uni-
versidade Federal de Uberlândia (HC-UFU) durante o período de julho
de 2005 a junho de 2007, foram analisados. Em 66 (44,6%) detectou-se
a ROP; 82 (55,4%) não apresentaram a doença. Os fatores de risco esta-
tisticamente significantes foram: peso ao nascimento (p=0,0001), ida-
de gestacional (p=0,0001), ventilação mecânica (p=0,0001), transfusão
sanguínea (p=0,0001), persistência do canal arterial (PCA) (p=0,0001).
Dos 66 prematuros com ROP, 77% foram tratados clinicamente (acom-
panhamento com oftalmoscopia indireta) e 23% necessitavam de tra-
tamento cirúrgico ou fotocoagulação a laser ( Tomé VAV, Vieira JF, Oli-
veira LB, Pinto RMC, Abdallah VOS, 2011) . Esses dados indicam uma
prevalência elevada de ROP, nesse ínterim existe a necessidade de se
um Protocolo de Prevenção e Tratamento adequado para ROP.
Os tratamentos evoluíram e apresentam melhor eficácia, assim
como na taxa de eficiência nos tratamentos utilizados para ROP, perce-
beu-se nos últimos anos a redução dos efeitos adversos associados às
intervenções. O uso de inibidores do fator de crescimento do endotélio
vascular no tratamento ROP apresenta é o que apresenta melhores evi-
dências de cura e menor reincidência da doença relacionado a efeitos
colaterais do que os outros tratamentos. Porém na literatura não são
disponíveis muitos estudos os quais comprovem a longo prazo como
estas crianças que utilizaram destes tratamentos evoluíram ( Guima-
rães, 2014).
As dificuldades nas pesquisas por vezes barram nas questões éticas
e legais, principalmente quando se fala em tratamentos para crianças

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


132 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

criticamente doentes e em uma situação de nascimento fragilizado. Se-


gundo o autor na Medicina Intensiva Neonatal, os profissionais deter-
minam o tratamento de crianças as quais nascem criticamente e vulne-
ráveis a sobrevida. Assim, o tratamento ético nessas situações é decidir
pelo que trará maiores benefícios à vida (Ribeiro, 2005). E o crescente
avanço da tecnologia na assistência na terapia intensiva neonatal, mas
precisam ser analisadas para aa reflexões sobre as questões éticas e le-
gais (Bezerra et al, 2014).
Para todos os profissionais de saúde, cuidar e tratar ou definir trata-
mento são essenciais a consideração dos princípios que norteiam a bio-
ética: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Conclui-se
em toda situação vivenciada pelos profissionais de saúde, que é essen-
cial atender/primar pelo respeito à sua autonomia. E nos vulneráveis
estes precisam ser protegidos e assegurados em qualquer tratamento
ou assistência contra danos e abusos (Gaiva, 2006).

3 A bioética e os tratamentos em neonatologia

As UTINs possuem pacientes com vulnerabilidade, com intercor-


rências clínicas e patologias, aos quais os diferentes profissionais dis-
pensam cuidado com o objetivo de sucesso ou a minimização de danos
e riscos (Alves e Silva, 2016). Pois o nascimento prematuro é um dos
fatores responsáveis para a mortalidade e morbidade nestas crianças,
entre elas a cegueira devido a ROP (Gilbert, 2014). E neste contexto
com diferentes situações fragilidades, as questões éticas e legais estão
relacionadas às decisões médicas sobre tratamento e qual o melhor tra-
tamento a seguir para cada paciente ( Blencowe H. et al, 2012).
Destaca-se que as políticas e atenção ao neonato vem evoluindo
muito no Brasil nos últimos vinte anos, porém há uma dificuldade em
leitos e desigualdade na disposição destes conforme a região do país.
Nas regiões mais desenvolvidas socioeconomicamente, como as regi-
ões Sudeste e Sul, concentram os leitos de UTI neonatal, com limitado

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 133
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

acesso aos setores da população com menos recursos. Ressaltando os


princípios de não maleficência o qual representa por vezes nos am-
bientes de intensivismo um equilíbrio entre os riscos e benefícios ao
RNPT, enquanto no princípio da beneficência reflete ao princípio de
justiça no esforço terapêutico. Assim toda decisão ética é melhor qua-
lificada quando as informações clínicas estiverem bem estruturadas e
abrangentes, inclusive sobre prognósticos. Uma relevância são para a
medicina baseada em evidências e da valorização dos egos, por status
na medicina, que por vezes não se leva em consideração alguns pontos
de beneficência e maleficência, e acaba por ser uma fonte de ilusões
(Ribeiro e Rego, 2008).
No que se refere a retinopatia estudo de revisão retrospectiva de
uma série de 13 casos de negligência de ROP, a qual envolveu uma
revisão de todo o histórico médico, bem como testemunhos e depoi-
mentos, evidenciou que a qualidade dos problemas de cuidados in-
cluiu falha neonatológica para se referir ou acompanhar em 8 de 13,
falha em supervisionar adequadamente o atendimento de residentes
em 2 de 13, falha oftalmológica em 6 de 13, e falha em diagnosticar e
administrar adequadamente em 9 de 13. O último incluiu 4 dos 13 que
dependiam das questões da zona III e a presença ou ausência de vascu-
larização completa com ou sem doença anterior da zona II. A avaliação
do mérito encontrou erro negligente por pelo menos uma das partes
em 12 de 13. O erro de oftalmologia foi encontrado em 6 de 13. A negli-
gência, ou seja, erro negligente causando danos negligentes, foi julga-
da como presente em 9 de 13. Nesse aspecto, existe um número limi-
tado de erros repetitivos que produzem má prática. Uma explicação de
como esses erros ocorrem, juntamente com a fisiopatologia pertinente,
oferece uma excelente oportunidade para melhorar o atendimento ao
neonato. (Reynolds, 2007)
Dada a especificidade da neonatologia, os profissionais estão utili-
zando a medicina baseada em evidências para melhorar a abordagem
para reduzir a incerteza clínica e garantir que os pacientes recebam tra-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


134 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

tamento e cuidados que sejam eficazes e efetivos. As comparações de


intervenções de saúde existem para determinar qual é o melhor, para
quem e em que circunstâncias. Recentemente, buscou-se por meio da
prova de randomização avaliar a saturação ideal para bebês prematu-
ros que receberam oxigênio. O intervalo de saturação padrão de aten-
dimento aceito de 85-95% foi usado por um tempo considerável e seu
uso é destinado a evitar ambos os níveis de oxigênio, baixos ou altos.
Após a padronização desse intervalo de saturação de oxigênio, estudos
obtiveram redução da retinopatia da prematuridade. (Modi N, 2014)
Estudo brasileiro realizado em 5 UTI Neonatais do Rio de Janeiro,
com 21 enfermeiros, teve por objetivo avaliar um pacote educacional
para enfermeiros com o intuito de melhorar resultados, que incluem a
sobrevivência, taxas de infecção e ROP. Houve dois períodos de coleta
de dados de um ano antes e depois de um período de 3 meses de ad-
ministração do pacote educacional. Foram capacitados para o controle
da dor, oxigenação, infecção, nutrição e temperatura e cuidados de su-
porte. Após a capacitação não ocorreram mudanças estatisticamente
significativa, durante o estudo muitos funcionários treinados deixaram
as unidades, mas poucos foram substituídos. Nesse sentido, estudos
futuros precisam se concentrar em barreiras à implementação, cons-
trução de equipes, liderança, bem como a aquisição de conhecimento
e habilidades (Gilbert et al, 2014).

Considerações finais

A retinopatia da prematuridade é um problema grave que acomete


principalmente os recém-nascidos prematuros menores de 32 sema-
nas de idade gestacional e com peso menor ou igual a 1500g. Em se
tratando do Brasil, nem todas as UTI Neonatais tem profissional quali-
ficado tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento da ROP. De
modo que os recém-nascidos são prejudicados em virtude do risco de
cegueira.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 135
RETINOPATIA DA PREMATURIDADE NO CONTEXTO DA UTI NEONATAL E O PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO

Cabe aos profissionais que atuam em UTI Neonatal implantar


Protocolo de Prevenção e Tratamento de ROP, a prevenção está di-
retamente relacionada aos cuidados com administração de oxigênio.
E o tratamento requer profissional oftalmologista capacitado para o
diagnóstico de ROP e retinólogo para realização do tratamento com
laser, que é o que possui melhor eficácia. Os profissionais precisam
estar atentos ao tempo correto para realização do diagnóstico e tra-
tamento.
Em virtude da demora, especialmente no que se refere ao trata-
mento, na prática diária enquanto Enfermeira na UTI Neonatal, muitos
são os casos em que orientamos e auxiliamos os pais para que solicitem
a avaliação e o tratamento com retinólogo via judicial, pois a demora
poderá ser incorrigível, com implicações sérias ao bebê prematuro.

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138 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA


HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO: UM
DIREITO À SAÚDE

Sandra da Silva Kinalski1


Sandra Leontina Graube2
Vivian Lemes Lobo Bittencourt3

Considerações iniciais

É de conhecimento geral que o recém-nascido após o momento


do seu nascimento necessita de algumas horas para adaptar-se a vida
extrauterina, mesmo que este momento seja considerado um proces-
so fisiológico. Esta adaptação do bebê, esta diretamente relacionada
a manutenção da temperatura corporal e padrão respiratório (BRASIL,
2012).
Quando o recém-nascido apresenta condições e características que
conotam boa vitalidade, é recomendado que ele permaneça ininter-
ruptamente junto de sua mãe após o seu nascimento. São amparadas

1 Sandra da Silva Kinalski. Enfermeira, Especialista em Enfermagem em Terapia Intensiva na Universidade


de Passo Fundo – UPF. Ijuí, RS, Brasil. e-mail: sandrakinalski@yahoo.com.br
2 Sandra Leontina Graube. Enfermeira, Especialista em Gestão Estratégica de Cooperativas de Saúde na
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Ijuí, RS, Brasil. e- mail:
graubesandra@yahoo.com.br
3 Vivian Lemes Lobo Bittencourt. Enfermeira, Professora do Curso de Graduação em Enfermagem na
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/Uri Campus de Santo Ângelo. Mestre
em Atenção Integral à Saúde. Santo Ângelo, RS, Brasil. e-mail: vivillobo@hotmail.com

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 139
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

pela legislação atividades assistenciais acerca do cuidado, como clam-


peamento e secção do cordão umbilical devem ser realizadas somente
depois de cessadas as pulsações e o contato pele a pele com a mãe, o
que promove a amamentação na primeira hora de vida (SBP, 2016).
Muito tem se discutido no Brasil acerca da política de saúde da
criança que tem elegido, dentre outras, as ações de promoção e am-
paro ao aleitamento materno (AM), e a amamentação na primeira hora
de vida é um plano crucial para redução da mortalidade infantil no país
(ROCHA, 2014). Com isso, se torna importante estudar junto as puérpe-
ras usuárias dos serviços, se o que esta preconizado na legislação brasi-
leira ocorre de fato na prática assistencial.
O recém-nascido deve ter contato “pele a pele” com a mãe imedia-
tamente após o seu nascimento, o que favorece a primeira mamada.
O recém-nascido deve ser posicionado sobre o tórax ou abdômen de
sua mãe, coberto com um pano seco e aquecido de acordo com sua
vontade. Essa é uma das recomendações do Ministério da Saúde (MS)
para o nascimento de bebês com ritmo respiratório normal, segunda
a portaria nº371 de 7 de maio de 2014, que atualiza as diretrizes para
a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido no
Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL,2014).
A portaria recomenda ainda que o aleitamento materno na primei-
ra hora de vida do bebê não seja realizado em casos de mães portado-
ras do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) ou com vírus T-linfotró-
pico humano  (HTLV) positivas e propõe também que o exame físico,
pesagem e vacinação do recém-nascido, entre outros procedimentos,
sejam feitos apenas depois da sua primeira hora de vida (BRASI, 2014).
O contato pele a pele orientado pela portaria facilita a amamen-
tação, que logo após o nascimento é tão importante para a saúde da
mulher como também para a saúde da criança. Ao nascer a criança esta
muito ativa e nos momentos seguintes acaba caindo no sono. Nesse
primeiro momento que o bebê nasce ativo é importante fazer a pri-
meira sucção “a primeira mamada”, assim, estimulando a descida do

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


140 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

leite. No momento que o bebê nasce a mãe não está com a mama cheia
de leite e quando ele suga o peito, gera uma estimulação que facilita
a descida. Quando o recém-nascido acordar faminto após o primeiro
sono vai encontrar o peito com mais leite e isso facilita o sucesso de
todo o processo de aleitamento materno.
Para Boccolini et all (2013) o aleitamento materno na primeira hora
de vida é uma prática que atua na redução da morbimortalidade neo-
natal e quanto mais se prorroga o início do aleitamen­to materno, maio-
res as chances de mortalidade neonatal causadas por infecções.
Amamentar ultrapassa a simples ação de nutrição e torna-se um
gesto de amor, a interação entre mãe e filho institui vínculo indissociá-
vel, com repercussões no estado nutricional da criança, em sua imuni-
dade a infecções, no seu desenvolvimento cognitivo e emocional, oca-
sionando implicações positivas na saúde física e psíquica da mãe que
se descobre capaz de cuidar e nutrir.
O leite materno contém componentes imunológicos que o carac-
terizam como único e inimitável, assim é de grande importância para o
bebê na prevenção de infecções e alergias, bem como diminui o risco
de comorbidades futuras como hipertensão arterial sistêmica (HAS),
dislipidemia, diabetes, obesidade, entre outros (BRASIL ESTEVES, 2014).
A promoção ao aleitamento materno deve ser estimulada na rede
básica, tão logo a gravidez seja identificada, a gestação é uma etapa
chave para a promoção do aleitamento materno, pois é nesse período
que a maioria das mulheres define os padrões de alimentação que es-
pera praticar com seu filho (MORAIS TEIXEIRA, 2013).
No que tange a importância da amamentação na primeira hora,
faz-se necessário que as mães sejam estimuladas pela equipe multidis-
ciplinar a amamentar ainda na sala de parto. Para Fontes Figueredo et
all (2012) nesse cenário, a mulher deve ser respeitada em sua individu-
alidade e especificidade cultural, e pode tornar-se sujeito desta prática.
Não basta ao profissional de saúde ter conhecimentos básicos e habi-
lidades em aleitamento materno. Ele precisa ter, também ter compe-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 141
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

tência para comunicar-se com eficiência, usualmente facilitado com a


técnica de aconselhamento em amamentação.
Aconselhar não significa dizer à mulher o que ela deve fazer; signi-
fica ajudá-la a tomar decisões, após ouvi-la, entendê-la e dialogar com
ela sobre os prós e contras das opções. No aconselhamento é importan-
te que as mulheres sintam que o profissional, se interessa pelo bem-es-
tar delas e de seu filho, para que elas adquiram confiança e, se sintam
apoiadas e acolhidas. Em outras palavras, o aconselhamento, por meio
do diálogo, ajuda a mulher a tomar decisões, além de desenvolver sua
confiança no profissional, resgatando a história da amamentação em
seus antepassados (BOSI; MACHADO, 2012).
O enfermeiro deve também atuar junto aos demais profissionais da
enfermagem e da saúde na busca de informá-los, sensibilizá-los e inte-
grá-los ao programa de incentivo, promoção e apoio à amamentação
na primeira hora de vida. Para isso deve-se buscar conhecimento cien-
tífico, desenvolver competência técnica e de comunicação (AMORIM;
DE ANDRADE, 2014).
Cabe aos profissionais de enfermagem a função de facilitadores,
no que se refere ao esclarecimento para as gestantes sobre a prática da
amamentação precoce. O Ministério da Saúde apresenta um guia de re-
comendações para os profissionais de saúde para que possam observar
durante a amamentação. Entre as principais destacam-se a vestimen-
ta adequada que permita movimentos; o posicionamento confortável
tanto da mãe como do filho; o contato pele a pele; a mama disposta
livremente, possibilitando contato entre a boca do bebê e a aréola; as
vias aéreas do recém-nascido livres; o correto abocanhamento do ma-
milo; a movimentação de mandíbula do bebê; a deglutição visível e/ou
audível (BRASIL, 2015).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve pontos-chaves
que caracterizam o posicionamento e pega adequados respectivamen-
te: rosto do bebê de frente para a mama, com nariz na altura do ma-
milo; corpo do bebê próximo ao da mãe; bebê com cabeça e tronco

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


142 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

alinhados (pescoço não torcido); bebê bem apoiado; aréola visível aci-
ma da boca do bebê; boca bem aberta; lábio inferior virado para fora;
queixo tocando a mama.
Silva et al (2016) corroboram destacando que a técnica incorreta
de amamentação realizado por nutrizes desencadeia sinais indicativos
como bochechas do bebê encovadas a cada sucção; ruídos da língua;
mama aparentando estar esticada ou deformada durante a mamada;
mamilos com estrias vermelhas ou áreas esbranquiçadas ou achatadas
quando o bebê solta a mama e dor na amamentação. Tais indícios con-
tribuem para o desmame precoce.
Com o intuito de garantir a oferta de leite materno ao recém-nas-
cido e por conseguinte proporcionar vantagens do ato de amamentar
tanto para mãe como para o filho e os profissionais de saúde devem
atuar na promoção da amamentação e prevenção de traumas físicos
e psicológicos provenientes de técnicas incorretas. Para tanto orienta-
ções precoces para a preparação do mamilo e manobras de fortaleci-
mento deste contribuem para a adesão ao aleitamento por parte das
nutrizes (COSTA et al, 2013).
Entre os fatores que influenciam o desmame precoce está o pouco
conhecimento das mães sobre o ato de amamentar. Deste modo os
profissionais de saúde são de fundamental importância na avaliação de
sinais e sintomas que possam dificultar a amamentação, bem como na
disseminação deste conhecimento.
Entre as principais dificuldades encontradas pelas nutrizes du-
rante a amamentação está a presença de ingurgitamento, apresen-
tado por aréola tensa, endurecida, o que dificulta à pega. A inefi-
ciente preparação das mamas para a amamentação e o pouco forta-
lecimento dos mamilos, também estão associados a falta de adesão
a amamentação. Para tais condições o esgotamento da mama ante-
rior a mamada e o uso de conchas ou sutiãs com um orifício central
para alongar os mamilos são respectivamente eficazes (SHIMODA et
al, 2014).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 143
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

É importante lembrar a mãe que cada bebê é único e responde de


maneiras diferentes às diversas experiências. Comparações com filhos
anteriores ou com outras crianças podem atrapalhar a interação entre
a mãe e o bebê e uma futura relação harmônica O enfermeiro deve
orientar a mãe em relação ao comportamento do recém-nascido, que
é muito variável e depende de vários fatores, como idade gestacional,
personalidade e sensibilidade do bebê, experiências intrauterinas, vi-
vência do parto e, diversos fatores ambientais, incluindo estado emo-
cional da mãe. (ROLLA; GONÇALVES, 2012).
A mãe deve ser orientada a responder prontamente às necessida-
des do seu bebê, não temer que isso vá deixá-lo “manhoso” ou “super-
dependente” mais tarde. Carinho, proteção e pronto atendimento das
necessidades do bebê só tendem a aumentar a sua confiança, favore-
cendo a sua independência em tempo apropriado (BRASIL, 2015).
A compreensão que as mulheres têm sobre o aleitamento materno
influencia diretamente as suas atitudes quanto ao ato de amamentar.
Por isso é relevante que elas tenham acesso ao conhecimento dos be-
nefícios, que a amamentação traz, bem como que os profissionais de
saúde as orientem para se evitar o desmame precoce (FONSECA-MA-
CHADO et al, 2012).
Segundo dados informados pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) a cada ano mais de quatro milhões de bebês mor-
rem nos primeiros 27 dias de vida (período neonatal), sendo que quase
todas essas mortes acontecem nos países mais pobres (BRASIL, 2009).
Nesse contexto, a promoção do aleitamento materno é uma das es-
tratégias de maior custo-eficiência para melhorar a saúde infantil, e a
adoção da amamen­tação na primeira hora de vida como rotina fica evi-
denciada.
O aleitamento materno na primeira hora de vida é importante tan-
to para o bebê quanto para a mãe, pois auxilia nas contrações uterinas,
diminuindo o risco de hemorragia. E, além das questões de saúde, a
amamentação fortalece o vínculo afetivo entre mãe e filho. Para a mãe

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


144 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

que amamenta, receber o apoio do pai, da família, dos amigos e dos


profissionais de saúde é fundamental para o sucesso do aleitamento
materno. Estudos indicam, que é possível evitar mortes neonatais por
meio da amamentação desde o primeiro dia de vida da criança, taxa
que pode aumentar consideravelmente se o aleitamento materno não
começar na primeira hora depois do parto, pois a amamentação na pri-
meira hora de vida proporciona nutrientes fundamentais, que protege
os recém-nascidos de doenças fatais e estimula o crescimento e o de-
senvolvimento (DE ALMEIDA; MARTINS FILHO, 2012).
Assim, o presente estudo teve como objetivo relatar a experiência
de enfermeiras sobre a conscientização de gestantes quanto à importân-
cia do aleitamento materno na primeira hora de vida do recém-nascido,
conforme a determinação da portaria nº 371, de 7 de maio de 2014.

1 Desenvolvimento

O presente estudo constitui-se em um projeto de intervenção pro-


fissional que pretende intervir em um problema, elaborando ações
para resolubilidade do mesmo. Pesquisa de abordagem qualitativa,
aplicada, do tipo prática educativa (MINAYO, 2014).
A pesquisa aplicada exige uma busca de conhecimento científico,
para auxiliar na solução de problemas no âmbito das ciências da saúde,
que frequentemente possuem origem do conhecimento empírico en-
raizado no ambiente. Fortalecendo a compreensão, Bell (2016) destaca
que a pesquisa aplicada tem como motivação a produção de conheci-
mento com o objetivo de contribuir para prática, visando à solução de
problemas encontrados na realidade.
O projeto de intervenção suscitado a partir de uma vivência da prá-
tica do curso de Enfermagem de uma Universidade privada desenvolvi-
do em um Hospital geral filantrópico de médio porte. O Estágio prático
proporciona aliar a teoria, adquirida nas disciplinas do curso e a prática
desenvolvida no campo de estágio na estratégia de saúde da família.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 145
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

A intervenção educacional foi realizada durante o encontro de um


grupo de gestantes assistidas por uma Estratégia de Saúde da Família
(ESF) e a abordagem do tema foi realizada por meio de uma roda de
conversa (MOURA; LIMA, 2014). O grupo estava composto por 10 ges-
tantes e possui encontros mensais. A intervenção ocorreu durante o
mês de maio de 2016.
Para abordar o tema foi criado um folder contendo os seguintes
assuntos: cuidados sobre ao aleitamento materno, cuidados com o
coto umbilical, teste do pezinho, calendário vacinal inicial. Este folder
foi utilizado como uma ferramenta informativa para trabalhar em roda
de conversa.
A Reunião foi realizada em maio de 2016, tendo como local o salão
de eventos do município onde a ESF está inserida. A enfermeira da ESF
explicou o que seria realizado naquele encontro e deu-se o início da
aplicação do projeto de intervenção. Em um primeiro momento as ges-
tantes foram questionadas sobre seus conhecimentos sobre a impor-
tância do aleitamento materno na primeira hora de vida, as respostas
foram desmotivadoras pois pode-se perceber que a elas não sabiam a
real importância do aleitamento na primeira hora de vida.
O benefício que a sucção precoce realizada na primeira hora de
vida do bebê proporciona para a saúde da mulher é a produção do hor-
mônio denominado ocitocina, responsável pela contração uterina. Esse
hormônio natural protege a mãe atuando de duas formas: primeiro au-
xiliando na eliminação da placenta, e segundo protegendo a mãe da
hemorragia uterina, considerada uma das principais causas de morte
materna (LEMES et al, 2015)
Algumas gestantes citaram que alguns médicos mencionaram em
suas consultas sobre a prática, outras falaram que a falta de tempo e a
sobrecarga de trabalho dos profissionais da saúde impedem a dissemi-
nação da prática. Após esse momento realizou-se a entrega de folders
explicativos sobre a importância do aleitamento materno na primeira
hora de vida. Abordou-se que o MS preconiza este hábito nas institui-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


146 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

ções de saúde e que os profissionais coloquem o recém-nascido no seio


materno logo após o parto. Realizou-se a abordagem também sobre a
pega correta que a mãe deve fazer ao colocar o recém-nascido no seio.

Considerações finais

Este relato de experiência buscou descrever a experiência de enfer-


meiras sobre a conscientização de gestantes quanto à importância do
aleitamento materno na primeira hora de vida do recém-nascido con-
forme o que orienta a legislação. A partir da construção e aplicação do
projeto de educação em saúde, percebeu-se a relevância e a necessida-
de de reforçar esta ação junto as gestantes e também aos profissionais
de saúde, a fim de que estes tornem-se multiplicadores e executores
desta legislação que objetiva de forma global a saúde e bem-estar do
binômio mãe e filho.
Pode-se dizer que os objetivos foram atingidos, porque foram tra-
balhadas a conscientização e a importância desta prática para a saúde
da gestante e do recém-nascido, assim como as gestantes foram incen-
tivadas a ter um olhar mais atento sobre este cuidado e a importância
de fazê-los corretamente. Conseguiu-se proporcionar um momento
para reflexão acerca destes temas e conscientizá-las que esta ação é
um ato amparado em lei que proporciona a mãe a ao seu filho o direito
à sua saúde, com qualidade e benefícios que devem ser exigidos como
direto próprio e dever das instituições as quais prestam assistência as
gestantes no momento do nascimento de seus filhos.
A possibilidade de refletir sobre a conscientização de gestantes
quanto à importância do aleitamento materno na primeira hora de
vida do recém-nascido foi significativa e enriquecedora para os as-
pectos acadêmicos e profissionais. Espera-se que este estudo instigue
os profissionais da saúde para que efetivem na prática assistencial o
que é um direito das puérperas e seus filhos previstos na legislação
e que futuras mães tenham consciência da importância e dos bene-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 147
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

fícios desta ação tão simples, porém tão benéfica para a saúde do bi-
nômio mãe e filho.

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


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ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 149
ALEITAMENTO MATERNO NA PRIMEIRA HORA DE VIDA DO RECÉM-NASCIDO

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ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


150 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO
DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS: A VISÃO
DOS EMPRESÁRIOS DAS PEQUENAS E MÉDIAS
EMPRESAS

Roseli Fistarol Krüger1


Denize Grzybovski2

Considerações iniciais

Direitos Humanos é um tema que remete a reflexão paradoxal da


noção de desenvolvimento. Até o século XX acentuou-se os debates
capitalista a cerca do desenvolvimento econômico como meio de pro-
porcionar a melhoria da qualidade de vida do ser humano no sentido
de garantir acesso ao consumo, status e conforto. Contudo, o aumen-
to do consumo implica, muitas vezes, em impactos sobre o meio am-
biente e em estados de bem-estar social (BRUM, 1997; FURTADO, 1998;
CARDOSO; FALETTO, 2004).
Em contrapartida, o desenvolvimento sustentável se assenta na vi-
são de equilíbrio das práticas produtivas com o meio ambiente natural,
conforme defendido por Israel Klabin presidente da Fundação Brasilei-
1 Graduada em Administração, mestra em Desenvolvimento e Aluna no Curso de Doutorado em
Desenvolvimento Regional pela Unijuí, Bolsista PROSUP/CAPES, rfistarol@gmail.com.
2 Docente permanente do  PPGAdm da Universidade de Passo Fundo – UPF. Professora Convidada no
PPGDR da Unijuí. Doutora em Administração pela Universidade Federal de Lavras – UFLA, gdenize@
upf.br.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 151
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

ra para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), e o bem-estar humano


ininterruptamente evidenciado por Ignacy Sachs. Este bem-estar hu-
mano somando a uma nova proposta de economia é cognominado por
Sampaio (2010) de bem viver. Ambas as abordagens são propulsoras
da qualidade de vida de forma mais equilibrada.
Para Foladori (2002), no século passado quando se falava sobre
meio ambiente, o discurso se referia à natureza como externa ao ser
humano. Esta visão de externalidade fazia com que a qualidade de vida
não fosse atribuída às questões da preservação ambiental. Todavia, o
discurso atual versa sobre crise ambiental e desenvolvimento humano
saudável, considerando o ser humano como parte do meio ambiente.
O conceito de desenvolvimento sustentável deriva da integração da
sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Apesar dos avanços do percurso epistemológico da sustentabili-
dade no discurso do desenvolvimento sustentável, tanto nas políticas
públicas para o desenvolvimento quanto nas discussões acadêmicas,
existem barreiras impostas pela lógica do sistema capitalista, que limi-
ta seu aprofundamento, em especial na dimensão social (FOLADORI,
2002). Isso contribui para a falta de consenso sobre o significado atri-
buído à sustentabilidade.
Na primeira metade do século XX, conforme vários autores, a maior
parte da população estava preocupada em desfrutar das promessas de
consumo que a sociedade capitalista apresentava com o sistema fordista
de produção, bem como, mitigar os abalos causados pelas duas guerras
mundiais e pela “Grande Depressão” econômica que assolava o mundo.
Foi estabelecido um modo de desenvolvimento humano baseado na
combinação entre utilitarismo econômico, fruto da dinâmica capitalista,
e o chamado darwinismo social, resultado da dinâmica de um mercado
autorregulado, ocasionando uma racionalidade social egocêntrica, cen-
trada no cálculo de consequências de ganho econômico individual.
No fim do século XX, inicia-se um movimento em busca da susten-
tabilidade social e ambiental. A solidez de tais ideias se materializa em

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


152 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

1987, no Relatório Brundtland, o qual propõe à comunidade internacio-


nal o pensar no “Nosso Futuro Comum” (WORLD, 1987). A consagração
das propostas em ações efetivas ocorre na Rio92 e tem continuidade
nas Rios3 e nas Conferências de Partes (COPs)4. Além de outros tratados
importantes, pode ser citado que a COP3 de 1997 resultou na assinatu-
ra do Protocolo de Kyoto5 (VIOLA, 2002).
A consciência do equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e
os fatores sociais e ambientais tem evoluído como questão vital para a
manutenção e qualidade da vida humana. Albuquerque (2009) advo-
ga que esta conscientização ocorre em alguns países através do pro-
gresso do conhecimento, tornando a sociedade do conhecimento6 um
fator fundamental, racional e transformador para o desenvolvimento
sustentável. Cabe enfatizar também, o pensamento do professor Omar
Aktouf de que as empresas devem ser rentáveis, mas não à custa do
sofrimento de seus empregados ou da degradação do ambiente.
Apesar das áreas de conformidades, os valores sociais e empresa-
riais têm diferentes abordagens em todo o mundo, mas é neste cenário
que o desenvolvimento sustentável é posto em exercício. Conforme
Almeida (2007), a forma como os serviços ambientais são utilizados im-
pactam nas condições em que as empresas operam, por este motivo,
cada empresa é corresponsável pelo impacto social e ambiental produ-
zido na sua cadeia de valor.
Observa-se que, após longo período em que os líderes empresariais
promoveram a criação de valor econômico, sem se preocupar com os
valores sociais e éticos, o conceito de sustentabilidade está, gradativa-

3 As Rios são Conferências das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável e contam os anos a
partir da Rio 92. A Rio+20 foi realizada em 2012 e marcou os 20 anos que se passaram desde a Rio 92.
4 As Conferências COP foram realizadas em todas as partes do mundo. A primeira aconteceu em 1995,
em Berlim, na Alemanha. Na COP 3 o Protocolo de Kyoto foi aprovado.
5 É um tratado internacional com compromissos mais rígidos para a redução da emissão dos gases que
agravam o efeito estufa, discutido e negociado em Quioto, no Japão, em 1997.
6 A sociedade do conhecimento é baseada no uso compartilhado de recursos, na construção coletiva
de conhecimento, na interação livre de restrições de espaço e tempo e, na valorização do direito à
informação, às tecnologias de informação e comunicação e à educação, como um bem comum.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 153
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

mente, sendo inserido no processo decisório empresarial em diferentes


velocidades e contextos, conforme destacado nos estudos de Luciano
Munck professor e pesquisador da Universidade Estadual de Londrina.
Elkington (2012) afirma que as tentativas para conduzir as empre-
sas na direção da sustentabilidade geram ação e reação, apoio e re-
sistência. Na fase inicial do assunto, são lançadas muitas ideias sobre
as relações homem-natureza (SOUZA, 2000), mas que não encontram
ainda um ambiente econômico e social configurado para refletir sobre
elas nos estágios mais avançados do debate (DONAIRE, 1999; SOUZA,
2000; MUNCK, 2015).
Trata-se de um trabalho que envolve a dimensão individual e co-
letiva, que busca auxiliar na mudança de modelos mentais e na trans-
formação da cultura organizacional, com maior transparência nas in-
formações sobre a situação dos negócios e sobre o que está sendo pla-
nejado para o futuro (DONAIRE, 1999; DIAS, 2006; ELKINGTON, 2012;
MUNCK, 2015). É um fato de mútua interação, que influencia na tomada
de decisões gerenciais e atinge o sistema de valores dos clientes que
fornece os parâmetros para a avaliação das empresas (DONAIRE, 1999;
BM&FBOVESPA, 2015).
Por outro lado, novas oportunidades de negócios surgem sob a for-
ma de mecanismos e métodos mais eficientes para o uso dos recursos
ambientais (DIAS, 2006; ALMEIDA, 2007). O principal desafio das orga-
nizações quanto às implicações da sustentabilidade em suas atividades
refere-se à responsabilidade que se inicia na cadeia de fornecedores
e vai até findar a vida útil do produto que foi produzido pela empresa
industrial (DIAS, 2006; JABBOUR; SANTOS, 2007; DRAIBE; RIESCO, 2011;
BARBOZA; ARRUDA FILHO, 2012).
Para Sachs (2009) e Almeida (2007), a degradação ambiental é di-
ferenciada nos diversos níveis socioeconômicos do desenvolvimento
sustentável, assim como seus impactos primários atingem a Humani-
dade de modo inversamente proporcional à classe social, isto é, quem
menos degrada é quem mais sofre as consequências da degradação.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


154 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

Porém, a deterioração dos ecossistemas globais pode afetar negativa-


mente as empresas, impondo-lhes restrições operacionais ou indicar
oportunidades de criação de valor, alterando as decisões de investi-
mentos e o valor de ativos (ABRANCHES, 2010).
Nesta perspectiva, as empresas industriais do século XXI não terão
espaço para negligências no uso e consumo dos recursos (DIAS, 2006;
ARAGÃO, 2010), pois diferentes variáveis afetam o ambiente dos negó-
cios e a preocupação com a sustentabilidade vem adquirindo destaque
nos modelos de gestão (DONAIRE, 1999). É um período de adaptação
e reestruturação dos modelos de negócios já existentes, formando um
campo com muitas oportunidades para novos empreendimentos, no-
vas práticas e novos processos.
Na dimensão política, quando o assunto se refere ao desenvolvi-
mento, é imprescindível que seja levando em consideração os limites
do ecossistema e a necessidade de formulação de políticas públicas
conjuntas entre Estado, mercado e sociedade. Esta atitude coloca a hu-
manidade diante do desafio de planejar o desenvolvimento com base
na qualidade de vida, consumo consciente, inclusão social, direito à
saúde, educação, segurança etc.
O trabalho entre Estado, mercado e sociedade deve ser participa-
tivo e descentralizado, segundo Fernandes e Sant’Anna (2002). Para
Sampaio e Fernandes (2006), esse novo modelo social impõem outra
forma de racionalidade, distinta da instrumental, construída a partir da
participação e do engajamento da sociedade civil e dos recursos locais,
para planejar um novo estilo de desenvolvimento por meio de estraté-
gias concretas de intervenção corretivas.
Fica entendido que, apesar da lógica de contradição do termo de-
senvolvimento sustentável, a compreensão e definição do termo têm
evoluído, principalmente, com a inclusão das dimensões econômica,
social e ambiental e o debate sobre a importância do equilíbrio des-
tas para a sustentabilidade empresarial. A inclusão destas dimensões
resultou na compreensão do desafio para o meio empresarial de cons-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 155
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

tituir empresas economicamente viáveis, ambientalmente corretas e


socialmente justas.

1 Desenvolvimento

Para apresentar os aspectos subjacentes na visão dos gestores so-


bre o tema sustentabilidade empresarial e a sua contribuição para a
qualidade de vida, foi desenvolvido um arcabouço teórico entre os te-
mas desenvolvimento sustentável e sustentabilidade empresarial. Con-
forme Donaire (1999), a visão tradicional da empresa é de uma institui-
ção econômica que tem seu foco na maximização dos lucros, minimiza-
ção dos custos e, por vezes, ignorando as questões sociais e ambientais
no processo de tomada de decisões. Em função disso, desconsidera as
consequências das decisões internas como influenciadoras no contex-
to socioambiental e, logo, na qualidade de vida das pessoas.
Munasinghe (2015) reforça a expansão da visão organizacional
tradicional, de base exclusivamente econômica, para contemplar as
dimensões sociais e ambientais, formando os pilares da sustenta-
bilidade. O autor sintetizou essa proposta no modelo Triple Bottom
Line (TBL). Nele, o pilar econômico contempla os aspectos da sus-
tentabilidade econômica, que engloba os capitais financeiro, físico,
humano, intelectual, natural e social das organizações. Para Oliveira
(2005), essa dimensão também suporta as atividades de produção e
desempenha um equilíbrio inter-setorial no desenvolvimento eco-
nômico.
No pilar social, Elkington (2012) considera o capital humano na
forma de saúde, habilidades e educação, contemplando medidas mais
amplas de saúde da sociedade e do potencial de criação de riqueza.
Oliveira (2005) defende que a sustentabilidade social está na busca de
equidade na distribuição de renda e de bens, diminuindo a desigualda-
de social entre ricos e pobres e promovendo a igualdade de acesso a
recursos, emprego e serviços sociais.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


156 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

No pilar ambiental, o capital natural pode ser visto de duas for-


mas principais: o essencial para a manutenção da vida e da integridade
do ecossistema e aquele renovável ou substituível, isto é, que pode ser
renovado, recuperado ou substituído. Na publicação do WBCSD, Pilot
project implemented in the US by 23 leading companies reveals promising
opportunities to eliminate industrial waste, o renovável encontra-se pre-
sente nas práticas de reciclagem, na redução da geração de resíduos e
poluição, na preservação dos recursos naturais, na produção de recur-
sos renováveis e na descontinuidade do uso dos não renováveis.
A sociedade pressiona as empresas e seus gestores por meio da
exigência de disponibilização de produtos certificados e ações susten-
táveis, que têm o Relatório Brundtland, a Agenda 21 e o Protocolo de
Kyoto7 como marcos na evolução da consciência ambiental. Trata-se
de uma gestão empresarial ambiental proativa, bem como da expo-
sição de diversos desafios relativos à efetividade das práticas nas em-
presas (DONAIRE, 1999; BORCHARDT et al., 2008; ALBUQUERQUE et al.,
2009).
Argumenta-se, então, sobre a questão da sustentabilidade empre-
sarial nas pequenas e médias empresas industriais (PMEIs), contextua-
lizando a respeito da visão dos gestores no que se refere à sustentabili-
dade e sua interação com a qualidade de vida. Parte-se do pressuposto
que a influência da visão do gestor nas empresas de menor porte con-
tribua para a formação da consciência social e ambiental. No Brasil, pe-
quenas e médias empresas representam 99% do número total de em-
presas no território nacional8 e as reflexões a respeito do compromisso
destas com as questões da sustentabilidade podem estar encobertas
pelas questões legais ou específicas para as grandes empresas.
Verifica-se que a abordagem empresarial do tema sustentabi-
lidade é importante num contexto em que as influências de temas
7 O Brasil ratificou o documento em 23 de agosto de 2002, tendo sua aprovação interna através do
Decreto Legislativo nº 144 de 2002.
8 O Brasil tem mais de 6 milhões de micro e pequenas empresas, que totalizam 99% dos negócios do país. A
pesquisa foi feita pelo Sebrae em parceria com o Dieese, entre 2000 e 2011. 

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 157
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

globais crescem e afetam a qualidade de vida em diferentes regiões/


territórios/contextos. Assim sendo, cabem questionamentos: Qual a
visão dos gestores de PMEIs sobre o tema sustentabilidade empresarial?
Esta visão influencia na qualidade de vida das pessoas? Quais os efeitos
prováveis dessa influência? Para responder estas questões, foram utili-
zadas entrevistas com gestores de empresas industriais de pequeno e
médio porte de Ijuí/RS, divida em abordagem geral e nas dimensões
econômica, social e ambiental, para analisar e apresentar a visão dos
gestores.
A pesquisa foi orientada pelo paradigma interpretativista e méto-
do fenomenológico. Trata-se de uma pesquisa exploratória, descritiva
e qualitativa, com estratégia de estudo de casos múltiplos (YIN, 2005).
O procedimento de análise dos dados adotado foi análise de conteúdo,
como orienta Bardin (2011). As fases da análise de conteúdo realizadas
foram: pré-análise (A), exploração do material (B) e tratamento dos re-
sultados obtidos e interpretação (C). Como técnica de análise dos da-
dos foi utilizada a análise categorial e a análise das relações, por meio
das coocorrências das variáveis socioeconômica, socioambiental e eco-
nômico-ambiental ou puramente nas variáveis econômica, social e am-
biental, identificadas nos relatos dos gestores. Nesse percurso analítico,
buscou-se identificar a proximidade da variável com a sustentabilidade
empresarial.
Os dados coletados e analisados evidenciam que a sustentabilida-
de empresarial das PMEIs investigadas tem suas bases analíticas e de
valores cunhada no sistema econômico capitalista (DIAS, 2006) e re-
mete ao pensar dos gestores tradicionais das empresas industriais (DO-
NAIRE, 1999) descritos nos clássicos da Teoria Geral da Administração.
Nas narrativas dos gestores também surgem menções a respeito da
fabricação de um determinado produto que degrada o meio ambiente
como alternativa para garantir o faturamento ou com a justificativa de
ser “adubo” para a terra. Porém, é percebida a sensibilização para as
questões sociais e ambientais, mesmo que ainda de modo introvertido.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


158 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

O argumento de escassez de recursos financeiros para investir na


dimensão social é percebido quando os entrevistados citam benefí-
cios legais ofertados aos funcionários como ação da dimensão social,
tornando evidente a hierarquização das prioridades econômicas fren-
te às sociais. Na mesma linha de pensamento, na dimensão ambiental
constata-se a presença do sentido de obrigação legal e não pela cons-
cientização dos impactos ambientais. Para Israel Klabin, presidente da
Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), os
empresários da atualidade não se percebem responsáveis pelos impac-
tos ambientais (e sociais)9 que os seus empreendimentos ocasionam,
isso pode ser atribuído e maximizado, pela falta de efetividade das po-
líticas públicas atuais.
Para apresentar a análise integrada apreendida nas narrativas dos
gestores das PMEIs estudadas, foi construído o Quadro 1.

Quadro 1 - Visão dos gestores sobre da sustentabilidade


empresarial.

Dimensão
Dimensão Pergunta Elementos abordados na visão
identificada
Paciência, persistência, mercados e
Econômica
O que o senhor produto.
Dimensão (a) entende por
Produto, mercado e redução de custos. Econômica
Geral sustentabilidade
empresarial? Engenharia, criação, inovação e
Econômica
mercado.
Controles, centralização, critérios de
Econômica
Em sua opinião, compra e economia.
quais são as Controles, estoque enxuto, domínio
Dimensão melhores práticas do processo produtivo e controle de Econômica
Econômica para o sucesso compras.
econômico da sua Conhecer o produto, qualidade,
empresa? preço competitivo e disseminação do Econômica
conhecimento.

9 Inclusão das autoras.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 159
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

Responsabilidade em produzir
alimento, informações no rótulo,
Como a sua crédito financeiro e desenvolvimento Socioeconômica
empresa pode para os funcionários, doações e
influenciar a voluntariado.
Dimensão
comunidade, Qualidade no produto, confiabilidade
Social
os funcionários, do cliente, qualidade dos fornecedores Socioeconômica
clientes e e manter funcionários empregados.
fornecedores? Dificuldades financeiras, bons
relacionamentos, rotatividade e falta de Socioeconômica
comprometimento.
Sofrimento, incerteza e morosidade dos Econômica-
Em sua opinião, órgãos públicos. Ambiental
qual é a ETE como obrigação, gás R22, controle
importância da Econômica-
Dimensão do consumo de energia e falta de
preservação Ambiental
Ambiental incentivos financeiros públicos.
ambiental para a Desenvolve produtos ecologicamente
administração da corretos para preservação do solo e Econômica-
sua empresa? produz os degradantes para manter o Ambiental
faturamento.
Fonte: A pesquisa.

O discurso utilizado na Dimensão Geral sobre sustentabilidade re-


mete ao mercado, produto (diferenciação, criação e tendências) e pro-
cessos, o que destaca a preocupação com o desenvolvimento finan-
ceiro PMEIs. Esta visão é influenciada, principalmente, pela dimensão
econômica, a qual garante, sobretudo, o lucro empresarial. Evidenciou-
se também que os gestores praticam análise do custo-benefício para
os investimentos nas três dimensões, como exemplo pode ser citado
à redução de desperdício no processo produtivo, que foi apresentado
na dimensão ambiental, mas com destaque aos ganhos econômicos de
curto prazo.
Na dimensão social, são apresentados aspectos direcionados aos
clientes no sentido de que é necessário manter a qualidade para o
cliente continuar escolhendo consumir o produto da empresa frente
à concorrência. Por este motivo escolhem fornecedores de confiança
e com qualidade na matéria-prima fornecida, o que corrobora com a

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


160 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

qualidade do produto e compreende ainda a preocupação com a ven-


da para o cliente. Quanto às contribuições para a comunidade local, os
empresários destacaram que subsidiam parte das solicitações de enti-
dades beneficentes, fazem ações de doações e voluntariado.
A principal restrição da dimensão ambiental foi percebida em re-
lação aos investimentos que não exigidos legalmente, como a energia
solar e a coleta e tratamento da água para reutilização no processo fa-
bril. Os gestores demonstram interesse sobre estas questões, mas justi-
ficam que o aporte financeiro inicial é alto e o retorno ocorre em longo
prazo, destacam a necessidade de incentivos governamentais (políti-
cas públicas) para viabilizar esse tipo de investimento.
Para Zylbersztajn e Lins (2010), o conceito de sustentabilidade in-
duz a um novo modelo de gestão que leva em conta as três dimensões
da sustentabilidade. Evidencia-se que os aspectos ligados à dimensão
econômica estão mais desenvolvidos e compreendidos pelos gestores,
isso pode ser associado à utilização, de longa data, do modelo econô-
mico vigente. Nas dimensões social e ambiental é possível identificar
o início da sensibilização dos gestores com o tema. Contudo, a base
da análise ainda é o custo-benefício e as ações acabam condicionadas
ao cumprimento das determinações legais existentes. Nos relatos dos
gestores, constatou-se que atitudes como a separação e destinação de
resíduos, redução de desperdício de material e os conhecimentos am-
bientais básicos, ratificam a existência de insights a respeito das dimen-
sões da sustentabilidade empresarial.

Considerações finais

Este estudo teve o propósito de analisar e apresentar a visão da


sustentabilidade dos gestores das PMEIs, tendo como espaço da pes-
quisa empírica o município de Ijuí, no Estado do Rio Grande do Sul. O
seu desenvolvimento contribuiu para identificar a visão nas dimensões
econômica, social e ambiental da sustentabilidade empresarial, sob a

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 161
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

orientação da teoria do desenvolvimento sustentável. Para tanto, fo-


ram consideradas as singularidades relativas ao porte das empresas,
segmento de atuação, data da fundação e histórico, propriedade e ad-
ministração de famílias empresárias.
A revisão da literatura sobre sustentabilidade empresarial indicou
que não havia modelo analítico para investigar a visão da sustentabili-
dade dos gestores das PMEIs, o que é reforçado por Veleva e Ellenbe-
cker (2000), apesar de serem numericamente as mais representativas
na demografia das empresas brasileiras. Então, foi necessária a constru-
ção de um roteiro de entrevista para contemplar o discurso dos gesto-
res através da orientação do paradigma interpretativista. As dimensões
econômica, social e ambiental são constituintes centrais nesta análise
sobre a visão da sustentabilidade empresarial e buscou-se identificar o
que o gestor entende e reconhece, bem como a importância atribuída
ao tema.
A reflexão desta visão como influenciadora da qualidade de vida
das pessoas e os prováveis efeitos dessa influência, pode ser atribuída
ao fato de que os gestores das PMEIs não ignoram os aspectos sociais
e ambientais, porém a visão da sustentabilidade empresarial ainda tem
profunda relação com a dimensão econômica. A visão é racionalizada,
prezando por relações estratégicas de custo-benefício em curto prazo
que direcionam a visão para a abordagem econômica e ao paradigma
modernista que determinam como as responsabilidades sociais e am-
bientais serão adotadas pelo gestor.
É percebido tacitamente pelos gestores um novo movimento no
intuito de modificar processos produtivos, exigir novas políticas pú-
blicas e contribuir para a melhoria da qualidade de vida da sociedade
em prol do tema desenvolvimento sustentável. Tais mudanças influen-
ciam a forma de gerir as PMEIs. Esta percepção ocorrer, principalmente,
através das notícias veiculadas pela mídia e da aprovação de leis que
protegem a sociedade e o meio ambiente. Segundo Weick, Sutcliffe e
Obstfeld (2005), este movimento desafia os gestores a aproveitar novas

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


162 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

oportunidades e produzir soluções inovadoras que gerem valor econô-


mico e contribuam para o desenvolvimento sustentável, promovendo
a geração de sentido do tema.
O modelo de desenvolvimento atual, com ênfase em aspectos eco-
nômicos, precisa ser repensado e dar espaço a um novo modelo que
compreenda as dimensões econômica, social e ambiental garantido
qualidade de vida a população (AZAPAGIC; PERDAN, 2000). Contem-
plando a migração da abordagem econômica para uma abordagem
que priorize o Triple Bottom Line, sendo esse um fator sine qua non para
a constituição de um modelo de desenvolvimento sustentável que pre-
conize o aumento da qualidade de vida no planeta e a redução dos
efeitos degradantes apresentados na atualidade.
A reflexão defendida por Celso Furtado refere que o estilo de
vida10, preconizado pelo atual modelo de desenvolvimento econômi-
co, elevará a pressão sobre os recursos naturais não renováveis e a
poluição do meio ambiente, ou mesmo o custo do controle da po-
luição, de maneira tal que o sistema econômico mundial entraria em
esgotamento.
Muitas vezes a qualidade de vida é confundida com o estilo de
vida da sociedade do consumo, cabe destacar que a qualidade de
vida refere ao nível das condições básicas e suplementares do ser
humano. Estas condições envolvem desde o bem-estar físico, men-
tal, psicológico e emocional, assim como, os relacionamentos so-
ciais, com a família e os amigos, e também a saúde, a educação e
outros parâmetros que afetam a vida humana. Esta definição deixa
clara a necessidade de evolução para o novo modelo de gestão e de
entendimento do processo de desenvolvimento a fim de garantir a
qualidade de vida.

10 Baseado na sociedade do consumo é utilizado para designar o tipo de sociedade que se encontra


numa avançada etapa de desenvolvimento industrial capitalista e que se caracterizam pelo consumo
massivo de bens e serviços disponíveis.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 163
SUSTENTABILIDADE EMPRESARIAL NO DEBATE DOS DIREITOS HUMANOS

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INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS


DIREITOS HUMANOS: ESTADO, POLÍTICAS
PÚBLICAS E O DIREITO À SAÚDE

Desconfiai do mais trivial, na aparência singela. E examinai, so-


bretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não
aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de
desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade
consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer na-
tural, nada deve parecer impossível de mudar (BERTOLD BRECHT).

Carla Rosângela Binsfeld1


Edson Luiz André de Sousa2

Considerações iniciais

Neste trabalho, busca-se uma reflexão com viés psicanalítico das dife-
rentes perspectivas que a Saúde Pública tem pautado no Sistema Único de
Saúde (SUS) sobre o tema: Saúde como direito humano e dever de estado.

1 Psicóloga, Mestre Ciências da Educação Uninorte, Psicanalista, Especialista em Saúde Mental, Saúde
Coletiva, Psicologia do Trabalho- Faculdade Dom Bosco, Neuropsicologia Projecto, Especialista em
Psicologia Jurídica, entre outras. Emails: carla.binsfeld@hotmail.com ou clinicapensee1@gmail.com.br
2 Psicanalista. Professor Titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de
Psicologia da UFRGS. Professor do PPG de Psicanálise: Clinica e Cultura. Pós- doutorado na Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS) e na Université de Paris VII. Pesquisador do CNPQ.
Coordenador do LAPPAP. Analista membro da APPOA. Email: edsonlasousa@uol.com.br

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 169
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

O percurso na militância dos direitos humanos, percorrido pela Di-


retora do Conselho de Saúde de Cruz Alta-RS, foi decisivo para a es-
colha do tema debatido. Ela também esteve à frente do Conselho da
Comunidade, sendo Coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS-Saúde Mental) na cidade de Cruz Alta; possui um amplo percur-
so na psicanálise, seja através de sua graduação universitária, seja em
outros lugares onde procurou buscar maiores conhecimentos teóricos,
embasando-se assim em um referencial psicanalítico por meio de ou-
tros olhares teóricos e profissionais da área pública.
Pensando na importância do acesso aos serviços de saúde e na ela-
boração do direito do Serviço Único de Saúde, realiza-se um percurso
histórico do cenário político, social e econômico. Diante dessa travessia
social, destaca-se o momento atual que vem sendo marcado por uma
crise de identidade em todas as instituições, nos organismos e inclusive
no próprio estado, que precisa rever suas ações enquanto política de
saúde, entre outras.
O sistema contemporâneo oriundo do capitalismo produz no ci-
dadão, sintoma que geralmente vem acompanhado de um grande so-
frimento, num clima de queixas, de ódio, de raiva e de impotência. Ao
não aprofundar a ideia de sociedade e de Estado, esse cidadão consti-
tui uma cadeia de intolerância aos seus próprios direitos em todos os
espaços públicos e redes sociais, numa espécie de apologia contra os
direitos humanos. A sociedade tem tido o equívoco de que “direitos
humanos é para bandido”, desarticulando a discussão do conceito am-
pliado de saúde nas lutas sociais.
Os movimentos sociais históricos, que começaram nos meados dos
anos 70 e foram impulsionados nos anos 90, reivindicaram entre vários
direitos, o direito à saúde; conseguiram, com muita luta, a sua inclusão
no texto constitucional e propuseram a criação de um sistema público
de saúde. No decorrer da revisão histórica, percebe-se nitidamente as
características e propriedades dos direitos humanos e sua importância
na elaboração e implementação das políticas públicas de saúde. Enal-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


170 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

tece-se a presença da saúde entre os direitos e garantias fundamentais


constitucionais, a partir de uma análise crítica que aponta os desafios
a serem enfrentados para que se alcance a observância integral desse
bem jurídico e fundamental.
A tecnologia nem sempre está a serviço da humanidade: se por um
lado tem-se uma comunicação rápida e eficaz, por outro ponto tudo
gira em torno da vida virtual. Esse novo espaço está sem nenhum li-
mite, escreve-se com senso comum e irresponsabilidade, sem dados
científicos e sem postura ética. Os acontecimentos ocorrem muito rá-
pidos e então se termina como objeto desse tempo veloz, sem refletir
sobre os sentimentos, os direitos e a vida. Pode-se pensar, quando se
observa esse efeito na cultura nos bens de consumo, na forma de vida,
na medicina e nos serviços de saúde, que a vida do ser humano sofre
influência direta da globalização e está traduzida em imagens do con-
sumidor insaciável e exausto diante do mar de mercadorias embaladas
pelas litanias da propaganda; caindo assim o que deveria ser básico na
sociedade: os laços afetivos.
Depara-se com vidas sem presença, massificadas em um ritmo do
estilo “control V ou control C”. Prova disso é que há políticas públicas
escritas em um determinado período da história cuja execução o esta-
do não sustenta na prática, no período atual. As políticas públicas são
como letras mortas em legislações que não são cumpridas: cenário de
hospitais sucateados, falta de médicos, de medicamentos. É assustado-
ra a inércia do povo brasileiro na busca de seus direitos legítimos.
Todo o trabalho de política pública e de análise científica passa por
uma análise sociológica, histórica, antropológica e, por isso, pontuar-se
-á esse momento da cultura que se vive. Vive-se em uma época em que
a vida dos sujeitos tem preço e virou mercadoria; a saúde, que deveria
ser um bem primordial do estado, não tem valor algum, pois é negado
e não serve para o sistema. Não se tem preocupação com o outro, vive-
se em pleno individualismo. O resultado do atual modelo são as mortes
de idosos nos hospitais: sobrevivem os que pagam um bom plano de

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 171
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

saúde, os que tem um bom cuidador e os que tem ainda a possibilida-


de de mover-se. Essa situação, contudo, poderia ser questionada, pois
existe previsão, no Estatuto do Idoso, de tratamento domiciliar.
Esta pesquisa discute a metodologia qualitativa de pesquisa cien-
tífica baseada na leitura da psicologia clínica com referencial psicana-
lítico, por meio das vivências pessoais, conforme acima mencionado.
Assim, a pesquisa qualitativa é sempre uma pesquisa-ação, pois confor-
me a ação vai sendo construída, é também investigada e interpretada,
modificando o próprio processo. A Pesquisa Qualitativa ocorre quando
a ciência é constituída por teorias que resumem e organizam, de forma
racional e coerente, muitas relações colocadas em evidência empirica-
mente. Assim, para Rey (1998, apud Pinto, 2004), a ciência produz zonas
de sentido da realidade do fenômeno estudado e se constitui a partir
de paradigmas e modelos que fornecem problemas e soluções para um
grupo de pesquisadores por um determinado período.
Pinto (2004), professora de metodologia da USP, escreve que a pes-
quisa qualitativa é um paradigma, um conjunto de conceitos, valores
e percepções práticas, aceitos e compartilhados por uma comunidade
científica, a partir de uma determinada concepção da realidade e es-
truturada tendo por base certo tipo de pensamento. A autora refere-se
a Kuhn (1972): um paradigma constitui-se por descobertas científicas
universalmente reconhecidas que, por algum tempo, fornecem tanto
questões como possíveis soluções a um grupo de pesquisadores. O
paradigma, segundo a professora, é portanto, um modelo mental de
referência, uma forma de ver os fenômenos que incluem crenças a par-
tir das quais são filtradas percepções e conteúdos para a interpretação
do mundo. Assim, quando se adota um paradigma, além dos aspectos
cognitivos do conhecimento, incluem- se também os aspectos subjeti-
vos, emocionais e as identificações, implicando a aceitação ou a rejei-
ção das ideias de outros paradigmas concorrentes ou oponentes. Toda
a pesquisa científica implica uma teoria como base e um método como
procedimento.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


172 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

A pesquisa foi realizada por meio de um estudo observacional, des-


critivo e qualitativo com base na análise de artigos encontrados em ba-
ses de dados, tendo como reflexão a história do Serviço Único de Saúde
(SUS) desde sua fundação até este momento. Na contemporaneidade,
as pessoas acabam funcionando como algozes de si mesmas, na me-
dida em que renunciam a lutar por seus direitos. Assim, pergunta-se:
como recuperar os princípios de funcionamento do SUS? É a partir des-
se novo paradigma de um capitalismo desenfreado que está afetando
a vida de todos; do consumir e ser consumido, de a vida perder todo
o seu valor simbólico que se tentará fazer uma reflexão numa costura
dos Direitos Humanos e da Psicanálise, olhando o estado e a ação das
políticas públicas de saúde. Tratar-se-á, em um primeiro momento, de
revisitar a história do Serviço Único de Saúde; em um segundo momen-
to, de abordar a questão da relação entre a Psicanálise e os Direitos
Humanos e, finalmente, de abrir um diálogo entre Direitos Humanos,
Estado e Políticas Públicas.

1 História do Sistema Único de Saúde (SUS)

Atualmente a sociedade brasileira vive um período histórico de


turbulência política e econômica, nunca medidas de fiscalização e de
avaliação se fizeram tão necessárias como neste momento. Quando se
pensa na história do SUS, é impossível não recordar os movimentos das
relações sociais em cada época da história e sistema político existentes.
Na Proclamação da República, em 1889, havia um sistema oligár-
quico, formado por coronéis, políticos intelectuais da época e bacha-
réis, uma oligarquia elitizada, onde a competição eleitoral não existia.
Alguns autores relatam que, na Constituição de 1891, cabia aos estados
a responsabilidade pelas ações de saúde e saneamento, assim como
pelas ações de educação.
Santos (2002, 2005) afirma que a Primeira República enfatizava as
tendências centrífugas, caracterizando-se, entre outros aspectos, por

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 173
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

domínio das oligarquias estaduais e por uma coalizão federal de po-


deres locais atomizados. Dessa forma, pode-se observar a presença
do controle municipal exercido pelas oligarquias regionais, fato que
contribuía para a ausência do sentimento de nacionalidade do povo
brasileiro. Essa ausência de nacionalidade era um dos principais pro-
blemas enfrentados na época pelos intelectuais que queriam construir
a nacionalidade brasileira e fortalecer a presença do Estado em todo o
território nacional. Com a criação da radiocomunicação e dos correios e
telégrafos, abriu-se um novo horizonte para um sistema de comunica-
ção integrado no país, fortalecendo o governo federal nos municípios,
o que gerou forte resistência das oligarquias regionais.
Costa (1985) relata que, no período dos séculos XVIII e XIX, os cien-
tistas europeus buscavam explicações para os quadros de morbidade
que acometiam a população. As pesquisas acerca das doenças basea-
vam-se na observação da morbidade, com registro contínuo dos qua-
dros de adoecimento e de morte (evolução da doença e acompanha-
mento dos casos) e na busca de casualidade e nas formas de transmis-
são das doenças. Começava assim a procura por conhecimento e ações
na área de saúde pública, com a criação, em 1897, da Diretoria Geral
de Saúde Pública e com a criação de institutos específicos de pesquisa,
como o Instituto Soroterápico Federal, criado em 1900 e renomeado
Instituto Oswaldo Cruz (IOC) um ano depois.
Costa (1985) ainda descreve que a reforma na saúde foi projetada
a partir de 1903, sob a coordenação de Oswaldo Cruz, que assumiu a
Diretoria Geral de Saúde Pública. Extensivamente, em prol do sanea-
mento e da reorganização urbana para eliminar os focos de desordem,
a atuação no campo da psiquiatria foi abarcada pela ação de Juliano
Moreira. Em 1904, Oswaldo Cruz propôs um código sanitário que ins-
tituiu a desinfecção, inclusive domiciliar, o arrasamento de edificações
consideradas nocivas à saúde pública, a notificação permanente dos
casos de febre amarela, varíola e peste bubônica e a atuação da po-
lícia sanitária. Ele também realizou sua primeira grande estratégia no

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


174 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

combate às doenças: a campanha de vacinação obrigatória. Seus mé-


todos tornaram-se alvo de discussão e muita crítica, elevando-se com
um movimento popular no Rio de Janeiro, conhecido como a Revolta
da Vacina. Com as condutas de Oswaldo Cruz, avançou-se bastante no
controle e no combate de algumas doenças, além do conhecimento e
conscientização sobre as mesmas. Mas, apesar de as ações de saúde pú-
blica estarem mais voltadas para ações coletivas e preventivas, grande
parte da população ainda não possuía recursos próprios para subsidiar
uma assistência à saúde. É perceptível a luta pela organização da saúde
e do direito à vida, lutando contra os poder econômico evidenciado
por Conil (2002) com suas reflexões sobre o tema da epidemiologia.
As políticas de saúde ocorreram, na virada do século XIX para o sé-
culo XX, com as mudanças no modo de produção, aliando autoritaris-
mo ao nascente cientificismo europeu. Oswaldo Cruz, oriundo do Insti-
tuto Pasteur, enfrentou as epidemias da época (febre amarela e varíola)
que ameaçavam a saúde dos portos e a agroexportação por meio de
campanhas com vacinações e inspeções sanitárias. Ou seja, as primei-
ras ações do Estado na área de saúde tinham um claro interesse econô-
mico, para viabilizar as exportações dos produtos brasileiros. (CONIL,
2002).
No período de janeiro de 1923, buscando referência da Legislação
Argentina sobre a previdência social, o Deputado Eloy Chaves apresen-
tou um Projeto de Lei que propunha a instituição da Caixa de Aposen-
tadoria e Pensões (CAP) para os ferroviários em cada uma das empresas
de estrada de ferro. Esse projeto de Lei foi aprovado pelo Congresso e
sancionado pelo Presidente da República, transformando-se no Decre-
to nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923, conhecido depois como “Lei Eloy
Chaves”:
Esta caixa de proteção social foi influenciada também pelo mo-
delo previdenciário inglês de seguro e propunha atender como
relata o discurso do parlamentar da época: “soccorros médicos
em caso de doença em sua pessoa ou pessoa de sua família, que

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 175
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

habite sob o mesmo texto e sob a mesma economia; os medica-


mentos obtidos por preço especial determinado pelo Conselho
de Administração; aposentadoria; e, a pensão para seus herdeiros
em caso de morte” (Artigo 9°, §§ 1° a 4°, do Decreto n° 4.682 de
24 de janeiro de 1923 – Leis Eloy Chaves). Muito importante en-
tendermos que essa Caixa de Aposentadorias e Pensões (CAP) foi
criada especificamente para os servidores públicos e organizado
segundo os princípios da seguridade social, dependendo de con-
tribuição por parte dos segurados.
Cabe a atenção que: “as CAPs eram organizadas pelas empresas e
administradas e financiadas por empresas e trabalhadores, em uma es-
pécie de seguro social”. Nem toda empresa oferecia ao trabalhador a
possibilidade de formação de uma CAP – esse era um benefício mais
comum nas empresas de maior porte. O Estado em nada contribuía
financeiramente e muito menos tinha responsabilidade na adminis-
tração dessas Caixas – sua atuação restringia-se à legalização de uma
organização que já vinha se dando de maneira informal desde 1910
e ao controle, a distância, do funcionamento dessas caixas, mediando
possíveis conflitos de interesses (TEIXEIRA, OLIVEIRA, 1985). Nesse sis-
tema de CAPs, uma parcela mínima dos trabalhadores do país passava
a contar com uma aposentadoria, pensão e assistência à saúde. Logo, o
direito à saúde, nesse período, estava restrito à condição de segurado.
A história da Saúde Pública Brasileira teve início em 1808 e o Mi-
nistério da Saúde só veio a ser instituído no dia 25 de julho de 1953,
com a Lei nº 1.920, que desdobrou o então Ministério da Educação e
Saúde em dois ministérios: Saúde e Educação e Cultura. A partir da
sua criação, o Ministério passou a encarregar-se especificamente das
atividades até então de responsabilidade do Departamento Nacional
de Saúde (DNS), mantendo a mesma estrutura que, na época, não era
suficiente para dar ao órgão governamental o perfil de Secretaria de
Estado, apropriado para atender aos importantes problemas da saúde
pública existentes. Na verdade, o Ministério limitava-se à ação legal e à
mera divisão das atividades de saúde e educação, antes incorporadas
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
176 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

num só ministério. Mesmo sendo a principal unidade administrativa de


ação sanitária direta do Governo, essa função continuava ainda distri-
buída por vários ministérios e autarquias, com pulverização de recursos
financeiros e dispersão do pessoal técnico, ficando alguns vinculados a
órgãos de administração direta e outros às autarquias e fundações.
Essa passagem marcou a cultura de políticas para uma minoria e
de ações de estado para o coletivo, com necessidade de limite do ris-
co de proliferação de alguma epidemia para todos. Isso foi percebido
três anos após a criação do Ministério da Saúde, com o surgimento do
Departamento Nacional de Endemias Rurais em 1956, que tinha como
finalidade organizar e executar os serviços de investigação e de com-
bate à malária, leishmaniose, doença de Chagas, peste, brucelose, febre
amarela e outras endemias existentes no país, de acordo com as vanta-
gens técnicas e administrativas.
Conforme relatos de vários autores e movimentos, percebeu-se
que a mobilização dos sanitaristas da Primeira República obteve im-
portantes resultados, principalmente na esfera política, o que pode ser
observado com a criação, em 1920, do Departamento Nacional de Saú-
de Pública (DNSP), após um intenso processo de negociação política,
envolvendo sanitaristas, governo federal, estados e poder legislativo.
Esse departamento foi dirigido até 1926, por Carlos Chagas. Inicialmen-
te, defendia-se a criação de um ministério autônomo, como ocorria
em outros países latino-americanos, porém tal proposta foi fortemen-
te atacada pelas oligarquias rurais, que apontavam essa criação como
uma ameaça ao princípio da autonomia estadual.
Em 1930, foi criado no Governo Provisório do Presidente Getúlio
Vargas, o Ministério da Educação e da Saúde Pública (MESP), que passou
por sucessivas reformulações. O Ministério da Saúde aponta que essas
modificações nas políticas implementadas com a criação do DNSP de-
batiam sobre as tendências antioligárquicas e os conflitos intraoligár-
quicos manifestados na década de 1920 e culminados com a Revolu-
ção de 1930. A criação do DNSP foi o resultado de intenso processo de

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 177
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

negociação política, envolvendo sanitaristas, governo federal, estados


e poder legislativo. Ainda na Primeira República, foram instituídas ba-
ses para a criação de um sistema nacional de saúde, caracterizado pela
concentração e verticalização das ações no governo central.
O período de 1930 é visto como marco inicial das políticas sociais
e da centralização estatal. Inicialmente, o período compreendido
pelo Governo Provisório (1930-1934) foi marcado por uma gran-
de instabilidade política, reflexo, entre outras razões, da hetero-
geneidade de forças que haviam se aliado durante o processo
revolucionário. Naquela conjuntura política, tornou-se evidente
que o setor agroexportador brasileiro passava por uma crise de
hegemonia, identificada principalmente nas dissidências regio-
nais. Como os demais setores da sociedade – no caso os grupos
agrários não ligados ao café e os grupos urbanos emergentes –
não se encontravam suficientemente coesos para se constituir
como força política hegemônica, os desdobramentos do movi-
mento de outubro de 1930 ficaram sujeitos às disputas políticas
entre as diferentes facções que haviam se agrupado em torno da
Aliança Liberal, particularmente entre tenentes e oligarquias dis-
sidentes (GOMES, 1980).
O Ministério da Saúde trouxe grandes evidencias de que, nos anos
60, a desigualdade social, marcada pela baixa renda per capita e pela alta
concentração de riquezas, ganhou dimensão no discurso dos sanitaristas
em torno das relações entre saúde, planejamento e desenvolvimento. O
planejamento de metas de crescimento e de melhorias conduziu o que
alguns pesquisadores intitularam como a grande panacéia dos anos 60
(planejamento global e o planejamento em saúde) fazendo com que as
propostas se adequassem aos serviços de saúde pública. Em 1961, na
gestão do ministro Estácio Souto-Maior, ocorreram propostas que ade-
quaram os serviços de saúde pública à situação diagnosticada pelos sani-
taristas desenvolvimentistas, entre elas a formulação da Política Nacional
de Saúde que previa a redefinição da identidade do Ministério da Saúde
e sua sintonia com os avanços econômico-sociais.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


178 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

O Portal da Saúde chama a atenção para um dos grandes aconte-


cimentos ministeriais ocorrido no ano de 1963, a realização da III Con-
ferência Nacional da Saúde (CNS), que foi convocada pelo ministro Wil-
son Fadul, árduo defensor da tese de municipalização. A conferência
propunha a reordenação dos serviços de assistência médico-sanitária e
alinhamentos gerais para determinar uma nova divisão das atribuições
e responsabilidades entre os níveis político-administrativos da Federa-
ção visando, sobretudo, à municipalização.
Em 1964, os militares, em um golpe de estado, assumiram o gover-
no e Raymundo de Brito firmou-se como ministro da saúde e reiterou o
propósito de incorporar ao Ministério da Saúde, a assistência médica da
Previdência Social, dentro da proposta de fixar um Plano Nacional de
Saúde, segundo as diretrizes da III Conferência Nacional de Saúde. Com
a implantação da Reforma Administrativa Federal, em 25 de fevereiro
de 1967, ficou estabelecido que o Ministério da Saúde seria o respon-
sável pela formulação e coordenação da Política Nacional de Saúde,
que até então não havia saído do papel. Ficaram as seguintes áreas de
competência: política nacional de saúde; atividades médicas e paramé-
dicas; ação preventiva em geral, vigilância sanitária de fronteiras e de
portos marítimos, fluviais e aéreos; controle de drogas, medicamentos
e alimentos e pesquisa médico-sanitária.
Conforme documentação, o Ministério da Saúde passou por diver-
sas reformas na estrutura. Destaca-se a reforma de 1974, em que as Se-
cretarias de Saúde e de Assistência Médica foram englobadas, passan-
do a constituir a Secretaria Nacional de Saúde, para reforçar o conceito
de que não existia dicotomia entre Saúde Pública e Assistência Médica.
No mesmo ano, a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública-
SUCAM - passou à subordinação direta do Ministro do Estado, para pos-
sibilitar-lhe maior flexibilidade técnica e administrativa, elevando-se a
órgão de primeira linha. Foram criadas as Coordenadorias de Saúde,
compreendendo cinco regiões: Amazônia, Nordeste, Sudeste, Sul e
Centro-Oeste, ficando as Delegacias Federais de Saúde compreendi-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 179
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

das nessas áreas subordinadas às mesmas. As Delegacias Federais de


Saúde deixavam assim de integrar órgãos de primeira linha. Foi cria-
da também, a Coordenadoria de Comunicação Social como órgão de
assistência direta e imediata do Ministro de Estado e foi instituído o
Conselho de Prevenção Antitóxico, como órgão colegiado, diretamen-
te subordinado ao Ministro de Estado.
A maioria dos autores traz a visão de que o consenso, que no gover-
no Figueiredo foi marcado pela abertura política e pela influência do II
PND, pareceu mais promissor para a área da saúde, pois as experiências
municipais de reorganização de serviço de saúde e o Programa de In-
teriorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) apresentavam
sinais de sucesso. O movimento da Reforma Sanitária indicava propos-
tas de expansão da área de assistência médica da previdência, aumen-
tando os conflitos de interesse com a previdência, envolvendo poder
institucional e pressões do setor privado. Tais pressões resultaram na
criação de mecanismos de coordenação entre os ministérios com o in-
tuito de se elaborar um projeto para reordenar o setor.
Do final da década de 80 em diante, destacou-se a Constituição Fe-
deral de 1988, que determinou ser dever do Estado garantir saúde a toda
a população e, para tanto, criou o Sistema Único de Saúde. Em 1990, o
Congresso Nacional aprovou a Lei Orgânica da Saúde que detalhava o
funcionamento desse sistema. Iniciou-se em clima de redemocratização,
crise política, social e institucional do país, tendo como primeiro passo
a realização da 7ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) com o propó-
sito de reformular a política de saúde e formular o Programa Nacional
de Serviços Básicos de Saúde (Prev-Saúde). Esse programa visava a uma
extensão nacional do PIASS, ou seja, buscava dotar o país de uma rede de
serviços básicos que oferecesse, em quantidade e qualidade, os cuidados
primários de proteção, promoção e recuperação da saúde, tendo como
meta a cobertura de saúde para toda a população até o ano 2000.
O Prev-Saúde tinha como seus pressupostos básicos, a hierarquiza-
ção das formas de atendimento por níveis de complexidade, a integra-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


180 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

ção dos serviços existentes em cada um dos níveis de complexidade,


seja na rede pública ou na privada e a regionalização do atendimento
por áreas de populações definidas. Entretanto, não passava de uma pro-
posta de investimento no nível primário de atenção, que não tocava na
rede hospitalar privada e foi marcado por movimentos de contestação
ao sistema de saúde. A primeira medida tomada foi a formação do Con-
selho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciário (CONASP),
em 1981, como órgão do Ministério da Previdência e Assistência Social.
O CONASP deveria buscar respostas concretas que explicassem a razão
da crise no setor, devendo operar como organizador e racionalizador
da assistência médica, buscando diminuir e racionalizar gastos. Sendo
assim, deveria sugerir critérios para destinar recursos previdenciários
do setor saúde, aconselhar políticas de financiamento e de assistência
à saúde, além de analisar e avaliar a operação e o controle da Secretaria
de Assistência Médica da Previdência Social. A avaliação do CONASP
determinou diversas alterações no modelo de saúde até então vigen-
te, como: inadequação de serviços à realidade, inclusão insuficiente de
diversas prestadoras, recursos financeiros insuficientes, desvalorização
dos serviços próprios e superprodução dos serviços contratados.
O PAISS, posteriormente denominado apenas Ações Integradas de
Saúde (AIS), mostrou-se como a principal saída para a universalização
do direito à saúde e significou uma proposta de “integração” e “racio-
nalização” dos serviços públicos de saúde e de articulação desses com
a rede conveniada e contratada, o que combinaria um sistema unifi-
cado, regionalizado e hierarquizado para o atendimento. A proposta
resumia-se na assinatura de convênios entre INAMPS e estados e muni-
cípios, para o repasse de recursos destinados à construção de unidades
da rede, com o compromisso dos governos de oferecer assistência gra-
tuita a toda a população e não só para os beneficiários da previdência.
Com essa proposta, as AIS recuperavam a estratégia apresentada no
Prev-Saúde e avançavam significativamente na conformação de políti-
cas que levariam à reforma do setor saúde, fortalecendo a coordenação

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 181
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

de ações entre a união e os estados e a incorporação do planejamento


à prática institucional.
Em 1985, o regime militar chegou ao fim com a eleição indireta da cha-
pa de oposição, apoiada pela dissidência do próprio partido governista. O
presidente eleito, Tancredo Neves, faleceu antes de tomar posse, assumin-
do o governo, o vice-presidente José Sarney. No setor econômico, o gover-
no Sarney foi marcado por dois planos, o Plano Cruzado I e II, que visavam
atacar a hiperinflação, buscando a estabilidade e o crescimento econômi-
co. No setor político, buscou-se um equilíbrio entre as forças vitoriosas sob
a hegemonia dos políticos democratas e liberais. Com a chegada da Nova
República, o plano das AIS foi retomado, impulsionando a reformulação do
sistema de saúde visando a uma rede unificada.
Todo o marco da história da saúde aconteceu porque líderes do
movimento sanitarista passaram a ocupar posições de destaque no
âmbito político-institucional no país, coordenando as políticas e as ne-
gociações no setor da saúde e previdência. Em decorrência disso, no
ano de 1986, ocorreu a 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), presi-
dida por Sérgio Arouca, então presidente da Fundação Oswaldo Cruz.
Essa conferência foi um marco histórico da política da saúde brasileira,
pois, pela primeira vez, contava-se com a participação da comunidade
e dos técnicos na discussão de uma política setorial. A conferência con-
tou com a participação de mais de quatro mil pessoas nos debates, evi-
denciando-se que as modificações, no setor da saúde, ultrapassavam
os limites de uma reforma administrativa e financeira.
Existia a necessidade de uma reforma mais profunda, com a aplica-
ção do conceito de saúde e sua correspondente ação institucional. Foi
aprovada, por unanimidade, a diretriz da universalização da saúde e do
controle social efetivo, de acordo com as práticas de saúde estabeleci-
das, permanecendo as propostas de fortalecimento do setor público,
garantindo um direito à saúde integral.
Conforme fonte do Ministério da Saúde, no relatório da 8ª Confe-
rência Nacional de Saúde (1986) consta:

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


182 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

Saúde como Direito - em seu sentido mais abrangente, a saúde é


a resultante das condições de alimentação, habitação, educação,
renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liber-
dade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, as-
sim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social
da produção, que podem gerar desigualdades nos níveis de vida.
- Direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dig-
nas de vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços
de promoção, proteção e recuperação de saúde, em todos os seus
níveis, a todos os habitantes do território nacional, levando ao de-
senvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade.
Esse relatório que o Ministério trouxe serviu de referência na dis-
cussão da Assembléia Nacional Constituinte em 1987/1988, sendo re-
conhecido como um documento de expressão social. Na 8ª CNS, tam-
bém se discutiu a unificação do INAMPS com o Ministério da Saúde,
devendo a Previdência Social ficar encarregada das ações próprias do
seguro social, enquanto que a saúde seria entregue a um órgão fede-
ral com novas características. Sendo assim, foi aprovada a criação de
um sistema único de saúde com a separação total da saúde em rela-
ção à previdência. As propostas da 8ª CNS não foram realizadas ime-
diatamente, pois ainda havia a discussão acerca do financiamento e da
operacionalização do novo sistema de saúde. Dessa forma, em julho de
1987, criou-se o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS),
por meio de uma proposta do INAMPS/MPAS, que se apresentou como
base na construção do SUS. Em 5 de outubro de 1988, é promulgada a
Oitava Constituição do Brasil, denominada ‘Constituição Cidadã’, sen-
do um marco fundamental na redefinição das prioridades da política
do Estado na área da saúde pública. Foi concebido pela Constituição
Federal de 1988, o Sistema Único de Saúde, que é o resultado de um
processo de articulação do Movimento pela Reforma Sanitária e de di-
versas pessoas comprometidas com o reconhecimento dos direitos so-
ciais de cada cidadão brasileiro, ao determinar um caráter universal às
ações e aos serviços de saúde no País.
ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:
DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 183
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

Ainda sobre os dados do Ministério da Saúde, 1989 é o período das


negociações se concentrarem em torno da lei complementar que daria
bases operacionais para o SUS. Nesse mesmo ano, é realizada a primei-
ra eleição direta para presidente da República, assumindo a presidên-
cia em janeiro de 1990, Fernando Collor de Mello. Foi nessa conjuntura
que iniciaria a construção do SUS. A história do controle social da saúde
pública no Brasil é sinônimo de luta e empenho de representantes da
sociedade, que dedicam tempo, esforço e recursos materiais no proces-
so que garante a participação da sociedade civil na história do Sistema
Único de Saúde (SUS). O processo de consolidação do SUS implicou
mudanças na legislação brasileira, buscando uma melhor implementa-
ção do sistema que pudesse acompanhar as transformações econômi-
cas e sociais do Brasil.
Esse resgate da história integrou o compromisso do Conselho Na-
cional de Saúde com o reconhecimento e implementação do controle
social em Saúde no Brasil. Para uma melhor implementação do SUS,
que permitisse aos Conselhos de Saúde de todo o país ter acesso à le-
gislação federal que regulamenta o setor saúde, o Conselho Nacional
de Saúde disponibilizou leis, normas e dispositivos constitucionais que
definem os princípios e diretrizes do sistema de saúde brasileiro. A cria-
ção do Sistema Único de Saúde tem sido analisada como a maior políti-
ca de inclusão social no país, inserida sob o novo regime democrático.
A partir da Constituição Federal de 1988, o SUS representou um
marco histórico das políticas de saúde no país, pois na nova constitui-
ção, a atenção à saúde passa a ser assegurada legalmente como direito
fundamental de cidadania, cabendo ao Estado a obrigação de provê-la
a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros que vivem no Brasil. Des-
de a sua instituição, quatro pontos sobre a gestão têm sido apontados
como fundamentais: a descentralização, o financiamento, o controle
social e a gestão do trabalho. Em 19 de setembro de 1990, foi aprovada
a Lei Federal nº 8.080, a chamada Lei Orgânica da Saúde (LOS), elabo-
rada pela Comissão Nacional de Reforma Sanitária (CNRS), que dispõe

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


184 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

sobre as condições para a promoção, a proteção e a recuperação da


Saúde. Essa lei, entretanto, sofreria uma grande quantidade de vetos.
No entanto, a legitimidade do processo constituinte e do movi-
mento pela reforma sanitária constitui-se na melhor garantia da opera-
cionalização dos ideais dos SUS, ou seja, de seus princípios e diretrizes
Ainda sobre o controle social, ele foi assegurado pela Lei 8.142, de 28
de dezembro de 1990, mantendo a perspectiva de participação social
na gestão do SUS e consequentemente, a conquista dos cidadãos, que
passaram a ocupar espaços estratégicos dentro dos aparelhos do Esta-
do. É perceptível que o sistema político-econômico teve grande influ-
ência sobre a organização do bem mais precioso que é o direito à vida
e que, graças aos movimentos sociais, instituíram-se direitos fazendo o
efeito de simbolização da importância da vida.

2 Interface dos Direitos Humanos e a Psicanálise

Sempre se tem defendido essa interface entre a Psicanálise dialo-


gando com a Psicologia Jurídica e os Direitos Humanos para muitos
grupos conservadores tanto do direito quanto da Psicologia e da psica-
nálise, pois são organizativos para o estado, inclusive nas formulações
das políticas públicas, principalmente com o tema da saúde. Interroga-
se como não pensar em sujeito e legislação, como não trabalhar jun-
to nesse mundo de pura esquizofrenia e falta simbólica, onde o bem
maior do estado – a vida humana – aparece mutilado, escondido, viran-
do restos em hospitais, nas casas de repouso e em lotações em postos
de saúde, sendo perceptível a emergência de uma nova economia psí-
quica. Essa ideia reporta à teoria de Melman.
Melman (2003) fala de uma crise de referência por que passa a so-
ciedade atual e apresenta a ideia de que se está assistindo a emergên-
cia de uma nova economia psíquica. Para ele, está ocorrendo “uma mu-
tação que nos faz passar de uma economia organizada pelo recalque, a
uma economia organizada pela exibição do gozo” (p. 16).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 185
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

Faz-se necessário primeiramente um diálogo entre a tarefa prag-


mática e normativa da avaliação da Psicologia Jurídica e a Psicanálise,
para que o sujeito não seja reduzido à condição de um simples objeto
de exame e sim da forma como se pensa na devolutiva desses instru-
mentos, pois são ferramentas necessárias como um fio condutor para
comprovar e indicar juridicamente um caminho. O Direito, para Psica-
nálise, traz as condições para a possibilidade de trabalhar os laços des-
se sujeito com a sociedade, seu bem estar e seus limites. Por exemplo,
num processo judicial onde se discute a capacidade ou possibilidade
de interdição de uma pessoa ou uma internação compulsória, caberia
ao estado um recurso da parte para tentar tratar o mal-estar que está
vivendo. Esse seria um espaço de interlocução (Direito, Saúde, Psica-
nálise e Psicologia forense) com o sujeito, promovendo abertura de
um lugar de palavra para depositar suas queixas, reclamar suas perdas,
apelar por amparo, abrigo e proteção, dando sentido à vida.
Naturalmente, o sujeito deveria ser amparado pelos serviços de
saúde pública (CAPs. Especializados), mas ele nem sempre encontra su-
porte para o mal-estar da civilização.
Brisset (2011-2013) ilustra isso bem ao dizer:
Tem um pedaço de si que está sempre fora, forasteiro em si mes-
mo; contudo, vive por perto, na clandestinidade, à custa de seu
sintoma. E o direito pode entrar nessa trama como uma possibili-
dade de abrigar, acolher, dar tratamento ao mal que não cessa de
desalojar a ordem do mundo.
Caso contrário, continuar-se-á com retrocessos a serviço do mal-es-
tar da cultura num tempo em que a aldeia global define e destrói iden-
tidades e subjetividades. Entre o que seria preciso e o que geralmente
ocorre, é sempre o avesso, pois se escuta, na cultura do direito, o se-
guinte: “O que não está nos autos não existe no mundo”. Nesse mundo
da justiça, é preciso que qualquer fato esteja escrito, esteja no processo
para formalizar na letra da lei, só assim é possível intervenção. Por isso a
importância desse diálogo entre a saúde mental e o direito, pois se vive

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


186 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

tempos de loucura coletiva, de repetições de atos bárbaros. Não existe


mais cada setor ou teoria trabalhar isoladamente, vive-se em tempo de
emergência de retomada da civilização, de ressignificação dos laços so-
ciais. Vive-se numa sociedade em que a massa popular tem defendido
regimes totalitários nas redes sociais, rechaçando os direitos humanos,
ou seja, seus próprios direitos. As pessoas perderam a noção de espaço,
de território nessa fluidez da subjetivação do mundo veloz e cibernéti-
co e isso tem resultado em muitas patologias no mundo contemporâ-
neo. Esses efeitos da globalização atravessam as famílias, a Escola e o
Estado em que se vive. É algo efetivamente assustador!
Santos (2008) escreve sobre a Violência da Informação:
(...) o que é transmitido à maioria da humanidade é, de fato, uma
informação manipulada que, em lugar de esclarecedor, confun-
de. Isso tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida
econômica e social, a informação constitui um dado essencial e
imprescindível. Mas na medida em que o que chega às pessoas,
como também às empresas e às instituições hegemonizadas é
já o resultado de uma manipulação, tal informação se apresenta
como ideologia. O fato que, no mundo de hoje, o discurso ante-
cede quase obrigatoriamente uma parte substancial das ações
humanas- sejam elas a técnica, a produção, o consumo e o poder,
explica o porquê da presença generalizada do ideológico em to-
dos esses pontos (...), sobretudo porque a ideologia se insere nos
objetos e apresenta-se como coisas. (SANTOS, 2008, p. 39)
Para Santos (2008), se por um lado existe uma virtualidade apoiada
essencialmente na técnica que limita as ações reais e faz com que o
conceito de espaço seja repensado no sentido de se perguntar “Qual
a extensão do espaço?” e não o fim do espaço; por outro lado pode-se
entender que o “virtual” se apresenta também, em alguns lugares, de
outra forma, ou seja, como sendo um limite ou uma barreira que im-
possibilita o encontro sadio e frutífero de pensamento entre as pesso-
as, gerando como consequência uma não-convivência e um empobre-
cimento do mundo das ideias. Assim, pessoas que estejam lado a lado

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 187
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

e inclusive conversando umas com as outras mantém uma virtualidade


de pensamento, ou melhor, uma presença real, mas uma convivência
virtual. Essa virtualidade, por incrível que pareça, passa pelo mundo
real, fazendo com que a ideia de virtual não seja restrita apenas às par-
ticularidades da Internet e sim como um sistema que tem reforçado a
intolerância e o medo, construindo um jogo de poder dos interesses de
alguns em que o que está escrito na Lei perde o valor. Chama a atenção
que, nessa manipulação das massas, está como uma espécie de subli-
minar o recalcamento da vida, da luta pelos direitos humanos mais bá-
sicos (o direito à saúde e à educação). Quando se recorre à história aci-
ma, da implementação dos serviços de saúde, são nítidos os interesses
do sistema socioeconômico e político e o quanto os movimentos so-
ciais esburacaram o poder de cada época. Mas nesse momento, o uso
dos recursos manipulativos amortece a lucidez do povo, trazendo uma
alienação profunda e positivando o interesse de um estado antissocial,
preservando o interesse dos mais perversos, vive-se a contralógica.
Segundo Ventura (2010), o significado dos direitos humanos trans-
cende a ideia de direitos legais; é um parâmetro ético universal de agir,
que deve ser seguido por governos, instituições e indivíduos. O reco-
nhecimento desses direitos pela comunidade internacional decorre de
uma exigência moral inscrita na máxima do respeito universal devido a
todos os seres humanos; seus princípios e normas devem garantir a “sa-
tisfação das condições mínimas para a realização de uma vida digna”.
Uma vida digna é aquela em que o indivíduo possa ter suas necessida-
des básicas atendidas, respeitar a si mesmo (autoestima) e aos outros
(DIAS, 2010).
A ONU define Direitos Humanos como aqueles direitos inerentes
ao ser humano. Esse conceito reconhece que cada ser humano pode
desfrutar de seus direitos sem distinção de raça, cor, sexo, língua, re-
ligião, opinião política ou de outro tipo, origem social ou nacional ou
condição de nascimento ou riqueza. A ONU (2016) ressalta algumas das
características mais importantes dos direitos humanos que são:

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


188 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

o Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela digni-


dade e o valor de cada pessoa;
o Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são
aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pesso-
as;
o Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser pri-
vado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em si-
tuações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser
restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime
diante de um tribunal e com o devido processo legal;
o Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e in-
terdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos
humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai
afetar o respeito por muitos outros;
o Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de
igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a digni-
dade e o valor de cada pessoa.

Evidencia-se o adoecimento público, pois da mesma forma no Bra-


sil, o direito à saúde, afirmado na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos de 1948, está claro na Constituição Federal de 1988 que define a
Saúde como direito de todos e dever do Estado, indicando os princípios
e diretrizes legais do Sistema Único de Saúde – SUS.
Segundo o artigo 196 da Constituição Federal Brasileira de 1988:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante po-
líticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação”.
A saúde preconizada na Constituição está inspirada no debate da
Reforma Sanitária Brasileira, iniciada na década de 70, com grande ex-
pressão no resultado do intenso e participativo debate ocorrido na 8ª
Conferência Nacional de Saúde em 1986. Durante a década de 90, as-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 189
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

sistiu-se à árdua luta pela implantação do SUS e, ainda que se esteja


distante de completar essa tarefa, muito se avançou.
Saúde é qualidade de vida e, portanto, deve estar vinculada aos
direitos humanos, ao direito ao trabalho, à moradia, à educação, à ali-
mentação e ao lazer. O direito à saúde, especialmente quando exami-
nado sob a ótica da qualidade de vida, exige também que a superação
das desigualdades envolva o acesso democrático a alimentos, a medi-
camentos e a serviços que sejam seguros e que tenham sua qualidade
controlada pelo Poder Público. Qualidade de vida implica o reconhe-
cimento do ser humano como ser integral. O conceito de cidadania,
que a Constituição assegura, deve ser traduzido nas condições de vida
da população. Ressalta-se que a promoção à atenção à saúde é fun-
damental e faz parte do elenco de políticas sociais necessárias para a
construção de uma sociedade justa e democrática, sendo essa a missão
central do SUS. Nesse sentido, a efetivação do direito à saúde depende
do provimento de políticas sociais e econômicas que assegurem de-
senvolvimento econômico sustentável e distribuição de renda; caben-
do, especificamente ao SUS a promoção, a proteção e a recuperação da
saúde dos indivíduos e das coletividades de forma equitativa.
O princípio da dignidade da pessoa humana é regente e norteador
de todo sistema de direitos humanos, no sentido de que esses devem
propiciar o desenvolvimento da personalidade de cada um, nos dife-
rentes contextos sociais. O princípio da igualdade deve garantir o igual
respeito e consideração moral, social e jurídica aos projetos pessoais
e coletivos de vida de todas as pessoas, limitando a realização, tão so-
mente, daqueles projetos que não violem a dignidade das outras pes-
soas. O princípio da liberdade deve garantir a todos as condições obje-
tivas para realização de escolhas pessoais, legítimas e justas e, assim, o
exercício desses direitos.
As democracias contemporâneas fundamentam-se nessa “cultura
dos direitos humanos e de políticas públicas consolidadas neste campo
de atuação política”. Alguns aspectos procedimentais dessa nova orga-

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


190 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

nização política são relevantes para a efetivação dos direitos humanos.


O primeiro é o “resgate do papel do Estado, e dos organismos e redes
internacionais de proteção dos direitos humanos, no sentido de asse-
gurar o acesso das populações” aos direitos reconhecidos, de forma in-
tegral e progressiva (PATARRA et all., 2004).
A Constituição Federal Brasileira (1988) incorporou todos os princí-
pios, normas e mecanismos contemporâneos de efetivação dos direi-
tos humanos. O direito à saúde é reconhecido formalmente como um
direito humano voltado à preservação da vida e da dignidade humana.
Pode-se dizer que, nesse aspecto, há absoluta concordância entre o di-
reito vigente nas leis internacionais e nacionais e a moralidade comum.
Por isso, crê-se que o respeito e a proteção ao direito à vida e à saúde
sejam obrigações morais e legais simples de serem cumpridas. Toda-
via, “ao contrário, é terrivelmente complicado [pois] o consenso geral
quanto [aos direitos humanos] induz a crer que tenham um valor abso-
luto” (BOBBIO, 1992:4), que, de fato, não tem.
A ideia de direito à saúde aparece na Declaração Universal dos Di-
reitos Humanos (1948), em seu art. 25, quando afirma que “toda pessoa
tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e a sua família,
saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuida-
dos médicos...”. Posteriormente, no ano de 1966, o Pacto Internacio-
nal sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reafirmou a ideia e
dispõe, em seu art. 12, que os Estados-partes reconhecem o direito de
toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental,
trazendo indicações mais precisas sobre as medidas a serem adotadas
para assegurar o direito à saúde, como “a prevenção e o tratamento
das doenças epidêmicas, endêmicas, profissionais e outras, bem como
a luta contra essas doenças” e a “criação de condições que assegurem a
todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade”
(VENTURA, 2010).
Constata-se que o direito à saúde deve ser garantido pelos Es-
tados aos seus cidadãos, por meio de políticas e ações públicas que

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 191
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

permitam o acesso de todos aos meios adequados para o seu bem-es-


tar. Sua realização dá-se por meio de prestações positivas, incluindo a
disponibilização de serviços e insumos de assistência à saúde, tendo,
portanto, a natureza de um direito social, que comporta uma dimen-
são individual e outra coletiva em sua realização. A trajetória do re-
conhecimento do direito à saúde como relativo à dignidade humana
e, consequentemente, sua incorporação nas leis, políticas públicas e
jurisprudências, espelham as tensões sobre como alcançar esse bem
-estar e quais os direitos e responsabilidades dos cidadãos e dos Esta-
dos (VENTURA, 2010).
A dimensão individual do direito à saúde pode ser descrita como
aquela que visa garantir o direito de agir ou não agir sem constran-
gimento, exigindo que o Estado não promova ações, leis ou políticas
que invadam ou limitem de forma injustificada a autonomia pessoal
e garantam e/ou previnam que não ocorra a violação, dispondo de
mecanismos legais que coíbam seu descumprimento. Um exemplo
ilustrativo é a discussão sobre se o teste compulsório para o Humam
Immunodeficiency Virus (HIV)/Acquired Immunodeficiency Syndrome
(AIDS) constitui uma limitação justa e razoável à autonomia pessoal,
considerando-se as implicações para a saúde pública. O entendimento
das instâncias internacionais de direitos humanos firmou-se no senti-
do de que o teste compulsório constitui uma violação de direitos, pois
não é eficaz e absolutamente necessário para a prevenção e promoção
da saúde individual ou coletiva, considerando-se as características de
transmissão do HIV/AIDS; sendo justificada a obrigatoriedade do teste,
tão somente, em algumas situações, como nas doações de sangue ou
de órgãos, que devem ser realizadas de forma voluntária. O principal
argumento é que as restrições à autonomia pessoal, ao contrário do
que as medidas compulsórias pretendem, afastam as pessoas dos ser-
viços de saúde por receio de discriminação e constrangimentos à sua
liberdade, dificultando a prevenção, a promoção e a recuperação da
saúde (TOMASEVSKI, 1992).

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


192 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

O exemplo aponta claramente para a forte inter-relação e possíveis


conflitos entre direitos individuais e coletivos, no ambiente da saúde.
A dimensão social é aquela operacionalizada coletivamente e deve ga-
rantir as condições necessárias para o alcance da saúde e bem-estar
geral de todos. Aqui reside uma das maiores dificuldades atuais para a
realização do direito à saúde, que é o de se estabelecer um rol de obri-
gações estatais relacionadas a esse direito. É exemplar das dificuldades,
a discussão no Judiciário e Cortes Internacionais de Direitos Humanos,
sobre o direito de determinados grupos e indivíduos ao acesso a deter-
minados medicamentos para o seu tratamento de saúde (p. ex. porta-
dores do HIV/AIDS, e outras patologias), em decorrência das limitações
estabelecidas pelos sistemas públicos de saúde de diversos países. As
instâncias internacionais de direitos humanos têm exigido a realização
imediata dos direitos individuais; mas admitem que o cumprimento
dos direitos sociais se dê de forma progressiva, por exigir recursos pú-
blicos significativos para sua operacionalização. Nesse sentido, buscam
ressaltar o cumprimento, pelos governos, de um rol de obrigações mí-
nimas, essenciais ou indispensáveis à satisfação de necessidades indi-
viduais do titular de cada direito. Pode-se aplicar essa mesma lógica no
Brasil (VENTURA, 2010).
Na aplicação do direito à saúde, exige-se imediata suspensão de
qualquer medida constritiva à liberdade individual, porém, nem sem-
pre é possível se garantir uma medida que implique a oferta de de-
terminado tratamento, por exemplo, considerando-se que os recursos
de saúde são limitados, necessitando estabelecer critérios para o seu
acesso. O que acontece é que os conselhos de direitos, de saúde e a
população não recorrem, na forma processual, para exigir seus direitos,
porque os espaços de diálogo transformam-se em conflitos e em falta
de estratégia de organização da vida e do estado.
Brisset (2013) ilustra esse cenário dizendo que:
Somos levados a reconhecer que depositar num tribunal queixa
por um dano sofrido não se reduz à simples manifestação de um

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 193
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

mal-estar, um desagrado, um dano. Pois quando um sujeito se


decide pela via jurídica para tratar seu mal, este movimento vai
exigir que ele faça que sua demanda caiba nas formas jurídicas
de acordo com o texto da lei(...)Por essa via será exigido do su-
jeito um esforço para fazer conter nas formas jurídicas o excesso
que o perturba. Cumprindo essa exigência, opera-se, todavia, um
enquadramento do mal no campo do Outro (p. 24).
Brisset (2013) traz como se dá o paradigma na forma da Lei e o que
atravessa o sujeito, onde seria possível fazer uma ponte entre o direito
e a Psicanálise. Enfatiza que: “Para começar, será preciso constituir um
advogado e, então, se coloca uma distância entre a causa que perturba
o sujeito e o Outro da lei, pois o advogado será um objeto que irá se
interpor entre o sujeito e os dispositivos” (p. 24).
Isso remete ao comentário no texto de Brisset (2013) em que Hans
Kelsen (1987), ao escrever o ensaio O que é a Justiça?, incomodado por
não encontrar resposta satisfatória capaz de localizar os fundamentos
para uma teoria pura do Direito, afirmou:
Iniciei este ensaio com a questão: o que é justiça? Agora, ao final,
estou absolutamente ciente de não tê-la respondido. A meu favor,
como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em
ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leito-
res acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os
maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja
justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade (p. 14).
Ainda a autora, no seminário Psicologia, em interface com a Justiça
e os Direitos Humanos comenta os escritos de Kelsen (1987) que de-
monstram sua preocupação em responder certas questões próprias à
ciência jurídica, cujas respostas dela escapam, levando a concluir que
a justiça é um bem que se demanda, porque não existe. Porém, ao se
afirmar que a justiça é algo que não existe, também dir-se-á que ela
tem um corpo, cuja consistência se ancora na crença ao texto jurídico.
“A constituição celebra a autoridade do texto jurídico, constituindo a

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


194 DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

ficção de um corpo para o Outro da Justiça: o corpo normativo. Desse


modo, só existe instituição onde se tem a ficção de um corpo” (KELSEN,
p. 25).
Pensando nessa ideia de corpo e justiça, não se pode esquecer de
um conteúdo recalcado na história: os corpos e os nomes de feridos
na época da ditadura civil-militar. Como se pode pensar em saúde e
corpos saudáveis sem revisitar essa história? Esses eventos e conteúdos
estão no inconsciente e, torna-se a repetir, com a fragilização da vida
em sociedade.
Na obra “Corpo e escrita”, Costa assim enuncia o irredutível da im-
bricação corpo/linguagem:
A experiência não pode ser reduzida exclusivamente à referência
a um símbolo abstrato, ou a uma imagem, ela precisa passar pelo
corpo na sua relação com o semelhante e com o real (desde que
este real inclua alguma atividade, algum exercício). É somente
essa natureza mais extensa da experiência que produz um regis-
tro que a teoria lacaniana denominou de saber. Como se pode
depreender, o saber aqui se diferencia da informação e do co-
nhecimento, na medida em que ele é necessariamente corporal
e, por isso, também inconsciente (COSTA, 2001, p.32-33).
Faz-se necessário trazer à luz o que move as pessoas, do que se está
sendo vítima e a necessidade dos espaços de palavras. Brisset (2013)
comenta o “Seminário de Lacan - O avesso da Psicanálise” (1969/70),
que aconteceu na faculdade de direito em Paris. Lacan disse estar em
um bom lugar para dizer a que veio.
Sabe-se que o Direito é um dos dispositivos da cultura em condi-
ções de localizar o estranho, o desvio, o mal; a psicanálise também trata
disso, todavia, pelo avesso do Direito. Contudo, o que importa destacar
é que o sujeito faz o que pode com o seu mau pedaço na vida. Ora ele
se serve do analista objeto, é acolhido em consultórios; ora também se
serve dos objetos do campo do Direito, anexando sua singularidade ao
mundo público do Outro, por meio das normas jurídicas.

ESTADO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DIREITO À SAÚDE:


DIÁLOGOS AO ENCONTRO DOS DIREITOS HUMANOS - VOLUME II 195
INTERFACE ENTRE A PSICANÁLISE E OS DIREITOS HUMANOS

Considerações finais

Procura-se enfatizar neste texto, a importância de a sociedade in-


terrogar-se sobre o que está recalcado na história de políticas públicas
de saúde e, para isso, fez-se necessário uma retomada da história da
implementação do SUS.
Da mesma forma, procurou-se trazer para reflexão o que impossibi-
lita a sociedade de buscar os seus direitos à vida. Para isso foi necessário
buscar as interfaces do direito, da Psicanálise e da Psicologia Jurídica.
É urgente a busca por uma Educação em Direitos Humanos (EDH)
com princípios éticos fundamentais que sejam assimilados por todos,
passando a orientar as ações das gerações presentes e futuras, em bus-
ca da reconstrução dos Direitos Humanos e da cidadania no processo
histórico de efetivação de um Estado Democrático de Direito, com res-
peito à vida e à dignidade humana. Assim se pode caminhar em direção
à Utopia e à construção de um estado que respeite os princípios mais
elementares do ser humano.

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