Você está na página 1de 2

CEBOLA PICADA EM GUILHOTINA

Alexandre Rabelo

Sim, é isso mesmo que você ouviu, minhas malas estão aqui na sala porque hoje sua
mulherzinha vai te deixar sozinho nessa quarentena. E pra sempre viu. Não porque você não
saiba conversar sobre os livros de história e política que gosto ou porque não me coma mais
com vontade. Isso você até sabe fazer muito bem quando não está com a cara no celular,
rodando inerte pelas questões que julga serem aquelas que movem o mundo, com esse ar de
quem sabe ser superior ao Bolsonaro e amigo íntimo do Haddad. Eu vou te deixar porque você
sempre arranja uma desculpa para não me ajudar na cozinha e na faxina, e porque acha essa
minha “revoltazinha acumulada” coisa de “gente privilegiada”. Já aguentei bastante, em nome
do objetivo maior de ter um lar em harmonia, também por achar horrível ter empregada
doméstica. Acontece que nesse confinamento, a gente o tempo todo se encarando na fuça, não
adianta mais você me dizer que o culpado é você, que nunca faria as coisas tão bem quanto eu,
que é um desajeitado sem solução, e ficar repetindo esse papinho de mea culpa com o mesmo
risinho adolescente que se pretende charmoso mas é apenas imbecil. Talvez até pense em fazer
pra mim, como acontece no máximo duas vezes por ano, uma mesa bonita com direito a
sobremesa. Eu é que vou lavar a louça depois, claro. Mas sabe o que é mais foda? Sacar que eu
sempre soube de tudo isso e me calei com medo de você achar que sou uma mulher preguiçosa
e porca, mesmo sendo estudada e tendo minha própria profissão. Você nunca vai entender essa
vergonha internalizada, assim como nunca vai admitir que tirar um pozinho aqui, lavar uma
louça ali, definitivamente não é o mesmo que planejar duas refeições por dia, estar 24 horas
olhando para baixo para ver se não deixei meus farelos cair, já que sou a única que esfrega chão
por aqui. Vai dizer que pode pagar com mais frequência pra gente comer fora ou por delivery e
pra eu considerar contratar uma faxineira depois da quarentena, alegando que estaremos fazendo
uma boa ação pela recuperação das famílias mais pobres. Sempre alguma justificativa nobre pra
nunca quebrar o ciclo. Quando ver que não adianta mais, vai tentar minimizar meu ódio a um
cansaço de amassar alhos ou a um estresse no escritório. Aliás, essa é sua desculpa preferida pra
não fazer nada em casa, o estresse no trabalho. Tão estressado que nunca vai enxergar que a
maior parte da sujeira é sua, afinal você nunca reparou não é, nunca olha para o chão, só
quando pisa descalço num caroço de azeitona que você próprio derrubou dias atrás e fala “o
chão tá meio sujo né”. Mais uma vez vai ligar o videogame “cinco minutinhos” para fingir que
não está vendo o quanto ando sem parar da cozinha pra lavanderia depois de ficar o dia inteiro
na rua, igualzinho você, e ainda vai reclamar que não te chupo mais com a mesma dedicação.
Você acha mesmo que é mais fácil cuidar da casa que escrever esses posts de merda sobre como
salvar o mundo? Enquanto você cria uma campanha “genial” sobre como podemos nos unir
para levar meia dúzia de cestas básicas pra umas famílias aí cujo membros você não faz questão
nem de saber o nome, eu abdico do meu próprio tempo criativo pra manter essa casa operante.
Então, você me diz “mas é terapêutico, vai te fazer bem, são artes ancestrais, ainda bem que não
temos filhos”, embora se esquive o tempo todo de picar a maldita cebola com a desculpa de que
não tem a mesma “delicadeza”. Eu também queria meu tempo livre para pensar na grande
humanidade e outras questões “delicadas”, essas sim dignas de seu espírito fino. Até suas
cuecas você não lava porque o sabão te dá alergia. Por atitudes assim é que estamos nessa
quarentena de merda, não tem nada a ver com um vírus. E não estou falando só de macho.
Podem ser madames que não lavam as próprias calcinhas também. Vai muito além das camadas
da cebola, bebezão, por isso vou te deixar. Vai ficar aqui sozinho, sem nem saber se começa
pela lista de compras ou pela privada esmaltada em mijo seco. Vai ligar chorando pra mãezinha,
vai pegar o prato de comida na porta da casa dela, a um metro de distância para não por a saúde
dela em risco, só pra não precisar se rebaixar, não é mesmo. E ela vai te acolher me chamando
de puta desgraçada, e vai dizer que vai cuidar de você, que você não precisa se rebaixar. Pois é
isso que você pensa quando se imagina fazendo uma faxina, você acha que está se rebaixando,
depois de ter estudado tanto, tadinho, depois de ter adquirido tanta cultura e um emprego que te
suga tanto, tadico. Mesmo sozinho nessa porra de casa, vai se justificar diante do espelho
dizendo que certo nível de sujeira é meio rock n’ roll e que eu era a louca obcecada. Não vai se
tocar de que o rock passou a ser cada vez mais coisa de branco velho mesmo que , com um pano
na mão, você se veja num “atraso de vida”. No fundo, apenas não tem vitalidade o bastante para
limpar a casa uma vez por mês que seja, mesmo com o armário cheio de suplementos e o braço
cheio de muque. Acha que já está bom por o lixo pra fora, mas não tem a menor ideia de como
sua merda cheira depois de uma semana no cesto porque convencionamos tacitamente que sou
eu quem levo o lixo do banheiro para o saco preto na lavanderia que você orgulhosamente desce
toda terça e quinta. Não se iluda, não estou falando só sobre você, estou falando sobre todo
mundo que se acha o salvador do mundo. Todo esse bando de escritores, professores de
humanas, que são ainda piores que os Faria Limers elitistas, escravistas e conservadores que a
gente tanto odeia. Esses pelo menos não fingem que não são privilegiados, têm a moral de olhar
para uma mulher e falar que não passa de uma feministinha de merda. Você, ao contrário, vai
falar que estou delirando para sua amiguinha lésbica radical que também nunca limpa o chão e
acha que está fazendo demais em abrir a cerveja pra mulherzinha dela na hora do Jornal
Nacional enquanto critica o patriarcado. Você vai falar que eu não entendo os tempos novos e as
novas gerações pro seu amiguinho viado diretor de teatro que acha engraçado dizer que só deixa
mulher entrar em sua casa uma vez por semana para cozinhar e limpar. Vocês todos são um
bando de bundas moles que mal têm dinheiro pra ir no dentista mas não deixam de pedir aquele
japa esperto quando discutem o novo artigo do Agamben e a nova declaração do Chico
Buarque sobre a ignorância da nação. Claro que estarão ouvindo aquele samba “periférico” de
1978 e aquele clássico do Dylan enquanto “reconhecem o valor” do funk que nunca ouvem. Pro
caralho com as cabrochas do Chico! Elas só servem de empregada e puta pra vocês. Quando eu
sair por essa porta, vou direto fazer minhas unhas. Você nunca vai entender como essa decisão
será revolucionária ao invés de fútil. Você vai apenas passar o resto da quarentena tentando
achar a textura exata dos ovos mexidos, sem sucesso, enquanto pesquisa a citação adequada
para o próprio abandono, a citação que dará início àquele puta livro universal sobre as dores do
mundo que só outros homens iguais a você vão querer ler até a página 20. Agora, por favor,
com licença. Deixei as chaves na mesa. Tenha ao menos a decência de passar álcool gel na
maçaneta assim que eu sair. Não morra tão cedo, não mereço essa revanche.

Você também pode gostar