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RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Pelos padrões cósmicos, os homens do planeta Terra ainda são
principiantes no cenário galáctico. Assim mesmo Perry Rhodan e seus
companheiros dedicados conseguiram transformar o Império Solar da
Humanidade, até o ano 2.400, no principal poder político, econômico e
militar da Via Láctea. Existem 1.112 planetas e 1.017 sistemas solares
colonizados pelo homem. 1.220 mundos, além de numerosas luas e
estações espaciais espalhadas por várias partes da Galáxia são usadas
como bases do comércio ou da frota solar. Com a inclusão do grupo
estelar autônomo Presépio na constelação de Câncer e a exploração
das Plêiades, pertencentes à constelação do Touro, surgiu um império
compacto, que a frota solar protege sem dificuldade e percorre com
rapidez.
Nestas condições não é de admirar que em agosto de 2.400 Perry
Rhodan suba a bordo da Crest II, a nova nave-capitânia da frota solar,
para resolver um velho problema: a busca do planeta Kahalo, cuja
posição no interior da concentração central da Via Láctea nunca pôde
ser determinada exatamente.
Durante as buscas a Crest encontra o hexágono solar, entra no
campo de ação dum gigantesco transmissor — e é arremessada no
abismo que separa as galáxias, indo parar num sistema solar artificial,
situado a 900.000 anos-luz da Terra.
Segundo ensina a experiência, os mundos deste sistema parecem
reservar perigos mortais para os visitantes terranos — mas quando
Perry Rhodan encontra A Cidade dos Proscritos, descobre novos
amigos.
Ao ver que os cientistas sacudiam a cabeça, Perry Rhodan compreendeu que mais
uma tentativa fracassara. Não havia como desvendar os segredos da usina de energia do
planeta Sexta.
O Dr. Spencer Holfing, físico-chefe da Crest II separou-se do grupo de cientistas e
aproximou-se de Rhodan, que estava conversando com o engenheiro-chefe da nave-
capitânia, o major Bert Hefrich.
Holfing era um homem gordo com cabelos brancos como neve. Era um dos
melhores físicos que a Humanidade já tinha produzido.
— Não tem o aspecto dum homem bem sucedido — disse Hefrich em tom
sarcástico.
— Não — confirmou Rhodan. — Nem esperava que os cientistas descobrissem a
pedra filosofal dentro de alguns dias.
O major Hefrich teve a impressão de que as palavras de Rhodan encerravam uma
recriminação implícita e preferiu ficar calado.
— Conseguimos pesquisar mais algumas máquinas a partir de suas funções, senhor
— disse Holfing a título de introdução, quando já se encontrava perto dos dois homens.
— Mas nem por isso se pode afirmar que compreendemos inteiramente o funcionamento
das instalações. Pelo contrário. Com cada máquina que conseguimos compreender, o
quadro se complica.
Rhodan nunca esperara que uma raça capaz de criar estações de transmissores como
esta pudesse construir máquinas que não fossem complicadas. A única coisa que tinham
descoberto era que todos os maquinismos instalados em Sexta se assemelhavam aos que
Rhodan e Atlan haviam encontrado no planeta Kahalo. Os cientistas explicavam a
semelhança dizendo que Kahalo era uma estação de transmissor piramidal situada entre o
gigantesco hexágono solar da Galáxia e Kahalo. Ninguém sabia se Kahalo era uma
estação intermediária importante ou não.
— Sabem do que vivo me lembrando, senhores? — perguntou Rhodan. — Antes
que Rhodan e Hefrich tivessem tempo para refletir sobre a pergunta, Rhodan deu a
resposta. — No mistério galáctico, que tivemos de desvendar nos primórdios da
astronáutica, entre os anos de 1.971 e 2.000. Ao que parece, o caminho de Andrômeda
está cheio de armadilhas, que só podem ser enfrentadas por seres com capacidade
superior. Quanto a nós, já poderíamos ter falhado em Power, se Icho Tolot não nos
tivesse ajudado.
— Isso não é motivo para desanimarmos — disse Holfing. — Temos motivos para
supor que esta estação de transmissor, que abrange um sistema solar inteiro, representa a
prova mais difícil.
— Por que pensa assim? — perguntou Hefrich.
— É simples — respondeu Holfing. — A raça que construiu estas instalações
maravilhosas não poderia saber quais seriam os seres que um dia se disporiam a sair de
nossa Galáxia e viajar para Andrômeda. Quer dizer que deviam estar preparados para
qualquer eventualidade. A escala das formas de vida admitidas pela bioquímica moderna
vai dos humanóides aos respiradores de metano, até chegar às criaturas que nos são
completamente estranhas. Os seres que construíram os transmissores não poderiam ter
previsto que os primeiros a arriscarem o salto para Andrômeda seriam humanóides. Por
isso teriam de criar armadilhas que se revelassem eficazes para qualquer forma de vida. A
privação de líquidos que nos atingiu em Power pode, em certas circunstâncias, ser
completamente indiferente para uma raça que se tenha desenvolvido num planeta quente.
— Já sei aonde quer chegar — interveio Rhodan. — Quer dar a entender que outras
armadilhas que possam existir não nos afetarão.
Holfing confirmou com um gesto.
— Não quero minimizar o perigo — disse. — Certamente ainda nos defrontaremos
com situações piores que a que encontramos em Power, mas temos motivo para supor
que algumas das estações pelas quais teremos de passar não são perigosas para nós.
— Se é que um dia chegaremos lá...— observou o major Hefrich.
— Vamos voltar para a Crest — sugeriu Rhodan. Encontravam-se na ante-sala da
estranha usina de energia de Sexta. Desde o dia 30 de agosto de 2.400 os cientistas
estavam tentando solucionar o enigma do comando do transmissor. Já era o dia 12 de
setembro, e ainda não haviam conseguido. Rhodan não pretendia perder mais tempo em
Sexta. Ao que tudo indicava, não havia como ir adiante.
— Talvez o senhor esteja interessado em ouvir minha opinião pessoal — disse
Holfing quando estavam saindo da usina de energia. A Crest II estava estacionada na
ampla área contígua à usina, com os campos defensivos ativados e os canhões preparados
para disparar.
— Pode falar — pediu Rhodan.
— Todo mundo sabe que é difícil defender e fortalecer o Império Solar —
principiou Holfing.
— Já encontramos uma pista que talvez nos leve para Andrômeda. — Holfing fez
um gesto embaraçado, passando as mãos pelos cabelos brancos.
— Às vezes também chego a ter medo diante da simples idéia de irmos para
Andrômeda. O vazio imenso que nos separa da galáxia vizinha me leva a sugerir que não
devemos arriscar-nos a aceitar o desafio que Andrômeda representa para qualquer pessoa
de mente aberta.
Rhodan sorriu.
— Compreendo seus sentimentos, doutor. Desde que existe, a Humanidade sempre
teve medo diante de cada passo em direção ao futuro.
Todavia, apesar de todas as resistências, já atingimos este lugar. E contentar-se com
o que já foi alcançado não corresponde à mentalidade humana.
— O senhor vê alguma utilidade no avanço — ou na tentativa do avanço — para
Andrômeda?
— Gostaria de responder com outra pergunta. Se não formos para Andrômeda, não
existe a possibilidade de que um dia venha alguém de lá? E este alguém não poderá ter
intenções que atrapalham nossos planos?
— Acho que só a história poderá responder a esta pergunta — disse Holfing em tom
pensativo.
Entraram no barco espacial que estava à sua espera junto à estação e voltaram à
Crest II. Absorto em seus pensamentos, Rhodan contemplava a paisagem estranha que se
estendia em baixo deles. Que povo seria este que um dia tinha construído uma estação
por ali? Será que alguma outra forma de vida já tentara atravessar o abismo
intergaláctico?
O piloto fez o barco espacial entrar no hangar da Crest II. Os homens sentiram-se
satisfeitos por ficarem sujeitos novamente às condições normais de gravidade. Com uma
força gravitacional que quase chegava a dois gravos, a permanência na superfície de
Sexta sem o uso de qualquer recurso técnico não se tornava nada agradável.
No momento em que Rhodan entrou na sala de comando da nave-capitânia, a nave
dos posbis, chamada Box-8323, que estava estacionada no espaço, deu o alarme. Não era
um alarme de emergência, mas sem dúvida acontecera uma coisa imprevista que levara
os posbis a entrar em contacto com seus aliados.
Rhodan foi informado de que os cinco planetas nos quais ainda não haviam descido
já não estavam envoltos pelos campos defensivos verdes. Segundo as informações dos
posbis, os mesmos tinham desaparecido de repente.
Diante disso, Rhodan imediatamente deu ordem para que as pessoas mais
importantes comparecessem à sala de comando. O coronel Cart Rudo recebeu ordem para
preparar a nave para a decolagem.
Rhodan informou os homens que apareceram na sala de comando sobre os
acontecimentos que tinham sido observados pelos posbis.
— Devemos concluir que o caminho está livre — disse Atlan. — Se os campos
defensivos dos diversos planetas foram desativados, podemos pousar com a nave.
— Parece tentador, não parece? — perguntou Rhodan com um sorriso.
— Acha que pode ser uma armadilha? :— perguntou Melbar Kasom. — Neste caso,
a julgar pelo rumo que os acontecimentos tiveram até aqui, somente um planeta deveria
ter sido liberado: aquele em que pretendem destruir-nos.
— Talvez possam destruir-nos em todos os mundos do sistema — disse Gucky, que
estava entrando naquele momento e acompanhara a conversa por via telepática.
— Provavelmente — confirmou Rhodan. — De qualquer maneira, não acredito que
os campos defensivos tenham desaparecido por acaso ou em virtude de alguma avaria nas
instalações. Foram desativados, porque alguém que não sabemos quem é não tem mais
possibilidade de atacar-nos em Sexta. Por isso querem atrair-nos para outro planeta.
— Quer dizer que devemos manter-nos afastados dos cinco mundos? — perguntou
o arcônida com uma ponta de ironia.
— Não se esqueça de que queremos encontrar um meio de sair daqui — lembrou
Rhodan. — Para isso somos obrigados a sair à procura de novas possibilidades.
— Vamos decolar, coronel — disse, dirigindo-se ao coronel Rudo.
Dali a instantes a Crest II levantou-se da superfície do planeta Sexta. Perry Rhodan
ainda não sabia muito bem o que fazer. Sem dúvida não seria recomendável fazer a nave
pousar num mundo escolhido ao acaso. Mandou que o coronel Rudo levasse a nave para
fora do círculo formado pela família planetária. Ali, se necessário, a Crest II poderia
colocar-se rapidamente em segurança. Até parecia Uma ironia do destino, mas o fato era
que a Crest II dependia justamente do sistema de sóis geminados que representava um
perigo para ela. As distâncias que separavam a nave de sua galáxia de origem e de
Andrômeda eram muito grandes. Por isso a tripulação não tinha alternativa senão tentar
com toda cautela a solução dos problemas que resultavam da situação.
A Crest II aproximava-se do quarto planeta em tamanho do sistema de Gêmeos.
Gucky chegou perto de Rhodan.
— Estou captando impulsos mentais — informou. — Devem vir do mundo do qual
nos estamos aproximando.
Rhodan fitou-o com uma expressão de incredulidade. Não esperara que nessa região
pudesse haver alguma forma de vida orgânica. Ao que tudo parecia indicar, as estações
do transmissor estavam guarnecidas exclusivamente por robôs.
— Tem certeza? — perguntou Rhodan em tom desconfiado.
Gucky piscou os olhos. Parecia ofendido.
— Talvez você ainda não se tenha dado que as experiências que colhi durante a vida
permitem que eu exclua a hipótese dum engano — disse em tom arrogante.
— Ele tem razão! — gritou Geco, que continuava sentado. — Também sinto os
fluxos mentais.
Rhodan fez um sinal para Rudo. O homem nascido em Epsal sabia perfeitamente o
que significava o mesmo. A nave-capitania aproximou-se lentamente do mundo do qual
provinham os fluxos mentais que acabavam de ser captados pelos ratos-castores.
Rhodan não fez mais nenhuma pergunta aos mesmos. Não queria perturbar sua
concentração. Se houvesse algum imprevisto, eles o informariam.
O tempo foi passando e a tensão na sala de comando crescia cada vez mais. Os
tripulantes da nave ainda se lembravam muito bem dos horrores que tinham atravessado
em Power. Não era de esperar que no sistema em que estavam fossem encontrar coisas
agradáveis.
Depois de algum tempo Gucky disse:
— Estou recebendo um número tão grande de impulsos confusos que não posso
dizer quem ou o que vive lá em baixo.
— O que significa isso? — perguntou Icho Tolot.
— Pode significar que lá em baixo estão reunidos representantes de vários povos
inteligentes — respondeu Gucky.
— Quarta parece ser o único planeta em que existe vida — disse Rhodan. — Isso
me deixa mais tranqüilo, pois prova que este planeta apresenta condições de vida.
— Pois para mim isso não representa nenhuma vantagem — disse a voz retumbante
de Tolot. — Pelo contrário. Acho que devemos manter-nos afastados deste planeta.
Rhodan sacudiu a cabeça.
— Não — disse. — Se por aqui existem seres inteligentes, os mesmos certamente
estão informados sobre as funções do transmissor. Desta forma poderemos colher
informações.
— Se é que estão dispostos a dá-las — observou Atlan.
— Sem dúvida — disse Rhodan. Vamos esperar para ver como eles nos recebem.
A voz de Atlan não se alterou, mas Rhodan conhecia o amigo há muito tempo para
perceber o tom de desaprovação em que foi formulada a pergunta do arcônida.
— Pretende pousar com a Crest?
— Não, pois neste caso estaríamos nos entregando com tudo que temos a um
eventual inimigo. Por isso mesmo só faremos sair uma nave-girino, que será uma espécie
de vanguarda em Quarta.
Ninguém teve qualquer objeção. Diante das experiências colhidas, parecia
perfeitamente razoável manter a Crest como uma espécie de garantia no espaço.
Realizaram-se análises da atmosfera de Quarta. A interpretação dos resultados
revelou que se tratava dum mundo quente, muito semelhante à Terra. Quarta possuía
grandes mares e somente três continentes, um dos quais não era maior que a Austrália. A
gravitação era ligeiramente superior à da Terra, mas a diferença era insignificante e
dificilmente representaria um obstáculo. Ao que parecia, a atmosfera era respirável.
Os impulsos mentais captados pelos ratos-castores eram cada vez mais precisos,
mas nem assim os mesmos conseguiram identificar tendências definidas. A “confusão
mental”, conforme dizia Gucky, levava a supor que em Quarta havia várias formas de
vida.
Rhodan não fez nenhum esforço para descobrir o motivo. O número das explicações
possíveis praticamente chegava ao infinito. Se não descessem em Quarta, nunca
descobririam a verdade.
Rhodan escolheu a tripulação da nave-girino. Além de Atlan e do halutense Icho
Tolot iria ele mesmo, Melbar Kasom, Ivã Goratchim, um mutante de duas cabeças,
Gucky e mais cinqüenta especialistas da Crest II.
Desta vez o capitão Sven Henderson ficaria no comando da nave-girino C-5.
Rhodan fez questão de que sua esposa e os mutantes Wuriu Sengu, Ralf Marten e
Geco ficassem na Crest II, pois queria dispor duma reserva operacional, caso os
ocupantes da nave-girino precisassem de auxílio.
A despedida da esposa não foi mais demorada que a dos homens que se
encontravam na sala de comando, e que não o acompanhariam. Mory Rhodan-Abro sabia
perfeitamente que seu marido seria obrigado a fazer certas coisas que colocavam em
perigo sua vida. O orgulho de Rhodan nunca lhe permitira oferecer aos astronautas a
espaços regulares o espetáculo duma despedida sentimental.
Dessa forma a saída da nave foi uma operação corriqueira.
A C-5 saiu pela eclusa e a nave-mãe ficou em posição de espera no espaço. Além
disso, a nave dos posbis chamada Box-8323 descrevia uma órbita em torno do planeta. Os
canhões de conversão da nave fragmentária estavam preparados para disparar. O barco
espacial de sessenta metros de diâmetro não poderia gozar duma proteção mais eficiente.
Era bem verdade que no interior do sistema de Gêmeos qualquer tipo de proteção se
tornava bastante duvidosa. Ninguém sabia o que estava para acontecer, e era
perfeitamente possível que tanto a Box-8323 como a Crest II desaparecessem do espaço
antes que os homens do Império Solar pudessem disparar um tiro.
A nave-girino penetrou na atmosfera quente de Quarta. Era um procedimento que
fora treinado inúmeras vezes pelos astronautas, mas desta vez parecia haver algo de
diferente no mesmo. Talvez fosse o sentimento de perigo iminente que se espalhava entre
os homens.
O capitão Henderson deu duas voltas em torno do planeta antes que descobrissem a
gigantesca metrópole no menor dos continentes. A cidade cobria praticamente todo o
continente, estendendo-se de praia a praia que nem uma porção de aço derretida,
misturada com concreto, vidro, plástico, madeira e inúmeros outros materiais.
Mas o que impressionava Rhodan e seus companheiros não era tanto o tamanho da
cidade, mas antes seu aspecto.
As primeiras observações revelaram que os edifícios que se estendiam lá em baixo
eram bastante estranhos. Milhares de arquitetos de vários povos pareciam ter realizado
uma competição para descobrir a forma ideal. Não havia um estilo definido; as
construções da cidade eram dos tipos mais diferentes. O espetáculo parecia encerrar uma
ameaça, mas, além disso, havia o fascínio do incompreensível. Cada construção parecia
ser um desafio, uma súplica muda para todo forasteiro para que também levantasse sua
construção na bizarra confusão.
De certa forma a cidade estava, marcada pela vontade de sobreviver das
inteligências desconhecidas, embora ninguém soubesse quem eram as mesmas e o que
estavam fazendo naquele lugar.
— Que acha, senhor? — perguntou Melbar Kasom.
— Que cidade! — disse Rhodan.
Estas palavras exprimiam tudo que podia ser dito, não tanto pelo sentido, mas pelo
tom em que foram proferidas.
— O que vamos fazer? — perguntou Henderson, dando a impressão de que de
repente se sentira perplexo.
Rhodan examinou os rostos dos outros homens que se encontravam na sala de
comando e percebeu que os mesmos se sentiam tão confusos quanto o capitão.
— Desça mais um pouco — ordenou Rhodan.
— Estes edifícios confirmam as emanações mentais que captei — observou Gucky.
— Lá embaixo deve haver indivíduos de muitos povos.
— Vamos voltar? — perguntou Icho Tolot.
Rhodan compreendeu que o halutense não tinha o desejo de bater em retirada.
Provavelmente estava interessado em saber até onde o terrano queria chegar. Se
seguissem sua mentalidade, o gigante teria avançado sozinho contra a cidade. Quanto a
isso, Rhodan não tinha a menor dúvida. Mas Tolot achou que não seria justo querer
influenciar os terranos. Talvez não se tratasse dum sentimento de justiça, mas duma
posição inabalável mantida por qualquer halutense. Quem sabe? — Pensou Rhodan. —
O halutense falava muito e sabia quase tudo, mas ninguém sabia nada a seu respeito. Ou
melhor, só se sabia aquilo que a criatura queria revelar.
Rhodan fazia votos de que ainda conseguisse derrubar esta muralha de precaução
benevolente de que Tolot se cercava. Mas no momento o mais importante era informar-se
sobre os acontecimentos que se desenrolavam em Quarta.
A C-5 continuou a perder altitude e os astronautas viram que as aparências os
haviam enganado. A cidade não cobria toda a superfície do continente, mas estendia-se
por uma área tão ampla que quando vista de grande altura só poderia despertar essa
impressão.
— Vamos chamá-la de Bigtown — sugeriu Rhodan. — É o único nome adequado
que me ocorre no momento.
— É o melhor — concordou Ivã Goratchim.
As construções, que às vezes eram fantásticas, tornavam-se cada vez mais nítidas.
Finalmente descobriram uma coisa parecida com uma fábrica de robôs.
Rhodan dirigiu-se a Gucky.
— Que tal um pequeno salto de reconhecimento, pequeno?
Gucky esfregou as patas. Rhodan não pôde deixar de sorrir.
— Só a fábrica — advertiu.
— Naturalmente — respondeu Gucky e desapareceu.
Até parecia que o salto de teleportação era um sinal secreto, pois os homens que se
encontravam na sala de comando começaram a falar todos ao mesmo tempo. Cada um
expôs as teorias a respeito de Bigtown que tinha elaborado, até que Rhodan
interrompesse as discussões com algumas ordens.
— Mantenha a posição atual até o regresso de Gucky, capitão — disse, dirigindo-se
a Henderson.
O comandante da nave-girino fez as necessárias manipulações. A C-5 manteve-se
calmamente suspensa sobre a cidade, sem que acontecesse nada de extraordinário.
Bigtown não tomava conhecimento da presença da nave desconhecida. Isto pode ser tudo,
menos tranqüilizador, pensou Rhodan. Qualquer ação da parte dos desconhecidos poderia
ter-lhes dado alguma indicação sobre o comportamento que deveriam adotar. Mas
Bigtown jazia imóvel à luz do sol que nascera há poucas horas, e que ainda continuava
perto da linha do horizonte.
Rhodan olhou para o relógio. Já fazia quatro minutos que Gucky tinha saído. Não
havia motivo para preocupar-se com o rato-castor, mas de vez em quando o mesmo
assumia certos riscos com os quais Rhodan não concordava.
O capitão Henderson apontou para a tela panorâmica.
— Veja lá embaixo, senhor! — exclamou em tom exaltado. — Perto da costa, onde
quase não existe nenhum edifício.
Rhodan concentrou sua atenção no lugar indicado.
— Um fogo — disse, depois de fitar atentamente o ponto. — Um fogo azul. Tenho
a impressão de que está sob controle. Parece que não se espalha.
Enquanto Rhodan ainda refletia sobre o significado das chamas azuis, Gucky
voltou.
— Então? — perguntou Rhodan.
— Trata-se de fábricas inteiramente automatizadas — disse o rato-castor. — Parece
que se destinam à fabricação de alimentos químicos na base da fotossíntese.
Três homens começaram a gritar ao mesmo tempo. Rhodan virou-se abruptamente e
olhou para os rastreadores. Viu imediatamente o que tinha acontecido. E percebeu que
tinham cometido um erro. Um erro que ninguém tinha previsto e incluído nos planos.
O campo defensivo verde voltara a envolver Quarta.
E a C-5 encontrava-se no interior do campo.
Isto significava que não poderiam voltar ao espaço. E não era só. Nenhuma nave
poderia chegar a Quarta, nem a Crest II e nem a nave fragmentária.
A armadilha colocada pelos desconhecidos acabara de fechar-se.
2
***
A sorte favorecera o batedor errático, fazendo com que fosse incluído, no grupo dos
caçadores. Dessa forma podia ir praticamente para onde quisessem. Qualquer criatura que
vivesse em Bigtown sabia que os caçados preferiam recolher-se aos esconderijos que a
cidade oferecia, até que a época da caça passasse. Naturalmente havia exceções. Às vezes
a caça era mais forte que o caçador e esperava tranqüilamente a chegada daqueles que
queriam matá-la em combate.
O batedor errático não se preocupou com o caráter condenável dessas leis. Fora
banido neste planeta por ter devorado a cria de outro Batedor Errático. Ainda sentia certa
euforia ao lembrar-se desse festival de comilança.
Mas chegara o tempo em que ele mesmo teria de pôr seus ovos. Há algumas
semanas, quando notara os primeiros sinais do início da postura, quase se sentira
desesperado. Onde encontraria gelo seco num mundo quente como este, para depositar
seus ovos? Começara a fabricá-lo. Mas os espiões do trio vermelho, que estavam em toda
parte, tinham vindo para destruir suas instalações. Em Bigtown ninguém devia solucionar
seus problemas de reprodução com meios técnicos, pois com isso chegaria o dia em que
os membros de alguns povos alcançariam uma vantagem sobre os outros. Com isso a
estrutura cuidadosamente montada da cidade se teria desestabilizado. Os seres que viviam
em Bigtown tinham de contentar-se com as temporadas de caça para descarregar as
emoções reprimidas. Afinal, não era nada fácil conviver com centenas de espécies
diferentes num espaço muito reduzido.
Como caçador, o Batedor Errático tinha permissão para procurar suas vítimas em
qualquer lugar. Durante a última temporada de caça também pertencera ao grupo dos
caçadores e matara três shingels. Eles o tinham enfrentado, e durante a luta um conjunto
de edifícios se incendiara. Finalmente conseguira prendê-los no elevador
antigravitacional. Provocara um curto-circuito no fusível central. O elevador caíra
diretamente do andar superior. O batedor errático desceu numa corda e encontrou os
shingels mortos.
Mas desta vez ele não estava caçando. Saíra à procura de gelo seco. Até então não
tivera muita esperança de encontrá-lo. Mas o pouso forçado daquela espaçonave dava-lhe
novas esperanças. Se conseguisse matar os tripulantes, poderia subir a bordo e construir
uma máquina de gelo sem que o trio vermelho percebesse.
A nave devia ter tocado o chão nas imediações do grande fogo. O batedor errático
felicitou-se porque sua toca residencial ficava num setor da cidade em que pudera
acompanhar a queda da nave. Se estivesse do lado oposto do continente, provavelmente
não teria percebido nada.
O grande fogo ardia durante toda a temporada de caça. As vítimas só sairiam dos
esconderijos quando o mesmo se apagasse.
As dores fustigaram o corpo enorme do Batedor Errático. O tempo de postura estava
se aproximando. Precisava apressar-se. Perguntou-se quantos seres amedrontados
estariam acompanhando seu caminho desde o momento em que saíra de sua toca
residencial. Os batedores erráticos eram caçadores temidos, porque costumavam lutar
sem temer a morte. Mas o batedor errático não queria saber de ninguém.
Ao sair da cidade, o batedor errático encontrou um dos fiscais nomeados pelo trio
vermelho para impedir que alguém violasse as leis. O fiscal era um hugna, cujo corpo
brilhante lembrava uma roda de fogo. O hugna usava um envoltório transparente para
permitir a respiração, pois para ele a atmosfera de oxigênio era veneno. Dirigiu sua
lanterna tradutora para o batedor errático.
Algumas letras luminosas iluminaram-se.
— Aonde vai? — leu o batedor errático.
Em Bigtown havia mais de trinta mil fiscais. Na opinião do batedor errático seria
pouco provável que o hugna o denunciaria ao trio vermelho pelo simples motivo de que
estava saindo da cidade. Isto não era muito comum, mas acontecia de vez em quando.
— Vou caçar fora da cidade — respondeu o batedor errático, procurando controlar o
nervosismo.
O hugna podia ouvi-lo, mas era incapaz de gerar qualquer som, por mais leve que
fosse.
As letras luminosas confundiram-se e foram substituídas por outras.
— Nome?
Sem dizer uma palavra, o batedor errático mostrou seu bilhete de rifa ao fiscal, onde
estava gravado seu nome, sua nacionalidade e a função que lhe tinha sido atribuída
durante a caçada. O hugna modificou a posição de sua faixa ocular em forma de bastão.
Outras letras apareceram na lanterna.
— Prossiga! — leu o batedor errático, aliviado. — Boa caçada!
— Boa caçada! — respondeu Krash-Ovaron.
Apressou-se para deixar para trás os últimos edifícios. Provavelmente ficaria
admirado se pudesse adivinhar os pensamentos do hugna. O pretenso fiscal não se sentia
menos aliviado que Krash-Ovaron, mas, além disso, sentia-se alegre porque seu plano
fora bem-sucedido. Uma vítima disfarçada de fiscal tinha uma boa chance de escapar aos
caçadores. Mas o hugna sabia que não poderia usar este disfarce durante toda a
temporada de caça, pois se o trio vermelho descobrisse, mandaria matá-lo.
Krash-Ovaron atingiu o campo aberto. Não olhou para trás. O grande fogo azul
podia ser visto de longe. Pôde distinguir a espaçonave desconhecida bem ao lado do
mesmo. Não era grande. Tanto melhor. Quanto menor o número dos desconhecidos, mais
depressa terminaria a luta.
De repente Krash-Ovaron viu uma nuvem de poeira. Parou abruptamente. Alguma
coisa se movia entre a nave e o grande fogo. Será que os recém-chegados já estavam a
caminho da cidade? Krash-Ovaron chiou, aborrecido. Fazia votos de que não estivesse
chegando tarde.
Dali a instantes percebeu que o veículo que avistara era o carro do trio vermelho
que se aproximava do local do acidente, vindo de Bigtown. Krash-Ovaron não assumiu
nenhum risco. Agachou-se numa depressão do terreno. O trio vermelho cuidara dos
desconhecidos mais depressa do que ele esperara. O batedor errático esperara que o trio
deixasse os prisioneiros ir à cidade sem aviso prévio.
Krash-Ovaron pôs-se a refletir intensamente sobre quanta coisa os desconhecidos já
poderiam ter descoberto a respeito das condições reinantes no planeta dos proscritos.
O trio vermelho tinha por hábito informar os recém-chegados sobre as leis que
vigoravam em Bigtown. Mas nem sempre eram sinceros. Tudo dependia de que os seres
com que estivessem lidando fossem julgados mais ou menos importantes. O batedor
errático estava decidido a levar avante seu plano, houvesse o que houvesse. Era o último
de seu povo que restava em Quarta. Se não conseguisse pôr seus ovos, não haveria
esperança de perpetuar sua espécie neste mundo.
Por que o planeta-penitenciária tinha que ser justamente um mundo com uma
atmosfera tão quente que não podia haver formações de gelo? O instinto natural do
batedor errático revelou-se mais forte que o raciocínio prudente. A qualquer momento
Krash-Ovaron sacrificaria a vida para salvar sua prole.
Grudado ao solo, esperou que o carro do trio vermelho desaparecesse entre os
edifícios da cidade. Os senhores de Bigtown levavam dois desconhecidos consigo. Os
recém-chegados não pareciam perigosos, mas Krash-Ovaron sabia perfeitamente que o
aspecto exterior duma criatura não permitia qualquer conclusão sobre suas faculdades.
Krash-Ovaron saiu do seu abrigo. Seus olhos, que pareciam bolas de gude salientes
e bem afastadas na testa chata, dançavam irrequietamente de um lado para outro. Não
havia nenhum sinal de perigo. As dobras da pele que cobria as pernas de salto de Krash-
Ovaron contraíram-se. Agachado como estava, o batedor errático parecia um enorme
batráquio. Mas sua cabeça afinava para baixo, dando a impressão de que Krash-Ovaron
possuía barba.
O batedor errático foi-se aproximando da nave caída, dando saltos enormes. Dali a
pouco reconheceu uma figura solitária entre a nave e o fogo. Ao que tudo indicava, os
proscritos haviam colocado uma sentinela. O ser que ali estava era do mesmo tamanho de
Krash-Ovaron, mas menos largo. Krash-Ovaron não se iludiu, pois sabia perfeitamente
que não poderia aproximar-se da nave sem ser descoberto. Teria de recorrer a alguns
truques para conseguir acesso à mesma. Teria de evitar de qualquer maneira que a
sentinela avisasse os outros ocupantes do veículo.
O batedor errático sentiu-se amargurado ao lembrar-se do castigo que o mantinha
preso a este mundo pelo resto da vida. Ali a luta pela vida era mais dura que em seu
mundo.
O desconhecido que estava parado à frente da nave destroçada permanecia imóvel.
Parecia uma estátua que refletisse a luminosidade do fogo. Os saltos de Krash-Ovaron
foram-se tornando menores. Reduziu a velocidade por meio das robustas pernas
dianteiras, que também podiam ser usadas como braços preênseis. Nuvens de areia
levantaram-se. O batedor errático fez de conta que estava interessado somente no fogo.
Coordenava seus movimentos de maneira a fazer a sentinela acreditar que viera para
cuidar do fogo.
O guarda não parecia perigoso. Krash-Ovaron começou a sentir-se mais seguro. Já
se encontrava perto do fogo. O desconhecido permanecia imóvel. Parecia interessado
exclusivamente na cidade. O batedor errático começou a mexer na armação sobre a qual
Jello Três Luas tinha acendido o fogo. O calor lhe dava enjôos, mas não desistiu. Desta
forma conseguiu chegar ao outro lado das chamas. O guarda dos novos prisioneiros de
Bigtown não podia saber que saltos Krash-Ovaron era capaz de dar. O batedor errático
esforçou-se para dar a impressão de que seus movimentos eram pesados. Lançou mais um
olhar para a nave. Não notou o menor movimento.
Só terei um salto, pensou Krash-Ovaron.
Com o maior cuidado, como se cada contração dum tendão pudesse revelar suas
intenções, o gigantesco sapo encolheu-se. Como estava sentado bem à frente do fogo, o
guarda não podia perceber seus preparativos, pois as chamas certamente o ofuscariam, se
é que estava olhando para Krash-Ovaron.
Uma onda de calor passou por cima do batedor errático. Por um instante os
contornos de sua vítima desmancharam-se.
É agora. — pensou Krash-Ovaron, numa súbita decisão.
Empurrou o corpo, que formava uma massa compacta de músculos e carnes. Ainda
durante o salto admirou-se com a força que conseguira desenvolver.
O desconhecido que estava lá em baixo parecia voar em sua direção. Na verdade,
era Krash-Ovaron que atravessava o ar em alta velocidade. O impacto derrubaria
qualquer criatura do tamanho do guarda.
Durante o salto Krash-Ovaron inclinou-se ligeiramente para o lado, para fazer com
que sua vítima perdesse o equilíbrio. Finalmente orientou seu vôo em direção ao
desconhecido, que não esboçara nenhum gesto de defesa.
No mesmo instante soltou um grito de raiva e decepção. No lugar em que há um
instante estivera o guarda só havia o solo nu. O batedor errático não teve tempo para
refletir sobre o erro que poderia ter cometido. Bateu no chão com um baque surdo. Levou
uma pancada que o fez rodopiar e provocou uma dor lancinante em suas costas. Um
líquido verde saiu dos poros de excitação. Viu o inimigo atrás de si. Era uma grande
sombra escura, muito mais ligeira que qualquer outra criatura que já tinha visto.
O fato de ficar simplesmente deitado no chão salvou a vida do batedor errático. O
guarda mantinha-se na expectativa. Enquanto procurava dominar a dor, Krash-Ovaron
esperava o golpe final. Fizera uma caçada e perdera. Isso só podia significar a morte. Mas
não aconteceu nada!
Krash-Ovaron começou a nutrir novas esperanças. Será que haveria uma
possibilidade de negociar com estes seres? Era possível que nem conhecessem as leis que
vigoravam na cidade.
Viu um grupo de desconhecidos saído da nave e aproximar-se dele. Eram menores
que o guarda. Provavelmente o ser que derrotara o batedor errático era um robô.
Krash-Ovaron refletiu instantaneamente! Enquanto estivesse vivo, teria uma chance
de conquistar a nave. A vitória fácil alcançada pelo guarda poderia levar os recém-
chegados a subestimar Krash-Ovaron.
Bastante preocupado, o batedor errático procurou prestar atenção ao que se, passava
em seu interior. Era necessário salvar a prole. Fazia votos de que a luta não tivesse
prejudicado os ovos, que eram bastante sensíveis.
Krash-Ovaron foi-se levantando bem devagar, para que seus movimentos não
fossem mal interpretados. Era um dos caçadores mais temidos de Bigtown. Atravessara
sete temporadas de caça, ora como caçador, ora como caça. E mais uma vez voltaria à
cidade como vencedor. Mas isto só depois de encontrar um lugar para depositar seus
ovos.
Os desconhecidos estavam conversando. Carregavam objetos metálicos, que sem
dúvida eram armas. O batedor errático fez de conta que estava quase morto. Aquelas
criaturas deveriam ser levadas a acreditar que ele não lhes poderia fazer mais nada.
— Nada feito, meu chapa! — disse uma voz bem em meio aos seus pensamentos.
Uma criatura pequenina abriu lugar entre os desconhecidos. Possuía pêlos e fitava
Krash-Ovaron com seus olhos brilhantes. Um dente-roedor muito feio completava o
quadro extraordinário.
Telepatia. — pensou Krash-Ovaron e bloqueou seus pensamentos.
Quanta coisa a pequena criatura já teria descoberto? O batedor errático chegou à
conclusão de que teria de modificar seus planos. Ao que parecia, aquela nave tinha
trazido indivíduos de vários povos. Parecia haver uma espécie de aliança entre os
criminosos. Krash-Ovaron percebeu que a criatura peluda procurava penetrar em seus
pensamentos.
No momento não havia esperanças para ele.
Acontece que ainda não utilizara a arma mais terrível de que dispunha.
3
***
Aquele chafariz não era diferente de inúmeros outros que havia no parque. No
entanto, Rhodan ficou parado quando casualmente lançou um olhar para a estátua. A obra
de arte não combinava com a impressão geral causada pelo chafariz.
— O que houve, senhor? — perguntou Kasom e ficou parado ao lado de Rhodan.
— Este chafariz — disse Rhodan, apontando discretamente para a estátua. — Há
algo de errado com o mesmo.
A parte superior do chafariz era formada por uma bacia oval e um pedestal. Em
cima do pedestal via-se a figura dum réptil. Da parte interior da bacia partiam jatos de
água em direção à estátua. O líquido escorria em filetes cintilantes pela superfície
bronzeada.
— Nos outros chafarizes deste modelo os jatos de água encontram-se no centro —
lembrou Rhodan. — Esta criatura não combina com o pedestal em que está colocada.
— Pode ser — disse Kasom em tom desconfiado. — Mas por que vamos preocupar-
nos com isso? Afinal, os habitantes de Bigtown não podem construir seus chafarizes de
acordo com nossas instruções.
Rhodan sacudiu a cabeça. Olhava fixamente para o chão. Ainda estavam a trinta
metros do chafariz.
— Essa estátua nem é uma estátua — disse.
— Acha que é uma coisa viva?
— Acho — respondeu Rhodan, preparando discretamente a arma de que acabavam
de apoderar-se. — Parece uma armadilha.
O misterioso chafariz ficava no meio do gramado. Do outro lado via-se uma encosta
florida. O gramado estava cercado por árvores não muito grandes. Não havia nenhum
caminho, mas em vários lugares a grama apresentava rastros de criatura que passavam
por ali com muita freqüência.
— Vamos voltar — sugeriu o ertrusiano.
— Nesse caso seríamos perseguidos — respondeu Rhodan em tom indiferente. —
Vamos seguir na mesma direção.
— Parece ser um réptil blindado — disse Kasom em tom nervoso. — Se realmente
é um ser vivo, sabe perfeitamente como fingir-se de morto. Não está sentindo impulsos,
senhor?
— Não — respondeu Rhodan. — Mas isso não significa absolutamente nada.
Prosseguiram. O solo fofo abafava os ruídos. Quando se encontravam a quinze
metros do poço, a falsa estátua saltou de cima do pedestal e de dentro da bacia atirou com
uma pequena arma de cano largo. A água transbordou por cima da borda da bacia, e a
energia liberada pelo tiro evaporou os pingos de água que se juntavam em torno dos
bocais dos jatos. Nuvens esbranquiçadas subiram ao ar.
Ao primeiro movimento do réptil, Rhodan e Kasom tinham-se atirado ao chão. O
tiro passou por cima dos dois. Rhodan também atirou. Viu o atacante cair lentamente para
dentro da bacia. Ouviu-se o ruído da queda na água. Kasom levantou-se de um salto e
saiu correndo em direção ao chafariz. Rhodan continuou deitado, com a arma apontada.
No momento em que o ertrusiano estava chegando ao chafariz, a cabeça do réptil voltou a
aparecer. O cano feio da arma energética também veio à tona.
Kasom não perdeu tempo. Bateu com ambas as mãos na água. Uma torrente de água
cobriu o inimigo. O réptil virou a arma, para atirar em Kasom. Rhodan viu-a
perfeitamente entre dois jatos de água. Fez pontaria e atirou. O réptil também disparou
mais um tiro, mas este só atingiu o pedestal, que rachou com um forte estalo e caiu dentro
da bacia. Kasom saltou para cima do chafariz e foi para perto da figura imóvel. Só depois
que ele fez um sinal Rhodan levantou-se e também se aproximou.
Kasom estava completamente molhado. Fez um sinal com a arma do inimigo.
— Só está inconsciente — disse. — Se o deixarmos na água, morrerá afogado.
— Tire-o, Kasom — disse Rhodan prontamente.
O ertrusiano hesitou. A lembrança do que aquele ser pretendera fazer ainda estava
muito viva em sua mente.
— Não somos habitantes de Bigtown — disse Rhodan com a voz tranqüila.
— Naturalmente, senhor — respondeu Kasom, mas havia um tom de desaprovação
em sua voz. Puxou o ser inconsciente para a borda da bacia. Tratava-se dum réptil que
caminhava ereto, com placas fortes nas costas e olhos escuros, que ficavam no alto da
testa. Na altura do peito e nas juntas a blindagem era menos forte. Os braços e as pernas
pareciam feitas de espirais isoladas, mas isso era uma ilusão provocada pelo estranho
desenho da blindagem.
Kasom saltou para o chão e tirou o desconhecido da bacia. O ser recuperou os
sentidos e tossiu um litro de água fedorenta sobre Kasom. De repente parecia dar-se conta
da presença do inimigo. Seu primeiro movimento foi em direção ao alforje em que
guardara sua arma.
Kasom sorriu e levantou a peça de que acabara de apoderar-se, para que o
desconhecido pudesse ver.
— Quextrel — disse o réptil, deu uma cuspidela e fez uma mesura.
Depois deu uma cabeçada no estômago de Kasom, que estava totalmente perplexo.
Kasom berrou que nem um touro enfurecido e cambaleou. Rhodan segurou a arma do
homem de pele de prata pelo cano e brandiu-a. Antes que a falsa estátua do chafariz
pudesse voltar ao ataque, foi atingida na nuca pela coronha da arma. A criatura caiu ao
chão.
Kasom respirava com dificuldade. Fitou Rhodan com uma expressão de
ressentimento e apontou a arma de que acabara de apoderar-se para o inimigo, que
começava a levantar-se.
— Não — disse Rhodan.
O ser sacudiu o corpo. Olhava ora para Kasom, ora para Rhodan. Finalmente juntou
as mãos em garra, que possuíam quatro articulações. Era um gesto tão humano que
Rhodan teve a impressão de que dali a pouco ouviria sons humanos. Mas o réptil
manteve-se calado. Não tentou mais nenhum ataque.
Rhodan apontou para o outro lado do gramado e deu um ligeiro empurrão no réptil,
para fazê-lo andar.
— Bronk! — chiou o desconhecido.
Kasom ficou esfregando o estômago e contemplou o habitante de Bigtown com uma
expressão desconfiada.
Finalmente o ser ficou apontando ora para Rhodan, ora para Kasom.
— Grenzter Barget — disse em tom enfático.
— O quê? — perguntou Kasom, estupefato.
— Parece que ele quer dizer que você e eu devemos dar o fora — se é que
realmente pode ser chamado de ele. Certamente quer voltar ao chafariz.
— O pedestal foi destruído — lembrou Kasom. — Quer outra coisa de nós. É a
criatura mais malvada, traiçoeira...
— Está bem, está bem — interrompeu Rhodan apressadamente. Segurou o
ertrusiano pelo ombro. — Vamos embora, Kasom.
Deixaram o chafariz para trás. Kasom olhava constantemente para trás.
— Está nos seguindo — disse o ertrusiano depois de algum tempo.
Pararam até que o réptil os alcançasse. O ser passava a mão pelo rosto e dizia:
— Bronk! — mostrando uma fileira de dentes amarelos.
— Acho que já sei o que ele quer — disse Rhodan.
— Quer a nós — disse Kasom em tom azedo. — Mortos.
Rhodan apontou para si mesmo e para Kasom. Finalmente apontou para o réptil.
— Bronk — disse o desconhecido, com um gesto de satisfação. — Bronk! Bronk!
— Bronk, Bronk! — resmungou Kasom. — Será que ele não sabe dizer outra coisa?
— Ele nos acompanhará — disse Rhodan. — Parece que seu código de honra o
obriga de servir a qualquer pessoa que o tenha derrotado sem matá-lo.
Kasom fez uma careta.
— Ele simplesmente quer nos matar — profetizou. — Vamos mandá-lo embora.
— Não — decidiu Rhodan. Tirou do bolso o desenho da pirâmide. Ficou esfregando
o mesmo até que surgisse o quadro que ele queria e mostrou-o ao réptil. Os olhos escuros
do desconhecido ficaram grudados no desenho. Parecia que estava refletindo. Finalmente
acenou com a cabeça. Seu braço apontou na direção do sol que já estava bem baixo.
— Ele sabe onde é — constatou Rhodan, satisfeito. — Ele nos levará para lá. —
Deu uma palmadinha no ombro do ex-inimigo. — Vamos andando, Bronk. Você irá na
frente.
O réptil deu uma cuspidela bem na ponta da bota de Kasom, grunhiu em tom de
desprezo e saiu troteando pelo gramado.
— Que bandido! — gritou Kasom. — Acabamos de unir-nos a um criminoso.
— Ele nos levará à pirâmide — disse Rhodan. — Isso é muito importante.
Kasom sacudiu a cabeça. Parecia desconfiado. Espremeu a jaqueta molhada com as
mãos. Bronk parecia conhecer muito bem a cidade, pois caminhou resolutamente em
direção às árvores que cercavam o parque.
— Está desarmado — disse Rhodan em tom triste. — Se cairmos numa armadilha,
estará perdido.
— Será que terei que devolver-lhe esta arma? — perguntou Kasom, indignado.
Rhodan deu uma gargalhada.
— De forma alguma. Mas precisamos arranjar alguma coisa com que nosso amigo
possa defender-se.
Kasom murmurou algumas palavras que soavam como humanitarismo exagerado.
Quando chegou ao fim do gramado, Bronk parou e esperou que os dois homens o
alcançassem. Sua garra apontava para as copas das árvores. Rhodan viu que havia
cabanas construídas nos galhos. Bronk deu um pontapé em uma das árvores. Um rosto
enrugado apareceu na abertura de uma das cabanas. No mesmo instante um bombardeio
de objetos redondos atingiu o chão. Kasom levantou a arma, mas Bronk deu um grito e
Rhodan abaixou o braço do ertrusiano. O réptil apressou-se em recolher as esferas.
Rhodan viu que eram nozes. Bronk soltou um grunhido de triunfo e quebrou uma noz
entre os dentes. Entregou uma metade a Rhodan e a outra a Kasom.
— Um homem sensato não ficará satisfeito com uma coisa dessas. Além disso,
acredita que esta noz esteja envenenada — disse o ertrusiano.
Mais uma noz estalou entre os dentes de Bronk. Mastigando ruidosamente, o
criminoso fez descer os pedaços goela abaixo. Mesmo a contragosto, Kasom pos-se a
comer.
— É uma maneira estranha de arranjar alimento — disse.
Bronk quebrou mais quatro nozes entre os dentes e destruíu-as.
— É um aperitivo — disse Kasom em tom de desprezo.
Continuaram andando. Atrás do parque entraram numa rua larga, pela qual
passavam pelo menos sete esteiras transportadoras. De ambos os lados da rua viam-se
construções ovais com telhados achatados. Enormes armações metálicas estavam
montadas sobre os telhados. Em sua opinião devia tratar-se de antenas, embora não
acreditasse que em Bigtown ainda se precisasse de modelos monstruosos como este.
Bronk subiu numa esteira transportadora situada no centro da rua, que levava para o
centro da cidade. Nas faces externas das casas havia estranhos símbolos, pintados com
tinta luminosa. Havia janelas, mas estas antes pareciam vigias e eram muito grossas. As
esteiras estavam vazias, a rua parecia deserta.
— Não estou gostando — anunciou Kasom ao saltar na esteira atrás de Bronk e
Rhodan. — Está quieto demais.
Quando tinham percorrido quatro quarteirões, a esteira parou. Bronk pos-se a
praguejar nervosamente e fez um sinal com a mão, mas Rhodan e Kasom ficaram sem
saber o que tinha acontecido. De repente Rhodan viu um tanque sair duma casa que
ficava mais à frente. Tratava-se dum veículo enorme, com uma cúpula bem no centro.
Parecia possuir inúmeras rodas com propulsão independente, pois passou sem a menor
dificuldade sobre as frestas que havia entre as esteiras. Seu movimento era
completamente silencioso. Os olhos penetrantes de Rhodan viram imediatamente que as
casas e o tanque deviam pertencer aos mesmos seres. A cor e o formato eram
semelhantes. A cúpula se parecia com os vigias que apareciam nas paredes das casas.
Bronk apontou para o tanque. Depois saiu da esteira e correu para outra, que ainda
estava funcionando. Gritou para os dois homens. Ao que parecia, queria levá-los a seguir
seu exemplo.
O tanque acabara de atingir a esteira central e mudou de direção. Havia uma nítida
ameaça em seu avanço silencioso. Rhodan teve a impressão de ver um movimento em
baixo da cúpula, mas talvez fosse apenas um reflexo provocado pelo sol. Rhodan
perguntou-se se o veículo que se encontrava à sua frente era dirigido por robôs, ou se
possuía tripulantes. Achou que a última hipótese era a mais provável. Alguém resolvera
sair da casa com a antena gigantesca para fazer uma expedição de rapina. Rhodan não
tinha muita vontade de ser a vítima dessa atividade. Não perdeu tempo. Seguiu Bronk
para cima da outra esteira.
De repente o tanque precipitou-se para a frente. Duas hastes saíram de reentrâncias
existentes na face dianteira do veículo. Cada uma delas estava equipada com garras
metálicas de três articulações. As hastes possuíam várias juntas, motivo por que poderiam
alcançar praticamente qualquer ponto dentro dum certo raio em torno do tanque.
Kasom esqueceu a desconfiança que lhe inspirava o réptil. No momento havia um
inimigo mais poderoso. Depois de lançar mais um olhar para o monstro que se
aproximava em alta velocidade, o especialista da USO também se pos a salvo na outra
esteira. O veículo mudou de rumo com uma agilidade inacreditável. Dali a alguns
segundos todas as esteiras transportadoras pararam. Rhodan olhou para trás e chegou à
conclusão de que, se ficassem na rua, o tanque acabaria por alcançá-los. Bronk parecia
ser da mesma opinião. Saltou de cima da esteira e saiu correndo entre a amurada que
limitava a rua e a fileira de casas. A frente de cada casa havia uma interrupção na
amurada. Percorreram cerca de cinqüenta metros, enquanto o perseguidor ia chegando
cada vez mais perto. Bronk parou. Respirava com dificuldade. Estendeu a mão e apontou
para a arma de Rhodan. Este sabia que estava entregando a vida nas mãos dum
desconhecido, mas entregou a estranha arma a Bronk. Este não perdeu tempo. Assim que
pos as garras na arma, virou-se e apontou para uma das vigias da casa mais próxima.
Disparou um tiro que chamuscou a parede da casa bem em cima da janela.
O tanque parou imediatamente. Bronk fez um gesto ameaçador com a arma. Fez um
sinal para que Rhodan e Kasom olhassem pela janela. Rhodan deu alguns passos
inseguros para atender ao pedido. A parede da casa ainda estava aquecida pelo tiro que
Bronk acabara de disparar. Rhodan aproximou o rosto da vigia e viu um brilho luminoso.
Teve a impressão de que estava vendo um líquido leitoso transparente. Finalmente
recuou.
Era mesmo um líquido.
Viu uma criatura boiando no mesmo.
A criatura era parecida com um girino. Como a vigia aparentemente deformava os
objetos, Rhodan não tinha certeza se a boca larga e flácida era apenas uma ilusão ótica. O
ser movimentava-se preguiçosamente em seu elemento. Aproximou-se da vigia. Rhodan
fitou um par de olhos frios e duros, que pareciam perfurá-lo. A pele escamosa da estranha
criatura era da cor do marfim velho. Possuía membros parecidos com barbatanas, quatro
ao todo, em cujas extremidades havia saliências rachadas. Rhodan virou a cabeça para
outro lado. Bronk apontou para o tanque e depois para a casa. Queria dar a entender que
no interior do veículo havia outro ser da mesma espécie. O risco que estavam correndo
seus semelhantes levara-o a interromper a caçada.
— Em comparação com aquilo nosso amigo Bronk é uma beleza — disse Kasom,
depois de dar uma olhada no interior da casa.
Como vira que seu método fora bem sucedido, o réptil resolveu aplicá-lo de novo.
Mais uma vez fez pontaria para a janela. Mas não houve necessidade de acionar a arma.
O tanque fez meia-volta e foi-se afastando. No mesmo instante as esteiras transportadoras
voltaram a funcionar.
— Trexnat — disse Bronk, satisfeito.
Devolveu a arma a Rhodan e sacudiu-se.
— Este cara é da pesada — disse Rhodan. — Se não fosse ele, nunca teríamos
passado por aqui.
Kasom resmungou. Parecia contrariado. Ao que parecia, não conseguia livrar-se da
antipatia que sentia por Bronk. A esteira transportadora levou-os pela rua sem outros
incidentes. Atravessaram vários cruzamentos, onde as esteiras transportadoras corriam
em níveis diferentes, evitando os problemas de trânsito. Os encontros com seres estranhos
eram cada vez mais freqüentes. Mas não houve outros ataques.
De ambos os lados da rua havia grandes edifícios, que pareciam ter sido construídos
exclusivamente de vidro. Mas o material era opaco que nem o aço ou a pedra. Nos
telhados viam-se delgados planadores aéreos, que pareciam tão frágeis que Rhodan não
se sentia disposto a voar neles. As sombras dos edifícios cobriam a rua. Uma música
abafada, formando uma melodia lenta e triste, vinha não se sabia de onde. Cada edifício
parecia possuir vários alto-falantes. Rhodan perguntou-se quem seria a criatura que tinha
composto essa música ou estava tocando a mesma. Estava imbuída de solidão. Era
possível que para outros seres exprimisse alegria e vida.
Atingiram um lugar em que todas as esteiras transportadoras estavam avariadas. A
rua gemia. As esteiras saltavam sobre suportes soltos, deslizavam junto a amuradas
entortadas e saíam das trilhas rolantes. No meio da rua havia uma cratera que as esteiras
superavam com grande dificuldade. Uma luta impiedosa devia ter sido travada nesse
lugar.
Kasom chamou a atenção de Rhodan para um avião escuro, que estava pousando
num telhado situado à sua direita. Dois seres, dos quais só reconheceram os contornos,
saltaram do mesmo. Dali a instantes começou uma batalha bem no alto.
Dali a pouco as esteiras voltaram a penetrar em terreno normal. A via deslizava
calmamente, que nem uma onda que ninguém pode deter em sua caminhada em direção à
margem.
Mas a calma era enganadora.
O ataque que se seguiu foi tão surpreendente que nem mesmo o esperto Bronk teve
tempo para esboçar uma reação.
Ouviu-se um plope bem atrás de Rhodan.
Ele virou-se abruptamente, e o movimento instintivo salvou-o da segunda
campânula de vidro que caiu sobre a esteira. Ouviu Bronk dar um grito e viu-o mergulhar
em baixo da esteira. Não teve tempo para perguntar-se que destino tinha tomado o réptil.
Kasom estava agachado em baixo da primeira campânula e martelava desesperadamente
as paredes da mesma. A campânula tinha pouco mais de três metros de altura e dois e
meio de diâmetro. A ponta estava ligada por meio dum laço com um estranho avião. A
máquina praticamente só consistia em duas barras com uma tábua apoiada nas mesmas e
um bloco de motor preso nessa tábua.
— Propulsão antigravitacional — constatou Rhodan.
Kasom parou de martelar as paredes da campânula. Revirou os olhos e caiu. Parecia
que só estava inconsciente.
Outro avião apareceu. Rhodan encostou-se à campânula em baixo da qual Kasom
estava preso. Gostaria que Bronk estivesse ali. O réptil refugiara-se em baixo da esteira.
Rhodan lançou um olhar hesitante para o céu. Havia três veículos aéreos em cima
dele. Três planadores. Isso significava que havia mais três campânulas de vidro.
Rhodan esforçou-se para pôr em ordem os pensamentos que se atropelavam.
Não havia atacante que não pudesse ser derrotado. Se não fosse assim, o equilíbrio
de forças em Bigtown estaria irremediavelmente perturbado.
Um dos planadores antigravitacionais colocou-se bem ao lado da máquina que
prendera Kasom. A outra campânula foi descendo lentamente sobre a esteira
transportadora. Tocou na parede da campânula que já tinha produzido o resultado que se
esperara da mesma. Foi descendo cada vez mais. Rhodan sentiu que o suor começava a
sair por todos os poros de seu corpo.
— Bronk! — gritou desesperado. Não se atrevia a sair do lugar em que estava e
disparar um tiro. A campânula teria caído imediatamente em cima dele. E no interior da
armadilha o disparo dum tiro seria suicídio.
No auge da angústia. Rhodan tentou estabelecer contacto telepático com Gucky.
Mas não conseguiu alcançar o rato-castor. A campânula estava tão perto que poderia
tocá-la com a mão.
Nesse instante alguém agarrou-o pelo pé, puxou-o violentamente e derrubou-o.
***
A idéia de que deixara escapar sua chance quase deixou Krash-Ovaron louco.
Percebeu que o vigia dos desconhecidos estava rematerializando do cares. No mesmo
instante ele também voltou a transformar-se em matéria Ainda conseguiu chegar à eclusa
da nave, mas ali a tensão se tornou tão intensa que não conseguiu resistir à mesma.
Percebeu que estava saindo lentamente do cares para voltar a transformar-se naquilo que
realmente era: um batedor errático.
Deixara que o segundo desconhecido que aparecera em cena desviasse sua atenção e
o vigia escapara ao controle do cares. Dali em diante só cometera erros.
Krash-Ovaron bateu violentamente no chão. Muito tempo se passaria antes que
tivesse forças para instaurar outro cares, um novo plano existencial na dimensão n. Sua
arma mais poderosa acabara por voltar-se contra ele mesmo, pois dali em diante os
desconhecidos se tornariam mais cautelosos, podendo chegar até a matá-lo. Seu fim não
tinha muita importância, mas acontecia que o mesmo envolvia o fim de sua prole — e
esta idéia era insuportável, fazendo com que se contorcesse como quem sente dores
lancinantes.
Notou que o vigia se aproximara. O robusto desconhecido observava-o com a maior
tranqüilidade, dando a impressão de que estava indeciso sobre o que fazer em seguida.
De repente Krash-Ovaron sentiu uma saudade imensa dos grandes campos gelados
de seu mundo. A sentença que o obrigava a passar o resto da vida em Quarta parecia pior
que a condenação à morte. Por que tivera de estragar o futuro em troca duma embriaguez
instantânea.
O batedor errático levantou-se num desespero selvagem e atirou-se contra a eclusa
fechada da nave. O vigia dos desconhecidos continuava a observá-lo. Krash-Ovaron
fitou-o. Que criatura estranha! Provavelmente estaria em condições de enfrentar os
melhores caçadores da cidade.
O desconhecido fez um movimento. Apontou para a cidade. Era um gesto de
intimação. O vigia estava pedindo que Krash-Ovaron se retirasse.
— Preciso desta nave — disse Krash-Ovaron em tom insistente, mas no mesmo
instante compreendeu que para o vigia suas palavras não passavam de sons ininteligíveis.
O braço do vigia continuava a apontar implacavelmente para a cidade. Krash-
Ovaron sentiu as ondas de dor que fustigavam seu corpo. A época da postura estava se
aproximando. Precisava encontrar um lugar antes que a temporada de caça chegasse ao
fim, pois do contrário morreria juntamente com sua prole.
O desconhecido aproximou-se lentamente. Parecia ser uma criatura muito decidida.
Krash-Ovaron reconheceu que só lhe restava uma possibilidade de modificar a
situação a seu favor. Tinha de desmontar o para-bloqueio e pedir ajuda aos
desconhecidos.
Krash-Ovaron estremeceu.
Jurou que todos morreriam, já que o obrigavam a renunciar à sua dignidade.
***
O capitão Noro Kagato entrou no camarote e fechou a porta bem devagar. Redhorse
estava sentado à mesa, sobre a qual havia várias garrafas e canecos.
— Está bancando o curandeiro? — perguntou Kagato em tom amável.
— Não; estou me embriagando — respondeu Redhorse sem levantar os olhos.
— Com álcool? — perguntou Kagato em tom de repugnância. — Como conseguiu
arranjar isso?
Redhorse apontou para o sortimento de garrafas.
— Quem conhece um pouco de química pode preparar os melhores coquetéis com
as substâncias encontradas em nosso laboratório.
O pequeno japonês, chefe do comando de robôs, lançou um olhar indeciso para o
amigo. Conhecia Redhorse e tinha suas dúvidas de que o mesmo realmente iria
embriagar-se. Provavelmente só resolvera dedicar-se a essa atividade para distrair seus
pensamentos.
Redhorse ofereceu um caneco a Kagato.
— Experimente — pediu.
Kagato segurou o caneco e cheirou seu conteúdo.
— Isto parece explosivo — disse. — Quer fazer alguém ir pelos ares?
Esvaziou o caneco e mudou de cor.
— Tenho a impressão de que o senhor não é tão bom em química como acreditava
— constatou Kagato em tom indiferente.
De repente o capitão Redhorse deu uma pancada na mesa.
— Ficamos parados por aí, enquanto a esta hora a C-5 e seus tripulantes já podem
ter ido para o inferno — gritou em tom exaltado. Mas logo voltou a controlar-se. — Acho
que o senhor compreende o que quero dizer.
— Numa situação destas ninguém gosta de permanecer inativo — confirmou
Kagato.
Antes que Redhorse pudesse responder, os alto-falantes do sistema de
intercomunicação fizeram-se ouvir.
— Atenção, todos os oficiais, compareçam imediatamente à sala de comando! —
disse a voz retumbante de Rudo. — Parece que o campo defensivo em torno de Quarta
está desmoronando.
Redhorse tirou as pernas compridas de baixo da mesa e saiu correndo em direção à
porta.
— Vamos, Kagato! — gritou para o japonês.
O comandante de robôs exibiu um sorriso silencioso. Pegou um dos canecos que se
encontravam sobre a mesa e brindou para o amigo.
— Às vezes a gente trai seus princípios — disse.
Dali a instantes seguiu Redhorse com as pernas cambaleantes e os olhos
lacrimejantes. O amigo já estava correndo em direção ao elevador antigravitacional.
7
— ...e que transformar a C-5 num posto gelado — concluiu Gucky, depois que o
batráquio gigante tinha levantado o para-bloqueio.
— Quer dizer que está preocupado com sua prole — disse Atlan em tom pensativo.
— Pois bem. Não podemos fazer nada por essa criatura. Procure explicar-lhe.
— Pensará que estou mentindo — disse Gucky. — No momento isso não importa.
Agora, que o para-bloqueio do desconhecido não existe mais, preciso cuidar de Perry.
Atlan parecia hesitar.
— Por enquanto Perry não pediu socorro.
— Como podemos saber? — objetou Gucky. — É bem possível que o chefe tenha
tentado por várias vezes estabelecer contacto conosco enquanto este batráquio me
impedia de desenvolver minhas energias paranormais.
— É verdade — confessou Atlan. — Acho que você deveria teleportar para
Bigtown, para ver o que aconteceu por lá. Tenha cuidado.
Gucky confirmou com um gesto e desmaterializou. Atlan saiu da C-5 em
companhia do mutante Ivã Goratchim. A criatura desconhecida estava sentada perto da
eclusa, numa atitude de expectativa.
— O rato-castor já lhe explicou que não podemos fazer nada por ele — disse Tolot
ao ver os dois. — Mas ao que parece não quer dar o fora.
Atlan olhou para o sol que já estava descendo na linha do horizonte. Teve pena do
batráquio que era obrigado a procurar gelo seco num mundo como este.
— Na cidade deve haver possibilidade de fabricar gelo — disse, pensando em voz
alta. — Por que essa criatura resolveu vir para cá?
— É bem possível que nem todos os cidadãos possam dispor dos recursos existentes
na cidade — disse Tolot. — Afinal, nem todo terrano pode viajar numa espaçonave
sempre que tem vontade.
Atlan deu uma risada.
— Como pode saber disso, Tolot? De qualquer maneira, sua objeção tem razão de
ser. Bem que gostaria de ajudar essa criatura. Infelizmente não temos nenhum meio de
levá-lo daqui.
— Para um arcônida seus pensamentos são bastante humanos — respondeu Tolot
com certa aspereza na voz.
Mais uma vez a barreira do passado ergueu-se entre eles. Atlan deu as costas a seu
interlocutor. No seu íntimo reconheceu que o mesmo tinha razão. Vivera tanto tempo
entre os terranos que adotara suas concepções morais. Na verdade, só continuava a ser
arcônida pela origem.
— Quer que eu espante esta criatura? — perguntou Ivã Goratchim, o mutante de
duas cabeças.
Atlan respondeu que não.
— Vamos esperar a volta de Gucky.
Icho Tolot aproximou-se. Sua voz parecia apaziguadora.
— Acho que o senhor pode lidar sozinho com este batráquio. Vou dar uma olhada
na cidade.
— Sozinho?
— Sozinho — confirmou o halutense.
— Irei com o senhor — decidiu Atlan. — Avisarei o capitão Henderson de que o
acompanharei.
— Como queira — respondeu Tolot em tom amável.
Atlan comunicou seus planos ao comandante da nave-girino caída. Henderson não
fez nenhuma objeção, mas via-se que gostaria de ir também.
— Vou carregá-lo — ofereceu Tolot assim que Atlan voltou. — Desta forma iremos
mais depressa.
Atlan acomodou-se sobre os braços curtos do halutense. Mandou que o mutante de
duas cabeças ficasse de olho no ser estranho vindo de Bigtown. Depois disso Tolot saiu
andando. Depois de pouco tempo começou a correr tão depressa que o vento quente ardia
no rosto de Atlan.
Não demoraram a atingir os primeiros edifícios da cidade.
***
***
Atlan saltou das costas largas do halutense. O sol já se tinha posto atrás da cidade.
Dali a pouco começaria o crepúsculo.
— Por aqui as coisas parecem ainda mais complicadas — disse o arcônida de si
para si.
— Mais complicadas? — perguntou Tolot em tom de espanto. — O rosto de meu
acompanhante desconfiado não parece muito entusiasmado.
Atlan sentiu a ligeira ironia na voz de seu companheiro, mas não deu importância à
mesma.
— Pelos meus cálculos, deve haver de sete a oito milhões de edifícios em Bigtown.
Estes edifícios são habitados por cerca de cinqüenta milhões de seres de várias espécies.
Encontramo-nos em determinado ponto da gigantesca metrópole. Como faremos para
descobrir onde estão Rhodan e Kasom?
— Tenho uma antipatia instintiva pelas grandes concentrações populacionais —
disse Tolot. — No entanto, não consigo compartilhar seu pessimismo. Afinal, sabemos
em que lugar Rhodan desapareceu na cidade. Tudo que temos de fazer é descobrir sua
pista. Isto pode parecer difícil, mas neste ponto confio bastante na minha capacidade.
— Pois vamos em frente, detetive — disse Atlan com um sorriso.
— O que vem a ser um detetive?
— Um homem cuja atividade profissional consiste em correr atrás de problemas
insolúveis, esclarecer roubos e desmascarar assassinos.
— Está bem — disse Tolot. — Deve ser uma profissão com muitas aventuras.
— Às vezes é bem perigosa — disse Atlan, que não conseguia reprimir a
contrariedade que sentia na presença de Tolot.
O que se poderia fazer para evitar que o halutense se alegrasse que nem um menino
travesso diante de qualquer aventura que pudesse custar vidas humanas?
— O perigo é a essência da vida genuína — disse Tolot em tom sério. — Como é
pobre a criatura que passa seus dias na monotonia da segurança absoluta!
— O senhor só manifesta esta opinião porque é praticamente invencível —
observou Atlan.
— Um ser vulnerável evita o perigo sempre que pode. Para um terrano, por
exemplo, não existe nada mais atraente que viver em segurança.
— O senhor está enganado — objetou Tolot. — Se essa atitude realmente
correspondesse à mentalidade terrana, estes seres não estariam aqui. Seu comportamento
é bastante mutável e difícil de compreender. Organicamente pertencem às formas de vida
mais débeis da Galáxia. Mas o espírito os impele. O espírito deles não combina com o
corpo. Já imaginou um terrano — como Rhodan, por exemplo — que possuísse meu
corpo?
Atlan entregou-se a esta idéia, e os dois foram penetrando na cidade.
***
***
Tolot e Atlan preferiram não usar a esteira transportadora que corria no meio da rua,
em direção ao centro da cidade. Caminharam pelo passeio estreito que ficava ao lado da
esteira. Passaram por edifícios que pareciam bacias viradas. Ao que parecia, as saídas
ficavam no telhado, onde os náufragos viram escotilhas blindadas.
Um ser armado passou pela fita. Não deu atenção a Tolot e ao arcônida. Ao que
parecia, o desconhecido estava fugindo. Tolot parou e olhou para trás. Atlan receava que
o halutense fosse intrometer-se no assunto, mas quando não viram outra criatura, Tolot
prosseguiu.
— A caçada nem é um método tão ruim de manter a ordem na cidade — disse
Tolot. — Por aqui indivíduos de muitos povos convivem num espaço reduzido. Se não
fossem as caçadas, haveria lutas constantes na disputa pelo poder.
— Você é um anarquista — resmungou o arcônida.
Tolot soltou uma estrondosa gargalhada.
— Acontece que a natureza só conhece a anarquia — disse. — O mais forte
sobrevive.
— Conheço muitas formas de vida em que o fraco também tem sua chance. Um
povo que; quer fazer jus ao direito de chamar-se de civilizado também deve reservar um
lugar para os fracos.
— Naturalmente — disse Tolot. — O senhor está aludindo aos terranos, que neste
ponto representam um exemplo formidável. Acontece que os terranos só têm
consideração para com os fracos pertencentes às suas próprias fileiras. Os povos estelares
que conseguem enfrentar os terranos em igualdade de forças são esmagados e oprimidos.
— Oprimidos não. Nós — Atlan não pôde deixar de sorrir ao perceber que
inconscientemente se incluía na raça humana — sempre nos esforçamos para encontrar
uma solução pacífica.
— O que é a Galáxia? — perguntou Tolot. — Não é uma gigantesca Bigtown?
Atlan sacudiu a cabeça.
— A Galáxia é...
A seta atingiu-o no braço direito e fê-lo cair de costas para fora da esteira. A
segunda seta resvalou no corpo de Tolot. Até parecia que tinha atingido uma superfície
metálica. O halutense virou-se abruptamente, mas não viu o atirador. Atlan rastejou para
baixo da esteira e fez um sinal para Tolot com o braço que não tinha sido ferido.
Outra seta aproximou-se com um chiado. Tolot foi atingido no peito, mas a seta
quebrou-se.
— Lá em cima! — gritou Atlan, que continuava em seu esconderijo.
Na escotilha blindada que havia em cima do telhado da casa mais próxima via-se
um ser de aspecto aventureiro. O corpo estava coberto por cabelos compridos, que em
vários lugares tinham sido reunidos em trancas. A criatura montara uma espécie de
seteira na frente da escotilha e de lá disparava suas setas. Desta forma podia matar seus
inimigos de forma completamente silenciosa.
Tolot saiu caminhando tranqüilamente em direção à casa.
O atirador soltou um assobio e disparou outra seta. Desta vez a mesma atingiu a
cabeça de Tolot.
Este pegou a seta antes que pudesse cair ao chão e quebrou-a em três pedaços. A
criatura que estava no telhado deu um grito de incredulidade e retirou-se para o interior
da casa, fechando ruidosamente a escotilha blindada.
— Acho que já pode sair — disse Tolot.
Atlan deixou que o halutense o puxasse para cima do passeio. A seta continuava no
interior da ferida. Tolot examinou o braço de Atlan.
— Não parece grave — constatou. — Tomara que a seta não esteja envenenada.
Atlan bateu no peito.
— Espero que meu ativador celular também seja capaz de neutralizar os venenos
deste planeta.
Tolot segurou a seta e movimentou-a suavemente. Pingos de suor apareceram na
testa de Atlan.
— Arranque — disse.
Parecia que Tolot se divertia a valer. Certamente sua sede de aventuras estava sendo
saciada em Quarta. Segurava Atlan com uma das mãos, enquanto com a outra arrancava a
seta. Atlan dobrou ligeiramente os joelhos. Tolot contemplou a ponta de metal, que tinha
dez centímetros de comprimento.
— Se tivesse acertado no seu peito, nem mesmo o ativador poderia salvá-lo —
disse.
— O senhor tem uma maneira formidável de encorajar um ferido — disse Atlan em
tom sarcástico.
Tolot olhou em torno. Não deu atenção à observação do arcônida.
— Daqui a pouco vai escurecer — disse. — Acho que é preferível que eu o leve de
volta à nave-girino. Na situação em que estamos, chegarei mais longe sozinho.
Atlan tapou a ferida com a mão sadia. Quis protestar, mas logo chegou à conclusão
de que na C-5 poderiam curá-lo dentro de pouco tempo. Dentro de algumas horas não
sentiria mais nada. Além disso, teve de reconhecer que só representaria um peso para
Tolot. Sem ele o halutense demoraria menos a descobrir uma pista de Rhodan e Kasom.
— Está bem — disse. — Vamos voltar. Quando estavam saindo da cidade, já estava
escuro. Mas o grande fogo aceso por Jelo Três Luas apontava-lhes o caminho.
***
Rhodan sentiu o metal frio através da blusa rasgada e chamuscada. Muito tenso,
comprimiu o corpo contra a coluna. Gucky tinha desaparecido para atrair os guardas.
Rhodan não era dado às destruições inúteis, mas na situação em que se encontrava
não tinha alternativa, se quisesse encontrar um meio de sair deste mundo. O campo
defensivo que envolvia Quarta precisava ser desativado. Afinal, aqueles homens não
estavam dispostos a passar o resto dos seus dias num planeta-penitenciária pertencente
aos senhores de Andrômeda.
Uma explosão interrompeu seus pensamentos. Gucky estava fazendo um bom
serviço. Sua manobra desviacionista consistia num fogo de artifício oferecido do outro
lado do pavilhão. Os guardas ficaram nervosos, gritavam palavras uns para os outros e
saíram correndo.
Rhodan saiu do esconderijo. Quando se encontrava perto da máquina, levantou a
estranha arma. Tivera tempo de sobra para estudar seu mecanismo.
Com a maior tranqüilidade fez pontaria para um conjunto de cabos que levava
diretamente do ponto mais alto do maquinismo para o pavimento superior. Sabia
perfeitamente que, assim que disparasse o primeiro tiro, teria de contar com a volta dos
vigias. Antes de disparar escolheu mais três alvos. A julgar pelos ruídos, Gucky estava
criando uma confusão tremenda do outro lado do pavilhão.
Rhodan comprimiu o botão acionador. O cabo derreteu-se em energia pura. Uma
nuvem de fumaça subiu ao teto. Rhodan fez girar o braço. Visou o alvo seguinte e voltou
a atirar. Numa questão de segundos destruiu sete feixes de cabos. A máquina emitiu um
ruído irregular. Sons estranhos vinham do interior do mesmo. Ouviu-se um matraquear.
Passos apressados aproximavam-se rapidamente. Rhodan virou a cabeça e viu sete vigias
com os olhos arregalados de susto contornarem uma máquina. O terrano deu um salto por
cima da amurada que cercava as instalações e abrigou-se. Dois tiros disparados às pressas
passaram por cima dele, atingindo uma coluna de apoio. Pingos de metal incandescente
caíram ao chão. Por enquanto a máquina o escondia dos seus perseguidores.
— Gucky! — gritou.
O rato-castor apareceu alguns passos à sua frente.
Os vigias passavam junto à amurada. Gritavam e agitavam as armas. Rhodan caiu
para a frente e segurou o mutante pela perna. Gucky não perdeu mais tempo. Teleportou
com Rhodan diretamente para a cobertura da pirâmide.
Atrás deles a máquina foi destruída numa explosão, fazendo desabar a superfície
plana. A pirâmide sofreu um abalo.
Rhodan olhou para a cidade, que se estendia na escuridão da noite. Uma brisa
ligeira estava soprando. Gucky desapareceu, mas logo voltou a aparecer com Kasom. O
ertrusiano estava inconsciente.
Rhodan sabia que o rato-castor já tinha atingido o limite de suas faculdades
paranormais. Enquanto não se recuperasse, não seria capaz de levar todo mundo para a C-
5.
Rhodan inclinou-se sobre Kasom para examiná-lo. A respiração do ertrusiano era
apressada. Rhodan apalpou sua cabeça e descobriu uma saliência ensangüentada. Sacudiu
suavemente o especialista da USO. Depois de algumas tentativas inúteis, Kasom emitiu
um som abafado. Finalmente levantou a cabeça. Imediatamente comprimiu a cabeça com
as mãos.
— Se estou no paraíso, quero ser levado imediatamente a outro lugar — conseguiu
dizer com grande esforço. — Não estou sentindo nenhum cheiro de assado.
— Será que o senhor não pode pensar em outra coisa que não seja comida? —
perguntou Rhodan.
— Não senhor — respondeu Kasom e levantou-se.
Rhodan teve de segurá-lo, pois por um instante Kasom esforçou-se em vão para
conservar o equilíbrio. Finalmente o ertrusiano voltou a ficar de pé.
— O que aconteceu? — perguntou. Rhodan fez um ligeiro relato da destruição das
instalações energéticas.
— Alguma coisa deve ter caído na minha cabeça durante a explosão — disse
Kasom. — Será que o campo defensivo já deixou de existir?
— Espero que sim — disse Rhodan. — Se fosse de dia, poderíamos ver a olho nu.
Embora estivesse escuro, Rhodan notou que Kasom estava observando o rato-
castor.
— Estamos presos? — conjeturou Kasom.
— Por enquanto sim — respondeu Rhodan. — Gucky esforçou-se demais, mas logo
poderá levá-lo à C-5. Informe a tripulação sobre o que aconteceu. Suponho que a Crest já
esteja se aproximando, caso o campo defensivo realmente tenha sido destruído.
— Não posso deixá-lo sozinho por aqui, chefe — protestou Kasom.
— Certamente não nos procurarão aqui em cima — disse Rhodan. — O senhor está
ferido. Gucky logo terá forças para vir buscar-me. — Apontou para a noite. — Acho que
a Crest não demorará a pousar. Quando isso acontecer, também poderemos recorrer a
Geco.
— Todas as luzes em cima da pirâmide estão apagadas — constatou Kasom. —
Parece que o senhor inutilizou todas as instalações, chefe. — Sua voz assumiu um tom
ameaçador. — Eles assassinaram Bronk.
— Sem dúvida o mataram — disse Rhodan.
— Cheguei à conclusão de que em Quarta não podemos aplicar nossas idéias sobre
o que é justo e injusto. Para os habitantes de Bigtown suas leis são tão justas como as
nossas são para nós.
— Acho que já poderei dar conta de Melbar — interveio Gucky. — Segure-se,
Kasom. Vamos partir.
Kasom recuou instintivamente. Rhodan sentiu que o gigante ertrusiano o fitava com
uma expressão de dúvida. Mas Gucky saiu caminhando em sua direção, agarrou-se a ele e
desmaterializou.
Rhodan ficou só. Olhou para a gigantesca metrópole. Em alguns lugares havia luzes
acesas. De vez em quando viam-se raios. Provavelmente alguém estava combatendo.
Rhodan teve a impressão de sentir os pensamentos de cinqüenta milhões de seres e uma
pressão surda comprimiu seu peito. Não sabia por quê, mas de certa forma sentia-se
responsável por esta cidade. O que poderia fazer para ajudar os proscritos de Quarta? Os
mesmos tinham sido condenados por juízes que ele não conhecia. Provavelmente um
terrano nunca seria capaz de compreender as leis que eles tinham infringido.
Houve um movimento atrás dele. Rhodan virou-se abruptamente e levantou a arma
do robô. A escuridão não era completa, e assim pôde distinguir uma figura magra.
— Ogil! — exclamou, surpreso.
O intérprete dos vigias da estação levantou os braços magros.
— Não estou armado. Não atire.
Rhodan baixou a arma. Não sabia por que, mas acreditava no que o cidadão de
Bigtown estava dizendo.
— Como conseguiu subir aqui? — perguntou em tom de curiosidade.
Ogil deu uma risadinha parecida com a dum ancião. Mas não havia nenhuma auto-
confiança nesta risada, antes um cansaço infinito.
— A estação não existe mais — disse. — Foi totalmente destruída pela explosão.
Soube desde o início que o senhor é uma dessas criaturas obstinadas que sempre querem
impor sua vontade, custe o que custar. — Subi pela face externa da pirâmide. Não
esperava encontrá-lo aqui.
— O que veio fazer aqui em cima? — perguntou Rhodan, desconfiado.
— De noite a cidade é muito bonita — disse Ogil. — Não se percebe nada da
maldade e da selvageria que existe nela. O vento é sua respiração, que traz a mim as
histórias que aconteceram durante o dia.
— A que espécie pertence o senhor? — perguntou Rhodan em voz baixa.
Ogil fez um ligeiro movimento na escuridão.
— Isso realmente é tão importante? O senhor acredita que alcançou uma vitória.
Mas o senhor abandonará este mundo, carregando a derrota.
Imediatamente Rhodan teve a atenção despertada.
— O que quer dizer com isso?
— O senhor não demorará a descobrir — respondeu Ogil em tom de mistério. —
Poderia preveni-lo, mas sei que nada o deterá.
— Quer ir conosco?
— Sair da cidade? — Ogil sentou no chão frio e descansou a cabeça sobre os braços
entrecruzados. Até mesmo na escuridão Rhodan teve a impressão de ver o brilho de seus
olhos enormes.
— Não; não sairei da cidade.
— A que espécie pertence o senhor? — voltou a perguntar Rhodan. — É um dos
senhores de Andrômeda?
— Não sou nada — respondeu Ogil com a voz tranqüila. — Posso ir embora sem
deixar nada — nem mesmo uma recordação.
— Pois eu me lembrarei do senhor — prometeu Rhodan.
— Para mim isso não significa nada — respondeu Ogil. — O que vem a ser um
pensamento no grande vazio entre as galáxias?
8
A Crest II desceu sobre o grande fogo e ficou suspensa sobre a cidade escura. A
eclusa do hangar abriu-se. Uma nave-girino comandada pelo capitão Redhorse partiu para
a escuridão e foi-se aproximando do local em que caíra a C-5. Mory Rhodan-Abro
também se encontrava a bordo.
O capitão Henderson já chamara pelo rádio, fornecendo informações sobre os
acontecimentos.
— Tolot trouxe Atlan de volta para a C-5; o arcônida estava ferido — comunicou
Henderson. — Mas só se trata dum corte sem maiores conseqüências. Quando o
halutense pretendia voltar à cidade, Gucky apareceu com Kasom. O Chefe está bem. No
momento encontra-se sobre a pirâmide que fica na cidade e espera que Gucky vá buscá-
lo.
Mory respirou aliviada.
— Vamos pousar para recolher todo mundo — informou Redhorse. — Mantenham-
se preparados.
— Está bem — confirmou Henderson. — Mas tenha cuidado ao pousar. Por aqui
anda uma criatura vinda da cidade, que quer usar a C-5 como local de postura.
Redhorse sorriu.
— Quer que logo mande Geco? — perguntou.
— Gucky faz questão de ir buscar Rhodan pessoalmente — respondeu Henderson.
— Quer dizer que não há necessidade de perturbar o sossego de seu rato-castor.
O capitão Redhorse fez a C-3 pousar em segurança do outro lado do grande fogo.
— Tomara que não nos ataquem — disse, dirigindo-se a Mory. — Se o pessoal da
cidade descobrir que mais uma nave acaba de pousar, talvez acreditem que se trata duma
invasão.
— Estamos abandonando a C-5 — informou Henderson.
— Estamos à sua espera — respondeu Redhorse.
Icho Tolot encarregou-se de vigiar o batedor errático, enquanto os homens da C-5 se
transferiam para a C-3. O grande ser não fazia o menor movimento. Ficou deitado na
areia como se estivesse morto e acompanhava os acontecimentos. A cidade permaneceu
em silêncio. Ninguém parecia interessar-se pela nave que pousara em último lugar.
Mas de repente Redhorse, que estava de pé na eclusa aberta para receber os
náufragos, ouviu o ruído dum motor que se aproximava, vindo da cidade.
— É o trio vermelho — conjeturou Atlan, que se encontrava ao lado de Redhorse.
— São eles que governam este mundo. Provavelmente vêm para cumprimentar os recém-
chegados e informá-los sobre as leis que vigoram em Bigtown.
— Que venham — disse Redhorse em tom zangado. — Nós lhes serviremos uma
amostra de nossas leis.
— Não — objetou Atlan. — Quando chegarem, todos estarão na nave, exceto
Rhodan. Vamos decolar e sobrevoar a cidade até que Gucky tenha trazido Rhodan.
Redhorse parecia perplexo.
— Tem medo dessas criaturas?
Atlan limitou-se a sacudir a cabeça. Não deu nenhuma explicação ao capitão. Como
iria explicar os hábitos dos habitantes de Bigtown a Redhorse?
Os últimos homens foram entrando pela eclusa. O ruído de motor era cada vez mais
intenso. Atlan voltou a olhar em torno e puxou Redhorse para dentro. O capitão seguiu-o
a contragosto.
— Dê ordem para decolar — disse Atlan.
Dali a instantes a C-3 desprendeu-se do solo.
Deixou para trás os destroços da C-5, o grande fogo, o batedor errático e um carro
que freou abruptamente, com três seres de pêlos vermelhos que uivavam de decepção.
***
— Lamento que a estação tenha sido destruída — disse Rhodan, enquanto Ogil
continuava sentado, imóvel. — Não sei se o senhor compreende os motivos que nos
levaram a agir assim.
— Naturalmente — respondeu o intérprete. — O senhor luta pela vida. Embora seja
inútil.
— Poderia fazer o favor de explicar o que quer dizer com isso?
— Mesmo que quisesse, não poderia — respondeu Ogil.
Sua voz parecia mais baixa. Rhodan inclinou-se sobre a criatura. Ogil exalava um
cheiro esquisito. Rhodan tocou-o suavemente. Seus dedos ficaram úmidos.
— O senhor está ferido — disse Rhodan, apavorado. — Por que não disse?
Podemos tratá-lo a bordo de nossa nave.
Ogil levantou-se sem dizer uma palavra. Rhodan fez um grande esforço para varar a
escuridão, a fim de verificar a extensão do ferimento.
— Não irei com o senhor — decidiu Ogil. — Nem mesmo para receber o
tratamento de que preciso.
— O senhor não poderá voltar ao interior da pirâmide — disse Rhodan. — Haverá
novas explosões. A pirâmide queimará por dentro. Talvez até chegue a desabar.
— Não entrarei em lugar algum — cochichou Ogil.
Gucky materializou bem ao lado deles. Rhodan sentiu a pata do rato-castor em sua
mão.
— A Crest penetrou na atmosfera de Quarta. Redhorse pousou com a C-3 e
recolheu a tripulação da C-5. Depois disso Atlan mandou que decolasse, pois o trio
vermelho estava se aproximando. A nave-girino está sobrevoando a cidade. Podemos
teleportar para bordo.
— Um momento — disse Rhodan apressadamente.
Dirigiu-se a Ogil.
— Se quisesse, poderia obrigá-lo a ir comigo — disse. — Mas quero tentar mais
uma vez de outra forma.
— O senhor é um homem obstinado — queixou-se Ogil.
Parecia ser um juízo definitivo. Antes que Rhodan pudesse fazer qualquer coisa, o
intérprete deu dois passos em direção à extremidade da cobertura e precipitou-se para o
solo. Rhodan estremeceu ao ouvir o impacto de seu corpo.
— Ele não fez isso porque quis — disse Gucky. — Alguma coisa o obrigou a agir
assim.
— O que quer dizer com isso?
— Só consegui captar este sentimento — respondeu o rato-castor. Segurou mais
firmemente a mão de Rhodan. — Ainda vamos ficar conversando aqui por muito tempo?
— Você tem razão — disse Rhodan. — Já devem estar à nossa espera.
Com um salto de teleportação, Gucky transportou-se à C-3 juntamente com Rhodan.
Este ofereceu um ligeiro relato sobre os acontecimentos que se tinham desenrolado no
interior da pirâmide. Não fez nenhuma alusão à morte de Ogil.
A C-3 acelerou e correu de volta para a nave-mãe.
— Assim que estivermos a bordo da Crest, preciso falar com o major Bernard —
disse Rhodan, dirigindo-se a Gucky, que ainda parecia bastante cansado.
Gucky piscou para as luzes fortes do teto.
— Por quê? — perguntou em tom desconfiado.
Rhodan levantou as mãos e abriu os dedos.
— Você me deve dez cenouras — lembrou. — Quero falar com o major Bernard,
para que ele as desconte de suas rações.
Gucky levantou-se, indignado.
— Você é mais voraz que Kasom — gritou, furioso.
Epílogo
***
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*