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A PARTIDA DOS
OLDTIMERS
Autor
WILLIAM VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
Caros apreciadores da série
Perry Rhodan:
Em vez do prefácio que costuma anteceder cada volume da série, apresentamos hoje
uma lista dos mutantes que estão a serviço de Perry Rhodan. Desta forma cumprimos o
desejo manifestado por muitos leitores novos, que solicitaram a publicação da lista.
Segue a relação completa, que retrata a situação no ano 2.401 do calendário terrano.
A fome atroz abafara quase todos os outros sentimentos de Groon. Estava acampado
com os remanescentes de seu exército num planalto alongado, que se estendia nas
proximidades da grande planície. As esperanças de encontrar uma coisa comestível na
cidade destruída não tinham se realizado. O único lugar em que talvez pudesse haver um
pouco de alimento era inacessível no momento.
Os olhos ardentes de Groon fixaram-se no vale, no lugar em que estava parado o
veículo dos forasteiros que há muito tinham desaparecido.
— Não se movimenta — disse Yorgos, que se encontrava a seu lado.
A voz do subchefe era rouca, e seu crânio de sapo balançava sobre o tentáculo de
um metro de comprimento.
— Assim que tentarmos nos aproximar do veículo, ele se movimentará —
profetizou Groon em tom sombrio. — Só temos uma arma com munição para sete tiros.
A arma a que Groon estava aludindo garantia sua qualidade de chefe. Ainda havia
quatorze soldados com ele, quatorze homens famintos e zangados, que nutriam um ódio
intenso por ele, pois acreditavam que ele os tinha levado para a desgraça. De noite Groon
dormia longe do acampamento. Montava armadilhas sofisticadas, para que o menor ruído
o despertasse. Era mais esperto que os outros e esperava viver mais que eles. Um homem
precisava de menos alimento que quinze. Era um cálculo simples, no qual Groon baseava
toda sua atuação. Yorgos talvez pudesse tornar-se perigoso para ele, mas o subchefe
estava ferido e não teria muito tempo de vida.
— Precisamos tentar — insistiu Yorgos. — Tanto faz morrermos de fome aqui em
cima ou sermos mortos lá embaixo.
Um murmúrio de concordância vindo mais de longe se fez ouvir. Groon ouviu
corpos magros que rastejavam em sua direção. Olhou para trás e havia uma ameaça fácil
de interpretar em seus olhos. Os soldados recuaram, não porque respeitassem Groon, mas
porque tinham medo de sua arma.
Groon sabia que seriam obrigados a atacar o veículo. Esperava que durante o ataque
morressem pelo menos sete homens. Groon adiava constantemente o início do ataque,
pois queria que os soldados estivessem completamente desesperados e desorientados
quando dessem o golpe.
— Temos de atacar em dois grupos — disse Groon. — Um dos grupos distrairá o
inimigo, para que o outro possa aproximar-se do veículo.
Groon começou a distribuir os homens. Agiu de forma complicada, abandonando
constantemente as sugestões que ele mesmo acabara de formular. Dessa forma conseguiu
desviar a atenção dos homens do plano de matá-lo. O mais importante era conseguir
alimento, e Groon tinha certeza de que no momento não se arriscariam a atacá-lo.
— Está se movimentando! — exclamou Yorgos, que olhava constantemente para o
vale.
Groon soltou um grunhido de desprezo. Sabia que Yorgos apenas pretendia distraí-
lo.
Dali a pouco mandou que o subchefe descesse ao vale, acompanhado de oito
soldados. Deveriam aproximar-se do veículo de forma a serem vistos, a fim de atrair o
inimigo para fora do esconderijo. Groon caminharia pelo topo da colina, com os cinco
homens restantes, até atingirem a depressão através da qual poderiam chegar à planície
sem serem vistos.
Groon agira intencionalmente ao deixar que a maior parte dos soldados
acompanhasse o subchefe. Além de aumentar sua própria segurança, este lance poderia
levar Yorgos a arriscar um ataque ao veículo, durante o qual perderia a vida. Groon
perdera um exército na luta pela cidade de Kraa, mas nem por isso se poderia dizer que
não fosse um bom estrategista.
Esperou pacientemente que Yorgos desaparecesse entre as rochas.
— Vamos andando! — gritou para os soldados que tinham ficado para trás.
Teve o cuidado de não ficar de costas para nenhum deles. Sentiu o ódio que se
dirigiu contra ele enquanto os homens passavam por ele, em direção à extremidade do
planalto. Os pés cansados arrastavam-se pelo chão e os uniformes estavam reduzidos a
farrapos.
— À frente, marcha! — ordenou Groon, esquecendo por um instante a situação
difícil em que se encontravam.
Ergueu-se de vez e ficou assustado. Por um instante teve medo de ficar
inconsciente, de tão repentina que foi a tontura. Segurou a arma com tanta força que suas
mãos doeram. Lançou um olhar confuso para as costas dos soldados que andavam à sua
frente.
Será que eles sabiam que naquele momento Groon era bastante vulnerável?
Groon acreditava que os soldados não se sentiam muito melhor. Isso o deixou mais
tranqüilo. Encolheu a cabeça, porque dessa forma se tornava mais fácil conservar o
equilíbrio durante a caminhada. Enfiava constantemente a mão livre no bolso do
uniforme, na esperança de encontrar um resto de sua ração.
O caminho pelo qual seguiram eram difícil e cheio de pedras. Os soldados
passavam entre as pedras gigantescas como grandes insetos. Groon colocou a carabina a
tiracolo, pois precisava das duas mãos para segurar-se. Os outros estavam bem à sua
frente, e por isso teria bastante tempo para abrir fogo caso tivessem a idéia de atacá-lo.
Pedras desmanchavam-se sob seus pés. À sua esquerda ficava o despenhadeiro íngreme.
Um passo em falso, e Groon se precipitaria nas profundezas.
Depois de algum tempo viu o grupo de Yorgo na planície. Agarrou-se à rocha por
um instante, a fim de observar os soldados. Por um breve instante a sensação de triunfo
superou a fome. Reconheceu Yorgos que caminhava à frente do pequeno grupo. Yorgos e
seus homens caminhavam bem na direção do veículo, tal qual Groon ordenara. Restava
saber se pararia em tempo. Groon fazia votos de que isso não acontecesse.
Passou a andar mais depressa, para voltar a ficar à mesma distância de seus homens.
De repente viu um dos soldados que caminhavam à sua frente perder o apoio e cair no
precipício. A queda silenciosa deixou Groon chocado, pois ele queria ouvir um grito de
pânico e angústia. Mas o baque surdo do corpo emagrecido foi o único ruído que chegou
a ele. Groon estremeceu. Os outros quatro homens tinham parado. As cabeças levantadas
olhavam para dentro do precipício.
— Vamos andando! — gritou a voz retumbante de Groon.
As cabeças foram encolhidas abruptamente e os soldados prosseguiram. Groon
passou por cima de uma rocha. Tinha uma boa visão para baixo, mas preferiu não olhar.
Imaginava perfeitamente o acidentado deitado entre as rochas, com os braços abertos e os
olhos amortecidos.
Para os homens que de tanta forma mal conseguiam manter-se de pé o caminho para
a depressão se tornava infinitamente longo. Groon começou a duvidar de que
conseguiriam chegar ao destino, mas não modificou seus planos.
O grupo de Yorgos tinha percorrido aproximadamente metade da distância que o
separava do veículo. No momento tinha-se a impressão de que Yorgos e seus
companheiros agüentariam. Groon deu ordem para que os homens fizessem uma pausa.
Encostou-se a uma rocha, respirando pesadamente. Lançou um olhar para Kraa e teve a
impressão de que dos destroços da cidade abandonada ainda saía fumaça. As silhuetas
escuras dos edifícios queimados pareciam lançar uma ameaça para Groon. E à frente da
cidade — Groon fechava os olhos toda vez que pensava nisso — jazia seu exército, um
exército morto e dizimado, sepultado sob as cinzas, os escombros e a poeira.
Os habitantes de Kraa que ainda restavam tinham fugido. Para eles não adiantava
continuar a viver na cidade destruída.
“Que vitória!” pensou Groon, amargurado.
— Vamos! — gritou. A raiva venceu a fraqueza e impeliu-o para a frente. Passou a
tanger impiedosamente seus quatro companheiros, não lhes dando descanso. Quase no
mesmo instante em que o grupo de Yorgos ultrapassou o lugar em que deveria parar, o
grupo de Groon atingiu o início da depressão. Os quatro homens começaram a inquietar-
se quando viram que Yorgos começava a agir por sua própria conta. Provavelmente
tinham medo de que não sobrasse nada para eles. O rosto de sapo de Groon desfigurou-se
num sorriso feio.
Não demoraria, e Yorgos se envolveria numa luta mortal.
— Yorgos nos está enganando! — exclamou um dos homens em tom resignado.
Entraram na depressão e avançaram rapidamente. As rochas amontoavam-se de
ambos os lados, impedindo a visão para a planície. Mas Groon possuía bastante fantasia
para imaginar como Yorgos e os oito soldados que o acompanhavam avançavam em
direção ao veículo, gulosos e esfomeados. Groon engoliu várias vezes em seco.
Perguntou-se várias vezes quem poderia ser o inimigo que se mantinha escondido
no interior do veículo voador dos forasteiros. Não poderia ser um dos mesmos, pois
segundo diziam os boatos, estes eram lutadores poderosos. Por outro lado, Groon tinha
certeza de que não se tratava de nenhum habitante da cidade Kraa.
Era difícil elaborar um plano de ataque quando a gente não sabia quais eram
exatamente os meios de defesa do inimigo. Quando descobriram o veículo, por pouco não
caíram cegamente na armadilha. Só no último instante Yorgos percebeu que já tinha
aparecido um interessado que não parecia ter muito interesse em contar com sócios
esfomeados. Groon retirou-se o mais depressa que pôde para trás da colina, levando os
remanescentes de seu exército.
Groon admirou-se ao ver que, apesar dos ferimentos graves que tinha sofrido,
Yorgos ainda estava agüentando. O oficial subalterno dispunha de um condicionamento
incrível. Groon começou a ficar desconfiado de que Yorgos ainda dispusesse de
mantimentos. Era uma idéia martirizante.
Saíram da depressão e passaram a movimentar-se em terreno aberto. O chão estava
coberto de pedras, mas em compensação era completamente plano e apresentava várias
fendas. Nas imediações da depressão um penhasco esguio subia até a abóbada celeste.
Groon e seus soldados encontravam-se obliquamente atrás do objeto voador. Groon
notou que o grupo de Yorgos quase tinha alcançado o veículo.
Groon obrigou-se a refletir calmamente. O ato do subalterno, que tinha ultrapassado
o ponto fixado, representava uma insubordinação manifesta. Provavelmente Yorgos
esperava poder ocupar o veículo blindado dos forasteiros e defendê-lo contra Groon.
Tudo dependia da maneira pela qual Yorgos e seus companheiros conseguissem lidar
com a criatura que dominava o lugar cobiçado.
— Por que não prosseguimos? — perguntou um dos soldados em tom impaciente.
— Yorgos está atacando o aparelho voador dos forasteiros — disse Groon. —
Vamos aguardar o resultado.
Os quatro homens sentaram no chão. Groon hesitou um pouco, mas acabou
seguindo seu exemplo. Mas não tirou os olhos dos soldados. Ao mesmo tempo
acompanhava o avanço do grupo maior.
Groon viu que Partoos, um homem alto e robusto, estava alcançando o objeto
voador e começava a escalar o mesmo bem ao lado da entrada. Os outros seguiram-no de
perto. Partoos arrastava-se com movimentos seguros em direção à entrada, que estava
aberta. De repente um braço escuro saiu do avião e agarrou o pescoço de Partoos, logo
embaixo da cabeça. O soldado perdeu o equilíbrio e caiu para trás, cambaleante. Os
outros tentaram passar por ele e entrar no avião, mas um número cada vez maior de
braços saía do mesmo e empurrava os atacantes para trás. Yorgos e outros quatro homens
fugiram. Dois soldados rastejaram às pressas para o outro lado do avião, colocando-se
fora do campo de visão de Groon. Partoos e outro soldado morreram junto à entrada do
veículo. Groon acompanhou a luta desigual com o rosto impassível.
— É um bloos — constatou, apavorado. — Há um bloos no interior do veículo.
Ninguém respondeu. Todos sabiam o que significava lutar com um bloos.
Antigamente os mesmos tinham sido animais domésticos, mas depois de algum tempo
tinham sofrido uma mutação, transformando-se em temíveis animais selvagens.
— Vamos morrer — disse um tentacular pequeno, de nome Looster. — Não
conseguiremos derrotar o bloos.
Groon lançou um olhar para a arma velha que trazia nas mãos, para a qual ainda
possuía sete tiros.
— Vamos! — gritou. Seu grito fez com que os outros se levantassem.
Avançaram cambaleantes, cinco homens famintos e esgotados, que tinham
conquistado uma cidade.
***
Gessink puxou calmamente um dos inimigos mortos para dentro do veículo. O
corpo era pesado, e o bloos não queria gastar suas forças. Gessink tinha certeza de que
dentro em breve haveria outro ataque. Isso não o deixava muito preocupado. Agora, que
o problema da alimentação estava resolvido, não tinha por que afligir-se.
Chegara a recear que os soldados não voltariam, depois que ele os assustara por
ocasião da primeira tentativa de aproximação. Cometera um erro ao atacá-los
imediatamente. Alguma coisa os deixara de sobreaviso antes que entrassem na armadilha
montada por ele, levando-os a se retirarem para trás da colina.
O bloos sabia que ainda tinha muita coisa para aprender. Só mudara de alojamento
duas vezes, Gessink estava decidido a não sair mais do abrigo seguro em que se
encontrava, ainda mais que, segundo parecia, o mesmo lhe garantia um suprimento
regular de alimentos. O bloos tinha certeza de que sempre apareceria alguém que se
interessasse por aquela construção. Gessink esperava que dentro em breve seria mestre na
arte de colocar armadilhas. Haveria de chegar um tempo em que só seria obrigado a sair
do abrigo para retirar as presas que caíssem nas armadilhas.
Gessink lamentou que o outro morto tivesse caído no chão, o que por enquanto o
impedia de trazê-lo para dentro de seu alojamento. Desprendeu cuidadosamente os
farrapos do uniforme que estavam grudados no corpo do soldado. Enojado, atirou-os para
fora. Pôs-se a refletir sobre se deveria começar imediatamente a preparar o cadáver.
Estava com muita fome, mas precisava preparar-se para o próximo ataque. Não havia a
menor dúvida de que este viria. Gessink acreditava que o alojamento em que se
encontrava já pertencera aos soldados. Tinham voltado para ocupá-lo de novo. Mas
Gessink não estava disposto a respeitar os direitos mais antigos.
O bloos não possuía inteligência suficiente para perceber as ligações entre as coisas,
mas era dotado de uma esperteza natural que o levava a agir racionalmente no momento
certo. Antigamente, quando os bloos ainda eram animais domésticos que viviam nas
cidades dos tentaculares, os mesmos nunca tinham saído das jaulas apertadas. Nem
mesmo quando se transformaram em animais selvagens, os bloos perderam o instinto das
cavernas. Procuravam um abrigo seguro e esperavam que suas vítimas se aproximassem.
Cada bloos tinha uma área de caça que pertencia exclusivamente a ele. Raramente
entravam em luta para disputar alguma caverna. Os bloos viviam isoladamente e só se
encontravam na época do acasalamento.
Gessink empurrou o soldado morto para dentro do veículo, a fim de ter maior
liberdade de movimentos. Depois deitou junto à entrada. Um calor agradável reinava no
interior de seu alojamento. Gessink alojou a cabeça alongada entre os quatro braços
dianteiros e olhou para fora.
Sentiu que cada músculo de seu corpo se entesava. Apesar do prolongado período
de fome, estava muito forte.
Seria capaz de matar qualquer ser que se atrevesse a chegar perto dele.
***
Yorgos estava deitado no chão, olhando com uma expressão indiferente para Groon,
que ficou de pé a seu lado, com as pernas afastadas.
— O que está esperando? — gritou.
— Não vou desperdiçar minha munição — respondeu Groon. — Preciso de cada
tiro para matar o bloos.
A cabeça de Yorgos foi recuando lentamente para dentro da cavidade do tórax.
Groon viu que o oficial subalterno estava morrendo. Os soldados mantinham-se a uma
distância respeitosa.
A vitalidade de Yorgos voltou a acender-se mais uma vez.
— O bloos puxou Partoos para dentro do veículo — disse com a voz débil. — Está
nos espreitando.
— Vamos tirá-lo a fogo — asseverou Groon.
— A fogo? — o corpo de Yorgos entrou em convulsões. — Por que fui acompanhá-
lo nesta guerra, Groon?
— Para morrer — respondeu Groon em tom tranqüilo.
O oficial subalterno emitiu um ruído que ninguém entendeu e morreu. Groon
abaixou a cabeça. Entre ele e a cidade de Kraa ficava o veículo que tinham de conquistar,
custasse o que custasse. Groon ainda dispunha de dez soldados, mas os mesmos estavam
próximos ao esgotamento total. Tinha de agir com uma dureza extrema para obrigá-los a
obedecer.
O peso da arma que Groon segurava nas mãos parecia dobrar. As figuras dos dez
homens transformaram-se em sombras confusas. Groon cambaleou. Mas logo voltou a
controlar-se. Passou por cima de Yorgos e estendeu o braço que segurava a carabina.
— Vamos atacar — disse. — Devemos aproximar-nos do veículo de dois lados
diferentes. Tentarei escalar a parte traseira do aparelho para matar o bloos de cima.
Um dos soldados destacou-se do grupo.
— Acho que deveríamos ir à cidade e voltar a examinar cuidadosamente os
depósitos. Certamente encontraremos alguma coisa. Se voltarmos a atacar, o bloos nos
matará.
Groon estreitou os olhos e fitou o soldado que acabara de falar. Não disse uma
palavra. O homem voltou apressadamente ao seu lugar. “Até parece”, pensou Groon,
“que desta vez consegui controlar alguém sem uma arma.”
Dividiu os soldados em dois grupos e saíram andando.
A planície estava inundada por uma luz vermelha. O ar parecia carregado de
eletricidade. O cheiro de queimado vinha da cidade morta. Em toda parte viam-se
canhões tombados e veículos queimados. Os pés de Groon ardiam dentro das botas
pesadas. Groon fechou os olhos por um instante e desejou estar longe desse campo de
batalha, em algum lugar bem calmo, onde pudesse ficar deitado, saciado e satisfeito.
Girou a cabeça sobre o pescoço comprido e olhou para Yorgos, que estava deitado
no chão, atrás dele. O simples uniforme de um soldado morto parecia tirar um pouco do
pavor que acompanha a morte violenta. Mas Groon reconheceu que isso não passa de um
perigoso engano, quando a gente é morta ao lutar por comida.
Groon fez um grande esforço para controlar-se.
Em algum lugar, junto à entrada escura do veículo voador, o bloos estava à
espreita...
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Groon tocou o metal frio do estranho veículo. Um choque elétrico parecia atravessar
seu corpo. Mas era apenas a frieza do material que provocava essa sensação. Não sabia
até que ponto os homens que avançavam do outro lado já se tinham aproximado da
entrada, mas tinha certeza de que deveria estar deitado em cima da entrada, no momento
em que os soldados atraíssem o bloos para fora.
Os órgãos do aparelho digestivo de Groon estavam crispados. Mesmo que
conseguisse comida num futuro próximo, provavelmente não escaparia de uma
enfermidade prolongada. Pela primeira vez desde os tempos da juventude começou a
duvidar do acerto da escolha que fizera ao optar pela carreira militar. Tivera oportunidade
de observar que, à medida que aumentava a fome, a disciplina dos soldados sobreviventes
se deteriorava cada vez mais. As coisas haviam chegado a tal ponto que os mesmos só
podiam ser contidos por uma arma. Este acontecimento deixara Groon mais abalado que
a perda de sua força combatente. Sua fé na superioridade da disciplina militar fora
destruída. Groon já sabia que o uniforme pode ocultar os sentimentos, mas não é capaz de
destruí-los. Em dado momento qualquer ser vivo colocaria seus sentimentos acima do
uniforme que trajava, dependendo da situação, renegaria o próprio.
Até mesmo Groon se tornara vítima desse estado de coisas. Graças à sua
inteligência superior transformara-se numa personalidade que só tinha uma coisa em
comum com a de um soldado: o uniforme.
Se no interior da cidade ainda houvesse alguns inimigos vivos, as coisas poderiam
ter sido bem diferentes. Naquela altura o único inimigo dos soldados era a fome.
Groon empurrou a carabina à sua frente, pela superfície lateral do avião. Segurava
com ambas as mãos a borda das chapas. O movimento bastava para fazê-lo tremer de
fraqueza.
Perguntou-se como faria para subir na cobertura do carro voador. Isso exigiria um
esforço que mesmo em condições normais seria difícil de suportar. Recolheu a cabeça
para dentro da cavidade do tórax. Isso o deixara completamente cego. Pôs-se a escutar
por um instante, pois queria saber se a luta já tinha começado do outro lado do veículo.
Seus músculos enfraquecidos entesaram-se. Sem saber como, conseguiu erguer-se pela
força dos braços, enquanto o sangue martelava no interior dos ombros e as pernas
executavam movimentos convulsivos.
Ficou pendurado por alguns segundos. Finalmente atirou uma das pernas sobre o
pára-lama e deixou-se cair para a frente. Teve a impressão de que nunca mais conseguiria
levantar-se, mas quando fez sair cautelosamente a cabeça e o ar frio tocou seu rosto,
conseguiu pôr-se de pé. Do outro lado estava tudo quieto. Será que os soldados o tinham
abandonado para marchar por conta própria em direção à cidade? Virou a cabeça e olhou
para Kraa. Os destroços da cidade estavam envoltos numa bruma avermelhada. A
planície que separava o veículo do alvo de seu ataque estendia-se, completamente
abandonada. Groon respirou aliviado.
Abaixou-se para pegar a arma e voltou a ficar tonto. Desta vez a sensação foi mais
demorada. Teve de segurar-se com uma das mãos na cobertura do veículo, enquanto
avançava lentamente pelo revestimento da esteira.
Finalmente atingiu o lugar em que havia fendas e orifícios na cobertura, que podiam
ser usados como degraus. Groon ficou com a arma a tiracolo. Receava que o barulho que
estava fazendo já tivesse deixado o bloos prevenido.
Groon cuspiu a pedrinha que trazia na boca há algum tempo, para manter úmida a
língua. Quase chegava a desejar que estivesse deitado na areia, no lugar de Yorgos.
De repente um som forte e estridente atingiu seu ouvido.
Ergueu-se, bastante tenso.
O ruído repetiu-se. Uma, duas, três vezes...
De repente Groon compreendeu o que significava o mesmo. Teria soltado uma
gargalhada amarga, se o raciocínio não o tivesse prevenido de que com isso poderia
chamar a atenção do bloos.
“Covardes!” pensou, furioso. “Covardes de uma figa!”
Os soldados não se atreviam a chegar perto do veículo. Provavelmente os homens
se tinham acomodado a uma distância segura. Toda vez que uma pedra atingia o metal,
ouvia-se o ruído estridente.
Groon começou a subir na cobertura do veículo. Muito antes de chegar ao lugar que
pretendia atingir, conseguia olhar por cima da parte abobadada. Acontecera exatamente o
que ele esperara: os homens estavam deitados no chão, longe da área perigosa, e atiravam
pedras. Ao que parecia, o bloos não demonstrava a menor reação.
Groon subiu de vez na cobertura e ficou deitado, respirando pesadamente. Os
soldados olharam para ele com uma expressão indecisa. Groon estava quase louco de
raiva, mas o raciocínio frio logo levou a melhor, e este lhe disse que não poderia contar
com ninguém. O homem que tinha sido morto juntamente com Partoos continuava
deitado perto da entrada.
Groon avançou pela cobertura, centímetro após centímetro, até ficar deitado bem
em cima da entrada.
Tirou a carabina de cima do ombro. Agiu com muito cuidado, para evitar qualquer
ruído. Os soldados pararam de atirar pedras e olharam para ele com uma expressão tensa.
O rosto de Groon contorceu-se num sorriso forçado. Fazia votos de que o animal
selvagem não demorasse a sair, para que pudesse enfiar as sete balas que lhe restavam no
corpo dele. Mas o animal, que era muito esperto, parecia sentir o perigo, e não seria por
causa de algumas pedradas que o mesmo se deixaria cegar pela raiva.
Naquele momento Groon desejava que Yorgos ainda estivesse vivo. O oficial
subalterno poderia não merecer confiança, mas nunca tinha sido covarde. Groon segurou
a arma com uma das mãos, enquanto com a outra fazia um sinal para os soldados. Viu
que estavam confabulando e imaginou os argumentos que deviam usar para disfarçar a
covardia uns perante os outros.
“Não quero morrer aqui em cima”, pensou Groon. “Por que não avançam logo?”
Voltou a acenar para os soldados, até que sentiu o braço muito pesado. Mas os homens
continuaram indecisos. O medo que sentiam pelo animal parecia superar o receio de
morrer de fome.
“Preciso fazer alguma coisa”, pensou Groon. Mas enquanto pensava assim, deu-se
conta de que estava praticamente indefeso. A respiração era pesada, embora não estivesse
fazendo mais nenhum esforço. Bem que gostaria de saber se o bloos estava à espreita
junto à entrada, ou se mantinha escondido mais no interior do veículo.
Groon voltou a levantar os olhos. Os soldados levantavam-se e começavam a
afastar-se na direção da cidade. Levantou a arma, mas antes de puxar o gatilho recuperou
o autocontrole. Eles o abandonavam. Morreriam um após o outro, entre os escombros
espalhados pela cidade.
O pescoço comprido de Groon avançou por cima da cobertura.
— Olá, bloos! — gritou. — Agora somos só nós dois. Você, eu e esta carabina com
sete tiros. Que tal, bloos? Está gostando?
O bloos não entendia suas palavras, mas percebia pelo tom de voz que havia alguém
por perto que queria matá-lo.
Um sorriso apagado surgiu no rosto de Groon quando o mesmo arrancou um pedaço
de sua calça e pôs fogo no tecido com seu isqueiro. O farrapo começou a soltar fumaça,
largando uma nuvem malcheirosa. Groon prendeu-o no cano da carabina e empurrou-o
por cima da cobertura.
— Vamos, bloos! — gritou. — Saia logo!
***
Ali estava de novo!
O ruído ranhento se fazia ouvir mais uma vez.
Gessink entesou o corpo. Uma suspeita que o assolara o tempo todo acabara de
transformar-se em certeza. Havia alguém na cobertura de sua caverna.
As pedras arremessadas pelos soldados não conseguiram irritar Gessink, mas a
ameaça direta ao seu alojamento era uma coisa bem diferente. No primeiro instante
Gessink teve vontade de sair correndo e distribuir pancadas às cegas, mas resolveu ficar
deitado, todo encolhido. Assim que saísse do abrigo, seu corpo sensível estaria ao alcance
de qualquer ser que quisesse atacá-lo. Quando se limitava a estender o braço robusto, as
coisas mudavam de figura. Neste caso dificilmente haveria um inimigo capaz de derrotá-
lo.
Os soldados que tinham jogado pedras não se atreviam a chegar mais perto. Ao que
tudo indicava, preferiam aguardar os acontecimentos. Gessink não conseguiu dominar o
nervosismo. Será que era um soldado que estava deitado na cobertura? Ou tratava-se de
um inimigo diferente, que ainda não tinha visto?
Gessink não possuía bastante inteligência paia perceber que queriam atraí-lo a uma
armadilha. Era somente o instinto que o advertia para que não saísse da caverna. O ser
estranho voltou a movimentar-se sobre a cobertura. Quem se encontrava no interior do
abrigo tinha a impressão de que alguém estava arranhando a superfície externa do
veículo. A raiva de Gessink crescia cada vez mais. Nunca tinha enfrentado um desafio
como este. O animal selvagem que havia dentro dele queria impeli-lo para fora, enquanto
a inteligência pouco desenvolvida resistia a qualquer mudança de posição. O bloos voltou
a olhar para os soldados. Os mesmos acabavam de levantar-se e saíam andando. Os olhos
pequenos de Gessink acompanharam cada movimento. Parecia que estes inimigos tinham
desistido de lutar com ele.
Mas o outro inimigo continuava em cima da cobertura. Gessink sentia sua presença
com cada fibra de seu corpo. Até mesmo o ar que respirava estava empestado com o
cheiro dessa criatura.
De repente houve um tumulto em cima da cobertura. Os braços de Gessink faziam
movimentos convulsivos, num nervosismo mal contido. Sons incompreensíveis atingiram
o ouvido do bloos. Gessink compreendeu que o inimigo resolvera desafiá-lo. Será que era
tão forte que não precisava esconder-se?
Gessink assumiu a posição de combate. Assim que o desconhecido aparecesse, seus
braços se precipitariam para fora do veículo e o despedaçariam. De repente Gessink
sentiu cheiro de queimado. Espirrou e cobriu a cabeça com os braços.
Uma sombra desceu junto à entrada do veículo. Os braços de Gessink avançaram
violentamente, mas só atingiram o vazio. A única coisa que via era uma nuvem de
fumaça cinzenta. Uma risada louca soou em cima da cobertura. Gessink soltou um grito
de raiva. O inimigo fora mais esperto que ele. O bloos ainda conseguiu controlar-se para
continuar no mesmo lugar. Seus olhos ardiam. O cheiro de queimado era cada vez mais
intenso.
Alguma coisa desceu do telhado, caindo bem à frente da entrada do alojamento de
Gessink. Faíscas levantaram-se. Gessink recuou. O vento tocou a fumaça para dentro de
seu alojamento. Gessink fez avançar um dos braços e afastou o pano fumegante.
Espirrava e respirava com dificuldade. Alguém parecia dançar na cobertura, de tão forte
que era o barulho.
Gessink foi perdendo o autocontrole. Dali a pouco irromperia de seu abrigo, um
corpo oval com braços cheios de garras e uma boca gigantesca, repleta de dentes.
***
Groon segurou firmemente a carabina que estava preparada para disparar. O braço
do bloos saíra tão depressa para afastar o pedaço de uniforme em fogo que Groon não
teve tempo para esboçar qualquer reação.
Groon pôs-se a refletir todo aflito para encontrar um meio de atrair o inimigo para
fora do veículo. Parecia que o bloos não gostava de fogo, mas seria bem possível que
Groon perdesse sua arma se tentasse novamente o truque com o pedaço de pano.
Assim mesmo arrancou mais um pedaço da calça e pôs fogo no mesmo. Esperou
que todo o pano ficasse fumegante e atirou-o pela borda da cobertura. Não se arriscou a
inclinar-se para a frente o suficiente para que pudesse ver tudo. Tinha certeza de que não
poderia demorar muito em enfrentar o animal selvagem, pois do contrário desmaiaria de
fraqueza. Os soldados já tinham desaparecido no meio da luz mortiça vermelha. Sem
dúvida pretendiam dirigir-se à cidade. Groon acreditava que já tinham sido cuidadosos ao
revistar pela primeira vez os escombros, e dessa forma os homens dificilmente teriam
uma chance de encontrar alguma coisa para comer. Antes de abandonar Kraa, os
sobreviventes tinham destruído tudo que pudesse ser útil aos atacantes.
Uma nuvem de fumaça passou por cima do veículo. Groon engoliu em seco. O
bloos reagiria a qualquer momento. Quando saísse, estaria muito irritado e suas reações
seriam imprevisíveis. Groon sabia que teria de fazer uma pontaria melhor do que jamais
tinha feito. Seria necessário enfiar os sete tiros no corpo do monstro antes que o mesmo
soubesse exatamente onde ele estava.
5
Quando Rhodan começou a falar, ninguém sentiu a menor decepção pelo fato de
que a tentativa de acionar a chave-mestra do reator atômico, que consumira tantas forças,
acabara por falhar.
— O senhor é mais rápido que os outros, Tolot — disse Rhodan, dirigindo-se ao
halutense. — Faça o favor de ir ao poço de exaustão e traga Geco. Talvez os ratos-
castores consigam exercer sua influência telecinética sobre a chave, desde que façam um
esforço conjunto.
Sem dizer uma palavra, Icho Tolot passou sobre a confusão de cordas e correntes
com as quais tinham tentado em vão modificar a posição da chave. Nem mesmo as forças
tremendas de Tolot tinham sido suficientes para mover a chave enorme.
— Enquanto o halutense não volta, podemos aproveitar o tempo preparando as
chaves de regulagem — disse Rhodan. — O equipamento de que dispomos permite que
coloquemos talhadeiras em três pontos ao mesmo tempo.
Os homens puseram-se a trabalhar. Alavancas, talhadeiras, correntes, cunhas e
cordas foram depositadas embaixo das chaves de regulagem. Cordas foram amarradas em
torno do corpo dos dois homens mais hábeis.
Os mesmos teriam de arriscar a difícil escalada para as chaves. As perfurações
existentes nos revestimentos dos aparelhos eram a única coisa em que podiam segurar-se.
Para os microseres um trecho de um metro representava uma distância de um
quilômetro. Rhodan ficou satisfeito porque as chaves mais importantes tinham sido
instaladas uma abaixo da outra. Dessa forma não precisariam subir mais de quinhentos
metros para alcançar a que ficava mais embaixo.
Assim que os dois alpinistas alcançaram o primeiro objetivo, Icho Tolot voltou.
Geco estava acomodado sobre seus ombros.
— Eu sabia que sem minha ajuda vocês não conseguiriam nada — disse o rato-
castor corpulento em tom arrogante.
Tolot colocou-o no chão de forma pouco delicada. Não deu atenção aos seus
protestos indignados. Geco não queria conformar-se com essa forma de tratamento.
— Tomara que seus dons paranormais tenham pelo menos metade do tamanho de
sua boca — disse Gucky.
Geco lançou-lhe um olhar venenoso e voltou a dirigir-se a Rhodan.
— O que devo fazer? — perguntou em tom solene. Rhodan apontou com o polegar
para o alto.
— Quero que ponha em funcionamento o reator atômico — respondeu em tom
seco.
A auto-segurança de Geco desmanchou-se. Saiu caminhando na direção de Gucky
como quem precisa de auxílio.
— Você já tentou? — quis saber.
Gucky lançou um olhar penetrante para o velho companheiro de lutas.
— É claro que não. Estava à espera do mestre.
Se Geco percebeu o tom de ironia que havia na voz de Gucky, ele não deixou que
os outros o percebessem.
— Vamos lá! — gritou.
Os dois ratos-castores mergulharam numa concentração silenciosa. Em condições
normais até mesmo um único telecineta não teria a menor dificuldade em mover a chave
com suas energias paramecânicas, mas Gucky e Geco ainda estavam submetidos aos
efeitos do processo de redução.
Os homens olharam ansiosamente para o alto. Alguém suspirou baixinho. Até se
poderia ter a impressão de que o ruído fora o sinal decisivo. A chave moveu-se para um
lado. Geco cambaleou ligeiramente, o que era um sinal seguro de que esgotara
completamente suas forças.
— Espalhem-se! — disse a voz de comando de Rhodan. — Precisamos fazer as
regulagens.
Os dois escaladores já tinham alcançado a chave que ficava mais embaixo e
prenderam as cordas à mesma. Luzes de controle que para os microseres eram
verdadeiros sóis acenderam-se em toda parte. O reator atômico acabara de entrar em
funcionamento.
Mas o trabalho mais difícil ainda estava por vir. Teriam que decolar com o carro
voador e percorrer milhares de quilômetros com o mesmo.
***
— Estamos perdendo altura constantemente, Don — constatou o Capitão
Henderson. Estas palavras tinham sido pronunciadas em tom indiferente, mas Redhorse
notou certa recriminação nas mesmas.
— Vamos descer ainda mais — anunciou. — Interferiremos na luta pelo carro
voador.
Por um instante Henderson perdeu o autocontrole.
— Seu... seu índio! — gritou em tom exaltado.
Kasom soltou uma estrondosa gargalhada ao notar que Redhorse sobrevoava o
veículo, sem impressionar-se com as palavras de Henderson. O Oldtimer voltou,
descrevendo uma curva ampla. Wuriu Sengu levantou-se de um salto.
— Está saindo! — gritou o mutante.
Todas as pessoas que se encontravam a bordo do F-913 G sabiam a quem Sengu se
referia. Uma gigantesca sombra marrom-escura saiu velozmente do veículo de esteira. A
carabina do soldado soltou três estampidos em seguida.
— Eis aí nossa chance! — exclamou Redhorse.
O Oldtimer foi descendo cada vez mais rapidamente.
— O que está fazendo, capitão? — perguntou Melbar Kasom.
Enquanto uma das mãos de Redhorse segurava a direção, a outra apontava para a
eclusa aberta do carro voador.
— Nem poderíamos desejar uma entrada melhor que essa — disse com um sorriso
arrojado.
— Um dos dois combatentes entrará depois de nós — profetizou Henderson.
— Isso se ainda conseguir entrar — respondeu Redhorse em tom misterioso.
Viram o soldado ferido cair de cima do veículo e o monstro correr para o outro lado
do mesmo. De repente o veículo ergueu-se à sua frente como uma muralha insuperável.
— Estamos voando depressa demais, senhor! — disse Lope Losar com um gemido.
O Oldtimer precipitou-se em direção à eclusa aberta feito uma abelha de aço.
Redhorse executou a manobra com os olhos semicerrados. O avião entrou em mergulho e
desapareceu no interior da eclusa.
— Por que não pousa logo, Don? — perguntou Henderson.
Redhorse apontou para trás com um movimento quase imperceptível da cabeça.
— Por causa da eclusa — resmungou. — Precisamos fechá-la.
O Capitão Sven Henderson arregalou os olhos. Teve a impressão de que não ouvira
bem.
— Fechar a eclusa? — repetiu em tom de perplexidade. — Não temos a menor
chance de acionar os comandos antes que o soldado ou o monstro entrem.
Redhorse parecia tranqüilo.
— Segurem-se! — gritou para os ocupantes do aparelho. No mesmo instante fez o
Oldtimer subir violentamente. Melbar Kasom foi o primeiro a compreender quais eram as
intenções do capitão. O comando manual da eclusa avançava verticalmente em pequena
extensão para o interior da câmara. Um piloto de grande habilidade poderia, com muita
sorte, roçar a chave de maneira a fazê-la entrar na posição fechada sem que o aparelho
caísse.
O avião passou em alta velocidade logo embaixo do teto da eclusa. Kasom viu a
alavanca, que era uma enorme silhueta negra que se destacava nitidamente contra a
paisagem clara. O ertruso fazia votos de que Maheo, o deus indígena de Redhorse, fosse
misericordioso com eles.
Kasom levantou os olhos ao acaso e viu que Sengu o fitava. Compreendeu que o
mutante também tinha compreendido as intenções do capitão.
O Oldtimer passou embaixo do comando sem tocar o mesmo. Redhorse cerrou os
dentes. Descreveu uma curva fechada e fez o avião voltar à eclusa.
— A chave! — exclamou Henderson. — O senhor pretende abalroar a chave!
— Apresse-se — recomendou Sengu. Parece que o soldado está morto. Neste
momento o monstro o está arrastando em torno do veículo.
O Oldtimer voltou a mergulhar na penumbra da eclusa. Redhorse sabia que a
segunda tentativa seria a última, pois dentro de instantes o monstro voltaria para dentro
do carro voador.
— Pense bem no que está fazendo, Don — advertiu Henderson, esticando as
palavras.
Redhorse tinha certeza de que Henderson não estava com medo, mas a idéia de estar
agindo sem o consentimento de Rhodan não era nada agradável para o chefe do comando
de caça.
A máquina subiu vertiginosamente. O único ponto de referência pelo qual Redhorse
se orientou foi a chave visível a grande distância. Bastava que o avião subisse alguns
milímetros a mais ao passar embaixo da chave para despedaçar-se de encontro ao chão.
Vista da carlinga do avião, a chave crescia rapidamente. Redhorse cerrou os dentes.
Os instrumentos de controle não lhe forneciam nenhum elemento de referência; tinha de
orientar-se exclusivamente pelo sentimento.
— É agora! — gritou.
O Oldtimer levou uma pancada e saiu balançando lateralmente. Redhorse teve de
segurar-se com as duas mãos para não ser atirado para fora do assento. Encostou-se
fortemente ao manche de direção. Conseguiu controlar o F-913 G quando o mesmo se
encontrava a um metro do solo. Olhou para fora e viu a parede externa fechar-se. No
mesmo instante o aparelho pilotado por Redhorse passou pela abertura que restava e
entrou no veículo blindado. A eclusa fechou-se definitivamente mal haviam passado pela
mesma.
Redhorse dispôs-se a pousar bem no centro da sala de comando. O tentacular morto
parecia uma gigantesca montanha que se erguia nas proximidades da câmara da eclusa.
Por um instante todos ficaram em silêncio no interior do Oldtimer.
— Meus parabéns, capitão — disse Kasom. Redhorse saltou do assento piloto,
revelando nisso toda a agilidade de seu corpo magro e bem treinado. Sorriu e olhou
somente para Henderson.
— Hova Hestovahn — disse. — Não foi nada.
***
A corda produziu um estrondo semelhante ao de uma explosão ao romper-se.
Rhodan virou-se abruptamente. Um grito de alerta se fez ouvir. Rhodan deixou-se cair
automaticamente e cobriu a cabeça com as mãos. A ponta da corda rasgada produziu um
baque surdo ao tocar o chão bem ao lado de Rhodan. Este logo se pôs de pé. Os homens
vieram correndo de todos os lados.
O primeiro oficial de artilharia da Crest II, Major Cero Wiffert, ficou preso embaixo
da corda. Estava com o rosto desfigurado de dor.
Rhodan ouviu a parte superior da corda arranhar o revestimento dos aparelhos de
controle, enquanto a mesma balançava de um lado para outro. Uniram seus esforços para
tirar a corda comprida de cima de Wiffert.
O peito do major subia e descia. Teve de fazer um grande esforço para tossir.
— A corda me pegou — explicou. — Antes que tivesse tempo de dar um salto para
o lado, ela me atirou ao chão.
— Como se sente, major? — perguntou Atlan, bastante interessado.
Wiffert conseguiu sorrir.
— Tenho a impressão de que nasci de novo — confessou.
Conseguiu pôr-se de pé, ajudado por Tolot.
— O senhor não deve fazer mais nenhum esforço — recomendou Rhodan,
dirigindo-se ao oficial de artilharia.
Wiffert quis protestar, mas a dor que sentiu de repente fez com que se calasse.
Acenou ligeiramente com a cabeça e encostou-se a um dos parafusos de fixação da
poltrona de comando.
Atlan apontou para a corda rasgada.
— Isso tomará muito tempo — disse.
Já tinham feito as regulagens. Rhodan não quis arriscar-se a decolar antes que
tivessem certeza de que poderiam pilotar perfeitamente o aparelho.
— Tragam outra corda! — ordenou. — Faça o favor de subir, Tolot.
O reator atômico estava funcionando perfeitamente. A aparelhagem
antigravitacional também estava em condições de funcionamento. Só faltava ligar o
sistema de pilotagem segundo os desejos dos homens. Teriam de manter um controle
perfeito sobre o equipamento, pois do contrário o avião poderia espatifar-se de encontro a
uma rocha. Havia sete cordas robustas que desciam do manche principal ao chão. Cada
uma delas estava presa a uma talhadeira. Rhodan esperava que com isso pudesse executar
sem dificuldade manobras menos complicadas. Não seriam capazes de realizar acrobacias
aéreas, mas nem estavam interessados nisso.
O que Rhodan mais temia é que só poderiam voar muito devagar, pois gastariam
algum tempo para fazer uma mudança de rota por meio das talhadeiras.
Rhodan ficou observando atentamente Icho Tolot enquanto este prendia uma corda
nova no lugar da que acabara de romper-se. Uma vez concluído o serviço, o halutense
desceu para onde eles estavam. Era o único participante da operação que não
demonstrava nenhum cansaço. Rhodan e Atlan também resistiram melhor às canseiras do
trabalho difícil que os outros homens, isso graças aos ativadores celulares que usavam.
Um grito de Atlan interrompeu as reflexões de Rhodan. Este levantou os olhos e viu
Omar Hawk descer pela corda que descia pelo poço de exaustão, indo dar na sala de
comando.
— Deve ter acontecido alguma coisa — conjeturou o arcônida.
Rhodan parecia pensativo. Será que o acidente sofrido por Wiffert fora o início de
uma série de contratempos?
Hawk veio apressadamente em sua direção. Quando parou à frente de Rhodan,
parecia completamente calmo. Rhodan fitou-o intensamente.
— O que houve, tenente?
Hawk, do qual se costumava dizer que possuía mais sangue-frio que o próprio
Atlan, estava respirando pela boca, que era um sinal de que tinha se apressado muito para
chegar ali.
— Redhorse está em situação difícil — informou.
— O Major Sedenko manteve contato de rádio com o quinto Oldtimer.
— Fale — pediu Rhodan em tom impaciente.
— Redhorse está preso no interior do carro voador — disse Hawk e virou a cabeça
para olhar para a entrada. Certamente estava preocupado com seu okrill, que ficara em
cima do veículo blindado. Finalmente prosseguiu. Redhorse mencionou um monstro que,
segundo diz, matou alguns tentaculares. Fica à espreita junto à eclusa e tenta entrar no
veículo.
— Tenho a impressão — disse Rhodan, esticando as palavras — que foi o Capitão
Don Redhorse que causou esta situação difícil para si e seus homens. Eles estão correndo
perigo de vida?
Hawk sacudiu a cabeça.
— De forma alguma. Pelo que sei, o avião está em segurança no interior do veículo.
Rhodan esfregou o queixo com os dedos polegar e indicador. Hawk observou-o
atentamente.
— Procure o Major Sedenko, tenente — ordenou Rhodan. — Diga-lhe que informe
o Capitão Redhorse de que ainda temos muita coisa a fazer por aqui. Assim que tivermos
tempo, iremos em seu auxílio. Talvez isso sirva para no futuro abafar um pouco o espírito
aventureiro do cacique.
Hawk nem tentou disfarçar a satisfação que estas palavras lhe causaram.
— Sem dúvida, senhor — disse com a voz rouca.
— Redhorse pôde fornecer informações mais detalhadas sobre o monstro? —
perguntou Rhodan.
— Não senhor. Mas pelo que se depreende da mensagem deve ser muito perigoso.
— A voz de Hawk revelava a tristeza que sentia por estar condenado a transmitir
mensagens de rádio, enquanto coisas muito mais interessantes estavam acontecendo por
ali.
— Pode retirar-se, Hawk — disse Rhodan, despedindo o oxtornense.
— Estou gostando dele — disse Atlan assim que o indivíduo adaptado ao ambiente
não podia ouvi-lo mais. — Acho que merece toda confiança.
— O que vamos fazer com Redhorse? — perguntou Rhodan. — Se as coisas se
tomarem críticas para seu grupo, não poderemos deixar de ajudar.
— Em minha opinião este capitão é um patife refinado — disse Atlan. —
Provavelmente já viu o monstro antes, mas só nos informou a este respeito quando teve
certeza de que não poderíamos chamá-lo de volta.
— Acho que é isso mesmo — admitiu Rhodan.
— Se ele servisse na frota arcônida, já teria sido rebaixado — disse Atlan.
— Sei — respondeu Rhodan. — Por isso mesmo a frota arcônida não existe mais.
***
O Capitão Sven Henderson reclinou-se fortemente na poltrona e olhou com uma
expressão de evidente satisfação para a saída do Oldtimer, que estava aberta.
— Quem sabe — observou em tom irônico — se não assistiremos a um vôo
histórico do Capitão Don Redhorse, que levará o avião de uma chave a outra.
Dessa forma o campeão de acrobacias aéreas fará o carro voador decolar sem
auxílio de ninguém e...
— Fico satisfeito em notar que já recuperou o senso de humor, Sven — interrompeu
Redhorse. — Sente-se satisfeito por termos falado com o Major Sedenko?
— O que me deixa mais tranqüilo é a resposta de Rhodan — respondeu Henderson.
— Dela se conclui que o Chefe não se preocupa desnecessariamente conosco. Pelo
contrário. Confia em que consigamos sair desta situação sem auxílio estranho.
— Por que está apelando para a ironia, capitão? — perguntou Losar. — O senhor
está conosco; é uma coisa que não pode mudar.
Redhorse preferiu ficar calado. Saiu do avião de um salto. Os quatro companheiros
seguiram seu exemplo. Passaram os olhos pela sala de comando, que para eles era um
pavilhão gigantesco.
— Vamos descarregar as talhadeiras — sugeriu Kasom. — Talvez tenhamos uma
possibilidade de fazer decolar este carro voador.
De repente Sengu levantou os braços. Os outros calaram-se imediatamente.
— Está vendo alguma coisa, Sengu? — perguntou Kasom em voz baixa.
O mutante confirmou com um gesto.
— O monstro está se movimentando — informou. — Ficou sentado à frente da
eclusa o tempo todo, bem quieto, mas ao que parece acaba de tomar uma decisão.
— O que está fazendo? — perguntou Redhorse, dirigindo-se ao espia.
O olhar paranormal do mutante acompanhou os acontecimentos que se
desenrolavam ao ar livre. Desceu lentamente os braços.
— Parece que está perdendo a paciência. — Abriu as mãos. — Acaba de retirar-se.
— Tem certeza? — perguntou Losar.
Sengu estremeceu.
— Está voltando — gritou. — Quer...
Sengu foi interrompido por um forte solavanco. Os cinco homens perderam o
equilíbrio e deslizaram pelo chão. Todo o veículo parecia tremer. O Oldtimer balançava,
dando a impressão de que poderia tombar a qualquer momento.
Redhorse fez três cambalhotas antes que conseguisse recuperar o equilíbrio. Pôs-se
de pé num instante e olhou em torno.
Viu Kasom correr em direção ao avião. Losar rastejava pelo chão bem à sua frente.
Sengu e Henderson formavam um novelo de braços e pernas que se agitavam
violentamente.
Sengu, que já estava acostumado a passar por experiências extraordinárias, não
demonstrou nenhum pânico.
— O monstro abalroou a eclusa — disse. — Parece que quer entrar à força.
— Precisamos proteger o avião — gritou Kasom, que se encontrava ao lado do
Oldtimer. — Se houver outro abalo, ele vai tombar.
— Está vendo mais alguma coisa? — perguntou Redhorse, dirigindo-se ao mutante.
— O monstro está sentado à frente da eclusa — informou Sengu em tom titubeante.
— Parece que se surpreendeu por não ter conseguido passar. Acho que fará outra
tentativa.
Ajudaram Kasom a prender o trem de pouso do Oldtimer. Se o avião tombasse, não
teriam mais possibilidade de sair do carro voador. Sengu não tirava os olhos do atacante.
Tiraram todos os aparelhos importantes do Oldtimer o mais depressa que puderam.
Kasom deu ordem para que tudo fosse depositado embaixo da poltrona de comando.
Henderson apontou para o tentacular morto.
— Bem que eu gostaria de encontrar um meio de tirá-lo daqui.
Para os outros o cadáver também representava uma visão desagradável, mas sabiam
que não poderiam fazer nada. Mesmo com a cabeça encolhida, o morto tinha mais de um
metro de comprimento. Para os micro-humanos isso representava mais de um quilômetro.
Provavelmente nem mesmo a tripulação inteira da Crest II seria capaz de remover o
corpo do gigante.
— O monstro voltou a movimentar-se — advertiu Sengu enquanto Kasom estava
preparando as talhadeiras.
— Deitem no chão! — ordenou o ertruso. — Temos de segurar-nos.
— Tomara que a eclusa agüente o impacto — disse Losar.
— Não se preocupe — tranqüilizou Henderson. — Para quebrar a mesma precisa de
uma coisa mais dura.
— O monstro está tomando um grande impulso — informou Sengu.
Redhorse agarrou-se com ambas as mãos, à espera do abalo que estava para vir.
Pensava no Oldtimer. Fazia votos de que o aparelho continuasse de pé.
O segundo solavanco foi duas vezes mais violento que o primeiro. Redhorse foi
arremessado um trecho, juntamente com a corda à qual se segurava. Bateu com as costas
numa talhadeira e ficou deitado. A primeira coisa que fez foi olhar para o avião. O F-913
G continuava de pé. Redhorse expeliu o ar dos pulmões.
— Vamos dar uma olhada na eclusa — gritou a voz estridente de Kasom. — O
monstro desenvolve forças tremendas. Tenho a impressão de que está em condições de
levantar o carro voador.
Ninguém objetou às palavras do ertruso. Durante o segundo abalo as luzes de
emergência começaram a piscar. Estas luzes tinham se ligado automaticamente assim que
a eclusa se fechara.
Os cinco homens atravessaram correndo a sala de comando. Redhorse esperava que
a qualquer momento Sengu anunciasse outra operação de abalroamento do monstro.
Enquanto o gigante enfurecido ficasse perto do veículo, não teriam chance de cuidar dos
comandos.
O terceiro solavanco não foi precedido de qualquer advertência de Sengu. Redhorse
teve a impressão de que o chão estava sendo virado, de tão abruptamente que perdeu o
apoio dos pés. Abriu instintivamente os braços para amortecer o impacto. O carro voador
rangia como se suas peças quisessem desmanchar-se.
— O Oldtimer! — gritou Kasom, que se encontrava nas proximidades.
Redhorse desconfiou que alguma coisa tinha acontecido com o avião. Ouvira uma
pancada no meio do abalo. Levantou-se e olhou na direção em que se encontrava o F-913
G que acabavam de proteger. O aparelho fora arrancado dos suportes e tinha rolado
alguns metros antes de tombar de lado. As talhadeiras que haviam sido colocadas junto à
poltrona de comando estavam espalhadas pela sala.
Redhorse viu que Kasom, Sengu e Henderson se encontravam bem perto dele.
Losar tinha desaparecido.
— Onde está o encarregado dos armamentos? — perguntou Redhorse.
Henderson fez um gesto vago na direção da eclusa.
— Foi olhar como estão as coisas por lá. Os outros precisam cuidar do avião.
— Já é tarde, para isso — resmungou Kasom. — Este Oldtimer não voará mais.
— O rádio — lembrou Redhorse. — Tomara que o rádio ainda esteja em ordem,
para que possamos avisar Rhodan.
Esta idéia parecia servir-lhes de estímulo. Como que a um comando, todos saíram
correndo na direção do avião tombado. Redhorse recriminou-se no seu íntimo por ter
entrado no carro voador com o avião. Teve de constatar que subestimara o inimigo. Duas
rugas verticais surgiram em sua testa. Estava disposto a responsabilizar-se pelo erro que
cometera, mas no momento não tinha tempo para preocupar-se com isso.
— Fique de olho no monstro — disse Kasom, dirigindo-se a Sengu. — Se o carro
voador for abalroado enquanto estivermos perto do Oldtimer, isso poderá significar nossa
morte.
Quando atingiram o avião, Redhorse constatou que as avarias sofridas eram mais
graves do que ele receara. A asa esquerda estava vergada. O sistema de lubrificação
parecia ter sido danificado, pois havia uma poça escura embaixo do avião.
Ninguém disse uma palavra. Todos possuíam bastante experiência para saber que o
avião que se encontrava à sua frente nunca mais decolaria.
— Tomara que por dentro as coisas não estejam piores — observou Henderson. —
A carlinga está quase completamente esmagada.
Subiram pela asa destroçada. Kasom afastou parte da carlinga destruída para que
pudessem penetrar no interior do avião. Redhorse enfiou as pernas pelo buraco que se
formara e deixou-se cair. Pôs os pés no chão inclinado e escorregou um pedaço.
Finalmente pendurou-se no assento do piloto. Havia fragmentos da carlinga espalhados
em toda parte. Redhorse ouviu que os outros também estavam entrando.
Um dos assentos fora arrancado dos suportes e estava pendurado obliquamente
sobre a aparelhagem de rádio. Redhorse e Kasom afastaram o obstáculo. Henderson
aproximou-se e ligou o rádio. Examinou os controles.
— Como estão as coisas? — perguntou Sengu com os lábios semicerrados.
— Tudo intacto — disse Henderson em tom de alívio. — Se nosso amigo que está
do lado de fora ficar quieto por mais alguns minutos, teremos tempo de informar o Major
Sedenko sobre o azar que tivemos.
Era uma atitude típica de Henderson. Ele aludia ao azar que todos tinham tido, sem
fazer a menor alusão ao fato de que ele protestara contra a entrada no carro voador.
No momento em que Henderson conseguiu estabelecer contato, Lope Losar saltou
para dentro do avião. O encarregado dos armamentos fitou os companheiros um após o
outro.
— A parede da eclusa sofreu um forte abaulamento de um dos lados — informou.
— Se houver mais três pancadas fortes, ela cederá.
Henderson levantou os olhos.
— Quer que mencione isto na mensagem que vou expedir?
— Não — decidiu Redhorse. — Não quero que Rhodan venha buscar-nos antes que
consiga decolar com o outro carro voador.
Henderson encolheu a cabeça entre os ombros.
— É possível que esta seja a última oportunidade de expedirmos uma mensagem.
— Talvez fosse conveniente que todos dessem uma olhada na eclusa — sugeriu
Lope Losar em tom zangado.
— Acho que podemos dispensar o esforço — observou Kasom. — Vamos logo,
Capitão Henderson. Chame o Major Sedenko.
Ao dizer isso, o ertruso estava apoiando a decisão que Redhorse acabara de tomar.
Para os cinco homens isso significava simplesmente que teriam de conter o monstro fora
do veículo até que Rhodan aparecesse para tirá-los da situação desagradável em que se
encontravam.
***
O Major Cero Wiffert sentiu o frio da parede atravessar seu uniforme. As dores
tinham diminuído bastante. Observou os outros homens, que se mantinham ocupados
tentando colocar sob controle os últimos comandos.
Wiffert abriu as mãos e empurrou-se lentamente da parede. Conteve a respiração,
pois esperava que as dores voltassem. Deu um passo para a frente. Sentiu-se aliviado ao
constatar que isso não lhe causava nenhuma dificuldade. Esse fato robusteceu a decisão
de participar novamente dos trabalhos. Procurou localizar Rhodan. Descobriu-o no meio
de um grupo de homens que tentava prender uma corda.
Wiffert, um homem de 34 anos, era de estatura baixa, tinha cabelos louros e
apresentava uma grande cicatriz do lado esquerdo da face. O major não era muito loquaz,
mas como primeiro oficial de artilharia da Crest II era um elemento praticamente
indispensável.
Wiffert saiu caminhando a passos seguros em direção ao grupo dos astronautas que
estavam trabalhando. Esforçou-se para manter a cabeça bem erguida, pois receava que a
pressão tremenda que sentira no peito voltasse caso relaxasse a postura.
Quando Wiffert percebeu que seu pé estava preso à borda de um parafuso, já era
tarde para esboçar qualquer reação. O parafuso destinava-se a prender uma das placas de
revestimento do piso. A parte superior do parafuso tinha desaparecido e não fora
substituída. O furo que se formara tinha oito milímetros de diâmetro. Em condições
normais a falta do parafuso não poderia causar problemas.
Acontece que o Major Cero Wiffert só tinha 1,65 mm de altura. Cambaleou e caiu
para dentro da abertura deixada pelo parafuso. Wiffert ainda estava gritando quando
bateu no meio da escuridão e ficou deitado, meio atordoado. Calou-se ao ver bem em
cima a abertura que se tomara fatal para ele. Um débil raio de luz entrava, mas não
chegava ao lugar em que estava Wiffert.
O oficial de artilharia sabia que acabara de cair na sala de máquinas do carro
voador. Se não conseguisse sair dali antes que o veículo versátil decolasse, teria de
familiarizar-se com a idéia de que sua morte estava próxima. Sabia perfeitamente que
naquela altura qualquer grito de socorro seria inútil. Se os companheiros não tinham
ouvido o grito que soltara ao cair, sua voz não seria bastante forte para despertar a
atenção dos outros do lugar em que se encontrava. Só lhe restava esperar que os
companheiros dessem pela sua falta.
Do seu ponto de vista sofrera uma queda de quatro metros, mas na verdade
encontrava-se apenas quatro milímetros embaixo da abertura deixada pelo parafuso.
Wiffert levantou-se cautelosamente. Sentiu-se satisfeito ao constatar que a queda não lhe
causara nenhum ferimento. O cheiro de óleo lubrificante impregnava o lugar. Wiffert saiu
andando, com as mãos bem estendidas. Não possuía nenhum plano para libertar-se, mas
pretendia afastar-se da abertura a uma distância tal que pudesse ser ouvido, a fim de
descobrir em que parte da sala de máquinas se encontrava.
De repente teve a impressão de que o chão subia fortemente. Inclinou o corpo
ligeiramente para a frente e seus dedos tocaram numa peça de metal frio e oleoso. Wiffert
mordeu o lábio. Girou em torno do próprio eixo e saiu caminhando na direção oposta.
Quando tinha dado três passos, encontrou um obstáculo idêntico. Passou a deslocar-se em
ângulo reto em relação à linha imaginária que tinha seguido até então. Conseguiu dar
quase dez passos sem que nada o detivesse. Mas de repente seu pé que ia apalpando o
chão tocou o vazio. Wiffert recuou apressadamente.
Caíra justamente dentro de uma roda dentada. Provavelmente não havia nenhuma
possibilidade de sair da depressão em que se encontrava. Não podia avaliar a
profundidade do abismo que se abria de ambos os lados da roda e os dentes dela eram tão
íngremes e oleosos que seria impossível subir nos mesmos para atingir outra roda, maior
ou menor que aquela sobre a qual se encontrava.
Wiffert pôs-se a refletir sobre a situação em que se encontrava. Teve um calafrio.
Era bem provável que a roda sobre a qual estava começasse a movimentar-se assim que o
veículo decolasse. A mesma não tinha nenhuma relação com o reator atômico ou com os
propulsores, mas era quase certo que estava acoplada a algum comando. O major não era
um pessimista declarado, mas não se iludia quanto ao que lhe poderia acontecer caso não
encontrasse uma saída.
Pôs as mãos à frente da boca em forma de funil e gritou em direção à abertura pela
qual tinha caído. Duvidava de que os dois ratos-castores pudessem ter uma percepção
telepática dele. Além de sofrerem as conseqüências da redução do tamanho de seu corpo,
Gucky e Geco estavam totalmente esgotados por causa dos esforços paranormais que
acabavam de fazer.
Wiffert amaldiçoou-se por ter resolvido voltar ao trabalho. Se não tivesse
desobedecido à recomendação de Rhodan, a essa hora poderia estar em segurança no
lugar em que antes se encontrava.
Wiffert voltou a chamar. Sua voz produziu um eco múltiplo no meio das instalações
mecânicas. Ele receava que o som não chegasse em cima. Perguntou-se até que ponto
teria chegado o trabalho dos homens. Um zumbido regular vindo do reator infundiu no
major a esperança de que a decolagem não era iminente.
De repente a abertura que ficava em cima dele escureceu.
— Estou aqui! — gritou Wiffert. Seu coração começou a palpitar violentamente.
Dali a pouco viu a silhueta de um crânio enorme e inconfundível.
— Tolot! — gritou Wiffert o mais alto que pôde.
— Eu o vejo — disse Tolot, e o som retumbante de sua voz ainda foi reforçado pela
abertura do parafuso. — O senhor escolheu um lugar pouco confortável.
A calma de seu interlocutor fez com que Wiffert recuperasse o equilíbrio.
— Tire-me daqui! — insistiu. — Já pensava que nunca fossem encontrar-me.
Tolot desapareceu sem dizer mais uma única palavra, mas voltou dali a pouco.
— Descerei uma corda, major — disse. — Segure-se nela. Vou puxá-lo para cima.
Wiffert respirou aliviado. Parecia que o perigo tinha sido afastado. De repente
sentiu o chão tremer embaixo dos pés. Os pêlos de sua nuca se eriçaram quando um forte
zumbido atingiu seu ouvido.
— Apresse-se! — gritou. — Parece que esta geringonça vai começar a funcionar.
Viu a ponta da corda balançar somente um metro acima de sua cabeça. Na verdade
era apenas um milímetro, mas no momento Wiffert nem se lembrou disso. Esticou os
braços. Os fios da corda tocaram sua mão. De repente a roda dentada deu um solavanco e
afastou-o lateralmente. Wiffert soltou um grito de pavor e atirou-se contra a face lateral
do dente que ficava atrás dele.
— Parem! — gritou. — Diga-lhes que devem parar!
O barulho da máquina que estava entrando em funcionamento superou suas
palavras. No mesmo instante Tolot fez a corda descer mais um metro e balançou a
mesma. Acontece que Wiffert só a via quando se encontrava bem embaixo da abertura.
Nos outros lugares a escuridão lhe tirava a visão. Ficou apalpando apressadamente os
arredores para pegar a corda, mas suas mãos só tocavam no metal sujo de óleo.
A abertura ficava obliquamente em cima dele. A roda dentada continuava a girar
lenta, mas ininterruptamente. Wiffert arregalou os olhos de medo e olhou para cima, a
fim de descobrir onde estava pendurada a corda. De repente viu Icho Tolot descer pela
mesma. Certamente o halutense tinha prendido a outra extremidade em alguma coisa.
Tolot fez alguns movimentos ágeis, fazendo a corda descrever movimentos pendulares.
Dali a pouco saiu do campo de visão de Wiffert.
— Eu o vejo, major! — disse Tolot em tom zangado. — Tentarei alcançá-lo antes
que seja arrastado para outro lado.
Wiffert sabia perfeitamente o que o esperava do outro lado. Ficou esperançoso ao
lembrar-se de que o gigante era capaz de orientar-se numa noite escura como breu.
— Estique os braços — disse uma voz retumbante.
Wiffert esticou os dois braços para o alto. Sentiu os abalos e a abertura do parafuso
parecia inalcançável para ele, de tão longe que ficara. De repente alguma coisa o agarrou
nos antebraços. Wiffert perdeu o apoio dos pés e sentiu-se arrastado para o alto.
— Foi por pouco — disse Tolot.
Wiffert sentiu o halutense enfiar-lhe a corda nas mãos.
— Segure-se até que eu chegue lá em cima e possa tirá-lo daqui.
A garganta de Wiffert estava tão ressequida que o mesmo só conseguiu emitir um
ruído ininteligível. De qualquer maneira, a única mensagem que poderia transmitir à
pessoa que o salvara era a de concordância total.
Tolot chegou em cima mais depressa do que Wiffert esperara; começou a puxá-lo.
Wiffert teve a impressão de ouvir as rodas dentadas ranger embaixo dele. Mãos solícitas
agarraram-no quando se aproximou do buraco e o puxaram para fora.
Wiffert olhou para Tolot.
— Obrigado — limitou-se a dizer.
— O senhor tem uma maneira estranha de preencher o tempo de descanso — disse
Rhodan com um sorriso.
Wiffert compreendeu a repreensão delicada que estas palavras encerravam.
Acenou lentamente com a cabeça.
— Sinto muito, senhor.
— Um dos comandos direcionais caiu na direção errada — informou Rhodan. —
Por pouco isso não causou sua morte.
Wiffert nem se atrevia a pensar de como escapara da morte por tão pouco. Pegou o
pano que alguém lhe ofereceu e limpou as mãos sujas de óleo.
— Já estou em perfeitas condições para entrar em ação, senhor — disse.
Rhodan fitou-o prolongadamente.
— Está bem, major — disse em tom seco.
Só então Wiffert começou a reagir. Enfiou as mãos nos bolsos da calça, para
disfarçar o tremor que sacudiu seu corpo. Parecia haver um nó em sua garganta.
***
Assim que transmitiram a mensagem destinada a Sedenko, Redhorse e seus
companheiros abandonaram o Oldtimer. Sengu os informava de que o inimigo não estava
fazendo nenhum movimento, mas isso poderia mudar bem depressa.
Melbar Kasom chegara à conclusão de que seria inútil tentar reunir novamente as
talhadeiras. Enquanto estivessem sitiados pela estranha criatura, as chances de acionarem
o reator nuclear seriam extremamente reduzidas.
A única coisa que podiam fazer no momento era aguardar o próximo ato do
inimigo. Redhorse e Henderson puseram-se a procurar um esconderijo adequado,
enquanto Kasom, Sengu e Losar ficavam de olho na eclusa. Quando o monstro
conseguisse entrar no veículo, os homens teriam de esconder-se. Mesmo que o monstro
não notasse sua presença, por estarem tão pequenos, haveria o perigo de serem
esmagados por seus pés.
O Capitão Don Redhorse olhou em torno numa atitude indecisa, quando se
encontravam nas imediações do ombro do tentacular morto.
— Precisamos de um esconderijo que nos ofereça segurança absoluta, mas também
permita a saída rápida, quando Rhodan aparecer para tirar-nos daqui — disse Henderson.
Redhorse lançou um olhar pensativo para o tentacular, cujo peito se erguia à sua
frente como uma montanha enorme.
— Este cadáver representa a única possibilidade de nos escondermos nas
proximidades da saída, a não ser que queiramos nos esconder na câmara da eclusa. Daqui
poderemos atingir a eclusa dentro de vinte minutos.
Um sorriso triste surgiu no rosto de Henderson quando o mesmo se lembrou de que
um homem normal só precisaria dar três ou quatro passos para percorrer a distância que
os separava da eclusa.
— Kasom é de opinião que não devemos ficar escondidos muito perto da entrada —
disse Henderson. — Receia que, ao entrar, o monstro faça desabar a parede exterior,
soterrando-nos sob os destroços.
Redhorse apontou para o cadáver.
Henderson engoliu em seco.
— É uma sensação bem estranha a gente ter de esconder-se num cadáver — disse
em tom queixoso.
Redhorse aproximou-se do tentacular. Teve de fazer um grande esforço para passar
por cima de um pedaço do uniforme esfarrapado. Pediu que Henderson se aproximasse.
— Olhe, Sven! Parece ser um grampo de metal que segurava o uniforme. É oco.
Podemos entrar pela alça. Acho que lá dentro estaremos em relativa segurança.
Henderson entrou no grampo. Sua voz parecia cava quando gritou:
— Acho que é um bom lugar.
— Vamos esperar os outros — disse Redhorse.
Sentaram ao lado do tentacular. Henderson fechou os olhos e bocejou. Redhorse
também sentiu que o cansaço estava aumentando. Estava na hora de chegarem a uma
decisão.
Tiveram de esperar bastante até que seus companheiros aparecessem. Os rostos de
Sengu e Losar mostravam como deviam estar as coisas na parede exterior da eclusa. Mas
Kasom parecia tranqüilo como sempre.
— Parece que o cara que está lá fora resolveu descansar um pouco — disse o
ertruso.
Redhorse mostrou o grampo de metal ao ertruso.
— Se o monstro conseguir entrar, ficaremos escondidos aqui — disse.
Sengu fitou-o prolongadamente.
— Ele vai entrar — disse em tom enfático. — Neste momento está tomando
impulso de novo.
8
Quando descobriram o carro voador, ainda eram em três. Três soldados eram o que
restava de um exército poderoso que tinha saído para conquistar a cidade de Kraa. Os
outros sobreviventes tinham ficado no caminho, vitimados pela fome.
Rosaar, o homem que caminhava à frente dos outros, fez um gesto cansado,
levantando o braço magro. Mas os dois homens que o acompanhavam só pararam quando
ele os segurou.
“Eles se movimentam sem pensar!” refletiu Rosaar. “A fome fez com que ficassem
totalmente apáticos.”
— O carro! — chiou — Ali, entre aqueles prédios desabados.
Quase chegava a ser chocante ver no meio de toda a destruição um carro voador que
parecia em condições de levantar vôo.
— Um carro! — disse Goarg, o segundo homem, em tom estúpido.
Poarl, que era o terceiro, forçou a vista e passou a mão pela testa.
— Onde está? — perguntou em tom desolado. — Não o vejo.
Rosaar explicou. Depois saíram juntos, cambaleantes, em direção à maravilha.
Rosaar não se atrevia a pensar que pudessem encontrar uma coisa que servisse para
comer. Mas tinha esperança de ser capaz de pilotar o aparelho. Ficou apavorado ao
pensar na possibilidade de não terem forças para abrir o veículo, mas quando se
aproximaram sentiu-se aliviado ao notar que o carro voador não estava fechado.
Percebeu que estava caminhando mais depressa. Seus pés arrastavam-se sobre as
muralhas caídas. Poarl e Goarg mal conseguiam acompanhá-lo.
Rosaar passou cambaleante pela eclusa e entrou no carro. Viu vários soldados
mortos espalhados pelo chão. Mas já estava tão habituado à visão da morte que não se
abalou com isso.
De repente viu outra coisa. Uma caixinha que trazia a marcação característica dos
pacotes de alimentos. Rosaar precipitou-se sobre a mesma, emitindo um som gutural.
Ficou preso à perna de um cadáver e caiu bem em frente à caixa. Puxou a mesma com
ambas as mãos. A ganância despertou em sua mente. Este alimento lhe pertencia. Nem
Poarl, nem Goarg deveriam receber qualquer porção do mesmo. Reuniu os alimentos que
caíam da caixa embaixo de seu peito. De repente ouviu alguém estalar a língua atrás dele.
Olhou para trás. Seus companheiros estavam sentados na parte traseira do veículo, entre
algumas pilhas de caixas de mantimentos, e engoliam tudo em que conseguiam pôr as
mãos.
Rosaar chorou sem lágrimas e baixou a cabeça. Haviam encontrado um veículo de
transporte atulhado de alimentos. Quando tinham revistado a cidade pela primeira vez
certamente haviam passado por ele sem vê-lo.
Rosaar comeu até sentir-se enjoado. Depois seu corpo amoleceu. Dormiu.
Quando acordou, não sabia quanto tempo tinha passado. Abriu os olhos e, por mais
estranho que pudesse parecer, imediatamente pensou em Groon. Era um pensamento
inquietante, que logo expulsou do cérebro. Rosaar não tinha a menor dúvida de que seu
chefe não pertencia mais ao mundo dos vivos.
Rosaar fez sair a cabeça. Viu que Poarl e Goarg estavam enrolados entre as caixas
de mantimentos. Mesmo dormindo, seus corpos executavam movimentos convulsivos.
Pareciam viver mais uma vez os horrores da luta e da fome.
Rosaar chamou-os, mas seus companheiros não mostraram nenhuma reação. Só
levantaram a cabeça quando ele começou a bombardeá-los com latas vazias.
Rosaar levantou-se e foi à sala de comando. Por ali as coisas também pareciam estar
intactas. Havia dois morteiros pesados montados sobre a carlinga do veículo de
transporte. Rosaar viu um depósito de bombas devidamente guarnecido bem à frente dos
dois assentos dianteiros. Tudo isso lhe inspirou uma nova confiança. Tinha certeza de que
seria capaz de pilotar o veículo, se é que isso ainda era possível.
Os dois companheiros entraram atrás dele.
— Ainda estou cansado — queixou-se Poarl. — Acho que deveríamos dormir mais
um pouco.
Rosaar lançou-lhe um olhar de desprezo.
— Você acha que devemos esperar até que os habitantes que fugiram de Kraa
voltem? Já está na hora de darmos o fora. Vamos cuidar do carro voador dos
desconhecidos, que está parado na planície. Já podemos atacar o bloos do ar, sem expor-
nos a qualquer perigo.
— Acho que seria preferível voarmos logo para casa — objetou Goarg. — O que
temos que ver com o veículo dos desconhecidos?
Rosaar sentiu-se orgulhoso de repente ao perceber que era mais inteligente que seus
companheiros. Eles o aceitavam como chefe.
— Perdemos um exército — disse em tom tranqüilo. — Nesta cidade ninguém se
sentirá feliz com a presença de três sobreviventes que voltaram de mãos vazias.
— Quer dizer que você pretende conquistar o carro voador dos desconhecidos? —
perguntou Goarg em tom estridente.
— É o que pretendo fazer — confessou Rosaar.
Sem dar atenção aos dois companheiros, pôs-se a examinar a sala de comando do
carro voador, a fim de familiarizar-se com os controles. O veículo fazia parte do
equipamento do inimigo que fora destruído, mas em princípio era bem semelhante ao
usado por seu exército.
Rosaar fechou a entrada. Deu ordem para que os dois soldados se acomodassem nos
assentos. Poarl e Goarg carregavam alimentos. Parecia que tinham medo de que a fome
pudesse voltar.
Rosaar examinou os dois morteiros. Poarl aproximou-se.
— Eu fazia parte do corpo de artilheiros — disse. — Sei lidar com as armas.
Rosaar acenou com a cabeça. Parecia satisfeito. Deu ordem para que Poarl ficasse
em posição atrás dos morteiros e mandou que estudasse atentamente o funcionamento
dessas armas. Ele mesmo abriria o poço de lançamento de bombas quando estivessem
atacando o bloos.
Rosaar descobriu a chave que servia para fechar a entrada. Esperou que o carro
ficasse em condições de decolar e o fez sair de entre os destroços. O avião primitivo
desprendeu-se do solo, gemendo em todos os cantos. O barulho dos dois rotores enormes
penetrava na sala de comando.
Rosaar viu os escombros passarem lá embaixo. Seus olhos examinaram o horizonte.
Finalmente descobriu o destino. O carro voador mudou ruidosamente de direção,
deslocando-se para a grande planície.
***
Para Gessink era uma vergonha terrível ter perdido seu alojamento. Era a pior coisa
que poderia acontecer a um bloos. Gessink acreditava que naquele momento havia um
soldado sentado no interior do abrigo, rindo dos esforços dele, que tentava entrar à força.
Numa raiva insensata, Gessink arremessava os braços contra o soldado morto que
ele tirara de cima do veículo. Notou que a entrada estava um tanto esmagada, mas sua
inteligência rudimentar não era capaz de avaliar a extensão do dano. Deixou-se cair no
chão áspero e esticou os braços. Preferiria morrer, antes de renunciar ao abrigo
maravilhoso que tinha encontrado. Estava com fome, mas não mexeu nos cadáveres dos
inimigos, pois a idéia de preparar seu alimento ao ar livre causava-lhe repugnância.
Gessink sempre acreditara que não houvesse nada que pudesse resistir à força
tremenda de seus braços, mas a entrada do veículo, que continuava fechada, produzira um
forte abalo nessa crença. Se bloos golpeasse uma rocha com toda força, usando os braços,
esta se desmancharia em poeira.
Gessink espirrou enojado quando o vento trouxe o cheiro do pedaço de uniforme
queimado, que já se apagara. Levantou e afastou-se de seu alojamento. Já dispunha
novamente de forças suficientes para se arremessar contra a entrada de sua caverna. Saiu
rastejando sobre as pernas como uma aranha gigantesca.
Virou-se lentamente. Seus músculos entesaram-se. As pernas vergaram e o bloos
saiu numa velocidade incrível em direção ao veículo. Não reduziu a velocidade nem
mesmo nas proximidades da eclusa. Qualquer outra criatura que habitava o planeta
Horror teria sido morta pelo impacto violento produzido pela investida do bloos contra a
parede exterior da eclusa.
Houve um estrondo semelhante ao de uma explosão quando a parede foi arrancada
dos suportes e caiu na câmara da eclusa, juntamente com o atacante enfurecido. As
pernas de Gessink martelaram os destroços. O bloos gritava sua raiva juntamente com o
triunfo e saiu rolando pela entrada demolida.
Dirigiu os olhos pequenos e malvados para o interior da caverna. Bateu os dentes,
numa excitação selvagem.
Finalmente Gessink passou por cima da parede tombada, a fim de sair à procura
daquele que se atrevera a querer apoderar-se de seu alojamento.
***
Sobrevoaram os limites da cidade, mas nem por isso o quadro de destruição sofreu
qualquer mudança. Conquistar uma cidade e destruí-la era uma coisa, mas sobrevoá-la
depois e ver o que se tinha feito era bem diferente. Não que Rosaar se sentisse
arrependido, mas o quadro dos edifícios desmoronados e queimados provocou um
sentimento desagradável para o qual não havia explicação. Rosaar perguntou-se quais
seriam os pensamentos que atravessariam seu cérebro se um dia visse sua cidade nesse
estado.
Goarg e Poarl não pareciam ser molestados por pensamentos desse tipo.
Mantinham-se ocupados classificando os alimentos e empilhando-os na sala de comando.
Rosaar olhou para a planície, para a areia vermelha e os penhascos. Viu um
pontinho bem ao longe. Era a máquina voadora dos desconhecidos, que estava sob o
controle de um bloos.
Rosaar fazia votos de que o combustível fosse suficiente para o que pretendia fazer.
Lembrava-se constantemente de Groon. Às vezes chegava a duvidar de que o chefe
realmente estivesse morto. Os soldados do tipo de Groon pareciam possuir uma
imunidade inexplicável diante da morte. Rosaar procurou resistir à glorificação
inconsciente que estava fazendo da pessoa de Groon. Se quisesse dominar Poarl e Goarg,
teria que desprender-se do chefe do exército, até mesmo no terreno emocional.
— Por que não voamos na direção do objeto voador em cujo interior está alojado o
bloos? — perguntou Poarl e enfiou a cabeça na sala de comando.
— Tanto faz de que lado nos aproximemos — respondeu Rosaar com a voz
tranqüila. — De qualquer maneira, a fera nos ouvirá.
A chance de serem descobertos pelo bloos não parecia deixar os soldados mais
alegres. Rosaar já percebera que seus companheiros não tinham muita vontade de
abandonar a segurança em que se encontravam para acompanhá-lo em mais uma luta. Por
enquanto não tinham mostrado a contrariedade que isso lhes causava. Rosaar sabia que
nem se atreveriam a tanto, pois ele era o único que sabia pilotar o carro voador.
— E possível que Groon já tenha matado o bloos — observou Goarg enquanto se
expremia junto a Poarl para entrar na sala de comando.
Rosaar ficou aborrecido ao notar o medo que vibrava na voz de Goarg.
— Groon morreu! — disse em tom áspero. — Ninguém é capaz de enfrentar um
bloos somente com uma carabina e sete tiros de munição.
Poarl e Goarg entreolharam-se de uma forma que dava a entender que os dois
julgavam Groon capaz de qualquer coisa, até mesmo de matar um bloos com uma
carabina miserável.
Rosaar segurou a direção com tanta força que o sangue abandonou as juntas de seus
dedos. Depois de algum tempo recuperou o autocontrole. Sem dizer uma palavra, Poarl
ocupou o lugar que ficava atrás dos morteiros, enquanto Goarg permanecia em atitude
indecisa junto à entrada. Ao que parecia, resolvera aguardar os acontecimentos.
O ponto escuro que representava o objeto voador estranho aumentava rapidamente.
Rosaar seguia exatamente na direção do mesmo. Já se familiarizara com o ruído dos
rotores, que já não o inquietava. Não sabia explicar as funções desempenhadas por alguns
controles, mas os mesmos não pareciam ser muito importantes para a orientação do vôo.
O carro voador mantinha-se numa altitude média de vinte metros. Assim que se
aproximasse do objeto voador estranho, Rosaar subiria mais, para não ser atingido pelos
efeitos da bomba que pretendia lançar. Mas antes disso queria fazer um reconhecimento
perfeito da área.
Já se encontravam tão perto que podiam distinguir os detalhes.
De repente Goarg soltou um grito.
— Groon! — Sua cabeça tremia, enquanto se inclinava por cima da carlinga.
Rosaar viu o cadáver do chefe do exército jogado à frente do objeto voador dos
forasteiros. O bloos tinha deixado Groon num estado lamentável.
— Ele lutou contra a fera — disse Poarl como quem se sente culpado. — Nós
fugimos, enquanto ele enfrentava um monstro.
— Ele agiu como um idiota! — Rosaar fez um gesto resoluto. — Não soube
raciocinar, senão ele nos teria acompanhado quando fomos à cidade.
— Pode ter sido um idiota, mas foi um idiota valente — constatou Poarl com a
maior calma.
Rosaar teve a impressão de que seria preferível ficar calado. Fez o carro voador
passar por cima do campo de batalha. Não viram sinal do bloos.
— Ainda deve estar no interior do veículo — conjeturou Goarg.
— Vamos dar alguns tiros para fazê-lo sair — disse Rosaar.
O carro voador ganhou altura. Mas antes que pudessem lançar as bombas aconteceu
uma coisa que frustrou seus planos, ao menos por enquanto.
Uma máquina voadora dos desconhecidos apareceu vinda de trás das colinas que
limitavam a planície. Era semelhante àquela que estava sendo ocupada pelo bloos. Foi
Rosaar que a viu primeiro.
— E agora? — perguntou Poarl, que a descobriu em seguida.
— Precisamos atacar os forasteiros — decidiu Rosaar. — São mais velozes que nós.
Se fugirmos, eles nos alcançarão.
Poarl agachou-se atrás dos morteiros. “Está na hora de provar aos dois que sou tão
valente quanto Groon”, pensou num assomo de sarcasmo.
***
Gessink revistou sua caverna por três vezes com o maior cuidado, mas não
encontrou sinal de um intruso. Sentiu-se inclinado a acreditar que a entrada se fechara por
acaso. Começou a ficar mais tranqüilo. Não havia nada que indicasse que houvesse mais
alguém em seu alojamento. Olhou para a entrada, mas por lá tudo permanecia quieto.
Gessink fungou e passou a dedicar sua atenção à vítima de seu ataque, cujo cadáver
jazia nas proximidades da entrada. Já podia prepará-la calmamente. O bloos continuava a
acreditar que possuía um excelente abrigo; devia ser a melhor caverna que existia
naquelas redondezas. Lutaria para conservar a posse da mesma, fosse quem fosse o ser
que quisesse disputá-la.
Gessink passou por cima do cadáver do soldado. Só restavam uns poucos farrapos
do uniforme, que não o incomodavam. Abriu as glândulas que segregavam uma
substância ácida e pôs-se a aspergir a mesma uniformemente sobre sua vítima.
9
Oito dias, tempo padrão, já tinham se passado desde que os Oldtimers haviam
partido. O Coronel Cart Rudo, comandante da Crest II, não se atrevia a olhar a esposa de
Rhodan de frente. O que poderia dizer para aliviar suas preocupações martirizantes?
Todos os argumentos seriam inúteis diante do fato de que Rhodan e seus companheiros
deveriam ter regressado há alguns dias.
Mory Rhodan-Abro não deixou perceber o que estava pensando, mas Rudo possuía
bastante senso psicológico para saber interpretar o estranho nervosismo daquela mulher.
Rudo comparou seu relógio com o de bordo, como já fizera muitas vezes nos últimos
dias. Não havia nenhuma diferença. Os dois relógios indicavam exatamente dez minutos
depois das doze horas.
Quase no mesmo instante os receptores de ondas ultracurtas, os únicos que ainda
estavam funcionando a bordo da nave, emitiram um sinal. A reação do operador foi
instantânea, transferindo a ligação para Rudo, mas este logo se colocou a seu lado.
— Cuidarei disso! — observou em tom nervoso. — Avise a esposa de Rhodan.
— Farei isso imediatamente, senhor!
O homem saiu correndo. Rudo nem chegara a ouvir o que falou. Respondeu três
vezes em seguida, transmitindo o sinal combinado.
Não esperou muito tempo. Os impulsos emitidos pelo carro voador foram
registrados pelos receptores. Rudo ficou sabendo que o comando dirigido por Rhodan
encontrara e recolhera um veículo blindado versátil. O veículo estava estacionado na face
interna da camada exterior do planeta Horror, junto ao ponto de penetração do orifício
que a Crest II abrira a tiro.
Rudo apressou-se em confirmar o recebimento da mensagem e ficou à espera de
outras notícias.
Rhodan informou que os pêlos amarelos tinham saído à sua procura logo após sua
chegada ao nível amarelo, mas não os haviam encontrado. Todos os tripulantes
conseguiram colocar-se em segurança antes que fosse tarde. As vibrações dos minúsculos
astronautas não possuíam intensidade suficiente para poderem ser localizadas pelos
intrusos. Rhodan comunicou que os atacantes acabaram por retirar-se. Não havia mais
nenhum perigo.
Outros homens reuniram-se atrás do Coronel Rudo. A multidão abriu alas uma
única vez, para deixar passar a esposa de Rhodan. Rudo fez um gesto tranqüilizador em
sua direção.
Rhodan anunciou que passariam a realizar testes com o transmissor do carro voador.
Dali a algumas horas as primeiras mensagens de hipercomunicação atravessariam o
espaço.
Uma vez transmitida essa informação, Rhodan pôs fim à transmissão.
O Coronel Cart Rudo teve de levantar os braços para interromper a manifestação de
júbilo dos astronautas. Sorriu para Mory.
— Acho que agora está tudo em ordem — disse, falando lentamente. — O carro
voador pousou são e salvo. Daqui a pouco serão iniciados os testes com o
hipercomunicador.
Um dos traços do caráter de Mory fazia com que a mesma pensasse imediatamente
na segurança dos outros.
— É possível que a chegada da Androtest II seja iminente — disse. — Pelo que
informou Kotranow, Tifflor pretendia fazer decolar a terceira nave do tipo Androtest
quinze dias depois da partida do coronel.
— É verdade — confirmou Rudo. — Talvez possamos prevenir a nave esperada
antes que seja tarde.
Mory fitou-o com uma expressão séria.
— Vou fazer uma pergunta e quero pedir que responda com toda franqueza.
Rudo sentiu que estava ficando embaraçado. Não sabia como comportar-se diante
dessa mulher.
— Está bem — disse. — Pode perguntar.
— O senhor acredita que um dia voltaremos ao nosso tamanho normal, coronel?
Rudo fitou-a com uma expressão de perplexidade. Não esperava uma pergunta deste
tipo. Engoliu fortemente em seco e desejava ter uma chance de retirar-se discretamente.
Mas Mory não tirava os olhos dele. A expressão de seu olhar obrigou-o a dar uma
resposta.
— Enquanto estiver respirando, não deixarei de acreditar nisso — respondeu o
Coronel Rudo em tom sério.
***
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*