Você está na página 1de 8

g

FGV
EDnORA f'D

Q
Q

Gringo nalaje
Produção, circulação e consumo
da favela turística

Bianca Freire-Medeiros

'\ \

\
\

\ ./

'\,,'
\

\
\

\ \ \

\ \

\. \

X
\
16 FGV de Bolso

Capítulo l

Antes de começarmos nosso tour

Em 1996, num domingo de verão, Michael Jackson apor-


tou de helicóptero no Morro SantaMana, localizado na zona
sul carioca. Pouco antes, ele estivera em Salvador. filmando
com o famoso grupo Olodum. A favela carioca e o Pelourinho
baiano foram as locações escolhidas para o videoclipe de rhg
doJz'f cara abouz tzs, dirigido por Spike Lee. A canção -- cuja le-
tra inclui frases como 'Um / ilzuisib/e becatzse .you zg/core me?"
("Sou invisível porque você me ignora?") e "/ am [/ze t/!c[2m
ofpo/ice bí"uiaZii7" ("Eu sou a vítima da brutalidade policial")
fala do preconceito contra os pobres e da indiferença do
poder público e das elites a essesapelos O videoclipe abre
com a imagem do Corcovado ícone do Brasil no imaginiaio
internacional -- enquantouma voz feminina, em ol#: grita em
português: "Michael, Michael, eles não ligam para gente"
Imagéngda favela e do Pelourinho sãointercaladas às do pop
star, que provoca de maneira coreografadasupostos policiais
militares, abre os braços em cruz e simula revólveres com os
dedosem riste.
18 FGVde Bolso Gringo nalaje 19

Jackson esteve no Santa Mana por apenas 12 horas e A temperatura política aumentou quando os principais jor-
no videoclipe, além de algumas vielas e lajes, pouco se vê nais cariocas publicaram que o preço das locuçõeshavia sido
da favela, mas as polêmicas em torno da presença do astro negociado entre a produtora de Jackson e Marcinho VE líder
norte-americano na localidade ocuparam o noticiário den- do tráfico de drogas no SantaMana à época. Era o que faltava
tro e fora do país por vários dias. Ronaldo CezarCoelho, para o promotor público exigir a suspensão das filmagens, sob
secretário do Comércio e Indústria à época. argumentou que o argumento de que a indústria do turismo estava sendo seria-
o vídeo denegriaa imagemda cidade e exigia direitos de mente comprometida. As autoridades governamentais acusa-
edição. Pelo propagou que o vídeo arruinada as chances de vam a Sony,gravadora de Jackson, de explorar comercialmente
o Brasil sediar os JogosOlímpicos de 2004. O então gover- a pobreza. Diziam que o clipe reforçaria o estereótipo da favela
nador do Rio de Janeiro, Marcello Alencar, acusou Jackson como lugar da miséria e da violência, o que levou Spike Lee a
de querer ser o "rei da miséria" e o desafiou a fazer doações chamar as autoridades de "ridículas e patéticas" e o Brasil de
aos favelados. uma "república das bananas". "0 que eles acham? Que a po-
Indiferentes à cara feia das autoridades, os moradores do breza no Brasil é segredo?", provocou o diretor.
Santa Mana receberam Jackson de braços abertos. Em depoi- Desdeesseepisódio tão controverso, muita coisa mudou.
mento ao site Favela tem memória (www.favelatemmemoria. A pobreza no Brasil, se antesjá não era segredo,hoje é in-
com.br), José Luasde Oliveira, na época presidente da Associa- contestavelmente uma atração turística. Em 1996, o vídeo de
ção de Moradores do Santa Mana, relembra: Jackson, ao expor a favela. era percebido pelo então governador
Marcello Alencar como uma peça publicitária às avessas,que
O pessoalachou que era "pegadinha". SÓacreditou quando a
só poderia espantar os visitantes internacionais. Dez anos de-
TV começou a anunciar. AÍ bateu aquela ansiedade, foi uma cor'
Feria. 'lodo mundo só falava nisso no morro... A favela teve os pois, Sérvio Cabral, assim que tomou posseà frente do governo
do Estado,anunciou que as obras do Programade Aceleração
seus quinze minutos de fama.
do Crescimento (PAC)na Rocinha, além das melhorias na infra-
O Museu Michael Jackson, que seria construído pelos mo- estrutura da favela, incluiriam a transformação de residências
radores para comemorar a visita ilustre, jamais saiu do papel, na parte alta do morro em pousadas do tipo bed & breaXl$ast
mas a passagem de Jackson foi registrada em um documen- (hospedagens que oferecem quarto e café da manhã).
tário produzido pelospróprios moradores.Até hqe inédito Em 1996,a associação
entre favelae turismo era consi-
na televisão brasileira, o filme O mqa-star 7Wic/jaezJackso/z derada absolutamente maléâca pel.osrepresentantes públicos
mostra o astro sem sua máscara antipoluição interagindo com do setor; em 2006, uM prqéto de lei fez da Rocinha um dos
alguns Gasque agradeciamsua presença com demonstrações pontos turísticos o6ciais da cidade do Rio de Janeiro.Essa
calorosas de afeto, como a sintetizada na faixa: "Míc;jaez,yoa iniciativa, aliás, contou com o apoio imediato de Rubem Me-
al"e not a/one. Oo/za Mar a /ouesyou" (''Michael, você não está dina: '%.Rocinha é uma atração turística há um bom tempo.
sozinho, Dona Mana ama você"). Ê importante que sejaincluída no Guia Oficial para que as
20 FGVde Bolso 21
Gringo nalaje

excursões, o artesanato e outros atrativos soam mais divul- tiu o h]me de uma credibi]idade quasedocumental, reforçada
gados", justificou o então presidente da Riotur em entrevista pela presença de vários atires oriundos das favelas cariocas.
ao jornal O Globo, em 20 de setembro daquele ano. Rodado em película granular, com altos contrastes pigmenta-
Os representantes públicos não podem mais acusar as fa- res, e com uma trilha sonora em que se mesclamsucessosdo
velas de atrapalhar a indústria do turismo porque elas são samba,do funk e do rock, o filme logrou produzir uma cons-
parte importante dessaindústria: somentea Rocinha recebe trução imagética paradoxalmente realista e estilizada de uma
uma média de 3.500 turistas por mêsl Em outras favelas-- Ba- favela violenta. Como resumiu Lisa Schwarzbaum (2003:77),
bilõnia (Leme), Prazeres (Santa Tereza), Vidigal (São Conrado) em sua resenha para a conceituada Z?zzferfaí/zme/ztWeekZy:
-- estratégias e parcerias vêm sendo traçadas no intuito de
capitalizar o potencial turístico das localidades. A Pousada Cidade de Deus transita por onde até mesmo policiais têm medo
Favelinha (Morro Pereira da Silva), o hotel The Maze Inn (Fa- de pisar, abraçando confusão, miséria e violência de uma forma
vela Tavares Bustos) e o projeto "Favela receptiva" (Vila Cano- direta que é, ao mesmotempo, arrebatadora e desconcertante-
as), todos inaugurados em 2005, na zona sul carioca, têm se mente "pool" no estilo MTV.
reve[ado empreendimentos lucrativos.
Se. por um lado, um número crescentede turistas vem à A despeito das controvérsias em torno da legitimidade
favela, por outro, cada vez mais a favela vai ao encontro de de sua representaçãodo cotidiano da favela, a película de
potenciais visitantes por meio de produções cinematográficas FernandoMeirelles e Kátia Lundi inspirou um sem-número
e televisivas. Afinal, como argumenta o sociólogo John Urry de produções, entre elas Cidadedos nome/zs,série de dra-
(1995), é preciso lembrar que a escolha de um determinado maturgia produzida pela Rede Globo em parceria com a 02
destino por parte do turista está baseadaem uma "anteci- Filmesna qual reapareceboa parte do elencode Cidadede
pação da experiência", que se constitui em diálogo com as Deus. Protagonizada pelos amigos Laranjinha (Darlan Cunha)
imagens do local veiculadas em diversos produtos mediáti- e Acerola (Douglas Sirva), a série, que foi exportada para 25
cos, imagensque criam uma moldura interpretativa e com- países,narra os percalços e as estratégias bem-humoradas de
portamental para o turista. No casoda favelaturística, uma sobrevivência e amadurecimento dessa dupla de persona-
infinidade de produtos estão,direta ou indiretamente, sendo gens. A opção por situar a narrativa em uma favela genérica
postos em ação. Vejamos alguns exemplos.
e por privilegiar temasdo cotidiano evitou que o senadose
Em 2002. Cidade de Deus seduziu as platéias internacio- visse prisioneiro das mesmas acusações de sensacionalismo
nais com uma imagem ao mesmo tempo realista e estilizada do longa-metragem. E o próprio Fernando Meirelles quem
de uma favelaviolenta. Aclamadopela crítica internacional, identifica a complementaridade entre as duas produções:
o filme foi promovido como um testemunho sobre a vida nos
"guetos'' cariocas. O fato de se basear no romance homónimo Cidade de Deus é um drama, com toque de comédia, sobre tra-
de Paulo Lins (1997), ex-morador da Cidade de Deus, inves- ficantes no Rio, jnelel a comunidade aparece apenas como pano

n
23
22 FGV de Balsa Gringo nalaje

de fundo. Cidade dos Homens é uma comédia, com um toque de am seu grito de guerra -- "entrar na favela e deixar corpo no
drama, sobre uma comunidade no Rio de Janeiro, [nele] os trafi- chão'' --, mais uma vez a imagem de uma favela violenta cir-
cantes aparecemsó como pano de fundo. Um prometocompleta o cula mundo afora. O que o temido e estressadoCapitão Nasci-
outro (DVD CidadedosHomerzsda primeira temporada.2002). mento (Wagner Moura) não sabia, no entanto, é que logo em
seguida outro combatente do crime também faria dos morros
A favelacinematográficade Cidadedel)eus iria inspirar ain- cariocas seu cenário: O :lncrít/e/ .fíu/k. O filme de Louis Lette-
da Favela RZsifzg,dirigido por JeH' Zimbalist e Mau Mochary. rier, o segundo do estúdio Universal sobre o personagem da
O premiado documentário costura a história do Grupo Cultural Marvel Comics criado em 1962, abre com um longo plano aé-
Abro Reggaeà vida de Anderson Sá, vocalista da banda, nasci- reo da Rocinha, que encantou o conceituado crítico de cine-
do e criado em Vigário Geral. Segundo os diretores, a intenção ma Roger Ebert conforme revela sua resenha para o C#icago
do documentário era resgatar a história da favela como espaço Sun-rimas, em 11 dejulho de 2008:
de resistência e criatividade, beleza e produção simbólica, con-
frontando os estereótipos que a associam à violência e à misé- A estadia de Banner no Brasil começa com um s/zotestarrecedor: de
ria. O longa-metragem retoma as opções estéticas do filme de um ponto de vista aéreo,voámoscada vez mais alto sobre um dos
Meirelles e funciona, em larga medida. como umjoZ/ow-up des- morros do Rio, vendo centenas,milhares de minúsculas casascons-
te: a narrativa começaem fins dos anos 1980, anunciados em truídas umas sobre as ousas, todas buscando ar. Esta é a vizinhan-
Cidadede Z)euscomo "o início de um novo tempo" na história ça de Cidade de E)eEzs
e, até onde posso entender, estamosolhando
das organizações criminosas nas favelas, e incorpora ao elenco para a coisa verdadeira. hão CGI [coinputação gráficas.O diretor
atires como Firmino da Hora e Jonathan Haagensen,notórios prolonga o s/zot sem que hÜa qualquer necessidade razoável do
pela participação no filme brasileiro. Em várias tomadas,uma enredo; aposto que ele estavatão estarrecido quanto eu fiquei, e
favela não identificada da zona sul carioca, com vista para o deixou o suor correr porque era tão fantástico (Ebert, 2008).
mar, substitui Vigário Geral e provê à audiência internacional
a desqada imagem da favela turística. É na favela, então, que o atormentado cientista Bruce Ban-
Em 2007, mais um longa-metragem brasileiro levou pla- ner (Edward Norton) vai procurar abrigo. Enquanto trabalha
teias nacionais e internacionais a repetidas incursões pelas numa fábrica de refrigerantes, busca uma cura para sua con-
favelas: o controverso Tl"opa de e/Zle. Assim como Cidade de dição. Curiosamente,Banner buscou um cenário tantas ve-
Z)eus,o filme dirigido por José Padilha ganhou status de tes- zesassociado à violência para encontrar sua paz de espírito.
temunho, de uma narrativa ficcional com lastro de veraci- Em tempo: as cenas passadasna Rocinha, à exceçãodo plano
dade. O filme foi visto como uma complexa radiografia dá aéreo, foram. na verdade, rodadas na favela Tavares Bustos,
corrupção que infiltra todos os poros da sociedade e torna cenário de 7'fora de e/ife e da novela Vidas Opostas,da Rede
impossível a distinção entre bandidos e mocinhos. Enquanto Record. Escrita por Marcílío Moraes e dirigida por Alexan-
os soldados do Batalhão de Operações Especiais (Bope) ento- dre Avancini, a telenovela-- que foi ao ar entre novembro
24 FGVde Bolso
Gringo na laje 25

de 2006 e agosto de 2007 teve boa parte de sua trama am- tivemos a oportunidade de conversar com um dos donos do
bientada no fictício Morro do Torto.
Fat/e/a C/zZc,bem-sucedido empreendimento inaugurado em
No ano seguinte, a RedeGlobo também deslocou o "núcleo novembro de 1995, quando ele nos respondeu:
pobre" de sua prestigiada novela das oito do subúrbio para a
favela. Aguinaldo Silva, autor de Z)zzascaras, fez questão de
A gente começou a fazer o Pape/a C/zic com a intenção de mos-
incluir sua comunidade da Portelinha no circuito turístico. A
trar realmente o que é a favela [...] Toda nossa decoração, tudo
iniciativa parte de um personagemdo núcleo da classemédia
que a gente faz é com reciclagem [...] E era tão pobre, tão mise-
que decide levar um grupo de amigos estrangeiros à Porteli-
rável o lugar que a gente tinha -- semmesa,com tudo quebrado
nha. Ao pedir autorização à liderança local para a promoção do ' que a gente acabouchamando de favela. Mas como era uma
turismo, o personagem interpretado por Letícia Spiller defende favela em Paras, era Pape/a C/zic [risosl. A intenção é mostrar que
a iniciativa:
favelatem valor, que a dignidade que a gente pregaexiste de
verdade. Não é mais vergonhoso falar de favela, favela é luxo,
Safari urbano é o que há de mais up em matéria de passeio turístico favela é chic! Irisosl.
hoje em dia. Roteiro previamente agendado, selecionado e organi-
zado para grupos pequenosde, no máximo, dez pessoaspor vez-
Lorraine leu (2004) descreve e analisa o processo midiáti-
Essaé definitivamente a melhor favela para trazer os gringos.
co responsável por elevar o Brasil, e a favela em particular, à
condição de sensaçãodo momento na Inglaterra. Segundo a
Mas a favela carioca não tem circulado apenasem vídeo
autora, presencia-seuma inesperada dinâmica entre o local e
ou em película . Na estação de trem de Luxembourg, em Paria, o global a partir da geograâa imaginária da favela e da "cultu-
como parte das comemoraçõesdo ano do Brasil na França, ra" que Ihe seria peculiar. Essa cultura de uma favela mítica é
foi montada a instalação Pape/ífé. A partir de uma colagem utilizada nas campanhas publicitárias das mais variadas mar-
com cerca de 800 imagens,de autoria de jovens fotógrafos case produtos, que vão dos modelos de carro Citroên e Nis-
moradoresde favelas,apresentava-se
o Morro da Providên-
cia -- favela em que a Prefeitura do Rio de Janeiro construiu san à lqa de móveis suecalkea. Os produtos brasileiros, por
sua vez, quando comercializadosinternacionalmente, tam-
um museu a céu aberto no intuito de promover a localidade bém aderem à marca "favela": 'h. onda atual de 'favela chic'
como atração turística -- reproduzindo seus barracos, vielas e tornou até a mais humilde mercadoria brasileira, a sandália
moradores para encanto dos parisienses.
de borracha, em um objeto de fetiche" (Leu, 2004:17).
Em Paris, Londres, Glasgow e Miami, o Favela Chic, um
Em Tóquio, o restaurante Favela segue a mesma lógica, ser-
c/zzbdecorado com palmeiras e materiais reciclados, serve co-
vindo feijoada e caipirinha em um salão que mistura elementos
mida brasileira acompanhada por uma trilha musical eclética.
rústicos e requintados. Com direito a DJ e a um mot,'íe /range, o
Na entrada do czar)em Paras,a pintura de uma índia com ares
restaurante tem como público aqueles que buscam o exotismo
de Iracema dá as boas-vindas aos clientes. No verão de 2006,
da culinária brasileira combinada a uma atmosferawor/d sly/e.
26 FGVde Bolso Gringo nalaje 27

Já o Favela Restaurant, em Sidney, na Austrália, dispensa os igualmente colabora na formatação da favela turística: as fotos
quitutes brasileiros e serve exclusivamente comida asiática, e o produzidas pelos próprios visitantes. Ao analisar 50 fotologs,
'logo do restaurante traz a favela apenas na imagem estilizada de que exibiam um volume de mais de 700 fotografiastiradas
um menino que esconde o rosto entre as mãos.O Club Favela, por turistas durante passeiospela Rocinha e postadas na in-
em Munster, na Alemanha, toca música [ecbnom!?cima/,/house, ternet, Palloma Menezes (2007) argumenta que nunca houve
psylrarzcee r(:ggae,mas não se vale de nenhum ritmo associa- tamanha produção, reprodução e difusão de imagens da fa-
do diretamente ao Brasil. A força da marca "favela" tornou-se, vela como nos dias anuais.Mas de que é compostaessafavela
portanto, capaz de transcender o referente territorial, promo- que os turistas fazem circular por meio de seus blogs?De rue-
vendo tanto o que é brasileiro quanto o que pretenda ser "al- las e valas, de fios emaranhados, de uma vista deslumbrante
ternativo", 'rdescolado", "reciclado". para o mar, de plantas e bichos "exóticos" como galinhas e
Nos guias de viagens, a:favela não apenas é incorporada ao cachorros. Mais do que qualquer outro elemento, porém, são
roteiro, mas apontada como ponto de visitação obrigatório aos as casas-- com tijolos desalinhadas e paredes coloridas -- e
que querem conhecer o ''verdadeiro Rio de Janeiro", como res- os moradores -- invariavelmente negros e, preferencialmente,
salta Mânica Torres (2007)em sua dissertaçãode mestrado.O crianças que mobilizam a atenção fotográ6ca dos turistas.
prestigiado l,one/y P/afzefchega a criticar o que vê como "a gla- A fixação internacional pela favela é igualmente proble-
morização das favelas" promovida pelos meios de comunicação matizadapor Claire Williams (2003), que traça paralelosin-
de massas,mas não deixa de sugerir enfaticamenteo passeio, teressantes entre a onda criada por Cidade de Deus e aquela
desde que feito com empresas especializadas que garantam a em torno de Qz/arfa de despejo,livro de memórias de Carolina
segurança do turista. Observa Torres (2007:36): Mana de Jesusque se tornou besf-se//ez"internacional nos anos
1970. Mas é a socióloga Lida Valladares (2005) quem identifica
Quando aborda as favelas do Rio o ]guia] argumenta que [...] "mais a complexidade política do fenómeno e aponta a responsabili
de l milhão de pessoasmora nesseslugares notadamente violentos, dade dos diferentes atores -- ONGs, poder público, cientistas
pontos de tráfico de drogas,onde a pobreza prevalecee o poder sociais -- na conformação de uma favela singular e exótica.
público não existe" [...]. Para os redatores do guia, ]o turismo na Como resume Tom Phillips (2003), /at/ela tornou-se um
Eavelalpode trazer uma experiência muito positiva para os turistas, prefixo tropical capaz de incrementar e tornar "exóticos" lu-
até mesmo considerando que os moradores locais, que se sentem gares e produtos os mais variados. Guias de viagem, filmes,
ma%inalizados pelo seu próprio governo, geralmente sentem-seli- documentários, telenovelas, romances, dissertações, fotologs,
sonjeados quando os estrangeiros interessam-se por eles. suvenires, entre tantos outros, são elementos que contribuem
para a formulação de uma favela que circula mundo afora e
Além dos produtos e bzzslfzesses
que colocama favela em incentivam sua promoção como destino turístico.
evidência e que estão incorporados de maneira mais formal Este livro convida você a participar de um passeio pela
ao mercado, existe um corpus mais disperso de imagens que Rocinha favela turística por excelência -- e pelas muitas po
2.]
28 FGV de Bolso

lêmicas criadas em torno dessedestino. Será uma viagem no


tempo e no espaço,uma viagem que nos ajudará a entender
o que mudou desde a famigerada visita de Michael Jackson Capítulo 2
para a favela carioca se tornar uma atração turística. Mas para
que a complexidade dessefenómeno possa ser de fato apreen- Da atração pela pobreza à pobreza como atraçáo
dida, é preciso situa-lo em um contexto mais amplo, no qual
a pobreza zlríslíca ' uma pobreza emoldurada, anunciada,
vendida e consumida com um valor monetário definido no
mercado turístico -- emerge como fenómeno global. Essa po-
breza turística é o tema do próximo capítulo.
No capítulo 3. subiremoso morro acompanhadospelos
donos das agências de turismo e por alguns guias que amuam
na Rocinha. Eles nos contarão como se dá a promoção e venda
da favela como destino turístico, quais os pontos visitados e
quais as di6culdades enfrentadas no cotidiano. Observare-
A curiosidadede sabere de ver como vivem os pobres
mos, com particular atenção, os aspectos textuais e imagéti- não constitui novidade. Como demonstra o historiador Seth
cos de seus sites na internet, bela como os suvenires que são Koven (2004),a elite vitoriana fez da experiência em primei-
produzidos para os visitantes.
ra mão entre os indigentes algo essencial aos que aspiravam
O capítulo 4 nos apresenta aos turistas e lhes pede que nos falar com autoridade acercadas questõessociais da época.
expliquem por que escolheramincluir a favela em seu rotei- Assim, todos os cidadãos que simpatizavam com os pobres, e
ro de férias. Veremos com quais expectativas eles chegam à não apenas os que estavam à frente da lgrqa e das agências de
favela e que imagens -- mentais e fotográficas -- da sociedade assistência social, sentiam-se obrigados a visitar, ou mesmo
brasileira eles levam ao final do passeio. viver e trabalhar, em bairros degradadosde Londres, como
Conhecer o que pensam os habitantes da Rocinha a respei- Whitechapel e Shoreditch. Era o que à época se chamava
to desses visitantes estrangeiros e da conversão de seu lugar de de s/ummizzg.Em 1884,o Dicionário Oxford definiu o termo
moradia em atração twística é o tema do capítulo 5. Seráque os como a tendência a visitar as áreas mais pobres de diferentes
moradores compartilham a impressão das camadas médias e dos cidades, sqa com o propósito de fazer âlantropia sqa apenas
segmentos intelectualizados de que turismo em favela é o mesmo por curiosidade.
que um "zoológico de pobre"? Encerraremos,no capítulo 6, o Para os críticos, a prática de sZummíng,disfarçada de al-
tour com algumas reflexões sobre os dilemas éticos e práticos truísmo social, não passavade um entretenimento egoístaque
envolvidos na conversãoda pobreza em atração turística . trivializava a pobreza. Daí o esforço por parte de clérigos, fi-
Que a leitura sqa agradável e que você faça uma boa viageml ]antropos, investigadores sociais e reformistas em diferenciar-

Você também pode gostar