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1 Os dados completos do IBGE podem ser conferidos em: IBGE. Censo Demográfico 2010:
características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
catolicismo de hoje abre-se a todas as alternativas” (BRANDÃO, 2013, p. 97).
Podendo-se sintetizar esta ideia com a imagem da socióloga Brenda Carranza, de a
Igreja Católica como “um imenso guarda-chuva sob o qual alberga-se uma imensa
diversidade de expressões religiosas” (CARRANZA, 2011, p. 74).
Por isso, para compreender a atual identidade da Igreja Católica romana no
Brasil, não se pode perder de vista o fato de que: “o desejo de catolicidade
permanece, mas se confronta sempre mais com uma ampla variedade de modos de
sentir e de ser católicos na sociedade contemporânea” (PACE, 2013, p. 147). Deste
modo, apresentam-se aqui os principais modos de ser católico no Brasil na atual
configuração da Igreja Católica.
Atualmente, no contexto do pós Concílio Vaticano II, dois movimentos
ganharam grande destaque no Brasil, tornando-se suas mais importantes
expressões: as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) ou a TL (Teologia da
Libertação), e a RCC (Renovação Carismática Católica). Faustino Teixeira os
classifica como catolicismos de reafiliados, pois, ambos, caracterizam-se como
movimentos de re-adesão ao catolicismo (TEIXEIRA, 2005, p. 20).
As CEBS pretendem ser mais que um mero movimento ou pastoral na Igreja
Católica; ela se compreende como um novo jeito de ser Igreja, na expressão do
cardeal Aloísio Lorscheider (LEORATO, 1987, p. 71). Surgiu entre os anos de 1964
e 1968, impulsionada pela Conferência do Episcopado Latino-Americano de
Medellín (1968), pela exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, que
deseja uma nova evangelização, pelo aggionarnamento desejado pelo Concílio
Vaticano II e confirmada na Conferência Latino-Americana de Puebla (1978). Ela
tomou uma postura crítica diante do regime militar, realizou uma opção preferencial
pelos pobres, buscou ser uma Igreja popular, leiga, centrada na leitura da bíblia
relacionada à vida política e social. Desenvolveu uma teologia própria, a Teologia da
Libertação, que por sua politização e críticas ao poder na Igreja, sofreu e ainda
sofre, grandes tensões com a Cúria Romana (RUBENS, 2008, p. 74-80).
A RCC, assim como as CEBs, não pretende ser apenas um movimento na
Igreja Católica, mas, segundo o Cardeal Suenes (1975, p. 157), ser uma corrente de
graça a animar toda a Igreja. Ela surgiu nos EUA, a partir de um grupo de jovens
que teve contato com o pentecostalismo (RANAGHAN, 1972, p. 20), e, no Brasil,
chegou através de dois sacerdotes jesuítas: os Padres Eduardo Dougherty e
Haroldo Rahm, na cidade de Campinas, São Paulo, entre o final da década de
sessenta e início da década de setenta do século XX (CARRANZA, 2000, p. 30-32).
O início da RCC foi marcado pela desconfiança da hierarquia, mas, em pouco
tempo, passou a ser vista com bons olhos, por ser um movimento conservador em
sua doutrina (PRANDI, 1997, p. 32). Da RCC originaram-se outras iniciativas que
chamam a atenção das ciências sociais, como as comunidades de vida e de aliança,
padres e pregadores carismáticos independentes do movimento da RCC, e outros
ministérios e associações livres. Porém, ambos bebem das mesmas fontes
ideológicas. Ainda ligado à RCC está outro fenômeno contemporâneo essencial para
se compreender o catolicismo: o catolicismo midiático, que faz uma opção
preferencial pela evangelização através da cultura midiática. Destacam-se o padre
Marcelo Rossi, a TV Canção Nova, a TV Século XXI e inúmeras rádios
(CARRANZA, 2009, p. 41-43). Sua doutrina essencial é a mesma de todo o
pentecostalismo: a crença de ser uma atualização de pentecostes, através do
batismo no Espírito Santo e da restauração dos carismas (JUANES, 1994, p. 25).
O sociólogo Emanuel Freitas da Silva (2018, p. 509) observa que a partir das
eleições de 2010, e ainda mais nas eleições de 2014, no que tange ao voto
presidencial, a RCC foi o segmento católico com maior crescimento de engajamento
das disputas eleitorais. Isso porque, desde 2010, vimos uma reposição dos temas na
agenda política da maioria dos grupos religiosos favorecendo as questões de cunho
moral e privado, o que fortalecera a já consolidada atuação de políticos ligados às
denominações evangélicas e, agora, favorecia a empreitada de políticos ligados à
RCC. Um dos motivos desse engajamento se dá pelo fato de que tais lideranças
creem-se como arautos de um dever moral de participar da política e de mudá-la,
sobretudo no que se refere ao avanço de pautas identificadas com os Direitos
Humanos ou com as minorias, entendidas por tais segmentos como ‘trevas’ a serem
combatidas pela participação política, encarada nos termos de uma ‘batalha
espiritual’.
Assim, na teologia da RCC a figura do demônio recebe grande destaque. Ela
resgata representações e concepções acerca das forças maléficas que
acompanham a própria história do cristianismo, entretanto, a identificação das forças
do mal está, sobretudo, nas entidades espirituais que compõem o panteão das
religiões afro-brasileiras e nas práticas consideradas imorais, como a
homossexualidade, chegando até a criminalização de movimentos sociais como o
feminista e o movimento LGBTI+. Assim, as práticas religiosas da RCC estão
orientadas à demonização do diferente, apoiados no que chamam de teologia do
combate espiritual. Essa mentalidade é difundida amplamente na atuação midiática
desses grupos na televisão e nas redes sociais, por exemplo, na TV Canção Nova,2
bem como em livros, músicas e, principalmente, nas pregações e orações em seus
grupos de oração e eventos massivos, em que são praticados ritos de libertação das
influências diabólicas.
Essa teologia exclusivista3 e de combate espiritual da RCC, também tem
fundamentado e motivado o crescimento da participação dos católicos carismáticos
na política. O movimento abriga, em sua estrutura institucional, um Ministério de Fé
e Política, que, segundo sua página oficial, “é o serviço dentro da Renovação
Carismática Católica para a evangelização da política, a partir da experiência do
Batismo no Espírito Santo”.4 Essa descrição demonstra que a RCC atua no campo
político tendo como base uma teologia ou visão metafísica, principalmente da
batalha entre Deus e o demônio, com o objetivo explícito de cristianizar a política,
ferindo, assim, a laicidade do Estado. Nesse sentido, a RCC adota bandeiras que,
grosso modo, ignoram a dimensão explicitamente socioeconômica da política,
fixando suas lutas em questões de teor moral, como: temas de bioética, a defesa do
ensino religioso confessional nas escolas públicas e o projeto escola sem partido,5
contra os direitos reprodutivos das mulheres,6 e contra os direitos da população
LGBTI+ e o ensino de estudos de gênero nas escolas (PORTELLA, 2011, p 650-
651). Por sua afinidade ideológica, os deputados da RCC fazem parte da Bancada
2 O próprio fundador da TV Canção Nova, padre Jonas Abib, sofreu um processo de um espírita por
intolerância religiosa e seu livro, chamado Sim, sim! Não, não!, que atacava as religiões afro-
brasileiras e o espiritismo, foi retirado de circulação (JORNAL DO SBT. Monsenhor Jonas Abib tem
venda de livro proibida. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HcwoGjq7grI>. Acesso:
11 ago. 2018.).
3 O paradigma teológico exclusivista defende que há apenas uma única religião verdadeira, todas as
7 Em mais de uma ocasião a RCC apoiou os candidatos oficiais da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), como, por exemplo, na eleição de 2016, quando apoiou o Bispo da IURD Marcelo Crivella
(PRB) para a prefeitura do Rio de Janeiro. E na eleição presidencial de 2018, seus deputados
apoiaram no segundo turno o candidato Jair Messias Bolsonaro (PSL), que também era apoiado
oficialmente pela IURD.
8 MARÇAL, Anderson. O fundamento do matrimonio na lei natural. Disponível em: <https://blog.ca
15 FONSECA, Bruno. Sobre gênero nas Escolas, Eros Biondini é a favor que as pessoas sejam
livres, mas não qualquer coisa que queiram. Disponível em: <https://apublica.org/truco2016/sobre-
genero-nas-escolas-eros-biondini-e-a-favor-que-as-pessoas-sejam-livres-mas-nao-qualquer-coisaque
-queiram/>. Acesso: 01 jun. 2019.
“orientação sexual”, bem como que “o Poder Público não se intrometerá no processo
de amadurecimento sexual dos alunos”.16
Para a RCC, os estudos de gênero tratam-se de uma ‘ideologia perversa’,
pois, para eles, gênero é “um conceito que vem para substituir o uso da terminologia
‘sexo’ e refere-se a um papel socialmente construído. Ou seja, nesta ideologia, sexo
é uma definição restrita para identificação de aspectos biológicos e anatômicos,
enquanto, gênero configura-se em uma descrição mais ampla do papel sexual do
indivíduo, deixando de lado o enquadramento “restrito” da designação Homem ou
Mulher”.17 Nesse sentido, para o movimento:
16 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Relator da proposta do Escola sem Partido apresenta novo
texto. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/educacao-e-cultura/56488
0-relator-da-proposta-do-escola-sem-partido-apresenta-novo-texto.html>.
Acesso: 01 jun. 2019.
17 RCCBRASIL. Ideologia de gênero: proposta entra em votação. Disponível em:
<https://www.rccbrasil.or g.br/institucional/index.php/artigos/911-ideologia-de-genero-proposta-entra-
em-votacao->. Acesso: 01 jun. 2019.
18 RCCBRASIL, acesso: 01 jun. 2019.
“Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus”: gênero e sexualidade na
Teologia Feminista da Libertação
houve um processo ligado aos cristãos de base e à Tdl que está elaborando
e difundindo a Teologia feminista da Libertação. Começou-se a descobrir a
mulher como sujeito histórico oprimido e discriminado, dominado pelo
machismo, pela cultura patriarcal e também pelo colonialismo capitalista
ocidental.
Nesse sentido, as décadas de 1960 a 1980 foram marcadas não apenas pela
grande mobilização das mulheres na luta pelos direitos civis, nos movimentos
populares urbanos e rurais, mas também, no âmbito religioso, tanto na Igreja
Católica quanto em certas Igrejas Evangélicas, pela formação e pela difusão das
CEB’s, na qual setores importantes da população feminina católica foram
incorporados ao projeto de constituição de uma ‘Igreja dos Pobres’, sendo este o
contexto do início da produção teológica feminista no continente. Ainda que o
acesso das mulheres à teologia seja somente na década de 1980, momento
posterior à incorporação das mulheres nas CEBs e ao surgimento da Teologia da
Libertação, é este mesmo processo que mobiliza católicas - leigas das classes
populares e religiosas – na constituição das Comunidades Eclesiais de Base e
acaba por integrar também algumas mulheres no processo de elaboração teológica
(CARVALHO, 2006, p. 3).
Mas, Ana Ester Pádua Freire (2015, p. 47), analisa que em seu
desenvolvimento histórico, conforme a Teologia Feminista foi aproximando-se das
abordagens feministas, ela foi gradativamente afastando-se da Teologia da
Libertação, pois, o conceito de opressão sociopolítica da TL não era suficiente para
pensar a igualdade de gênero da teologia feminista. Gebara (2006, p. 269) explica
que o clamor da Teologia da Libertação por justiça social não incluía justiça e
igualdade de gênero, pois a TL permaneceu encerrada em um ideário abstrato, não
enfrentando a realidade colocada pela concretude da corporeidade e do sexo.
Gebara não nega que a Teologia Feminista inspirou-se na Teologia da Libertação
em muitos aspectos, apenas destaca que devido aos diferentes temas que trabalha
e as alianças com o movimento feminista, ela tem se afastado da ortodoxia da
Teologia da Libertação, desenvolvendo uma nova epistemologia. Nas palavras de
Regina Soares Jurkewicz, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir,
referindo-se à Teologia da Libertação: “Nós falávamos dos pobres, mas não
olhávamos para as mulheres”.19
A principal organização que tem atuado
na luta pelos direitos das mulheres a partir de
um discurso teológico católico é a ONG
Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD). Esta
organização tem tido um papel central no
trabalho realizado para questionar o discurso
do conservadorismo católico no campo dos
direitos sexuais e reprodutivos na América
Latina, e em particular nos casos do México,
Considerações finais
20STF. Católicas pelo Direito de Decidir defendem não intromissão do Estado ou da Igreja na
questão do aborto. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu
do=385885>. Acesso: 03 jun. 2019.
mulheres e de combate à violência contra as mulheres, mas quanto aos direitos
reprodutivos e o papel delas na liderança da Igreja permanecem com a visão
tradicional do Vaticano. Por isso, a Teologia Feminista desvinculou-se da TL e as
CDD não estão sob jurisdição da Igreja Católica.
A RCC, possui uma atuação político-partidária, que nas questões de gênero e
sexualidade atua na linha de frente na luta conta os direitos da população LGBT+ e
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Já a Teologia Feminista atua na
política por meio dos movimentos sociais, especialmente na defesa dos direitos das
mulheres. Outra questão percebida é que apesar de também apoiar a luta da
criminalização da homofobia e apoiar os direitos da população LGBT+, esta não é
sua pauta principal de militância. No interior do catolicismo brasileiro estão surgindo
grupos de católicos pela diversidade, mas em um caráter pastoral, espiritual, não
político como as CDD. Assim, a TL também não assume como pauta para a reflexão
a população LGBT+. Até mesmo no que se refere à questão da violência sofrida
pelos LGBT+, raros são os teólogos da libertação que ousam tratar do assunto, por
ser um tema extremamente polêmico no interior do catolicismo.
Referência
CARVALHO, Maristela Moreira de. Teologia (s) Feministas (s) e Movimentos (s)
Feminista (s) na América Latina e no Brasil: “origens” e memória. In: Seminário
Internacional Fazendo Gênero 7, 2006, Florianópolis. Gênero e Preconceitos.
Disponível em: <http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/M/Maristela_Moreira_de
_Carvalho_40.pdf>. Acesso: 8 jun. 2019.
CDD. Aborto: conversando a gente se entende. São Paulo: Católicas pelo Direito de
Decidir, 2014.
FONSECA, Bruno. Sobre gênero nas Escolas, Eros Biondini é a favor que as
pessoas sejam livres, mas não qualquer coisa que queiram. Disponível em:
<https://apublica.org/truco2016/sobre-genero-nas-escolas-eros-biondini-e-afavorque-
as-pessoas-sejam-livres-mas-nao-qualquer-coisaque-queiram/>. Acesso: 01 jun.
2019.
LEORATO, M. CEBs: gente que se faz gente na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1987.
PACE, V. Habemus Papam: Jorge Mário Bergoglio frente a crise sistêmica da Igreja
una, santa, católica e romana. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, v.
27, n. 2, p. 147, jul/dez, 2013.
SUENENS, L.J. O Espírito Santo, nossa esperança. São Paulo: Paulinas, 1975.
VIGIL, José María. Muitos pobres, muitas religiões – a opção pelos pobres: lugar
privilegiado para o diálogo entre as religiões. In: TOMITA, Luiza Etsuko; BARROS,
Marcelo; VIGIL, José Maria (Orgs.). Pluralismo e libertação: por uma teologia
latino-americana pluralista a partir da fé cristã. São Paulo: Paulinas, 2005. p. 17-31.