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XIII REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL

22 a 25 de Julho de 2019, Porto Alegre (RS)

Grupo de Trabalho: Gênero, Política e Religião: controvérsias contemporâneas

RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA E TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO:


DIVERGÊNCIAS EM TORNO DAS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE
NA ESFERA POLÍTICA

André Luís da Rosa,


Doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa Catarina
Introdução

A presente comunicação faz parte de uma pesquisa de doutorado, em sua


fase inicial, que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Peter Berger, ao analisar o fenômeno do pluralismo religioso
contemporâneo, apresenta duas faces: o avanço do fundamentalismo religioso, mas
também a religião como um possível instrumento emancipatório de transformação
social. Nesse sentido, essa pesquisa realizará uma análise comparativa entre dois
movimentos pertencentes à Igreja Católica, a Renovação Carismática Católica
(RCC) e a Teologia da Libertação (TL), no que se refere a atuação deles na esfera
política em relação às questões de gênero e sexualidade, pois um expressa ideias
de um movimento fundamentalista, enquanto outro está comprometido com a
transformação social. A RCC realiza uma interpretação da bíblia que compreende a
diversidade sexual como contrária à vontade de Deus, bem como reforça as figuras
bíblicas de obediência da mulher. Ela atua juntamente com a Frente Parlamentar
Evangélica, defendendo as mesmas bandeiras morais contra os avanços das pautas
dos movimentos feminista e LGBT+. Já a TL realiza uma leitura da bíblia a partir do
método histórico-crítico, realizando releituras da mesma, como a leitura feminista e
LGBT+ da bíblia. E ela, alinhada com os partidos de esquerda e os movimentos
sociais, está engajada em lutas pelos direitos humanos das mulheres e LGBTs.

O pluralismo religioso entre teologias hegemônicas e contra-hegemônicas: o


caso da Renovação Carismática Católica e da Teologia da Libertação

O catolicismo romano é ainda preponderante, mas perde a cada década sua


centralidade, configurando-se como a “religião da maioria dos brasileiros”, e não
mais a “religião dos brasileiros” (TEIXEIRA, 2013, p. 23). Para Antônio Flávio
Pierucci (2013, p. 50), o catolicismo em declínio indisfarçável é o traço mais forte e
determinante a marcar o panorama atual do campo religioso brasileiro. Mas foi
sobretudo a partir dos anos 80 que a porcentagem de católicos foi declinando cada
vez mais: 90% em 1980, 83,3% em 1991, 73,8% em 2000 e 64,6% em 2010 1
(TEIXEIRA, 2005, p. 15), ou seja, atualmente 123.280.172 de declarantes católicos
(TEIXEIRA, 2013, p. 24). Destaca-se que em 2010, segundo Marcelo Camurça, pela
primeira vez, a queda católica se deu de forma absoluta, ou seja, a população do
país cresceu 12,3% e o número de católicos diminuiu 1,4%, assim, em 2000 os
católicos eram 124,9 milhões numa população de 170 milhões e em 2010 passam a
ser 123,2 milhões numa população de 190, 7 milhões (CAMURÇA, 2013, p. 71).
Porém, para além dos dados do Censo, ao analisar a Igreja Católica no Brasil,
as recentes pesquisas possuem um dado em comum: é impossível falar de um tipo
ideal de catolicismo. Ele apresenta-se, segundo Carlos Rodrigues Brandão, como
uma religião que atinge atualmente os “limites quase extremos de pluripossibilidades
de pertença e de multialternativas de vivência individual” (BRANDÃO, 2013, p. 97).
Todavia, esta pluralidade é abrigada sobre um desejo de universalidade hegemônica
da instituição católica, como se depreende da clássica análise do filósofo Antônio
Gramsci (1978, p. 114):

cada religião, mesmo a católica (ou melhor, especialmente a católica,


primeiramente pelos seus esforços em permanecer unitária
“superficialmente” para não se despedaçar em igrejas nacionais e em
estratificações sociais) é na realidade uma multiplicidade de religiões
distintas e muitas vezes contraditórias: há um catolicismo dos camponeses,
um catolicismo dos pequenos burgueses e operários da cidade, um
catolicismo de mulheres e um catolicismo de intelectuais, também ele
variegado e desconexo.

Gramsci é um filósofo italiano, mas sua análise aplica-se perfeitamente ao


Brasil, pois, para Cecília Loreto Mariz, a queda na proporção de católicos parece
estar sendo acompanhada por um relativo reavivamento religioso, e mais ainda, por
uma intensificação da diversidade na experiência do ser católico (MARIZ, 2011, p.
53). Esta diversidade no interior da Igreja Católica não é captada pelo Censo, pois
este questiona a confissão religiosa: “qual a sua religião?”, mas não faz a pergunta:
“como você vive a sua religião?”. No caso do catolicismo, para Brandão, tão
importante quanto a pergunta: “você é católico?” é a pergunta: “e como você vive o
seu ser católico?” (BRANDÃO, 2013, p. 91), pois, conforme ele, “mais do que
qualquer outra alternativa cristã de fé pessoal, culto de crença e prática de vida, o

1 Os dados completos do IBGE podem ser conferidos em: IBGE. Censo Demográfico 2010:
características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
catolicismo de hoje abre-se a todas as alternativas” (BRANDÃO, 2013, p. 97).
Podendo-se sintetizar esta ideia com a imagem da socióloga Brenda Carranza, de a
Igreja Católica como “um imenso guarda-chuva sob o qual alberga-se uma imensa
diversidade de expressões religiosas” (CARRANZA, 2011, p. 74).
Por isso, para compreender a atual identidade da Igreja Católica romana no
Brasil, não se pode perder de vista o fato de que: “o desejo de catolicidade
permanece, mas se confronta sempre mais com uma ampla variedade de modos de
sentir e de ser católicos na sociedade contemporânea” (PACE, 2013, p. 147). Deste
modo, apresentam-se aqui os principais modos de ser católico no Brasil na atual
configuração da Igreja Católica.
Atualmente, no contexto do pós Concílio Vaticano II, dois movimentos
ganharam grande destaque no Brasil, tornando-se suas mais importantes
expressões: as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) ou a TL (Teologia da
Libertação), e a RCC (Renovação Carismática Católica). Faustino Teixeira os
classifica como catolicismos de reafiliados, pois, ambos, caracterizam-se como
movimentos de re-adesão ao catolicismo (TEIXEIRA, 2005, p. 20).
As CEBS pretendem ser mais que um mero movimento ou pastoral na Igreja
Católica; ela se compreende como um novo jeito de ser Igreja, na expressão do
cardeal Aloísio Lorscheider (LEORATO, 1987, p. 71). Surgiu entre os anos de 1964
e 1968, impulsionada pela Conferência do Episcopado Latino-Americano de
Medellín (1968), pela exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, que
deseja uma nova evangelização, pelo aggionarnamento desejado pelo Concílio
Vaticano II e confirmada na Conferência Latino-Americana de Puebla (1978). Ela
tomou uma postura crítica diante do regime militar, realizou uma opção preferencial
pelos pobres, buscou ser uma Igreja popular, leiga, centrada na leitura da bíblia
relacionada à vida política e social. Desenvolveu uma teologia própria, a Teologia da
Libertação, que por sua politização e críticas ao poder na Igreja, sofreu e ainda
sofre, grandes tensões com a Cúria Romana (RUBENS, 2008, p. 74-80).
A RCC, assim como as CEBs, não pretende ser apenas um movimento na
Igreja Católica, mas, segundo o Cardeal Suenes (1975, p. 157), ser uma corrente de
graça a animar toda a Igreja. Ela surgiu nos EUA, a partir de um grupo de jovens
que teve contato com o pentecostalismo (RANAGHAN, 1972, p. 20), e, no Brasil,
chegou através de dois sacerdotes jesuítas: os Padres Eduardo Dougherty e
Haroldo Rahm, na cidade de Campinas, São Paulo, entre o final da década de
sessenta e início da década de setenta do século XX (CARRANZA, 2000, p. 30-32).
O início da RCC foi marcado pela desconfiança da hierarquia, mas, em pouco
tempo, passou a ser vista com bons olhos, por ser um movimento conservador em
sua doutrina (PRANDI, 1997, p. 32). Da RCC originaram-se outras iniciativas que
chamam a atenção das ciências sociais, como as comunidades de vida e de aliança,
padres e pregadores carismáticos independentes do movimento da RCC, e outros
ministérios e associações livres. Porém, ambos bebem das mesmas fontes
ideológicas. Ainda ligado à RCC está outro fenômeno contemporâneo essencial para
se compreender o catolicismo: o catolicismo midiático, que faz uma opção
preferencial pela evangelização através da cultura midiática. Destacam-se o padre
Marcelo Rossi, a TV Canção Nova, a TV Século XXI e inúmeras rádios
(CARRANZA, 2009, p. 41-43). Sua doutrina essencial é a mesma de todo o
pentecostalismo: a crença de ser uma atualização de pentecostes, através do
batismo no Espírito Santo e da restauração dos carismas (JUANES, 1994, p. 25).

“Homem e mulher os criou”: gênero e sexualidade na Renovação Carismática


Católica

O sociólogo Emanuel Freitas da Silva (2018, p. 509) observa que a partir das
eleições de 2010, e ainda mais nas eleições de 2014, no que tange ao voto
presidencial, a RCC foi o segmento católico com maior crescimento de engajamento
das disputas eleitorais. Isso porque, desde 2010, vimos uma reposição dos temas na
agenda política da maioria dos grupos religiosos favorecendo as questões de cunho
moral e privado, o que fortalecera a já consolidada atuação de políticos ligados às
denominações evangélicas e, agora, favorecia a empreitada de políticos ligados à
RCC. Um dos motivos desse engajamento se dá pelo fato de que tais lideranças
creem-se como arautos de um dever moral de participar da política e de mudá-la,
sobretudo no que se refere ao avanço de pautas identificadas com os Direitos
Humanos ou com as minorias, entendidas por tais segmentos como ‘trevas’ a serem
combatidas pela participação política, encarada nos termos de uma ‘batalha
espiritual’.
Assim, na teologia da RCC a figura do demônio recebe grande destaque. Ela
resgata representações e concepções acerca das forças maléficas que
acompanham a própria história do cristianismo, entretanto, a identificação das forças
do mal está, sobretudo, nas entidades espirituais que compõem o panteão das
religiões afro-brasileiras e nas práticas consideradas imorais, como a
homossexualidade, chegando até a criminalização de movimentos sociais como o
feminista e o movimento LGBTI+. Assim, as práticas religiosas da RCC estão
orientadas à demonização do diferente, apoiados no que chamam de teologia do
combate espiritual. Essa mentalidade é difundida amplamente na atuação midiática
desses grupos na televisão e nas redes sociais, por exemplo, na TV Canção Nova,2
bem como em livros, músicas e, principalmente, nas pregações e orações em seus
grupos de oração e eventos massivos, em que são praticados ritos de libertação das
influências diabólicas.
Essa teologia exclusivista3 e de combate espiritual da RCC, também tem
fundamentado e motivado o crescimento da participação dos católicos carismáticos
na política. O movimento abriga, em sua estrutura institucional, um Ministério de Fé
e Política, que, segundo sua página oficial, “é o serviço dentro da Renovação
Carismática Católica para a evangelização da política, a partir da experiência do
Batismo no Espírito Santo”.4 Essa descrição demonstra que a RCC atua no campo
político tendo como base uma teologia ou visão metafísica, principalmente da
batalha entre Deus e o demônio, com o objetivo explícito de cristianizar a política,
ferindo, assim, a laicidade do Estado. Nesse sentido, a RCC adota bandeiras que,
grosso modo, ignoram a dimensão explicitamente socioeconômica da política,
fixando suas lutas em questões de teor moral, como: temas de bioética, a defesa do
ensino religioso confessional nas escolas públicas e o projeto escola sem partido,5
contra os direitos reprodutivos das mulheres,6 e contra os direitos da população
LGBTI+ e o ensino de estudos de gênero nas escolas (PORTELLA, 2011, p 650-
651). Por sua afinidade ideológica, os deputados da RCC fazem parte da Bancada

2 O próprio fundador da TV Canção Nova, padre Jonas Abib, sofreu um processo de um espírita por
intolerância religiosa e seu livro, chamado Sim, sim! Não, não!, que atacava as religiões afro-
brasileiras e o espiritismo, foi retirado de circulação (JORNAL DO SBT. Monsenhor Jonas Abib tem
venda de livro proibida. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HcwoGjq7grI>. Acesso:
11 ago. 2018.).
3 O paradigma teológico exclusivista defende que há apenas uma única religião verdadeira, todas as

outras são falsas, e fora dela não há salvação.


4 RCCBRASIL. Ministério de Fé e Política. Disponível em: <https://rccbrasil.org.br/institucional/fe-e-

politica.ht ml>. Acesso: 12 nov. 2018.


5 O deputado federal Flavinho (PSC), membro da RCC e do Ministério de Fé e Política, foi o relator do

projeto Escola Sem Partido.


6 Entre os anos de 2008 e 2010, a RCC promoveu uma mobilização nacional para a coleta de

assinaturas contra a aprovação do Projeto de Lei n. 1135/91, que consiste na descriminalização do


aborto e permite que a mulher até a décima segunda semana de gestação recorra ao SUS para
interrupção da gravidez. E, também, criou a campanha Brasil Vivo Sem Aborto (REIS, 2016, p. 101).
Evangélica, apoiando os mesmos projetos e, em algumas situações, até os mesmos
candidatos.7
Além dos elementos teológicos acima elencados, o movimento carismático
católico, em seu objetivo de reconquistar a hegemonia cultural católica no Brasil,
também resgata de forma fundamentalista, sem nenhum diálogo com os avanços
das ciências que tratam da sexualidade, a moral católica tradicional, baseada na
denominada lei natural, pois, segundo o padre Andreson Marçal, da Canção Nova:
“Nenhuma lei feita dos homens pode por isso, perturbar a norma escrita pelo
Criador, sem que a sociedade venha dramaticamente ferida nisto que constitui o seu
mesmo fundamento basilar. Esquecê-lo significaria demolir a família, penalizar os
filhos e render incerto o futuro da
sociedade”.8 Visão esta fundamentada no
Catecismo da Igreja Católica, número 1979,
que reza: “a lei natural é imutável,
permanece através da história. As regras
que a exprimem são substancialmente
sempre válidas. Ela é uma base necessária
para a edificação das regras morais e para a

lei civil”. Imagem 1: Disponível em: <https://twitter.com/editora


cn/status/712378575668830208>. Acesso: 01 jun.
Sob a ótica da lei natural, a 2019.

diversidade sexual trata-se de uma


desordem na criação divina. Conforme o Catecismo da Igreja Católica, no número
2357: “a tradição sempre declarou que os atos de homossexualidade são
intrinsecamente desordenados. São contrários à lei natural. Fecham o ato sexual ao
dom da vida. Não procedem de uma complementaridade afetiva e sexual verdadeira.
Em caso algum podem ser aprovados”. Assim, já que a diversidade sexual não é
natural, a RCC busca explicar as ‘raízes’ dela com múltiplas causas, como afirma
Felipe Aquino, formador da Canção Nova:

7 Em mais de uma ocasião a RCC apoiou os candidatos oficiais da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), como, por exemplo, na eleição de 2016, quando apoiou o Bispo da IURD Marcelo Crivella
(PRB) para a prefeitura do Rio de Janeiro. E na eleição presidencial de 2018, seus deputados
apoiaram no segundo turno o candidato Jair Messias Bolsonaro (PSL), que também era apoiado
oficialmente pela IURD.
8 MARÇAL, Anderson. O fundamento do matrimonio na lei natural. Disponível em: <https://blog.ca

ncaonova.com/padreanderson/tag/lei-natural-do-matrimonio/>. Acesso: 30 mai. 2019.


há fortes evidências de que ninguém nasce com a tendência ao
homossexualismo, mas que esse desequilíbrio se desenvolve na criança ou
no jovem por problemas familiares (separação, brigas etc.) Obsessão da
mãe pelo filho, desinteresse e grosseria do pai, forte insegurança,
experiência sexual fracassada ou traumática na adolescência, educação
sexual mal conduzida e muitas outras causas não bem conhecidas. 9

Outras ‘causas’ para o desenvolvimento da homossexualidade são, segundo


o padre Alírio Pedrini (2007, p. 118), por exemplo, problemas congênitos, problemas
de formação física, como ele expressa: “na gestação no seio materno, houve alguma
deficiência física, e a pessoa nasce com essa tendência. Trata-se de uma
deficiência no seu físico e no sistema hormonal sexual”. Outra causa, segundo
Pedrini (2007, p. 120), é que a homossexualidade é um ‘vício adquirido’, em que as
pessoas começam a praticar e por repetirem muitas vezes o psiquismo se apega a
este prazer e acaba se viciando. Também é comum na RCC relacionar a diversidade
sexual a uma ação demoníaca, como se demonstra na oração de Ironi Spuldaro em
um evento de cura e libertação na Canção Nova:

em nome do poder de todas as chagas do corpo do cordeiro, pelo sangue


aspergido em cada uma dessas chagas como fonte de exorcismo, de
benção, de cura e libertação. Pela intercessão das lágrimas de sangue da
Virgem Maria, nós ordenamos que sejam derrubadas as muralhas do apego
a dinheiro e a pessoas, a cargos e a bens materiais, ao vício, ao alcoolismo,
a droga, o fumo, a escravidão e ao vício da sexualidade desordenada, dos
distúrbios e desiquilíbrios sexuais, das impurezas e seduções, das
aberrações sexuais e do sexo contra a natureza, das orgias e fantasias, das
taras e manias, do homossexualismo e do lesbianismo.10 (Grifo nosso).

Nesse sentido, a RCC promove diversos eventos de cura e libertação, com


sessões de exorcismo do “espírito da homossexualidade”, bem como retiros de cura
interior, que visam curar as pessoas cuja homossexualidade possui uma causa
psicológica, tendo como objetivo conformar todas as pessoas àquilo que é a norma
da natureza, tal como diz o padre Jonas Abib, fundador da Canção Nova, dirigindo-
se aos homossexuais masculinos: “o homem é homem porque Deus o criou homem,
e é para ele viver toda a sua vida como homem: a sua afetividade masculina, a sua
sexualidade masculina. O restante tudo é desvio”. 11

9 AQUINO, Felipe. Os homossexuais são nossos irmãos. Disponível em: <https://formacao.cancao


nova.com/afetividade-e-sexualidade/os-homossexuais-sao-nossos-irmaos/>. Acesso: 30 mai. 2019.
10 SPULDARO, Ironi. Discurso de ódio e intolerância religiosa na Canção Nova. Disponível em:

<https://www.facebook.com/watch/?v=1267657489924153>. Acesso: 30 mai. 2019.


11 ABIB, Jonas. Afetividade e desvio da sexualidade. Disponível em: <https://www.youtube.com/wat

ch?v=rtb4mzqvwbk&t=493s>. Acesso: 30 mai. 2019.


Já, quanto ao movimento feminista, o principal embate da RCC fundamentada
na lei natural, diz respeito ao direitos reprodutivos das mulheres, como explica padre
Jonas Eduardo, no blog da Canção Nova: “o direito não pode prescindir dos ditames
da lei natural (exigências éticas intrínsecas à natureza humana). Matar um inocente
é antinatural (nossa vida não nos pertence, é-nos dada e tirada por Alguém maior), e
portanto pecado grave (se cometido de modo livre e consciente) e justamente
condenável no âmbito cívil (crime) e eclesiástico (excomunhão)”.12 Para ele, é um
dado científico que a partir do momento da fecundação um novo ser humano se faz
presente em nosso mundo e em nossa história, e essa nova vida já possui alma e foi
criada por Deus, por isso, o aborto não se justifica em nenhuma situação. Padre
Jonas Eduardo defende até, por exemplo, a continuidade da gestação mesmo em
uma menina de 9 anos que foi estuprada, como afirma: “é uma falácia afirmar que a
gravidez aos 9 anos põe necessariamente a menina em risco de vida – os dados da
literatura médica dizem exatamente o contrário; p.ex., recentemente uma menina
deu à luz aos 11 anos; aos 14/05/1939 a peruana Lina Medina deu à luz aos 5 anos
e 7 meses de idade”.13
Deve-se observar que a RCC é um movimento composto em grande parte por
mulheres, seja em sua membresia ou liderança. Todavia é antifeminista,
colaborando para a submissão das mulheres ao reforçar a imagem bíblica da mulher
silenciosa, sofredora e obediente, baseando-se na devoção mariana. Assim, na
RCC, segundo Castro (2013, p. 148), “são valorizadas a submissão e a docilidade,
esses valores seriam associados às mulheres em oposição aos atributos masculinos
[...] o marianismo normatizaria papéis para homens e mulheres cristãos e seria uma
forma de demarcar os espaços reservados às mulheres, ou seja, as posições que
podem ocupar na sociedade”. No pensamento da RCC essa diferença entre homens
e mulheres também é natural e da vontade de Deus, pois, conforme Maria Ivone
Ferreira Ranieri, coordenadora da RCC-PR, Deus ama todos de modo igual, mas em
suas diferenças, sendo que homens e mulheres são naturalmente diferentes porque
Deus os criou para completarem-se. Quanto ao papel da mulher, ela afirma: “o
grande poder da mulher é viver esta diferença, não para competir ou se afastar do
homem, mas exercer o poder da sua feminilidade e viver o amor no matrimônio, na

12 EDUARDO, Jonas. Resposta a Frei Betto. Disponível em: <https://blog.cancaonova.com/felipeaqu


ino/2009/03/20/direito-ao-aborto/>. Acesso: 30 mai. 2019.
13 EDUARDO, acesso: 30 mai, 2019.
maternidade, na vida religiosa consagrada, na convivência familiar, profissional e
social”.14
Com o objetivo de restaurar a hegemonia cultural católica no Brasil, a atuação
política dos deputados da RCC tem proposto diversos projetos de lei baseados na
moral tradicional católica, como: orientações acerca do modo de proceder em
pesquisas com células-tronco, o uso dos métodos contraceptivos, proibições acerca
da reprodução humana, políticas públicas para mulheres que sofreram estupro,
assistência psicológica para mulheres que praticaram o aborto e para adolescentes
que ficaram grávidas. Os estudiosos do fenômeno religioso Marcos Vinicius de
Freitas Reis e Fábyo Py Murta de Almeida (2015, p. 82-84), realizaram um projeto de
pesquisa analisando os projetos de lei dos deputados da RCC. Aqui,
fundamentando-se neles, vão-se apresentar alguns relacionados à sexualidade. Por
exemplo, quanto ao caso das Clínicas de Reprodução Humana, o deputado
Salvador Zimbaldi propôs, no PL n. 4889/2005, que cada mulher poderia ter seu
óvulo fecundado apenas uma vez e com a permissão do Ministério da Saúde, pois
assim “estaremos evitando o aborto indiscriminado, que é feito através da chamada
reprodução terapêutica, pois é do conhecimento de todos que a partir da fecundação
do óvulo já existe vida pré-concebida”. Também o PL n. 5058/2005, proposto pelo
Deputado Federal Osmânio Perreira (PSDB-MG), que defende “a eutanásia e a
interrupção voluntária da gravidez como crimes hediondos, em qualquer caso”.
Assim, de acordo com o projeto, o Estado puniria qualquer entidade ou pessoa que
cometesse o aborto, e até mesmo quem promovesse palestras ou anúncios aludindo
à sua defesa.
O Ex-Deputado Estadual Carlos Dias (PP-RJ), em 2002, propôs o Projeto de
Lei n. 3163/2002, que definia que “é vedado ao Poder Público estimular por qualquer
meio, a distribuição e utilização de preservativos”. O projeto argumenta que a
prática do uso dos preservativos fere os ‘valores da família’, pois, para o catolicismo,
a fidelidade no casamento, a castidade e a abstinência sexual são os melhores
meios de impedir o avanço das Infecções Sexualmente Transmissíveis. O mesmo
deputado também propôs o Projeto de Lei n. 761/2001, no qual queria tornar
“proibida a comercialização de qualquer tipo de material pornográfico ou erótico [...]
bem como o funcionamento de espetáculos que explorem apresentações

14RANIERI, Maria Ivone Ferreira. O poder da mulher. Disponível em: <https://www.rccbrasil.org.br/e


spiritualidade-e-formacao/index.php/artigos/1944-o-poder-da-mulher>. Acesso: 31 mai. 2019.
essencialmente pornográficas ou promovam festas de nudismo”. Para o projeto,
pessoas ou estabelecimentos que fossem pegos estimulando a pornografia
poderiam ser multados ou até presos. Dessa forma, em todos esses projetos
analisados por Reis e Almeida (2015, p. 85-87), as autoridades públicas estariam
incumbidas de realizar uma fiscalização para que a moralidade católica seja
cumprida por toda a sociedade.
E, por fim, não se pode deixar
de citar que a RCC foi linha de frente
na luta contra a implementação dos
estudos de gênero no Plano Nacional
de Educação e pela aprovação do
projeto Escola Sem Partido. O

Deputado Eros Biondini (PROS-MG) Imagem 2: Disponível em: <http://www.rccmaringa.com.br/www


/site/index.php?sessao=1d480f73defe1d&pagina=1&id=128&ca
foi o autor do Projeto de Lei n. t=>. Acesso: 01 jun. 2019.

2731/2015, que pretendia incluir no


Plano Nacional de Educação a proibição à “utilização de qualquer tipo de ideologia
na educação nacional, em especial o uso da ideologia de gênero, orientação sexual,
identidade de gênero e seus derivados, sob qualquer pretexto.” O texto previa
congelamento dos repasses em educação para qualquer município que não
cumprisse a determinação, demissão de professores que não cumprissem a
proibição e até prisão de seis meses a dois anos. O mesmo deputado foi coautor
do Projeto de Decreto Legislativo 395/2016 que pretendia proibir que travestis e
transsexuais utilizassem o nome social na administração pública federal, autarquias
e fundações – esse direito foi adquirido através do Decreto 8.727 de 2016, assinado
pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).15 E o Deputado Flavinho (PSC-SP) foi o
relator do Projeto de Lei 7180/14, o projeto Escola Sem Partido, que também prevê
a proibição, no ensino no Brasil, da “ideologia de gênero”, do termo “gênero” ou

15 FONSECA, Bruno. Sobre gênero nas Escolas, Eros Biondini é a favor que as pessoas sejam
livres, mas não qualquer coisa que queiram. Disponível em: <https://apublica.org/truco2016/sobre-
genero-nas-escolas-eros-biondini-e-a-favor-que-as-pessoas-sejam-livres-mas-nao-qualquer-coisaque
-queiram/>. Acesso: 01 jun. 2019.
“orientação sexual”, bem como que “o Poder Público não se intrometerá no processo
de amadurecimento sexual dos alunos”.16
Para a RCC, os estudos de gênero tratam-se de uma ‘ideologia perversa’,
pois, para eles, gênero é “um conceito que vem para substituir o uso da terminologia
‘sexo’ e refere-se a um papel socialmente construído. Ou seja, nesta ideologia, sexo
é uma definição restrita para identificação de aspectos biológicos e anatômicos,
enquanto, gênero configura-se em uma descrição mais ampla do papel sexual do
indivíduo, deixando de lado o enquadramento “restrito” da designação Homem ou
Mulher”.17 Nesse sentido, para o movimento:

além dessa afronta à perfeita criação de Deus, a sexualidade determinada


por ‘gênero’ desconstrói todo o conceito familiar estabelecido por união
estável entre um homem e uma mulher. Para tanto, passará a ser
obrigatório nas escolas o ensino fundamentado na ‘Igualdade de gênero e
educação sexual’, segundo essa nova orientação, passando a implantar
desde a infância essa deformada cultura da permissividade sexual. Ao nos
deparar com este cenário, queremos de forma urgente, mobilizar todos os
carismáticos do Brasil a intensificarem as orações, clamando o poderoso
sangue misericordioso de Deus sobre o nosso país e sobre todos os
políticos que nos representam.18

Assim, a RCC promoveu uma verdadeira ‘cruzada’ em tom de pânico moral


contra o que denominaram ideologia de gênero. Seus discursos, como reflete Silva
(2018, p. 523), reforçam uma perspectiva conservadora da vida social. Ao orientar
os fiéis para uma postura de intolerância diante da diversidade, em especial a de
gênero e de orientação sexual, os líderes religiosos essencializam um aspecto
natural, retirando os componentes históricos que engendram as relações sociais
entre indivíduos. Parte significativa do sucesso desse discurso se efetiva na medida
em que ele se ergue a partir do reforço da naturalização do status quo e da
aceitação das diferenças como bases para a desigualdade.

16 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Relator da proposta do Escola sem Partido apresenta novo
texto. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/educacao-e-cultura/56488
0-relator-da-proposta-do-escola-sem-partido-apresenta-novo-texto.html>.
Acesso: 01 jun. 2019.
17 RCCBRASIL. Ideologia de gênero: proposta entra em votação. Disponível em:
<https://www.rccbrasil.or g.br/institucional/index.php/artigos/911-ideologia-de-genero-proposta-entra-
em-votacao->. Acesso: 01 jun. 2019.
18 RCCBRASIL, acesso: 01 jun. 2019.
“Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus”: gênero e sexualidade na
Teologia Feminista da Libertação

A Teologia da Libertação nasceu na Igreja Católica no final da década de


sessenta e início da década de setenta, como tentativa de resposta à contradição
existente na América Latina entre a pobreza extrema e a fé cristã da maioria de sua
população (NORONHA, 2012, p. 186). A principal expressão religiosa da TL são as
Comunidades Eclesiais de Base (CEB´s), que possuem como princípio uma opção
preferencial pelos mais pobres e são engajadas nas lutas de libertação, por
exemplo, contra a ditadura militar, pela causa dos sem terra, dos sem teto, dos
imigrantes. Assim, as CEBs e a TL possuem
preocupações que não giram em torno de uma
afirmação confessional-doutrinária para a
sociedade, mas se pautam em projetos que
transcendem a questão religiosa em si e
defendem a separação entre a esfera política e a
esfera religiosa, levantam bandeiras políticas
como a demarcação de terras indígenas, a
reforma agrária e a redistribuição de renda.
Todavia, em seu período inicial, toda a dinâmica

reflexiva da Teologia da Libertação voltou-se Imagem 3: Disponível em: <http://www.mobiliza


dores.org.br/noticias/os-argumentos-dascatolica
para a perspectiva do pobre e de sua libertação. s-brasileiras-que-ha-25-anos-defendem-oabort
o/>. Acesso: 07 jun. 2019.
Em razão da atenção dedicada a esse tema,
outros ângulos acabaram não entrando na pauta da reflexão, como o das culturas,
das religiões e das relações de gênero (TEIXEIRA, 2008, p. 27). Porém, a partir das
vivências nas relações com seus interlocutores na realidade latino-americana, como
os povos indígenas, as religiões de matriz africana, os militantes ateus que
participavam nas lutas populares e as mulheres do movimento feminista, a TL
passou a desenvolver uma atitude de respeito e valorização das diferenças (VIGIL,
2005, p. 71).
Segundo a socióloga Neiva Furlin (2011, p. 140), a Teologia Feminista
emerge como uma ‘outra voz’ no interior de um campo de saber majoritariamente
masculino. É uma voz que resulta da consciência de um sujeito reflexivo, neste
caso, de mulheres teólogas que passam a questionar os lugares que socialmente
lhes foram outorgados como legítimos por um único discurso teológico produzido,
em geral, por homens celibatários. Nesse sentido, a Teologia Feminista integra uma
grande rede de saberes que emergiram em diferentes áreas acadêmicas
problematizando e desconstruindo os discursos hegemônicos androcêntricos.
Saberes que emergem da consciência de uma experiência compartilhada de
dominação, invisibilidade e discriminação vivida pelas mulheres no interior da Igreja.
Já no século XIX surge a primeira elaboração feminista de interpretação da
bíblia, feita por mulheres especialistas na área. Elisabeth Cady Stanton publica,
entre 1895 e 1898, nos Estados Unidos, um projeto coletivo de revisão e de
reinterpretação da bíblia. Esse trabalho, publicado sob o título The Woman’s Bible, é
considerado o ponto de partida de um longo e fragmentado processo que levará, no
final dos anos 60 do século XX, à constituição de uma Teologia Feminista
(ROSADO, 2001, p. 81). Porém, segundo a historiadora Maristela Moreira de
Carvalho (2006, p. 4), a teologia feminista latino-americana narra a história de sua
origem buscando certo afastamento do movimento feminista norte-americano e
europeu, por identificá-lo a um movimento “burguês e de Primeiro Mundo”, ou seja,
coisa de mulheres que estavam voltadas mais para as lutas individuais, sem
preocupações com outras mulheres, em especial as dos setores populares.
Assim, o desenvolvimento da Teologia Feminista no Brasil remete suas
origens à década de 1980, sinalizando a sua relação com a Teologia da Libertação e
com as CEBs, pois, segundo Leonardo Boff (1996, p. 66):

houve um processo ligado aos cristãos de base e à Tdl que está elaborando
e difundindo a Teologia feminista da Libertação. Começou-se a descobrir a
mulher como sujeito histórico oprimido e discriminado, dominado pelo
machismo, pela cultura patriarcal e também pelo colonialismo capitalista
ocidental.

Nesse sentido, as décadas de 1960 a 1980 foram marcadas não apenas pela
grande mobilização das mulheres na luta pelos direitos civis, nos movimentos
populares urbanos e rurais, mas também, no âmbito religioso, tanto na Igreja
Católica quanto em certas Igrejas Evangélicas, pela formação e pela difusão das
CEB’s, na qual setores importantes da população feminina católica foram
incorporados ao projeto de constituição de uma ‘Igreja dos Pobres’, sendo este o
contexto do início da produção teológica feminista no continente. Ainda que o
acesso das mulheres à teologia seja somente na década de 1980, momento
posterior à incorporação das mulheres nas CEBs e ao surgimento da Teologia da
Libertação, é este mesmo processo que mobiliza católicas - leigas das classes
populares e religiosas – na constituição das Comunidades Eclesiais de Base e
acaba por integrar também algumas mulheres no processo de elaboração teológica
(CARVALHO, 2006, p. 3).
Mas, Ana Ester Pádua Freire (2015, p. 47), analisa que em seu
desenvolvimento histórico, conforme a Teologia Feminista foi aproximando-se das
abordagens feministas, ela foi gradativamente afastando-se da Teologia da
Libertação, pois, o conceito de opressão sociopolítica da TL não era suficiente para
pensar a igualdade de gênero da teologia feminista. Gebara (2006, p. 269) explica
que o clamor da Teologia da Libertação por justiça social não incluía justiça e
igualdade de gênero, pois a TL permaneceu encerrada em um ideário abstrato, não
enfrentando a realidade colocada pela concretude da corporeidade e do sexo.
Gebara não nega que a Teologia Feminista inspirou-se na Teologia da Libertação
em muitos aspectos, apenas destaca que devido aos diferentes temas que trabalha
e as alianças com o movimento feminista, ela tem se afastado da ortodoxia da
Teologia da Libertação, desenvolvendo uma nova epistemologia. Nas palavras de
Regina Soares Jurkewicz, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir,
referindo-se à Teologia da Libertação: “Nós falávamos dos pobres, mas não
olhávamos para as mulheres”.19
A principal organização que tem atuado
na luta pelos direitos das mulheres a partir de
um discurso teológico católico é a ONG
Católicas Pelo Direito de Decidir (CDD). Esta
organização tem tido um papel central no
trabalho realizado para questionar o discurso
do conservadorismo católico no campo dos
direitos sexuais e reprodutivos na América
Latina, e em particular nos casos do México,

Imagem 4: Disponível em: <http://catolicas.org.br/n Colômbia e Brasil. Conforme Alba Rubial


ovidades/2809-dia-de-luta-pela-descriminalizacao-
do-aborto-na-america-latina-e-caribe/>. Acesso: 07
jun. 2019.
19MOTA, Camilla Veras. Os argumentos das católicas brasileiras que há 25 anos defendem o
aborto. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42372359>. Acesso: 02 jun. 2019.
(2014, p. 127-128), essa organização apresenta um discurso dissidente da
hierarquia católica, que interpela o catolicismo a partir de seu interior, e desestabiliza
a ideia de que a única interpretação congruente com a tradição católica é a defesa
do modelo tradicional de família e a consequente proibição do aborto e a resistência
ao avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. De modo semelhante, a perspectiva
trazida por essa organização tem tido um papel fundamental na construção do
direito ao aborto em relação à liberdade de consciência e na demanda pela laicidade
das políticas públicas.
Para as CDD, na perspectiva da teologia feminista, não há na bíblia “uma só
palavra a respeito de praticar ou não a limitação da natalidade [...] também não
encontramos leis sobre o aborto, nem a favor, nem contra a sua legalização” (CDD,
2014, p. 7). Por tanto, para elas, a bíblia não pode ser tomada como um livro de
perguntas e respostas para cada situação da vida, por isso, elas recorrem à
liberdade de consciência e afirmam que: “é preciso usar a inteligência e todas as
capacidades humanas para entender o que Deus quer em cada época e em cada
situação que enfrentamos” (CDD, 2014, p. 8). Também na tradição da teologia
católica sempre houve divergências quanto ao início da vida humana, quando o feto
‘recebe’ a alma. Por exemplo, Tertuliano condenava o aborto em todas as situações,
já Santo Agostinho considerava que o aborto não poderia ser considerado um
homicídio, pois não se poderia dizer que existia uma alma em um corpo que ainda
carece de sensação. Santo Tomás de Aquino, no séc. XIII, afirmava que a união
ente a alma e o corpo acontece 40 dias depois da concepção para homens e 80
para mulheres, por isso, o aborto antes desse período também não era homicídio.
Assim, é muito recente a condenação do aborto em todos os casos, que se deu
apenas com Pio IX, ao decretar que quem praticar o aborto em qualquer
circunstância deverá ser excomungado da Igreja (CDD, 2014, p. 13-20). Assim, as
Católicas enfatizam o caráter histórico da Igreja Católica, que mudou de posição em
diversos casos, como o da escravidão, podendo também rever sua posição sobre o
aborto, já que ele não se trata de um dogma de fé, nem possui fundamentação
bíblica, é apenas uma norma disciplinar de uma igreja patriarcal.
Baseadas nesta concepção teológica, as CDD tem atuado junto aos
movimentos feministas em todas as suas pautas, especialmente as relacionadas aos
direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Mesmo que as articuladoras saíram
das CEB’s, mas o CDD não está sob a custódia da hierarquia católica, atuando
como uma ONG, com trabalhos em parceria com o Ministério da Saúde e,
especialmente, a Coordenadoria dos Direitos das Mulheres, organismos
internacionais, assim como outras instituições, setores da sociedade civil e veículos
da mídia brasileira (BRITES, 2014, p. 45). Elas atuam em organismos ecumênicos e
civis por meio de formações, encontros, produção de pesquisas e materiais. Mas,
diferente da RCC que atua por meio da política partidária, as CDD atuam nos
movimentos sociais, fazendo presença em todas as grandes manifestações de
mulheres. Mais recentemente, na audiência pública sobre a legalização do aborto,
as CDD estiveram representadas por Maria José Rosado Nunes, que proclamou:
“imoral é que outros decidam sobre o que nós mulheres podemos ou não fazer dos
nossos corpos, da nossa capacidade reprodutiva, da nossa vida. O Estado, a Igreja
ou qualquer outra instância não pode decidir sobre isso”.20

Considerações finais

Desde a década de setenta, as ciências humanas já apontavam as diferenças


dos movimentos aqui analisados, mas, na última década, essas diferenças
aumentaram ainda mais, principalmente por causa da inserção da RCC na esfera
política e do desenvolvimento de teologias contextuais por teólog@s da libertação
(teologia pluralista das religiões, teologia negra, teologia feminista, teologia queer,
teologia ecológica). Portanto, a mesma instituição religiosa, a Igreja Católica, por
intermédio da RCC e da TL, abriga duas respostas, não só diferentes, mas opostas
entre si sobre diversas questões. A RCC na linha da resistência, do exclusivismo, do
fundamentalismo, da fidelidade à tradição, com discursos e práticas violentas e
intolerantes; e a TL dialogando com a modernidade, com as diferenças, com todas
as culturas, religiões e movimentos sociais.
Porém, quanto às questões de gênero e sexualidade, percebeu-se nesta
pesquisa que, as diferenças entre a RCC e a TL (centrada na categoria do pobre
socioeconômico e que pretende se manter fiel à hierarquia católica) não são tão
grandes, ou praticamente não existem, apenas o modo como abordam a questão
são diferentes. A TL possui um discurso de defesa dos direitos e da igualdade das

20STF. Católicas pelo Direito de Decidir defendem não intromissão do Estado ou da Igreja na
questão do aborto. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteu
do=385885>. Acesso: 03 jun. 2019.
mulheres e de combate à violência contra as mulheres, mas quanto aos direitos
reprodutivos e o papel delas na liderança da Igreja permanecem com a visão
tradicional do Vaticano. Por isso, a Teologia Feminista desvinculou-se da TL e as
CDD não estão sob jurisdição da Igreja Católica.
A RCC, possui uma atuação político-partidária, que nas questões de gênero e
sexualidade atua na linha de frente na luta conta os direitos da população LGBT+ e
dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Já a Teologia Feminista atua na
política por meio dos movimentos sociais, especialmente na defesa dos direitos das
mulheres. Outra questão percebida é que apesar de também apoiar a luta da
criminalização da homofobia e apoiar os direitos da população LGBT+, esta não é
sua pauta principal de militância. No interior do catolicismo brasileiro estão surgindo
grupos de católicos pela diversidade, mas em um caráter pastoral, espiritual, não
político como as CDD. Assim, a TL também não assume como pauta para a reflexão
a população LGBT+. Até mesmo no que se refere à questão da violência sofrida
pelos LGBT+, raros são os teólogos da libertação que ousam tratar do assunto, por
ser um tema extremamente polêmico no interior do catolicismo.

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