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Análise Dos Espelhos PDF
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RESUMO: Esse artigo realiza uma leitura da representação do espelho nos contos
homônimos de Machado de Assis, Guimarães Rosa e José J. Veiga, a fim de evidenciar
a dicotomia entre instrumento do autoconhecimento e de afirmação da vaidade. Dessa
forma, no conto de Machado, o autoconhecimento conclui o caráter dominante da alma
exterior. Rosa desenvolve o resgate do ser escondido atrás das máscaras da aparência, a
definição da identidade pela alma interior. J. J. Veiga, por sua vez, desloca o foco
narrativo para o objeto, mostrando-o capaz de revelar a alma interior. Logo, considera-
se que o espelho expõe o desdobramento do sujeito entre corpo e consciência de si.
PALAVRAS-CHAVE: Espelho; Aparência; Alma exterior; Alma interior.
ABSTRACT: This article creates a reading about the mirror’s representation on the
homonym short stories of Machado de Assis, Guimarães Rosa e José J. Veiga, in order
to point out the dichotomy between instrument of self knowing and vanity’s affirmation.
In this sense, in Machado’s short story, the self knowing concludes the exterior soul
dominant character. Rosa develops the identity recover hiding behind the appearance
mask, the identity definition through interior soul. J. J. Veiga, in turn, dislocates the
narrative focus to the object, showing it capable of revealing the interior soul. Hence, it
assumes that mirror exposes subject deployment between body and self-consciousness.
KEYWORDS: Mirror; Appearance; Exterior soul; Interior soul.
1. Introdução
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.
Duvida? Quando nada acontece, há um
milagre que não estamos vendo.
(João Guimarães Rosa)
1
Graduada em Letras Português/Inglês – UFRGS. priscilaligoski@yahoo.com.br
Estação Literária
Londrina, Vagão-volume 8 parte B, p. 181-191, dez. 2011
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ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL
Priscila Ligoski (UFRGS)
IMAGENS NO ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA E JOSÉ J. VEIGA
2. Espelho do mundo
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alcançado incitou traços de vaidade à postura da personagem, que fizeram com que a
alma exterior se sobrepusesse à essência do ser.
No próximo episódio narrado, Tia Marcolina parte para visitar uma das filhas
que se encontrava doente. Em decorrência disso, os escravos decidiram fugir, e Jacobina
ficou desprovido do olhar do outro para lhe reconhecer e admirar a aparência obtida
através da farda. Ao fim de oito dias, Jacobina assevera ter descoberto a solução para os
dias de aflição: o espelho. Aconteceu que a personagem lembrou de olhar-se no espelho,
coisa que não havia feito até então, e enxergou uma imagem difusa, vaga, sem nitidez.
Acerca disso comenta: “A realidade das leis da física não permite negar que o espelho
reproduziu-me textualmente (...) mas tal não foi a minha sensação” (Assis 2006: 142) É
mister destacar que a percepção e os sentimentos da personagem estão alterados devido
à falta da natureza interior, o que faz com que nem ele próprio se reconheça a menos
que esteja usando a nova identidade: a farda de alferes. E foi o que impulsivamente
decidiu fazer.
Vestido com a farda, Jacobina olhou-se novamente no espelho e, imediatamente,
a imagem tornou-se nítida e integral. Isto é, a alma exterior havia sobrevivido ao
momento de privação ao olhar do outro e havia, então, ficado cara a cara com seu
principal aliado - o espelho -, na tarefa de se sobrepor à alma interior. Tal objeto supria
o vazio deixado pelos admiradores, assim como também revelava para Jacobina aquilo
que os outros já haviam percebido: o parecer detinha maior importância do que a
primeira natureza do ser. Entende-se possível asseverar, então, que Jacobina encontrou a
fonte para o amor próprio que o faria existir e que, por conseguinte, fez reconhecer-se: o
espelho.
Dessa forma, ressalta-se que O espelho de Machado tem papel de destaque no
cenário literário enquanto revelação das especificidades delimitadoras da essência da
vida em sociedade. Haja vista que o elemento refletor faz com que a personagem
Jacobina ganhe consciência da própria condição e, finalmente, perceba que a sociedade
vive numa atmosfera disposta a acolher aqueles que atraem admiração para si, e, em
decorrência disso, privilegia uma vaidade ilusória. Interessa salientar que ao obter
consciência do universo de alienação, a atitude de Jacobina não é a de rebelar-se, mas
sim de conformar-se. Portanto, o aprendizado adquirido através da experiência
vivenciada não serve como impulso para que haja resgate da alma interior; pelo
contrário, o julgamento construído por meio do conhecimento é voltado para assumir
postura de aceitação e submissão às normas da aparência social. Tal atitude pode
parecer primeiramente ingênua, todavia, pode-se também asseverar que tal posição
adquire tom de cinismo, uma vez que se julga estar a obra pautada na exposição e na
discussão de questões relacionadas à essência do ser em contraponto aos dilemas
sociais.
A partir desse contexto, conclui-se que a inserção do relevante objeto no conto
presta a indispensável função de mostrar para a própria personagem o poder da
aparência e, por conseguinte, contribuir para que a natureza interior desapareça, e a
alma exterior absorva definitivamente a caracterização como aquela que dá razão à
existência do ser. Diante disso, Alfredo Bosi elucida no artigo A máscara e a fenda:
Como mostra Bosi, Jacobina recobra sua alma quando se vê no espelho. Assim,
confirma-se o conceito de que há duas almas, dois princípios vitais. Importa o modo
como o indivíduo se pensa e crê ser isso ou aquilo. Importa também o modo como é
visto pelos outros. Portanto, o aprendizado de Jacobina passa pela descoberta da
dimensão essencial da alma exterior. Sem o laço social, sem o retorno dado pelos
outros, o indivíduo deixa de existir para os outros, passa meramente a sobreviver.
Destarte, o papel primordial desempenhado pelo espelho, no conto de Machado,
é o de servir como instrumento revelador do engodo trazido pela vaidade da
personagem e, em decorrência disso, o desprestígio da identidade do sujeito perante a
sociedade. Sendo assim, assevera-se que na caracterização da duplicidade da
personagem, ou seja, na sua dicotomia, desvendada através do espelho, entre ser e
parecer, o artefato mostrou aquilo que era dominante e, portanto, o que era necessário
para que ela existisse: a aparência social apreendida através da farda de alferes.
Portanto, tendo como base a perspectiva proposta por Padre Antônio Vieira, entende-se
que esse conto apresenta predominância da discussão acerca do espelho como revelação
do caráter vão do amor próprio, o qual, segundo Vieira, é a raiz de todos os problemas.
4. O espelho do autoconhecimento
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fenômenos; sendo então capaz de produzir, a partir dos dados concretos (positivos), a
verdadeira ciência.
Dando seguimento ao conto, é apresentando o momento em que a personagem
confronta-se com o elemento refletor:
Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo
contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos – um
de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam
jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano,
desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me
náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E
era – logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que algum dia irei
esquecer essa revelação? (Rosa 2005: 115)
O último autor participante desse estudo é José J. Veiga, cuja entrada nessa
discussão se mostra relevante pelo fato de ter publicado livro de contos intitulado
Objetos Turbulentos (1997), onde a primeira história narrada recebe o nome de Espelho.
Interessa esclarecer que não é simplesmente pelo fato de apresentar a mesma
denominação dos contos escritos por outros autores, como Machado e Rosa, que
constitui a tríade perspectiva. A justificativa vai além disso, visto que muito já foi
escrito acerca desse misterioso objeto que permeia o imaginário no universo da
literatura; portanto, o valor enquanto participante do diálogo estabelece-se por
intermédio da maneira pela qual é abarcada a temática do espelho, ou seja, pelo viés
narrativo voltado para a problematização da especificidade fantástica dos
acontecimentos especulares.
O conto, narrado em terceira pessoa, relata que determinado objeto especular
fora encontrado por um belchior em uma casa abandonada e, depois comprado por um
jovem casal que o colocou em um lugar de destaque na sala de visitas. Estavam felizes
com sua sala, já que, além do novo artefato, exibia “poltronas Luís XV estofadas de
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veludo caramelo pelo artista Mário Cotas” (Veiga 1997:13). Essa parte da casa tornou-
se acolhedora, fazendo com que preferissem ficar em casa a sair com os amigos. O
jovem casal percebeu que “a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios
que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala
plebéia” (Veiga 1997: 13). Assim, cada vez mais, foram passando mais tempo naquela
peça da casa, e achavam isso natural.
Certo dia, o casal parece ter a percepção de que algo havia mudado em suas
vidas e ao conversarem, a mulher questiona: “não acha que estamos parecendo dois
bobocas atrelados a este espelho?” (Veiga 1997:14). Nesse momento de tomada de
consciência sobre o fascínio causado pelo espelho, o marido aproveita e relata
misterioso fato à esposa:
Após a revelação, a mulher disse preferir que ele tivesse imaginado isso, o
homem concordou, porém advertiu que aquilo havia sido real. Resolveram não falar
mais sobre o assunto, mas pensaram bastante sobre o fato ocorrido. O jovem casal foi ao
cinema e, ao voltarem pra casa, retiraram o espelho da parede. No dia seguinte,
fecharam negócio novamente com o belchior.
Mostra-se evidente que a história parte de um objeto do cotidiano, a princípio
insignificante ou de menor valia, para então transformá-lo no elemento principal da
narrativa, que atrai completamente a atenção das personagens e parece guardar um
poder sobrenatural de intervir em suas vidas. Desse modo, cria-se um contexto de
turbulência, haja vista que o objeto ocasiona uma sensação de atração e fascínio para si,
para depois atuar na desestabilização da vivência cotidiana das personagens.
Ressalta-se que a desventura do jovem casal acontece devido à postura de vaidade e
ambição pelo fetiche social, visto que compraram o espelho que apresentava um preço
alto, cuja constatação havia sido feita por um decorador que o julgara caro; porém,
assim mesmo levaram-no sem titubear, nem pechinchar. Apontam-se tais elementos no
seguinte fragmento:
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Percebe-se também que o objetivo de compra do casal era outro: uma mesa de
jantar; entretanto, decidiram que o objeto especular combinaria de maneira perfeita com
os outros móveis de caráter valioso e de ostentação dispostos na sala, compondo então
uma “sala de revista”, como referido no conto segundo o olhar do outro, isto é, dos
amigos do casal. Dessa maneira, o confronto com o espelho não acontece de forma
casual, já que é o próprio casal quem decide tê-lo em casa; consequentemente, ele se
realiza de modo voluntário por intermédio do desejo ilusório de atrair admiração para si.
Logo, assevera-se que o casal caiu na armadilha do engodo criada pelo espelho, uma
vez que, segundo Vieira, ele é o demônio que age calado, sendo então o entusiasta de
uma vaidade vã.
Importa referir que o objeto especular abarca um fenômeno presente no
imaginário da sociedade: o espelho como revelador da primeira natureza do sujeito.
Assim, ao confrontar a revelação de que a aparência é algo falso, ilusório e que a
imagem refletida era a que mostrava o que realmente era verdadeiro, o casal não soube
o que fazer, nem como lidar com a constatação de tal fato. Entende-se que tiveram a
oportunidade de enxergar e compreender uma nova perspectiva acerca dos aspectos do
universo social e da submissão ao parecer, e não souberam aproveitá-la, já que não
tiveram discernimento para julgá-la, pois preferiram esquecê-la e não tocar mais no
assunto. Portanto, não se mostraram capazes de utilizar o espelho como desencadeador
de autorreflexão, pelo fato de não buscarem alcançar o ensinamento que lhes estava
sendo transmitido. Evidencia-se ainda a temática do duplo, haja vista que o
desdobramento das personagens denunciou que as opiniões, apresentadas pela natureza
exterior, não eram confiáveis. A imagem refletida foi responsável por revelar a
verdadeira alma deles. Sendo assim, é posta em xeque a dicotomia existente entre o
parecer e a real essência do sujeito.
Portanto, J. J. Veiga estabelece no conto Espelho uma perspectiva de narração
voltada para o protagonismo do artefato especular, uma vez que expõe a submissão das
personagens, principiada pelo fetiche social, ocasionando o deslocamento de poder do
sujeito para o objeto. Desse modo, o espelho assume a tarefa de criar um contexto de
turbulência, revelando a veracidade imposta pela alma interior. Todavia, não se
desenvolve uma perspectiva de reflexão sobre o acontecimento narrado, já que a
valorização do caráter ilusório da aparência impede que as personagens sofram
transformação na consciência social. Destarte, segundo a perspectiva construída por
Padre Antônio Vieira, o espelho é tido como instrumento do bem, mas o utilizam como
artifício capaz de atrair e originar os pecados da vaidade.
6. Considerações Finais
o aprendizado de uma sábia lição a partir da experiência vivenciada. Enquanto que, nos
outros dois contos referidos, as personagens deixam-se levar pela ilusão do status social
e acabam não alcançando a reflexão necessária para que haja uma transformação de
caráter e de consciência social diante do contexto de superficialidades que as circunda.
Logo, considera-se que o espelho expõe o desdobramento do sujeito entre corpo
e consciência de si, haja vista que a aparência nem sempre revela o que se passa na
interioridade do sujeito. Desse modo, o caráter de dualidade evidencia, no caso de
Machado, a impossibilidade de fusão entre alma interior e exterior, já que a
predominante era a exterior; na perspectiva de Rosa, propõem-se duas existências
separadas: a experiência física do corpo guiada pela ótica da segunda natureza e a alma
interior encoberta por muitas capas; em Veiga, constitui-se o desdobramento da
caracterização das personagens criando um conflito para aquele que o presencia, tendo
então que discernir a verdade da falsidade.
Sendo assim, a exploração e elucidação do caráter dicotômico do artefato
especular, exposta segundo a perspectiva de Padre Antônio Vieira, traz consigo
valorosas contribuições para pensar o lugar do espelho na literatura. Ao se deparar com
a própria imagem, reproduzida no espelho, o indivíduo pode se reconhecer apenas no
que a sociedade devolve (Machado de Assis), pode buscar uma imagem essencial
através do desvelamento (Rosa) ou pode ficar preso ao espelho e horrorizado com a
revelação do que se esconde atrás da aparência, cuja conveniência e decoro não
permitem expressar (Veiga).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. 2 ed. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2006.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
VEIGA, José Jacinto. Objetos Turbulentos: contos para ler à luz do dia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
VIEIRA, Antônio. Sermão do Demônio mudo. In: ______. Os Sermões. São Paulo:
Melhoramentos, 1963.
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