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Priscila Ligoski (UFRGS)

IMAGENS NO ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA E JOSÉ J. VEIGA

IMAGENS NO ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA


E JOSÉ J. VEIGA

IMAGES IN THE MIRROR: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA


E JOSÉ J. VEIGA

Priscila Ligoski (UFRGS) 1

RESUMO: Esse artigo realiza uma leitura da representação do espelho nos contos
homônimos de Machado de Assis, Guimarães Rosa e José J. Veiga, a fim de evidenciar
a dicotomia entre instrumento do autoconhecimento e de afirmação da vaidade. Dessa
forma, no conto de Machado, o autoconhecimento conclui o caráter dominante da alma
exterior. Rosa desenvolve o resgate do ser escondido atrás das máscaras da aparência, a
definição da identidade pela alma interior. J. J. Veiga, por sua vez, desloca o foco
narrativo para o objeto, mostrando-o capaz de revelar a alma interior. Logo, considera-
se que o espelho expõe o desdobramento do sujeito entre corpo e consciência de si.
PALAVRAS-CHAVE: Espelho; Aparência; Alma exterior; Alma interior.

ABSTRACT: This article creates a reading about the mirror’s representation on the
homonym short stories of Machado de Assis, Guimarães Rosa e José J. Veiga, in order
to point out the dichotomy between instrument of self knowing and vanity’s affirmation.
In this sense, in Machado’s short story, the self knowing concludes the exterior soul
dominant character. Rosa develops the identity recover hiding behind the appearance
mask, the identity definition through interior soul. J. J. Veiga, in turn, dislocates the
narrative focus to the object, showing it capable of revealing the interior soul. Hence, it
assumes that mirror exposes subject deployment between body and self-consciousness.
KEYWORDS: Mirror; Appearance; Exterior soul; Interior soul.

1. Introdução
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.
Duvida? Quando nada acontece, há um
milagre que não estamos vendo.
(João Guimarães Rosa)

Parte-se do entendimento de que o artefato especular carrega consigo um caráter


simbólico capaz de influenciar inúmeras crenças, mitos e simbologias, as quais têm
grande contribuição na propagação e discussão sobre a relevância atribuída a tal objeto.
Sendo assim, delimita-se como foco desse artigo a análise do aspecto dual do espelho
no universo literário de Machado de Assis, Guimarães Rosa e José J. Veiga. A
dualidade está contida na contraposição de uma face posta como instrumento para a
autorreflexão e outra como entusiasta de uma vaidade ilusória. Emprega-se uma
perspectiva de teor comparatista para elucidar os aspectos significativos da formulação
e do entendimento da relação entre sujeito e imagem especular, a qual pode ser também
interpretada como desdobramento do indivíduo em alma exterior e alma interior.

1
Graduada em Letras Português/Inglês – UFRGS. priscilaligoski@yahoo.com.br
Estação Literária
Londrina, Vagão-volume 8 parte B, p. 181-191, dez. 2011
181
ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL
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Interessa esclarecer que se pressupõe existir uma ordem cronológica de leitura


entre os três contos selecionados, na qual o início da discussão é proposto por Machado
de Assis (1882); em seguida, Guimarães Rosa (1962) apresenta texto que pode ser lido
como resposta ao de Machado, além de abarcar novas perspectivas sobre o assunto; e,
para finalizar, J. J. Veiga (1997) participa desse cenário fazendo a releitura de ambos os
textos de modo a elaborar uma obra que trate dos aspectos já abordados pelos
predecessores.

2. Espelho do mundo

Ao iniciar a análise proposta, julga-se complexa a tarefa de estabelecer o exato


momento em que surgiu o elemento especular, pois há muito tempo já se considerava a
água que banha rios, lagos etc, como um exímio espelho natural; então, supõe-se que ela
pode ter servido como fonte de inspiração para a criação de tal objeto. Desse modo,
aponta-se a água como primeiro arquétipo do espelho, já que também apresenta suas
simbologias relacionadas à especificidade, como é o caso do mito de Narciso. Neste
mito, Narciso é atraído pela própria imagem refletida na água; deslumbrado com tanta
beleza acaba por morrer ao tentar ir ao encontro daquilo que tanto admirava: ele mesmo.
Nesse contexto de elucidações e representações acerca do elemento tratado,
muitos teóricos e literatos também deixaram contribuições sobre os mistérios que
circundam o artefato. No Dicionário de simbologia de Lurker (1997: 237), podem ser
encontrados alguns aspectos relevantes: segundo a poesia de Mallarmé, o espelho
permite ver por trás das coisas; em Sêneca, é símbolo da autoanálise ética, o homem
deve possuir uma alma (coração) pura como um espelho brilhante para ver a Deus ou
poder refleti-lo. No Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos
Bachelardianos de Agripina Ferreira (2008: 68), são também postuladas valorosas
considerações: “o espelho duplica todas as coisas. O ser humano, em sua pureza
primordial, vê e contempla sua imagem no espelho das águas, ficando maravilhado por
ver, no reflexo, um outro que é a sua sombra, mas não é ele, é seu duplo”.
Importa ressaltar a menção ao conceito do duplo, intrinsecamente relacionado à
significação do espelho, pois representa uma outra imagem ou um outro lado daquilo
que deveria ser único. Assim, pode-se entendê-lo como uma duplicação do “eu”,
encontrando-se em sintonia ou em desacordo com sua imagem originária, causando,
então, grandes conflitos de consciência. Nesse sentido, é possível também explicitar o
duplo como sendo as duas partes de uma mesma pessoa, ou seja, uma extensão do
sujeito; considerando-a então como natureza interna e natureza externa; alma interior e
alma exterior.
Nesse cenário de elucubrações sobre “espelho”, entende-se pertinente referenciar
o Sermão do Demônio Mudo (1963), de Padre Antônio Vieira, cujas considerações
literárias apresentadas referem-se à linha tênue que separa espelho e imagem especular,
além de trazer valoroso aviso sobre os perigos que o artefato carrega. No referido
sermão, direcionado às freiras, que por ocasião da regeneração dos conventos, se
recusam a abrir mão de seus espelhos, Vieira, com espírito barroco e brilhante oratória,
critica o culto da autoimagem e tenta persuadir as religiosas a redirecionar suas
vontades aos preceitos divinos (Barros 2008: 6). As proposições feitas por Vieira,
superando a dimensão de texto religioso, mostram-se significativas para o
desenvolvimento da análise pretendida, pois servem como pano de fundo para a
apreciação dos contos selecionados.

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O Sermão do Demônio Mudo é construído por meio de exemplos vivenciados ou


conhecidos e por comparações que evidenciam a caracterização do espelho como
demônio mudo. No início, é formulada uma aproximação entre o leão bramindo e o
espelho. Considera-se que ambos são inimigos, mas que o pior deles é o segundo, pois
ele não avisa que irá atacar. Assim elucida Vieira:

Se o demônio vem bramindo, os mesmos bramidos dão rebate do perigo,


e ninguém haverá tão descuidado, ainda que esteja dormindo, que não
esperte assombrado, e se acautele; porém se o demônio vem mudo,
debaixo do mesmo silêncio, em que se esconde o perigo, descansa, e
adormece o cuidado. (Vieira 1963: 241)

Entende-se então que o espelho, há muito tempo, já tinha um influente poder de


significação, passível de ser compreendido tanto para o lado do bem, como para o do
mal. E isso já era postulado até pela igreja que se preocupava com os pecados da
vaidade e com os maus espíritos, os quais poderiam estar escondidos no interior do
espelho. Destaca-se ainda a capacidade de influência e transformação das pessoas no
momento em que entram em contato com ele e são capazes de ver a duplicação da
própria imagem.
Em seguida, Vieira narra a história de um religioso de grande virtude e
prudência que havia sido enviado para visitar os conventos das religiosas e expurgar
tudo que considerasse contrário a Deus. Ao retornar, o religioso afirmou estar muito
satisfeito com o trabalho, pois havia atingido grande sucesso na tarefa; no entanto,
existia ainda somente um elemento do qual não conseguiu se livrar: o espelho. A
explicação dada é que o artefato especular está fortemente pegado à parede, mas muito
mais ao coração das pessoas. Logo, sua representação é posta como algo além de mero
objeto refletor, visto que se insere no âmbito das simbologias e crenças universais.
Outro ponto relevante do referido sermão é a passagem onde expõe a razão de
chamar o espelho de demônio:

E chamar demônio ao espelho parece que não é só fazer injúria à arte,


senão à mesma natureza. O espelho depois de muitos anos (quando já o
mundo não tinha muito que ver em si, senão muito que aborrecer) foi
invento artificial e humano. Porém na sua primeira origem já tinha sido o
espelho obra da natureza, e do soberano Autor dela. (...) O fim deste
instrumento natural foi para o homem criado à imagem de Deus, vendo a
sua no espelho, a procurasse conformar com a perfeição e soberania de
tão alto original; não é agravo e afronta, sobre impropriedade grande,
comparar o espelho ao demônio, e chamar-lhe de demônio? Não. Porque
desde sua mesma origem não há duas coisas que Deus criasse mais
parecidas e semelhantes, que o demônio e o espelho. O demônio primeiro
foi anjo, e depois demônio: o espelho primeiro foi instrumento do
conhecimento próprio, e depois do amor próprio, que é a raiz de todos os
vícios. (Vieira 1963: 245)

Compreende-se novamente a consideração do duplo na caracterização do


referido objeto, visto estar presente tanto em sua forma quanto em sua significação.
Salienta-se também o aspecto da origem do espelho como sendo algo natural e divino

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que, todavia, com a intervenção do homem se tornou algo artificial e simbolicamente


avesso ao bem, sendo então causador de conflitos internos e externos ao sujeito.
Para finalizar a análise do sermão de Vieira, é mister ressaltar a parte onde é
referida a qualificação do artefato: “E assim se viu porque assim se quis ver: como se o
espelho não fora espelho do rosto, senão da vontade. (...) Se vê nele à medida e ao
arbítrio da própria vontade, não o que quer, ou representa o espelho, senão o que quer, e
como quer quem se vê.” (Vieira 1963: 248) Nesse sentido, é possível considerar que a
problemática do espelho passa a ser deslocada para o sujeito que está em frente a ele; e
não mais exclusivamente a ele próprio enquanto objeto do mal. Portanto, o caráter de
influência e subordinação passa a estar na consciência ou na vontade daquele que o
admira ao enxergar a própria imagem refletida. Vale, por fim, apontar que o problema
do duplo, como acontece em Vieira, traz embutida uma discussão sobre valores, sobre o
modo de avaliar o corpo, a aparência.

3. A farda vista através do espelho

Inicia-se a análise proposta partindo do conto O Espelho de Machado de Assis,


pertencente ao livro de contos Papéis Avulsos publicado em 1882. A narrativa de O
Espelho destaca-se ao expor e refletir acerca do papel desempenhado pelo sujeito na
vida em coletividade e dos conflitos internos que isso ocasiona. Intui-se tal afirmação
através da constituição do conto, o qual trata da dualidade de consciência existente entre
aquilo que os outros veem e percebem em relação à determinada pessoa e aquilo que ela
realmente é. Soma-se a isso a função exercida pelo espelho nessa dicotomia: tanto a de
suprir a falta do olhar do outro quanto a de revelar o desaparecimento da
individualidade interior do sujeito.
A história de O Espelho – Esboço de uma nova teoria da alma humana começa
a ser narrada em terceira pessoa. No entanto, em determinado momento da conversa
apresentada, o assunto perpassa o tema da natureza da alma; e a personagem Jacobina,
ao ser indagada sobre a questão, pede a palavra para si de modo que os outros
cavalheiros ouçam calados o relato do que lhe aconteceu. Insere-se, então, a moldura
narrativa do conto, contribuindo para o caráter verdadeiro e testemunhal da descoberta,
a qual se relaciona à dupla constituição da alma humana. A natureza interior é a
individualidade do ser, e a exterior é aquilo que os outros reconhecem no indivíduo, ou
seja, a aparência. Assim, segundo a personagem, as duas completam o homem, e caso
uma venha a ser perdida, perde-se também metade da existência.
Naquela época, Jacobina era pobre e havia sido recentemente nomeado alferes.
Todos seus familiares ficaram muito orgulhosos, e apenas algumas pessoas tiveram
inveja da posição social alcançada. Certo dia, a tia de Jacobina o convida para passar
alguns dias em seu sítio e pede que leve consigo a farda de alferes. O narrador tenta
resistir à transformação que está por acontecer: pede que continue a chamá-lo de
“Joãozinho”, porém, a alma exterior já havia mostrado ser mais forte que a interior, e a
tia somente insiste em chamá-lo “senhor alferes”, assim como também faziam todos os
empregados da casa. Num determinado momento, Jacobina e suas duas almas oscilantes
deparam-se com um maravilhoso presente oferecido por tia Marcolina: o espelho. Tal
objeto sobressaía em relação ao resto da decoração da casa. Era uma peça singular que
fora deslocada para o quarto dele. Assim, com a ajuda da mocidade, a transformação foi
concluída: “o alferes eliminou o homem” (Assis 2006: 138). Jacobina perdeu a alma
interior, já que a única a ser valorizada era a farda. Portanto, julga-se que o status social

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alcançado incitou traços de vaidade à postura da personagem, que fizeram com que a
alma exterior se sobrepusesse à essência do ser.
No próximo episódio narrado, Tia Marcolina parte para visitar uma das filhas
que se encontrava doente. Em decorrência disso, os escravos decidiram fugir, e Jacobina
ficou desprovido do olhar do outro para lhe reconhecer e admirar a aparência obtida
através da farda. Ao fim de oito dias, Jacobina assevera ter descoberto a solução para os
dias de aflição: o espelho. Aconteceu que a personagem lembrou de olhar-se no espelho,
coisa que não havia feito até então, e enxergou uma imagem difusa, vaga, sem nitidez.
Acerca disso comenta: “A realidade das leis da física não permite negar que o espelho
reproduziu-me textualmente (...) mas tal não foi a minha sensação” (Assis 2006: 142) É
mister destacar que a percepção e os sentimentos da personagem estão alterados devido
à falta da natureza interior, o que faz com que nem ele próprio se reconheça a menos
que esteja usando a nova identidade: a farda de alferes. E foi o que impulsivamente
decidiu fazer.
Vestido com a farda, Jacobina olhou-se novamente no espelho e, imediatamente,
a imagem tornou-se nítida e integral. Isto é, a alma exterior havia sobrevivido ao
momento de privação ao olhar do outro e havia, então, ficado cara a cara com seu
principal aliado - o espelho -, na tarefa de se sobrepor à alma interior. Tal objeto supria
o vazio deixado pelos admiradores, assim como também revelava para Jacobina aquilo
que os outros já haviam percebido: o parecer detinha maior importância do que a
primeira natureza do ser. Entende-se possível asseverar, então, que Jacobina encontrou a
fonte para o amor próprio que o faria existir e que, por conseguinte, fez reconhecer-se: o
espelho.
Dessa forma, ressalta-se que O espelho de Machado tem papel de destaque no
cenário literário enquanto revelação das especificidades delimitadoras da essência da
vida em sociedade. Haja vista que o elemento refletor faz com que a personagem
Jacobina ganhe consciência da própria condição e, finalmente, perceba que a sociedade
vive numa atmosfera disposta a acolher aqueles que atraem admiração para si, e, em
decorrência disso, privilegia uma vaidade ilusória. Interessa salientar que ao obter
consciência do universo de alienação, a atitude de Jacobina não é a de rebelar-se, mas
sim de conformar-se. Portanto, o aprendizado adquirido através da experiência
vivenciada não serve como impulso para que haja resgate da alma interior; pelo
contrário, o julgamento construído por meio do conhecimento é voltado para assumir
postura de aceitação e submissão às normas da aparência social. Tal atitude pode
parecer primeiramente ingênua, todavia, pode-se também asseverar que tal posição
adquire tom de cinismo, uma vez que se julga estar a obra pautada na exposição e na
discussão de questões relacionadas à essência do ser em contraponto aos dilemas
sociais.
A partir desse contexto, conclui-se que a inserção do relevante objeto no conto
presta a indispensável função de mostrar para a própria personagem o poder da
aparência e, por conseguinte, contribuir para que a natureza interior desapareça, e a
alma exterior absorva definitivamente a caracterização como aquela que dá razão à
existência do ser. Diante disso, Alfredo Bosi elucida no artigo A máscara e a fenda:

A consciência de cada homem vem de fora, mas este “fora” é


descontínuo e oscilante, porque descontínua e oscilante é a presença
física dos outros, e descontínuo e oscilante o seu apoio. Jacobina só
conquistará a sua alma, ou seja, a auto-imagem perdida, quando fizer um
só todo com a farda de alferes que o constitui como tipo. A farda é
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símbolo e é matéria do status. O eu, investido do papel, pode sobreviver;


despojado, perde o pé, dispersa-se, esgarça-se, esfuma-se. Não tem
forma, logo não tem unidade. Ter status é existir no mundo em estado
sólido. (Bosi 2000: 99)

Como mostra Bosi, Jacobina recobra sua alma quando se vê no espelho. Assim,
confirma-se o conceito de que há duas almas, dois princípios vitais. Importa o modo
como o indivíduo se pensa e crê ser isso ou aquilo. Importa também o modo como é
visto pelos outros. Portanto, o aprendizado de Jacobina passa pela descoberta da
dimensão essencial da alma exterior. Sem o laço social, sem o retorno dado pelos
outros, o indivíduo deixa de existir para os outros, passa meramente a sobreviver.
Destarte, o papel primordial desempenhado pelo espelho, no conto de Machado,
é o de servir como instrumento revelador do engodo trazido pela vaidade da
personagem e, em decorrência disso, o desprestígio da identidade do sujeito perante a
sociedade. Sendo assim, assevera-se que na caracterização da duplicidade da
personagem, ou seja, na sua dicotomia, desvendada através do espelho, entre ser e
parecer, o artefato mostrou aquilo que era dominante e, portanto, o que era necessário
para que ela existisse: a aparência social apreendida através da farda de alferes.
Portanto, tendo como base a perspectiva proposta por Padre Antônio Vieira, entende-se
que esse conto apresenta predominância da discussão acerca do espelho como revelação
do caráter vão do amor próprio, o qual, segundo Vieira, é a raiz de todos os problemas.

4. O espelho do autoconhecimento

O segundo conto a ser analisado é O Espelho de João Guimarães Rosa,


participante da obra Primeiras Estórias, publicada em 1962. Interessa mencionar que
pode ser lido como resposta ao conto homônimo de Machado de Assis (1882), haja vista
ter deixado uma lacuna ao tratar da questão da natureza interior e não abordar
perspectiva de cunho físico-exploratória, além de também não proceder ao resgate da
alma interior que havia desaparecido.
Julga-se relevante apontar que Primeiras Estórias apresenta vinte e uma
narrativas, as quais estão especificamente divididas ao meio pelo décimo primeiro
conto: O Espelho. Resta evidente que o artefato especular cumpre na composição do
livro o mesmo papel que desempenha no universo humano: refletir as imagens, tendo a
mesma distância entre figura e reflexo. Destarte, o primeiro texto – As Margens da
Alegria – vê sua imagem/estória refletida através do espelho no último conto da obra –
Os Cimos. Sendo assim, O Espelho simboliza na obra a experiência do próprio efeito
especular.
O conto de Rosa retrata a experiência vivenciada pelo protagonista e também
narrador. Logo nas primeiras linhas, encontra-se esta explicação em tom de aviso: “Se
quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência a que me induziram,
alternadamente, séries de raciocínios e intuições” (Rosa 2005: 113) Desse modo, inicia-
se a estória com a personagem expondo entendimentos e reflexões acerca do objeto
espelho, ressaltando que a ela interessam as questões relacionadas ao transcendente. Em
seguida, declara disposição em relação ao artefato: “Sou, porém, positivo, um racional,
piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? – jamais”
(Rosa 2005: 115). Dessa forma, pode-se considerar que se instaura uma perspectiva de
experiência material adotada pela personagem, cujo método consiste na observação dos

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fenômenos; sendo então capaz de produzir, a partir dos dados concretos (positivos), a
verdadeira ciência.
Dando seguimento ao conto, é apresentando o momento em que a personagem
confronta-se com o elemento refletor:

Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo
contente, vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos – um
de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício – faziam
jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano,
desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me
náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E
era – logo descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que algum dia irei
esquecer essa revelação? (Rosa 2005: 115)

A casual aventura especular vivenciada revelou quão grotesca era a alma


exterior da personagem através de uma perfeita ângulação entre os artefatos. Supõe-se
então que, a partir desse cruzamento, a personagem foi capaz de se enxergar de maneira
singular e perceber que a sua segunda natureza estava corrompida e danificada pelo
universo social do parecer. Ou seja, através de uma visão objetiva e distanciada de si
mesmo, deparou-se com a própria imagem como se estivesse vendo uma outra pessoa.
Infere-se, desse modo, a caracterização do duplo como sendo a revelação de um outro
que olha o sujeito sem nada dizer, mas faz com que ocorra certa indagação acerca da
própria condição.
Depreende-se ainda do fato uma postura de vaidade por parte da personagem, já
que assevera estar contente com a imagem de si mesmo. Sendo assim, conclui-se existir
uma perspectiva de apego e admiração à aparência, a qual pode ser considerada como
especificidade daquilo que é vão, ilusório. Logo, entende-se que, ao avistar a
desagradável imagem de si mesmo, a personagem descobre a verdadeira alma exterior, a
qual, de fato, não se coloca como motivo para entusiasmo. Apresenta-se aqui um
movimento contrário ao mito de Narciso, que se vê no espelho d’água e se apaixona
pela imagem que vislumbra, um outro, sem ser capaz de se reconhecer nela. Já em Rosa,
evidencia-se um sentimento de repulsa, náusea pela própria imagem refletida e, a
princípio, também não reconhecida.
A partir dessa revelação, a personagem passou a procurar-se, isto é, “ao eu por
detrás de mim” (Rosa 2005: 116), o qual estava escondido atrás das “capas de ilusão”
do sujeito. Desse modo, nota-se que, ao assustar-se com o confronto criado através do
espelho, principia caminhada de não-conformidade com a situação, buscando resgatar
sua identidade – a alma interior. Para atingir objetivo, utiliza-se de métodos positivos de
observação e experiência. Assim, passados alguns anos e “ao fim de uma ocasião de
sofrimentos grandes” (Rosa 2005: 119), a personagem novamente fitou-se no espelho.
Agora havia alcançado a consciência do ser e, destarte, começou a enxergar uma luz e,
em seguida, relata:

Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava – já aprendendo, isto seja, a


conformidade e a alegria. E... Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto,
um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-
nem-rosto – quase delineado, apenas – mal emergindo, qual uma flor
pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de
menino, de menos-que-menino, só. (Rosa 2005: 120)
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Deste modo, o protagonista do conto recupera a alma interior e adquire


consciência disso, pois sabe que aquilo que os outros atribuem e acham dele diz respeito
ao exterior, e que isso será sempre distorcido em relação àquilo que o sujeito realmente
é. Assim, resgata a subjetividade através da figura do nascimento de uma flor que lhe
revela identidade de menino. O resgate pode apresentar um pressuposto de “amor e
alegria”, uma vez que, por intermédio de tais elementos, passa a encontrar e admirar sua
primeira natureza. Portanto, nesse instante de felicidade consigo mesmo, torna-se capaz
de enxergar identidade mais profunda. Resta evidente que o artefato especular cumpriu
o papel de instrumento desencadeador do autoconhecimento e autorreflexão, ocasionado
a retomada da essência do ser. Para isso, segue a mesma linhagem de Vieira, ou seja,
afasta-se da dimensão narcísica, afasta-se da dimensão do demônio que se encanta com
a própria beleza e se perde. Caminha então em repulsão ao corpo aparente para
identidade essencial, velada por várias camadas.
Ao final da narrativa, a personagem apresenta uma lição em tom reflexivo sobre
a experiência: “a vida consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo
menos parte dela – exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que
obstrui o crescer da alma” (Rosa 2005: 120). Portanto, é necessário se livrar das
máscaras da alma exterior para que a alma interior possa viver e se construir. Por fim, o
narrador da estória deixa ainda um questionamento: “Você chegou a existir?” (Rosa
2005: 120), o qual se julga fazer referência aos sujeitos que vivem apenas com a alma
exterior, isto é, se realmente há condição de existência para quem se esconde atrás das
“capas de ilusão”.
Para concluir, entende-se que o conto de Guimarães Rosa, apesar de, no começo
da narrativa, apresentar alguns traços relacionados à ilusão trazida pela vaidade, trata
precipuamente da especificidade do artefato especular enquanto elemento que suscita o
processo de subjetivação da personagem, cuja filiação se estabelece, segundo Padre
Antônio Vieira, com a primeira caracterização do espelho: a de instrumento para o
conhecimento próprio. Nesse sentido, a característica dual ocasionada pelo espelho
evidencia-se através da possibilidade de auxiliar a personagem na passagem do múltiplo
ao uno, ou seja, no intuito de que as inúmeras máscaras que circundam a alma exterior
sejam deixadas de lado para que possa reinar a individualidade única do sujeito.

5. A turbulência causada pelo espelho

O último autor participante desse estudo é José J. Veiga, cuja entrada nessa
discussão se mostra relevante pelo fato de ter publicado livro de contos intitulado
Objetos Turbulentos (1997), onde a primeira história narrada recebe o nome de Espelho.
Interessa esclarecer que não é simplesmente pelo fato de apresentar a mesma
denominação dos contos escritos por outros autores, como Machado e Rosa, que
constitui a tríade perspectiva. A justificativa vai além disso, visto que muito já foi
escrito acerca desse misterioso objeto que permeia o imaginário no universo da
literatura; portanto, o valor enquanto participante do diálogo estabelece-se por
intermédio da maneira pela qual é abarcada a temática do espelho, ou seja, pelo viés
narrativo voltado para a problematização da especificidade fantástica dos
acontecimentos especulares.
O conto, narrado em terceira pessoa, relata que determinado objeto especular
fora encontrado por um belchior em uma casa abandonada e, depois comprado por um
jovem casal que o colocou em um lugar de destaque na sala de visitas. Estavam felizes
com sua sala, já que, além do novo artefato, exibia “poltronas Luís XV estofadas de
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veludo caramelo pelo artista Mário Cotas” (Veiga 1997:13). Essa parte da casa tornou-
se acolhedora, fazendo com que preferissem ficar em casa a sair com os amigos. O
jovem casal percebeu que “a alma do ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios
que sozinhos não encheriam os olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala
plebéia” (Veiga 1997: 13). Assim, cada vez mais, foram passando mais tempo naquela
peça da casa, e achavam isso natural.
Certo dia, o casal parece ter a percepção de que algo havia mudado em suas
vidas e ao conversarem, a mulher questiona: “não acha que estamos parecendo dois
bobocas atrelados a este espelho?” (Veiga 1997:14). Nesse momento de tomada de
consciência sobre o fascínio causado pelo espelho, o marido aproveita e relata
misterioso fato à esposa:

Um dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui


conversando com Emer e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para
eles para dizer qualquer coisa, tive uma sensação esquisita. Emer me
perguntara sobre meninos de rua, a matança da Candelária. Quando dei
minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram Emer e Zenaide.
Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros. Esses
aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles
eram as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma
vergonha, uma desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião
verdadeira estava nas imagens verdadeiras. Fiquei horrorizado. (...)
Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles (Veiga
1997: 16)

Após a revelação, a mulher disse preferir que ele tivesse imaginado isso, o
homem concordou, porém advertiu que aquilo havia sido real. Resolveram não falar
mais sobre o assunto, mas pensaram bastante sobre o fato ocorrido. O jovem casal foi ao
cinema e, ao voltarem pra casa, retiraram o espelho da parede. No dia seguinte,
fecharam negócio novamente com o belchior.
Mostra-se evidente que a história parte de um objeto do cotidiano, a princípio
insignificante ou de menor valia, para então transformá-lo no elemento principal da
narrativa, que atrai completamente a atenção das personagens e parece guardar um
poder sobrenatural de intervir em suas vidas. Desse modo, cria-se um contexto de
turbulência, haja vista que o objeto ocasiona uma sensação de atração e fascínio para si,
para depois atuar na desestabilização da vivência cotidiana das personagens.
Ressalta-se que a desventura do jovem casal acontece devido à postura de vaidade e
ambição pelo fetiche social, visto que compraram o espelho que apresentava um preço
alto, cuja constatação havia sido feita por um decorador que o julgara caro; porém,
assim mesmo levaram-no sem titubear, nem pechinchar. Apontam-se tais elementos no
seguinte fragmento:

Horas depois entrou um casal jovem procurando uma mesa de jantar


extensível. Não gostaram das duas únicas que havia, ambas precisando de
conserto, o que encareceria o preço final. Quando saíam, viram o
espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz baixa, compraram sem
regatear. (Veiga 1997: 12)

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IMAGENS NO ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA E JOSÉ J. VEIGA

Percebe-se também que o objetivo de compra do casal era outro: uma mesa de
jantar; entretanto, decidiram que o objeto especular combinaria de maneira perfeita com
os outros móveis de caráter valioso e de ostentação dispostos na sala, compondo então
uma “sala de revista”, como referido no conto segundo o olhar do outro, isto é, dos
amigos do casal. Dessa maneira, o confronto com o espelho não acontece de forma
casual, já que é o próprio casal quem decide tê-lo em casa; consequentemente, ele se
realiza de modo voluntário por intermédio do desejo ilusório de atrair admiração para si.
Logo, assevera-se que o casal caiu na armadilha do engodo criada pelo espelho, uma
vez que, segundo Vieira, ele é o demônio que age calado, sendo então o entusiasta de
uma vaidade vã.
Importa referir que o objeto especular abarca um fenômeno presente no
imaginário da sociedade: o espelho como revelador da primeira natureza do sujeito.
Assim, ao confrontar a revelação de que a aparência é algo falso, ilusório e que a
imagem refletida era a que mostrava o que realmente era verdadeiro, o casal não soube
o que fazer, nem como lidar com a constatação de tal fato. Entende-se que tiveram a
oportunidade de enxergar e compreender uma nova perspectiva acerca dos aspectos do
universo social e da submissão ao parecer, e não souberam aproveitá-la, já que não
tiveram discernimento para julgá-la, pois preferiram esquecê-la e não tocar mais no
assunto. Portanto, não se mostraram capazes de utilizar o espelho como desencadeador
de autorreflexão, pelo fato de não buscarem alcançar o ensinamento que lhes estava
sendo transmitido. Evidencia-se ainda a temática do duplo, haja vista que o
desdobramento das personagens denunciou que as opiniões, apresentadas pela natureza
exterior, não eram confiáveis. A imagem refletida foi responsável por revelar a
verdadeira alma deles. Sendo assim, é posta em xeque a dicotomia existente entre o
parecer e a real essência do sujeito.
Portanto, J. J. Veiga estabelece no conto Espelho uma perspectiva de narração
voltada para o protagonismo do artefato especular, uma vez que expõe a submissão das
personagens, principiada pelo fetiche social, ocasionando o deslocamento de poder do
sujeito para o objeto. Desse modo, o espelho assume a tarefa de criar um contexto de
turbulência, revelando a veracidade imposta pela alma interior. Todavia, não se
desenvolve uma perspectiva de reflexão sobre o acontecimento narrado, já que a
valorização do caráter ilusório da aparência impede que as personagens sofram
transformação na consciência social. Destarte, segundo a perspectiva construída por
Padre Antônio Vieira, o espelho é tido como instrumento do bem, mas o utilizam como
artifício capaz de atrair e originar os pecados da vaidade.

6. Considerações Finais

Julga-se que a caracterização dual do artefato especular entre instrumento para o


autoconhecimento e instrumento desencadeador do engodo da vaidade, apontada por
Padre Antônio Vieira no Sermão do Demônio Mudo, tem grande influência no
desenrolar das narrativas selecionadas. Desse modo, segundo a perspectiva abordada, o
elemento refletor, no caso de Machado, contribui para que o fetiche social da farda de
alferes se sobreponha à essência do sujeito; na obra de Rosa, auxilia no resgate da
subjetividade através do despojamento das facetas de superficialidade do parecer, e,
ainda, em relação à Veiga, denuncia que a aparência é algo ilusório, já que a verdadeira
essência do indivíduo está na respectiva alma interior.
Portanto, Guimarães Rosa desenvolve expressivamente uma perspectiva de
cunho reflexivo através do confronto realizado com o espelho e, por conseguinte, realiza
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IMAGENS NO ESPELHO: MACHADO DE ASSIS, GUIMARÃES ROSA E JOSÉ J. VEIGA

o aprendizado de uma sábia lição a partir da experiência vivenciada. Enquanto que, nos
outros dois contos referidos, as personagens deixam-se levar pela ilusão do status social
e acabam não alcançando a reflexão necessária para que haja uma transformação de
caráter e de consciência social diante do contexto de superficialidades que as circunda.
Logo, considera-se que o espelho expõe o desdobramento do sujeito entre corpo
e consciência de si, haja vista que a aparência nem sempre revela o que se passa na
interioridade do sujeito. Desse modo, o caráter de dualidade evidencia, no caso de
Machado, a impossibilidade de fusão entre alma interior e exterior, já que a
predominante era a exterior; na perspectiva de Rosa, propõem-se duas existências
separadas: a experiência física do corpo guiada pela ótica da segunda natureza e a alma
interior encoberta por muitas capas; em Veiga, constitui-se o desdobramento da
caracterização das personagens criando um conflito para aquele que o presencia, tendo
então que discernir a verdade da falsidade.
Sendo assim, a exploração e elucidação do caráter dicotômico do artefato
especular, exposta segundo a perspectiva de Padre Antônio Vieira, traz consigo
valorosas contribuições para pensar o lugar do espelho na literatura. Ao se deparar com
a própria imagem, reproduzida no espelho, o indivíduo pode se reconhecer apenas no
que a sociedade devolve (Machado de Assis), pode buscar uma imagem essencial
através do desvelamento (Rosa) ou pode ficar preso ao espelho e horrorizado com a
revelação do que se esconde atrás da aparência, cuja conveniência e decoro não
permitem expressar (Veiga).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. 2 ed. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2006.

BARROS, Kellen Dias de. Sermões vieirianos: uma ferramenta teológico-cristã. XI


Congresso Internacional da ABRALIC (2008) USP – São Paulo, Brasil.

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda. In Machado de Assis: O enigma do olhar. São


Paulo: Ed. Ática, 2000.

FERREIRA, Agripina Encarnacíon Alvarez. Dicionário de imagens, símbolos, mitos,


termos e conceitos Bachelardianos. Londrina: EDUEL, 2008.

LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: M. Fontes, 1997.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

VEIGA, José Jacinto. Objetos Turbulentos: contos para ler à luz do dia. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.

VIEIRA, Antônio. Sermão do Demônio mudo. In: ______. Os Sermões. São Paulo:
Melhoramentos, 1963.

Artigo recebido em 5 de agosto de 2011 e aprovado em 20 de setembro de 2011.

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