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Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Campinas
CAMPINAS, SP
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∗
Registro meu reconhecimento à FAPESP, que financiou em 2001-2002 o projeto de
pesquisa em cujo âmbito desenvolvi a pesquisa de que resultou o presente artigo, bem como
ao CNPq, o qual, com uma bolsa iniciada em 2003, encorajou-me a prosseguir nesta linha de
estudo. Agradeço muito ao autor do parecer dos Cadernos pelas minuciosas e pacientes
observações, de forma e de fundo, que me permitiram eliminar várias falhas da versão
original. Agradeço também ao relator da FAPESP que examinou meu Relatório de Pesquisa
de 2001 pelas observações e comentários.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
8 João Quartim de Moraes
1 Zeller em Die Philosophie der Griechen III, Theil I, Abtheilung, 3 Aufl., p. 400.
2 Cf. W. Guthrie, A History of Greek Philosophy, II, p. 400-1. Guthrie apresenta-o (p. 401,
n. 1) como o principal defensor desta interpretação.
3 Eduard Zeller, Outlines of the History of Greek philosophy, Meridian Books, Nova Iorque,
1958, p. 83. Consultamos este livro na tradução inglesa de L.R. Palmer, efetuada sobre a 13º
edição alemã, revista por Wilhelm Nestle. Zeller reitera mais adiante: “Em contraste com a
teoria de Demócrito de um movimento rotatório, Epicuro concebia os átomos como caindo
no espaço vazio” (ib., p. 253-54).
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 9
4 Na explicação de Émile Bréhier, uma vez formado este vórtice, os corpúsculos mais
leves são expelidos “para o vazio exterior”, “como ocorre com um turbilhão de vento ou de
água”, enquanto que “os átomos compactos se reúnem no centro, onde formam um
primeiro agrupamento esférico”. Emile Bréhier, Histoire de la Philosophie, tome premier,
L’Antiquité et le Moyen Age, fascicule 2, Paris, P.U.F., 1967, p. 69. Descontada a
impropriedade do termo “compacto” para denotar os átomos mais pesados (todos os
átomos são compactos, no sentido de que não podem ser comprimidos), esta explicação nos
parece adequada.
5 Cf. Margherita Isnardi Parente (org.), Epicuro, Opere, Torino, Unione Tipografico-
Editrice Torinese, 2° edição, 1983, p. 15. Demócrito, com efeito, segundo Diogenes Laertius
(IX, 44), sustentou que
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absolutamente livre” parece exagerada numa filosofia em que tudo é regido pela
necessidade. É plausível, entretanto, supor que a “a)na/gke” democritiana signi-
fique estritamente ausência de um logos ou nous; discutindo a causalidade no ato-
mismo de Leucipo e Demócrito, Guthrie6 mostra que tanto a necessidade quanto
o acaso (tu/xh ou au)to/maton) são considerados causas.
A explicação é compatível com a de M. Isnardi Parente: resultado de uma
determinada configuração de um complexo de átomos, o vórtice, por sua vez,
reage sobre eles, ativando a oposição pesado/leve, até então irrelevante: os mais
pesados (e não “mais compactos” como diz impropriamente Bréhier) se agru-
pam, repelindo os mais leves.
Para Guthrie, não é tanto o peso, mas o tamanho (size) e o formato (shape)
que se ativam no grande redemoinho originário: nele, com efeito, “começa a
operar uma lei cardeal do atomismo: o semelhante tende ao semelhante e o
semelhante age sobre o semelhante”7. Não nos parece evidente que esta “lei”
tenha validade para o atomismo de Epicuro, segundo o qual os átomos se
articulam (em vez de se repelirem) na medida em que suas diferenças de tamanho e
de formato são complementares. Dois átomos semelhantes, por exemplo, de
formato esférico, tendem a se repelir quando se chocam. Mas, justamente, o peso
é a causa fundamental dos entrechoques e, quando estes ocorrem, são os des-
semelhantes que mais facilmente tendem a se agregar uns aos outros (o côncavo e
o convexo, por exemplo).
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 11
8 ib., p. 400-1.
9 Cf. ib., p. 400.
10 ib., p. 400.
11 ib., p. 408.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
12 João Quartim de Moraes
“ta\ de\ Dhmokri/tou peri\ tw=n a)to/mwn kai\ A)risti/ppou peri\ th=j
h(donh=j w(j i)/dia le/gein”.
hipótese oposta: Epicuro foi “primeiro atraído pela moral de Demócrito” e só depois, para
lhe conferir fundamento físico, recorreu ao atomismo (ib., p. 13). Esta sugestão parece-nos
um tanto forçada.
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 13
curo, que o sumo bem é o prazer. Foi a física e não a ética de Demócrito que se
inscreveu no pensamento grego posterior como seu principal legado, ao passo
que encontramos na doutrina cirenaica a primeira expressão notável da ética
hedonista14. De resto, Zeller enfatiza a analogia da individualidade ética em
Epicuro com a individualidade física em Demócrito, mas não a apropriação por
aquele da moral cirenaica. Os próprios cirenaicos se encarregaram de explicitar
polemicamente a profunda diferença entre sua própria concepção do prazer e a
de Epicuro. Não considerando que possa haver prazer no repouso, mas somente
no movimento, referiam-se ironicamente à tese epicurista de que a felicidade
consiste na eliminação de tudo que acarreta sofrimento, tratando-a de “estabi-
lidade do morto”.
No De finibus (I, 6, 18-9), Cícero questiona, com ênfase tão sarcástica
quanto injusta, os fundamentos mesmos da cosmologia epicureana. Segundo ele,
Epicuro só não escorrega quando segue Demócrito. Ambos teriam deixado de
lado a força e a causa formadora15, considerando apenas a matéria (“de materia
disseruerunt, vim et causam efficiendi relinquerunt”). A este vício comum o
filósofo do Jardim teria acrescentado outro erro de sua própria lavra, a saber que
os átomos são arrastados em linha reta para baixo por seu peso (“... corpora ferri
deorsum suo pondere ad lineam”). A seqüência do argumento é bem conhecida:
se os átomos caem em linha reta no infinito, não se compreende como poderiam
O fragmento 69, Diels, por exemplo, declara que “o bem e o verdadeiro são idênticos
para todos os homens; o prazer é diferente para cada um”. É difícil considerar como
hedonista uma moral para a qual a natureza do bem se opõe à do prazer como o universal
ao singular.
15 Traduzir “causam efficiendi” por causa eficiente seria deixar-se enganar por um “falso
amigo”. Eficiente corresponde ao particípio presente do verbo latino efficio (efficiens) ao passo
que efficiendi é o genitivo do gerundivo do mesmo verbo. Literalmente, a tradução seria: causa
de formar, ou, fugindo um pouco da letra em função do sentido, causa da formação. O
latinista Charles Appunh em sua tradução para o francês (Cicéron, Du bien suprême et des maux
les plus graves, Paris, Garnier,s.d.) propõe “cause informatrice”. Cf. ib., p. 16-9.
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14 João Quartim de Moraes
se encontrar. Para evitar tal conclusão, Epicuro, “homo acutus”16, teria recorrido
à declinação espontânea dos átomos. Recurso “pueril”, fulmina Cícero, além de
gratuito (“ad libidinem fingitur”). “Nada mais torpe para um físico do que
sustentar que algo se engendra sem causa”. Recurso inútil, enfim, porque se todos
os átomos desviam, nada garante que venham a se encontrar. Enfim, se uns
desviam e outros não, haveria como que esferas distintas para uns e outros
(“quasi provincias atomis dare”) e o caótico entrechoque dos átomos declinantes
com os de rota sempre retilínea não poderia ser causa formadora da bela ordem
do mundo (“[...]hunc mundi ornatum efficere non poterit”).
Há pouco para salvar nestas críticas, mesmo porque, certa ou errada, a tese
de que os átomos caem verticalmente por seu peso próprio demonstra, ao
menos, ser injusto acusar Epicuro de não haver dissertado a respeito da força
eficiente (vim)17. É o próprio Cícero, pois, que reconhece, “malgré lui”, ao
escrever que os átomos são transportados “deorsum suo pondere ad lineam”, as
duas inovações decisivas que ele introduziu na cosmologia legada por Demócrito:
a causa fundamental do movimento dos átomos é seu próprio peso (“suo
pondere”, tradução latina de dia\ tw=n i)di/wn barw=n)18; este movimento é
retilíneo. A primeira inovação, suficientemente clara e explícita nos textos e
fragmentos de Epicuro, não dá lugar a discrepâncias hermenêuticas. A segunda
16 Como fica claro na contundente crítica que vem em seguida, a qualificação, na melhor
a conotação mais próxima à famosa “causa eficiente” dos manuais de filosofia. Ao passo
que “cause informatrice”, boa tradução francesa de “causam efficiendi”, corresponde às
causas formal e final dos escolásticos. Ao acusar Epicuro de ignorá-la, Cícero arromba uma
porta aberta, ou, o que dá no mesmo, rejeita dogmaticamente a própria posição filosófica
atomista: a ordem do todo provém do acaso e não de um espírito transcendente ou
imanente.
18 Carta a Heródoto, §61. As referências ao texto de Epicuro conservados por Diógenes
Laércio remetem à edição inglesa, Lives of Eminent Philosophers, já citada, e à edição italiana,
Epicuro. Lettere sulla fisica, sul cielo e sulla felicità, de Francesco Adorno, que se serve do texto
estabelecido por Arrigheti. Milão, Biblioteca Universale Rizzoli, 1994.
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 15
suscitou e continua suscitando, desde as acerbas críticas que recebeu por parte de
Cícero, uma longa série de polêmicas.
Num estudo cujos resultados foram parcialmente publicados19, procura-
mos mostrar, reconstruindo, em suas grandes linhas, este longo debate transmi-
tido dos antigos aos modernos, que a doutrina do clinamen, exposta por Lucrécio,
mas associada por uma longa tradição de dois milênios ao pensamento original
do próprio Epicuro, longe de constituir, como pretenderam tanto os críticos
como muitos epígonos, um recurso indispensável (porque se não desviassem da
queda vertical, os átomos nunca se encontrariam, nem portanto formariam
mundos), não somente não corresponde a nenhuma exigência de sua física, como
também nela introduz, desnecessariamente, uma brecha teórica, na medida em
que apela para um efeito sem causa20. Sustentamos, em particular, que a ausência
do termo pare/gklisij21, referente grego de clinamen, e do argumento correspon-
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16 João Quartim de Moraes
dente, nas Cartas a Heródoto e a Pitocles, em que Epicuro sintetiza seu pensamento
cosmológico, explica-se pela simples razão de que não integram sua concepção
do fundamento das coisas e que, portanto, longe de constituir um indispensável
complemento, configuram um corpo estranho à lógica interna de sua filosofia.
Do ponto de vista da história da filosofia, para a qual (como para todos os demais
ramos da história), a referência aos documentos é indispensável, este silêncio de
Epicuro constitui, por si só, um forte argumento a favor de nossa posição, a
saber, que, enquanto tal, a segunda inovação de sua física, denotada por Cícero e,
antes dele, por Lucrécio, pelo advérbio “deorsum” (para baixo), tradução latina
de h( ka/tw fora/22 (literalmente, o transporte para baixo), não conduz a nenhu-
ma aporia, nem exige, portanto, o apelo à doutrina do desvio ou declinação es-
pontânea dos átomos.
Vale notar que Lucrécio utiliza muito menos, quando expõe esta sua
doutrina no De rerum natura (II, 216-93), o substantivo latino clinamen, pelo qual a
posteridade a designou, do que das formas verbais decedere (v. 219), declinare (v.
221), inclinare (v. 243), declinare (v. 250), declinando (v. 253), declinamus (v. 259). Cli-
namen só aparece no final desta exposição (verso 292). O termo, muito pouco
empregado, vem do verbo clino, que também existe em grego (kli/nw), com o
mesmo significado (inclinar). O parentesco com inclinare e declinare salta aos olhos.
Muito provavelmente, sob reserva de uma investigação filológica mais acurada, o
prestígio do termo clinamen se deve justamente ao fato de, por ser raro, prestar-se
mais do que declinação ou inclinação para denotar o desvio espontâneo.
Ele não comparece, porém no enunciado inicial da doutrina:
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 17
Corpora cum deorsum rectum per inane feruntur,
Ponderibus propriis, incerto tempore ferme,
Incertisque locis, spatio decedere paulum,
Tantum quod momen mutatum dicere possis. (De rerum natura, II, 217-220).
23Os versos 221-24 não deixam nenhuma dúvida a respeito da tradução de “corpora”
no verso 217: o poeta ali designa os átomos e não os corpos compostos.
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18 João Quartim de Moraes
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 19
fase tardia de sua trajetória filosófica, para replicar a críticas dos acadêmicos e
peripatéticos. O poeta romano, preocupado em provar, contra os aristotélicos e
os estóicos, que os corpos (compostos) leves não tendem naturalmente para
cima, argumenta, nos versos II, 184-215 (logo antes, portanto, de atribuir aos
átomos a faculdade de declinar afim de formar mundos), que a chama não se
ergue por si própria, e sim porque é pressionada pelo ar. Não fosse esta pressão,
ela cairia para baixo, “já que todos os corpos pesados, por si próprios, dirigem-se
para baixo” (verso 190). Escapou-lhe que “para baixo” só designa uma direção
unívoca no interior de um mundo constituído e que, portanto os corpos
elementares, dirigindo-se para baixo, não caem no vazio profundo à maneira de
gotas de chuva. Cair no interior de um aglomerado sideral não tem o mesmo
sentido que cair no vazio, já que neste os átomos isolados não caem na mesma
direção. Não é preciso, pois que os átomos declinem para se encontrar e criar
mundos.
Também Mayotte Bollack empreendeu, com o objetivo de restabelecer o
significado verdadeiro da doutrina do clinamen , um esforço de análise de De rerum
natura II, 184-293, em que, retomando a linha hermenêutica predominante,
imputa a Epicuro o princípio da declinação espontânea dos átomos26. Sua análise
é rigorosa e minuciosa, mas a argumentação filosófica não tem o mesmo fôlego
que a filológica. Sustenta que a “teoria dos minima” (Carta a Heródoto, §58 e ss.)
permitiu “distinguir as duas trajetórias anteriores aos choques”27. Oferece como
(nota 4, p. 195), em vez de citar a fórmula precisa em que Epicuro teria confortado tal
interpretação, cita Derrida (!), que em “Lucrèce et le naturalisme”, Les études philosophiques, 16,
1961, p. 22, vê no “clinamen ... a determinação originária da direção do movimento do átomo, a síntese do
movimento e de sua direção” (itálico no original). Ela mesma reconhece, entretanto, que o estudo
de Derrida não permite “resolver os problemas do texto nem compreender as aporias da
doutrina”. É o caso de perguntar por que então o citou.
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No De fato (X, 22) e no De natura deorum (I, 25), Cícero dirige contra Epi-
curo o argumento de Lucrécio. No De fato declara que “Epicuro introduziu esta
28 ib., p. 196.
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 21
explicação por temer que se os átomos fossem arrastados por seu peso natural e
necessário, não haveria nada livre em nós, já que o movimento da alma resultaria
do movimento dos átomos” e, no De natura deorum, que “se os átomos fossem
arrastados para baixo por seu próprio peso (in locum inferiorem suopte pondere),
nada estaria em nosso poder”. Seríamos submetidos, como tudo mais, à férrea
necessidade do movimento atômico. Para fugir desta conclusão, Epicuro teria
atribuído aos átomos a faculdade “de declinar um pouquinho (declinare
paululum) do movimento para baixo (deorsum)”. “Melhor teria sido calar-se do
que resistir tão descaradamente (impudenter)! É mais torpe (turpius) lançar tal
argumento do que reconhecer não dispor de argumento algum!”29. Não ocorreu
ao grande autor romano a hipótese de que nem tudo que Lucrécio escreveu pode
ser imputado ao filósofo do Jardim, nem, menos ainda, que este não precisava de
argumento algum para resolver um problema estranho a seu pensamento!
Tampouco ocorreu a Cícero, mas nisso o zelo crítico o terá levado a forçar
o pensamento do próprio Lucrécio, que, em boa lógica, se o desvio espontâneo é
necessário para explicar o encontro dos átomos, ele será supérfluo para explicar a
liberdade, que já estaria inscrita na indeterminação radical dos próprios átomos. É
aceitável que Lucrécio, num poema didático, em que defende e ilustra o
epicurismo, apresente (nos versos 256-58 acima referidos) a vontade livre dos
viventes como uma das conseqüências desta indeterminação radical. Mas não que
um crítico aponte duas aporias, independentes uma da outra, que teriam obrigado
Epicuro a introduzir uma explicação torpe e descarada ... Fundamentar a
liberdade na espontânea mudança de rota dos átomos só teria sentido se esta não
fosse necessária para explicar os entrechoques de que mundos se engendram.
Note-se, ademais, que Epicuro não julgou necessário recorrer ao desvio
espontâneo dos átomos para rejeitar peremptoriamente, na Carta a Menequeu
(§133-34), a tese de Demócrito de que tudo se produz pela necessidade
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22 João Quartim de Moraes
(“pa/nta te kat” a)na/gkhn gi/nesqai”)30 e para declarar que nosso arbítrio não
tem dono (to\ de\ par” h(ma=j a)de/spoton).
A mais elaborada defesa da atribuição a Epicuro da doutrina do desvio
espontâneo é a de Ettore Bignone. No estudo que consagrou à “doutrina epicú-
rea do clinamen”, reunido em apêndice ao notável L’Aristotele perduto e la formazione
filosofica di Epicuro31, reconhece que a ausência de qualquer alusão à declinação dos
átomos nos textos remanescentes do Mestre do Jardim é filosoficamente
motivada, já que a Carta a Heródoto, que se propõe explícita e enfaticamente expor
ao discípulo as “doutrinas fundamentais da física” (§35 e ss.), explica o movi-
mento dos átomos sem qualquer referência à declinação. Tampouco nos
fragmentos do Sobre a natureza encontrados em Herculanum e restaurados graças
à laboriosa paciência de gerações de eruditos, encontrou-se qualquer alusão a um
desvio espontâneo dos átomos no vazio. Desta constatação Bignone não infere,
entretanto, que o princípio da declinação espontânea seja estranho ao pensa-
mento de Epicuro, mas sim que se trata de uma elaboração tardia, posterior aos
textos remanescentes, visando a responder às críticas provenientes dos acadê-
micos e dos peripatéticos. Como todas as interpretações “evolucionistas”, esta se
apóia na sólida evidência de que nenhuma filosofia nasce pronta no cérebro do
pensador, mas também no potencialmente falacioso recurso de resolver
dificuldades hermenêuticas dissolvendo-as no fluxo do tempo.
A demonstração de que a doutrina do clinamen não corresponde a nenhu-
ma exigência do sistema de Epicuro (além de nele introduzir, desnecessariamente,
uma brecha teórica, a saber, o recurso a um efeito sem causa, por onde investiram
seus críticos antigos e modernos) deve contemplar os dois argumentos em que se
desdobra a tese oposta: a explicação das cosmogonias e a da liberdade ética. A
segunda foge a nosso tema, mas pouco teríamos a acrescentar à fina e concisa
30
D. L., IX, 45.
31
Utilizamos a 2a. edição, póstuma, Florença, La Nuova Italia, 1973. A 1a. edição é de
1936. O apêndice sobre o clinamen está no volume II, p. 409-56.
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 23
namento da liberdade do querer pela declinação dos átomos. Pondera que decido agir ou
abster-me da ação, interromper a ação ou a inação, em função de um quadro de
circunstâncias configuradoras da situação em que decido ou deixo de decidir, ou em função
de uma reflexão mais madura. O que significaria, em qualquer e em todas estas hipóteses, a
pretensa intervenção ou ao menos condicionamento do clinamen? “Se é ele que desempenha
papel decisivo em minha determinação, minha reflexão é inútil e não sou livre. Mas se minha
conduta é determinada por motivos sérios, não vejo direito a que serve o clinamen”. Solovine,
“Note sur le clinamen”, in Épicure. Doctrines et maximes, Paris, Hermann, 1965, p. 182-83.
Acrescenta que sendo a alma, para Epicuro, composta de um gênero particular de átomos e
dividida em alma irracional, espalhada pelo corpo todo e alma racional, situada no peito, “os
atos instintivos e automáticos, devidos à primeira, distinguem-se nitidamente dos atos
refletidos, devidos a esta” (ib., p. 183).
33 Sem excluir a hipótese de que Lucrécio pode ter sido inspirado por algum epicurista,
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
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tem sentido falar em posições absolutas. A trajetória (fora)/ dos átomos isolados
no vazio não pode, pois receber tais predicados.
Este enunciado em forma de preceito (ou) dei)= leva em conta, sem dúvida,
as críticas formuladas por Platão e principalmente por Aristóteles contra os que,
concebendo o infinito separado dos sensíveis, sustentam haver algo que seja ele
próprio infinito: “como uma parte do infinito poderia estar em cima, outra em
baixo, outra na extremidade, outra no centro?35”. E acrescenta: “todo corpo
sensível está num lugar e as espécies e diferenças do lugar são alto, baixo, em
frente, atrás, direita e esquerda e estas se determinam não somente em relação a
nós e por posição, mas também no próprio todo. Ora, é impossível que elas
estejam no infinito”36. Portanto, a pergunta “onde?” só tem sentido relativamente
aos corpos.
Em que pese à autoridade que lhe confere sua estupenda edição de
Epicuro, consideramos inadequada a tradução que Isnardi Parente oferece da
fórmula acima referida de X, 60: “Quando si parli dell’infinito, non si devono
intendere l’alto e il basso nel senso dei due valori estremi”37. Ela enfraquece as
palavras a)nwta/tw kai\ katw/tatw, vertendo-as por “due valori estremi”, o que
sugere haver alto e baixo no infinito, mas não o ponto mais alto e o ponto mais
baixo. Entendamos: haveria uma direção absoluta para cima e para baixo, embora
não haja o ponto ou valor extremo destas duas direções. Em abono desta
interpretação, M. Isnardi Parente assume a tese de “um universo perpendicular
!))(r plw=j d ¦ei) a)du/naton to/pon aÓpeiron eiÅnai, e)n to/p% de\ pa=n sw=ma,
a)du/naton aÓpeiron ti eiÅnai sw=ma. (ib., 205b 35-206 a 2).
Mais adiante, em IV, 215 a 6-9 e ss., reitera não haver no infinito nem no vazio alto,
baixo, ou meio.
37 Isnardi Parente, op. cit., p. 167.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 25
38 ib., p. 13 e nota 4.
39 A saber o artigo “Epicurus. His perpendicular universe”, Classical Journal , XLIV, 1948,
p. 58-9, de Norman De Witt, conhecido principalmente pelo livro Epicurus and his philosophy,
Minneapolis, p. 168, ao qual ela também remete. Há boa resenha das obras de De Witt em
O.R. Bloch, Actes VIII Congrès Ass. Budé, p. 95. Ver também a resenha de J. Brunschwig, R.
phil., 1957, p. 386.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
26 João Quartim de Moraes
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 27
1972, p. 18. (A passagem citada pertence ao primeiro caderno preparatório sobre Epicuro,
datado do inverno de 1839, Berlim). As traduções de que nos servimos não são satisfatórias.
Confrontamo-las sempre com o texto original referido na nota anterior.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
28 João Quartim de Moraes
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 29
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30 João Quartim de Moraes
47Ib., p. 541.
48A disputada questão do desvio espontâneo é o tema central de Elizabeth Asmis, “Free
action and the Swerve”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII, 1990, que comenta, além do
livro de Walker G. Englert, Epicurus on the Swerve and Voluntary Action, uma vasta bibliografia
sobre o tema, e de Jeffrey S. Purinton, “Epicurus on ‘free volition’ and the atomic Swerve”,
Phronesis, 1996, XLIV (4), 1999.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 31
transporta a questão para mais além do tempo. Admitamos que cada colisão
singular possa ser explicada por colisões anteriores. Faltaria ainda explicar
radicalmente porque há colisões (“why there are collisions at all), isto é, porque os
tipos de movimento são tais (why there exists these types of motions) em vez de se
reduzirem ao retilíneo para baixo49. Embora tenha antes lembrado que Epicuro,
provavelmente levando em conta a observação aristotélica de que “as noções de
‘em cima’ e de ‘embaixo’ não fazem sentido se o universo é infinito em tama-
nho”50, supõe, para desenvolver seu argumento, que “se o único movimento
natural fosse retilíneo para baixo (were straight down)”, então “we would expect
that the atoms would fall straight downwards, like drops of rain in the night”51.
Esta evocação, em ambiente noturno, da chuva primordial de Lucrécio, é sintoma
claro da fonte efetiva de seu raciocínio.
Se não há um “embaixo” absoluto, a hipótese de O’Keefe não tem fun-
damento, já que os átomos dirigem-se “para baixo” seguindo uma infinidade de
trajetórias não-paralelas e o fato de que são infinitos constitui condição suficiente
para que colidam. Tanto assim que Epicuro considera prova evidente de que são
infinitos em número o argumento por absurdo de que, se finitos fossem, aí sim,
seriam arrastados e dispersos pela imensidão52.
Além disso, como mostrou Marie Cariou, apoiada na estrutura argumen-
tativa do segundo livro do De rerum natura, quando expõe, num primeiro tempo (a
saber, em II, 80-114), as características do movimento atômico, o poema “não
invoca de modo algum a declinação”53. Ao contrário, o verso 93 declara que os
átomos se propagam “in cunctas undique partes”. Note-se a ênfase da expressão
(retomada no verso 131): o adjetivo “cunctus”, referido ao substantivo “partes” e
regido pela preposição “in” + acusativo, indica que os átomos se dirigem para todas
49Tim O’Keefe, “Does Epicurus need the Swerve as an Archê of Collisions?”, Phronesis,
1996, XLI (3), p. 314. A ênfase em itálico está no original.
50 Remete a Aristóteles, Física, IV, 8, 215 a 6-10.
51 O’Keefe, ib., p. 314-15.
52 Cf. Carta a Heródoto, §42.
53 Marie Cariou, L´atomisme. Gasendi, Leibiniz, Bergson et Lucrèce, Paris, Aubier, 1978, p.
153.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
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54 ib., p. 153.
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 33
benefício da dúvida, já que, com efeito, a doutrina de II, 80-114 parece compa-
tível com a da Carta a Heródoto.
Recusar a espontaneidade do desvio dos átomos implica em sustentar que
se movem segundo princípios eternos e imutáveis. Ora, os princípios, no atomis-
mo, são os próprios átomos. (O vazio não tem propriedades, salvo ser o imenso
nada por onde se movem os corpos). Sabemos que a causa do movimento é o
peso. Supor que ele possa propelir as partículas corpóreas para direções quaisquer
seria introduzir uma indeterminação generalizada no fundamento mesmo das
coisas. É evidente, pois, que o peso exerce um efeito constante, imprimindo aos
átomos uma direção determinada. Qual? Antes de mais nada, o movimento é reti-
líneo. Esta é, com efeito, a característica a mais fundamental e a única universal, do
efeito exercido pelo peso sobre a trajetória dos átomos. Quer se dirijam para
baixo, para cima ou para os lados, os corpos vão sempre em linha reta. Pode-se,
claro, perguntar por que é retilíneo o movimento cuja causa é o peso. A resposta
mais plausível é que, não tendo propriedades, o vazio não pode exercer nenhum
efeito sobre a trajetória dos átomos. Eles se deslocam em linha reta porque ela é a
menor distância entre dois pontos. Para que dela se desviassem seria necessária a
intervenção de uma causa distinta do peso (ou o clinamen, uma não-causa), já que
as mesmas causas produzem os mesmos efeitos e o efeito do peso é propelir os
átomos para a frente.
De um ponto dado, entretanto, podem-se traçar infinitas retas, mas, face à
infinidade de trajetórias retilíneas possíveis, a trajetória de cada átomo só pode
seguir uma delas, à exclusão de todas as outras. A resposta óbvia é que eles se
dirigem para baixo. Mas como bem notou Jean-François Balaudé, em sua
introdução às obras de Epicuro, “... é claro que os átomos não seguem nenhuma
direção absoluta : não caem para baixo do todo, como se tendessem a se
depositar no fundo, mas caem relativamente a eles mesmos, devido à não-
resistência do vazio”, concluindo que “os átomos, que caem por seu próprio
peso, não se dirigem entretanto para baixo”55. A interpretação seria excelente se
55 J.-F. Balaudé, Épicure. Lettres, maximes, sentences. Paris, Librairie Générale Française,
1994, p. 91.
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56 Vale insistir em que, se os átomos não tivessem peso, ou se o peso que tivessem fosse
irrelevante para determinar-lhes o movimento, flutuariam no vazio, como supunham Leu-
cipo e Demócrito, obrigados a recorrer à hipótese de turbilhões cósmicos para explicar a
gênese dos mundos.
57 Carta a Heródoto, §61.
58 Note-se que Epicuro no §61 se serve do termo du/nameij para designar a força do
choque.
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59 Howard Jones, The Epicurean tradition, Londres e Nova Iorque, Routledge, 1992, p.
33-4.
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sempre o peso intrínseco do átomo, ao qual se associa, nos choques, sua absoluta
insecabilidade. O choque afeta a direção da trajetória, mas não o “impulso”
enquanto tal. Para que pudesse ocorrer alguma “diminuição de impulso”, seria
necessário que houvesse no vazio outra força, além do peso, por exemplo uma
força gravitacional que atraísse o átomo para o “fundo” do vazio. Para Epicuro
tal “força” simplesmente não existe. O único efeito do peso é a queda vertical na
direção determinada pelo choque, ou, mais exatamente, como escreve o próprio
Jones, pelo “ângulo de encontro” dos átomos. Adepto, também ele, da interpre-
tação predominante, para a qual o choque é condicionado pela pare/gklisij,
Jones atribui ao átomo de Epicuro uma força que ele não tem (a de declinar
espontaneamente) e um efeito que ele não sofre (perder velocidade na oblíqua). 60
Poder-se-ia, evidentemente, perguntar se, ao sustentar que os átomos não
caem verticalmente no vazio, mas deslocam-se em linha reta para a frente em todas
as direções, não estaríamos forçando o texto acima referido da Carta a Heródoto,
que contrapõe a trajetória para cima ou oblíqua à que se dirige para baixo. Como
mostra, entretanto, seu contexto, é num sentido relativo que ka/tw (para baixo) é
atribuído ao infinito (como a direção para a qual se dirigem os átomos isolados
no vazio). É sempre relativamente a algum corpo que podemos predicar o alto e
o baixo. Tanto assim que, em cada mundo particular (no nosso, por exemplo), o
significado destas relações, ou de leste e oeste, não é o mesmo que em outros
mundos, isto é, nas infinitas outras concentrações de átomos aglutinados em ilhas
siderais, situadas abaixo ou acima, à direita ou à esquerda daquela em que
vivemos. O cume de uma montanha que, de meu ponto de vista, está acima de
minha cabeça, estará abaixo dos pés de um condor que o sobrevoa. Já um
astronauta em excursão lunar veria a Terra acima de sua cabeça; só a veria abaixo
de seus pés se estivesse na face oculta da Lua e pudesse atravessar-lhe a espessura
com o olhar.
Se a trajetória dos átomos não tem um “terminum ad quem”, se não há
um ponto absoluto para o qual se dirijam, a direção de suas trajetórias é relativa a
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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 37
eles próprios. Um átomo rebatido para cima “cai” tanto quanto o rebatido para
baixo ou para o lado, já que por “queda” só se pode entender o efeito do peso no
vazio. “Para cima” ou “para o lado” denotam, se nossa interpretação é boa, a
mudança de direção provocada pelo choque considerada relativamente à trajetória anterior.
Subir neste sentido topológico é deslocar-se na direção oposta à anterior ao
choque e obliquar assumir uma direção que forma um ângulo maior que 0º e
menor que 180º relativamente à direção anterior à que descreviam os átomos
antes de serem rebatidos pelo choque. Mas, relativamente a si próprios, conti-
nuam “caindo” no vazio infinito por força do próprio peso, porque, além deste,
não há outra causa da “queda”. Não caem para baixo porque para baixo não tem
sentido absoluto, mas “caem”, isto é, seguem em frente até novo choque. Mas
exatamente porque em frente é a direção no vazio absolutamente considerada (é
neste sentido que é sinônimo de queda), não se dirigem nem para cima nem para
os lados, porque estas direções são sempre relativas à mudança de trajetória
resultante do choque com outros átomos.
Não podemos, é verdade, apontar nenhum texto de Epicuro que autorize
explicitamente esta interpretação da queda, mais literalmente, do movimento
(fora)/ para baixo, causado pelo próprio peso61, em termos de movimento
retilíneo para a frente62. Parece-nos que se chamou “para baixo” o movimento
fundamental do todo universal, que não tem alto nem baixo absolutos, foi porque
todas as direções (para cima, para baixo e oblíquas) obedecem à linha reta e,
portanto seguem “em frente”. Foi, pois, para distinguir o movimento absoluto
dos demais que o chamou “para baixo”. Por que não chamá-lo “oblíquo” ou
“para cima”? No que concerne a “oblíquo”, a resposta nos parece clara: uma
trajetória só pode ser dita oblíqua se forma um ângulo >0º<180º com a trajetória
61Ib., §61.
62 Epicuro não se serve nem do adjetivo o)rto/j, nem do advérbio o)rtw=j, referentes
possíveis de “em frente”. O advérbio o)rtw=j, é verdade, emprega-se quase sempre em
sentido moral (=agir retamente), mas, em vários autores, o adjetivo ocorre em sentido físico,
por exemplo o)rto/j ei)j o(don poreu/etai (= (ele) é transportado em linha reta pelo cami-
nho). Note-se que o adjetivo comparece, neste exemplo, empregado em sentido adverbial.
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sucessão dos dias e dos anos também servia aos Antigos de padrão de medida.
Mas, tal como teorizada por Aristóteles, a regularidade desta sucessão correspon-
dia à perfeição do movimento circular dos corpos celestes. Desnecessário insistir
em que este privilégio conferido ao círculo está muito mais distante da concepção
moderna do cosmos do que a atomística inaugurada por Leucipo e Demócrito.
Para Aristóteles, talvez não seja inútil lembrar, cada um dos quatro corpos
simples tende naturalmente a ocupar seu lugar próprio na esfera sub-lunar. A
terra, o mais pesado de todos, concentra-se em torno do centro do planeta; a
água vem logo acima, depois o ar e enfim o fogo, corpos mais leves, que tendem
a subir para a periferia do planeta. Epicuro contesta radicalmente o postulado
aristotélico de que o universo tem um ponto central em torno do qual os corpos
pesados se aglomeram. Como poderiam os corpos ser atraídos por um ponto
abstrato? A própria distinção aristotélica entre corpos pesados (que caem para o
centro do planeta) e corpos leves (que sobem para a periferia) é ilusória. Todos os
corpos têm peso. Chamamos leves os que têm pouco peso, pesados os que têm
muito, mas o peso, enquanto tal, é uma propriedade geral dos corpos.
Não que Aristóteles ignorasse esta distinção. Assim, numa passagem im-
portante da Metafísica64, ao explicar que a medida é aquilo pelo qual a quantidade
é conhecida, observa que o pesado e o rápido são comuns aos contrários
(to\ ga\r ba/roj xai\ ta/xoj koino/n en toi=j e)nanti/oij)65. Temos aqui um sen-
tido de to\ ba/roj que sugere o sentido moderno. Ele esclarece, com efeito,
que um e outro (ba/roj xai\ ta/xoj) se dizem em dois sentidos. No primeiro,
peso e rapidez (ou velocidade) designam respectivamente tudo que tem algum
peso e alguma rapidez, portanto também o leve, que possui algum peso e o
lento, que possui alguma rapidez (ou velocidade): “e)sti ga/r ti ta/xoj kai\ tou
brade/oj ...”66 No segundo, pesado e rápido denotam apenas o que é muito ou
mais pesado e o que é muito ou mais rápido, contrapondo-se a leve e lento, isto é,
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to tal, mas a trajetória (isto é, a grandeza percorrida pelo móvel), o limite aparece
como solução de continuidade. A unidade do movimento consiste exatamente em
percorrer sem interrupção (isto é, continuamente) uma determinada trajetória.
Interromper significa romper a continuidade e, portanto, a unidade: com efeito, o
móvel que pára torna-se imóvel e o ponto onde pára interrompe a continuidade
da grandeza, isto é, atualiza sua divisibilidade. Na trajetória, o limite não é dado
pela grandeza, e sim pelo movimento, ou, mais exatamente, pela interrupção do
movimento. Segue-se que um movimento absolutamente contínuo é um
movimento que não se interrompe nunca. Aristóteles não chama tal movimento
de infinito, porque para ele o infinito em ato não existe. Este postulado
ontológico se exprime fisicamente na impossibilidade de se percorrer uma
grandeza infinita. Não há tampouco, para Aristóteles, grandezas infinitas. Mas há
movimentos que percorrem, sem nunca parar, grandezas finitas. Deste ponto de
vista, continuidade significa, para a grandeza, divisibilidade ao infinito e, portanto,
aponta para o infinitamente pequeno e, para o movimento, duração infinita e,
portanto, aponta para o infinitamente grande.
À luz destas considerações podemos compreender que no livro VIII da
Física, Aristóteles, que afirmara no livro IV a continuidade de todo movimento
(na medida em que se conforma à grandeza), nega a continuidade do movimento
retilíneo: “aquilo que é deslocado segundo uma linha reta e limitada não pode
deslocar-se continuamente”75. Com efeito, acrescenta mais adiante, “o que,
sobretudo mostra que o movimento retilíneo não pode ser contínuo é que, ao
voltar para trás, ele tem de parar”76. Está subentendido que nenhuma reta é
infinita e que, portanto, haverá um ponto final em cada reta, no qual o móvel terá
de marcar uma pausa antes de continuar o movimento em outra direção. A
incompatibilidade desta concepção com o atomismo, notadamente com o de
Epicuro, é evidente. Os átomos só modificam suas trajetórias retilíneas através do
vazio infinito quando ocorrem choques que as desviam ou quando eles se
engancham para formar corpos compostos. O que sugere uma linha de reflexão
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
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plenitude de seu ser. Por isso mesmo, o movimento fisicamente mais perfeito é
ontologicamente o mais estéril, se é lícito empregar esta imagem biológica. Estéril
nos dois sentidos em que mais habitualmente nos servimos do termo: dele nada
nasce (ao contrário dos movimentos retilíneos da copulação, da gestação, do
parto) nem morre nada (no sentido em que uma solução é estéril ou um líquido
qualquer esterilizado). A esterilidade, no caso, é perfeição: não falta nada ao corpo
etéreo (no sentido próprio de feito de éter puríssimo) de maneira que, para ele,
mover-se não é buscar algo que lhe falte ou perder algo que tenha, mas ser
simples e plenamente. A célebre definição do movimento como enteléquia do
que está em potência enquanto tal significa, aplicada ao movimento circular, ir do
mesmo ao mesmo e, portanto permanecer no mesmo. A potência está colada ao
ato: a diferença ontológica entre possibilidade e realidade reduz-se ao mínimo.
No primeiro motor, o mais divino dos seres, ambas se confundem num ato puro.
Mas neste ponto mais alto da metafísica aristotélica, estamos mais além do
movimento: o primeiro motor move as esferas na plenitude ontológica de sua
própria imobilidade.
Longe, portanto de se confundir com o tempo, o movimento circular da
esfera apresenta a imagem da eternidade. A imagem do tempo, ao contrário, é,
como a série dos números, uma linha reta orientada. Uma linha em movimento
contínuo, mas que não vai do mesmo ao mesmo como o círculo. Vai do outro ao
outro. O presente, com efeito, é sempre outro e nenhuma parte do tempo
coexiste com nenhuma outra. Que o curso retilíneo do tempo se deixe medir pelo
curso circular da esfera do Todo e também o meça, pode parecer um paradoxo,
mas constitui, em todo caso, no horizonte do aristotelismo, para o qual não há
infinito em ato, uma inelutável constatação. A solução aristotélica deste aparente
paradoxo consiste em caracterizar o tempo como um número.
Já no horizonte do epicurismo, para o qual o todo se “compõe” do vazio e
dos átomos, ambos infinitos, a imagem do tempo como uma reta infinita apenas
reflete a da eterna trajetória retilínea dos átomos.
Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.