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CDD: 146.

A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do


Atomismo∗
JOÃO QUARTIM DE MORAES

Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Campinas
CAMPINAS, SP
quatis@uol.com.br

Resumo: A primeira versão do atomismo deixou indeterminada a causa e a trajetória do movi-


mento dos corpúsculos elementares no vazio infinito. Epicuro, porém, sustenta que eles se movem
em linha reta, propelidos pelo próprio peso. Seus críticos ponderaram, entretanto, que se os átomos
caíssem paralelamente com igual rapidez (já que, não tendo nenhuma propriedade, salvo tornar
possível o movimento, o vazio não lhes opõe nenhuma resistência), eles descreveriam rotas paralelas
no vazio infinito, não se encontrando nunca e, portanto não formariam mundos. Para evitar esta
conseqüência absurda (já que evidentemente, há mundos, o nosso em todo caso), os epígonos,
nomeadamente Lucrécio, atribuíam a Epicuro a doutrina (sintomaticamente designada pelo termo
latino clinamen) de que ocorrem desvios na trajetória retilínea dos átomos, que os fazem colidir uns
contra os outros e, através destes entrechoques, gerar um mundo. Argumentamos que esta pretensa
solução repousa numa interpretação do sentido da queda dos átomos que Epicuro recusou
explicitamente, ao declarar que não se deve predicar o alto e o baixo no infinito. Queda vertical não
denota uma direção rumo ao ponto mais baixo: o vazio infinito não tem “fundo”. Na conclusão,
comparamos o primado do círculo na cosmologia aristotélica ao da reta na cosmologia epicureana.

Palavras-chave: Movimento. Átomo. Clinamen. Vazio. Infinito.


Registro meu reconhecimento à FAPESP, que financiou em 2001-2002 o projeto de
pesquisa em cujo âmbito desenvolvi a pesquisa de que resultou o presente artigo, bem como
ao CNPq, o qual, com uma bolsa iniciada em 2003, encorajou-me a prosseguir nesta linha de
estudo. Agradeço muito ao autor do parecer dos Cadernos pelas minuciosas e pacientes
observações, de forma e de fundo, que me permitiram eliminar várias falhas da versão
original. Agradeço também ao relator da FAPESP que examinou meu Relatório de Pesquisa
de 2001 pelas observações e comentários.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
8 João Quartim de Moraes

1. O movimento dos átomos segundo Leucipo e Demócrito


Tal como legada por Leucipo e Demócrito, a doutrina do movimento
corpuscular no vazio infinito apresenta uma omissão e uma ambigüidade. A
omissão foi apontada por Aristóteles: Demócrito nada diz sobre as causas do
movimento. A ambigüidade foi explicitada na polêmica suscitada, no final do
século XIX, entre os historiadores alemães da filosofia antiga, a respeito da
natureza do movimento dos corpúsculos elementares no vazio infinito. Os
fragmentos dos dois primeiros atomistas sugerem um deslocamento voltejante, à
maneira de grãos de poeira, ao passo que Eduard Zeller sustentou que eles se
deslocam em queda vertical1. Esta interpretação foi, desde o início, muito
criticada, sendo atualmente rejeitada por praticamente todos os estudiosos da
questão, a ponto de W. Guthrie considerar-se dispensado de discuti-la2. O
próprio Zeller, de resto, em Delineamentos da história da filosofia grega, modificou em
parte sua interpretação, afirmando que:

Enquanto Empédocles e Anaxágoras tinham acreditado serem necessárias forças


que pusessem em movimento a substância primária (Amor e Ódio, segundo aquele,
Mente segundo este), os atomistas , como os antigos físicos jônicos, transferiam
movimento à própria substância primária. Os átomos, graças a seus diferentes
tamanhos e pesos, estão desde o início em movimento rotatório. Por meio deste
movimento, de um lado, os átomos similares são agrupados e, de outro lado,
complexos atômicos ou mundos separados e isolados são formados pela conjunção
de átomos de diferentes formatos.3

A modificação merece registro, mas tampouco é satisfatória. Em si mes-


mas, as diferenças de tamanho e de peso não explicam a natureza originariamente

1 Zeller em Die Philosophie der Griechen III, Theil I, Abtheilung, 3 Aufl., p. 400.
2 Cf. W. Guthrie, A History of Greek Philosophy, II, p. 400-1. Guthrie apresenta-o (p. 401,
n. 1) como o principal defensor desta interpretação.
3 Eduard Zeller, Outlines of the History of Greek philosophy, Meridian Books, Nova Iorque,

1958, p. 83. Consultamos este livro na tradução inglesa de L.R. Palmer, efetuada sobre a 13º
edição alemã, revista por Wilhelm Nestle. Zeller reitera mais adiante: “Em contraste com a
teoria de Demócrito de um movimento rotatório, Epicuro concebia os átomos como caindo
no espaço vazio” (ib., p. 253-54).

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 9

rotatória do movimento dos átomos livres no vazio. Os comentadores do século


XX nos parecem ter discernido o elo ausente no comentário do eminente
historiador alemão: isolados na imensidão, os átomos voltejam sem rumo (como
sugere a imagem de grãos de poeira flutuando no ar calmo); só assumem movi-
mento rotatório ao serem colhidos pelo turbilhão ou vórtice cosmogônico (o
termo grego é di/ne). Tal é o cerne da questão: a concentração aleatória, numa
zona qualquer do vazio, de átomos até então flutuando isoladamente, provoca
uma turbilhonante interação que aglomera os átomos mais pesados e rechaça os
mais leves4. Margherita Isnardi Parente, contrapondo Epicuro, para o qual “o
peso dos átomos tem uma função fundamental em seu movimento”, a Leucipo e
Demócrito, nota que, para estes, “o pesado e o leve só se ativam quando se
produz um turbilhão [...], não tendo função alguma no movimento absoluta-
mente livre dos átomos voltejando no espaço”5. A expressão “movimento

4 Na explicação de Émile Bréhier, uma vez formado este vórtice, os corpúsculos mais

leves são expelidos “para o vazio exterior”, “como ocorre com um turbilhão de vento ou de
água”, enquanto que “os átomos compactos se reúnem no centro, onde formam um
primeiro agrupamento esférico”. Emile Bréhier, Histoire de la Philosophie, tome premier,
L’Antiquité et le Moyen Age, fascicule 2, Paris, P.U.F., 1967, p. 69. Descontada a
impropriedade do termo “compacto” para denotar os átomos mais pesados (todos os
átomos são compactos, no sentido de que não podem ser comprimidos), esta explicação nos
parece adequada.
5 Cf. Margherita Isnardi Parente (org.), Epicuro, Opere, Torino, Unione Tipografico-

Editrice Torinese, 2° edição, 1983, p. 15. Demócrito, com efeito, segundo Diogenes Laertius
(IX, 44), sustentou que

...ta\j a)to/mouj de\ a)pei/rouj ei=)nai kata\ me/geqoj kai\ plh=qoj,


fe/resqai d” e)n t%= o(/l% dinoume/naj, kai\ ou(/tw pa/nta ta\
sugkri/mata genna=n, pu=r, u(/dwr, a)e/ra, gh=n.

O termo “vórtice” aparece na forma do particípio dinoume/naj. Mais adiante (IX,45)


encontramo-lo na forma de substantivo:

Pa/nta te kat” a)na/gkhn gi/nesqai, th=j di/nhj ai)ti/aj ou)/shj th=j


gene/sewj pa/ntwn, h(\n a)na/gkhn le/gei.

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absolutamente livre” parece exagerada numa filosofia em que tudo é regido pela
necessidade. É plausível, entretanto, supor que a “a)na/gke” democritiana signi-
fique estritamente ausência de um logos ou nous; discutindo a causalidade no ato-
mismo de Leucipo e Demócrito, Guthrie6 mostra que tanto a necessidade quanto
o acaso (tu/xh ou au)to/maton) são considerados causas.
A explicação é compatível com a de M. Isnardi Parente: resultado de uma
determinada configuração de um complexo de átomos, o vórtice, por sua vez,
reage sobre eles, ativando a oposição pesado/leve, até então irrelevante: os mais
pesados (e não “mais compactos” como diz impropriamente Bréhier) se agru-
pam, repelindo os mais leves.
Para Guthrie, não é tanto o peso, mas o tamanho (size) e o formato (shape)
que se ativam no grande redemoinho originário: nele, com efeito, “começa a
operar uma lei cardeal do atomismo: o semelhante tende ao semelhante e o
semelhante age sobre o semelhante”7. Não nos parece evidente que esta “lei”
tenha validade para o atomismo de Epicuro, segundo o qual os átomos se
articulam (em vez de se repelirem) na medida em que suas diferenças de tamanho e
de formato são complementares. Dois átomos semelhantes, por exemplo, de
formato esférico, tendem a se repelir quando se chocam. Mas, justamente, o peso
é a causa fundamental dos entrechoques e, quando estes ocorrem, são os des-
semelhantes que mais facilmente tendem a se agregar uns aos outros (o côncavo e
o convexo, por exemplo).

A autora acompanha o estudo de Ettore Bignone consagrado à “doutrina epicúrea do


clinamen”, reunido em apêndice ao notável L’Aristotele perduto e la formazione filosofica di
EpicuroUtilizamos a 2° edição, póstuma, Florença, La Nuova Italia, 1973. A 1° edição é de
1936. O apêndice sobre o clinamen está no volume II, p. 409-56. As citações de Diogenes
Laertius, remetem a Lives of Eminent Philosophers, volume II, livro IX (a respeito de Demó-
crito) e X (a respeito de Epicuro), com o texto original e a tradução para o inglês de R.D.
Hicks, Loeb Classical Library, Harvard University Press, 1° edição 1925.
6 W. Guthrie, ib., p. 414 e ss.
7 ib., p. 409.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
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Distinguindo entre a questão da causa ou origem do movimento e a de sua


natureza, Guthrie nota, a respeito da primeira, que por ter tido a possibilidade,
que não temos, de ler diretamente Leucipo e Demócrito, Aristóteles merece um
crédito de confiança quando assegura que, contrariamente a Anaxágoras, para o
qual o movimento teve um começo, os atomistas, por considerar que ele sempre
foi, eximem-se de perguntar por sua causa ou origem8. Constatar que os átomos
se movem desde sempre não explica, porém, por que se movem. Não basta, com
efeito, declará-los eternos para dar por resolvida a questão sobre seu princípio,
entendido como causa e não apenas como (falta de) origem no tempo. Por isso,
parece-nos válida a crítica implícita na observação de Aristóteles, desenvolvida
por Alexandre de Afrodísia: “Leucipo e Demócrito [...] não dizem de onde
provém o princípio do movimento do mundo físico”9. Em defesa dos dois pri-
meiros atomistas, Guthrie observa que era próprio a um grego do século – V
considerar as noções de começo, origem, princípio determinante e causa como
estreitamente reunidas num único termo, arché, ao qual o movimento seria
imanente10. Mas justamente, o desenvolvimento da cosmologia pré-socrática
consistiu em (a) identificar o princípio (arché), seja ele água, ar, ilimitado etc. e (b)
distinguir o substrato imanente do devir da explicação da boa ordem (cosmos) do
próprio devir. Esta segunda questão apareceu claramente quando o substrato
deixou de ser identificado a uma só determinação. Se tudo é água, o movimento
só pode ser o da própria água. Mas se os princípios são quatro e, “a fortiori”, se
são ilimitados, é preciso explicar como se combinam ou se repelem, portanto,
qual a causa de seus movimentos.
Quanto à natureza do movimento, a interpretação de Guthrie converge
com a de M. I. Parente, acima referida: o movimento fundamental dos átomos
livres é “irregular e sem direção (aimless)”11. O que mostra, de resto, que embora

8 ib., p. 400-1.
9 Cf. ib., p. 400.
10 ib., p. 400.
11 ib., p. 408.

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distintas, a questão da causa fundamental e a da natureza são inseparáveis. Ao


silêncio a respeito da primeira corresponde o caráter indeterminado da segunda.

2. Cícero, Lucrécio e a aporia da queda vertical


Desde Cícero, pelo menos, os adversários de Epicuro consideraram pouco
ou nada relevantes as inovações filosóficas do epicurismo relativamente às idéias
de Demócrito12. A pretensão de nada dever a seus predecessores, de que se
felicitava o Mestre do Jardim, seria, para estes comentadores, inteiramente
descabida. Do lado dos simpatizantes do epicurismo, notadamente, na época
moderna, os enciclopedistas e os filósofos alemães do século XIX, valorizou-se
sobretudo o conteúdo libertário de sua ética e, na física, a doutrina da declinação
espontânea dos átomos. Assim, segundo Zeller, Epicuro encontrou no indivíduo
o supremo fim prático (“im Einzelwesen den letzten praktischen Zweck
fanden”), como Demócrito havia reconhecido na particularidade absoluta ou nos
átomos a realidade originária (“... in dem absolut Einzelne oder in den Atomen
das ursprünglich Wirkliche erkannt ...”)13. As lacunas da documentação historio-
gráfica permitem estas e outras hipóteses. Mesmo porque, incontestavelmente, as
trilhas do atomismo e do hedonismo se entrecruzam. Mas sustentar que os seres
são os corpos simples não leva necessariamente a considerar, como o fará Epi-

12 Esta acusação é referida por Diógenes Laércio (X, 4):

“ta\ de\ Dhmokri/tou peri\ tw=n a)to/mwn kai\ A)risti/ppou peri\ th=j
h(donh=j w(j i)/dia le/gein”.

Xénia Atanassiévitch, empenhada em salvaguardar a contribuição de Epicuro, classifica de


“falsa e injusta” a opinião dos que o acusam de não ter idéias próprias, “apropriando-se
inconfessadamente da física de Demócrito e da moral do cirenaico Aristipo”. Cf. L’atomisme
d’ Épicure, Paris, PUF, sem data, p. 11.
13 E. Zeller, Die Philosophie der Griechen, op. cit., p. 400. Xénia Atanassiévitch propõe a

hipótese oposta: Epicuro foi “primeiro atraído pela moral de Demócrito” e só depois, para
lhe conferir fundamento físico, recorreu ao atomismo (ib., p. 13). Esta sugestão parece-nos
um tanto forçada.

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curo, que o sumo bem é o prazer. Foi a física e não a ética de Demócrito que se
inscreveu no pensamento grego posterior como seu principal legado, ao passo
que encontramos na doutrina cirenaica a primeira expressão notável da ética
hedonista14. De resto, Zeller enfatiza a analogia da individualidade ética em
Epicuro com a individualidade física em Demócrito, mas não a apropriação por
aquele da moral cirenaica. Os próprios cirenaicos se encarregaram de explicitar
polemicamente a profunda diferença entre sua própria concepção do prazer e a
de Epicuro. Não considerando que possa haver prazer no repouso, mas somente
no movimento, referiam-se ironicamente à tese epicurista de que a felicidade
consiste na eliminação de tudo que acarreta sofrimento, tratando-a de “estabi-
lidade do morto”.
No De finibus (I, 6, 18-9), Cícero questiona, com ênfase tão sarcástica
quanto injusta, os fundamentos mesmos da cosmologia epicureana. Segundo ele,
Epicuro só não escorrega quando segue Demócrito. Ambos teriam deixado de
lado a força e a causa formadora15, considerando apenas a matéria (“de materia
disseruerunt, vim et causam efficiendi relinquerunt”). A este vício comum o
filósofo do Jardim teria acrescentado outro erro de sua própria lavra, a saber que
os átomos são arrastados em linha reta para baixo por seu peso (“... corpora ferri
deorsum suo pondere ad lineam”). A seqüência do argumento é bem conhecida:
se os átomos caem em linha reta no infinito, não se compreende como poderiam

14 Falta argumentação sistemática aos fragmentos de Demócrito consagrados à ética.

O fragmento 69, Diels, por exemplo, declara que “o bem e o verdadeiro são idênticos
para todos os homens; o prazer é diferente para cada um”. É difícil considerar como
hedonista uma moral para a qual a natureza do bem se opõe à do prazer como o universal
ao singular.
15 Traduzir “causam efficiendi” por causa eficiente seria deixar-se enganar por um “falso

amigo”. Eficiente corresponde ao particípio presente do verbo latino efficio (efficiens) ao passo
que efficiendi é o genitivo do gerundivo do mesmo verbo. Literalmente, a tradução seria: causa
de formar, ou, fugindo um pouco da letra em função do sentido, causa da formação. O
latinista Charles Appunh em sua tradução para o francês (Cicéron, Du bien suprême et des maux
les plus graves, Paris, Garnier,s.d.) propõe “cause informatrice”. Cf. ib., p. 16-9.

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se encontrar. Para evitar tal conclusão, Epicuro, “homo acutus”16, teria recorrido
à declinação espontânea dos átomos. Recurso “pueril”, fulmina Cícero, além de
gratuito (“ad libidinem fingitur”). “Nada mais torpe para um físico do que
sustentar que algo se engendra sem causa”. Recurso inútil, enfim, porque se todos
os átomos desviam, nada garante que venham a se encontrar. Enfim, se uns
desviam e outros não, haveria como que esferas distintas para uns e outros
(“quasi provincias atomis dare”) e o caótico entrechoque dos átomos declinantes
com os de rota sempre retilínea não poderia ser causa formadora da bela ordem
do mundo (“[...]hunc mundi ornatum efficere non poterit”).
Há pouco para salvar nestas críticas, mesmo porque, certa ou errada, a tese
de que os átomos caem verticalmente por seu peso próprio demonstra, ao
menos, ser injusto acusar Epicuro de não haver dissertado a respeito da força
eficiente (vim)17. É o próprio Cícero, pois, que reconhece, “malgré lui”, ao
escrever que os átomos são transportados “deorsum suo pondere ad lineam”, as
duas inovações decisivas que ele introduziu na cosmologia legada por Demócrito:
a causa fundamental do movimento dos átomos é seu próprio peso (“suo
pondere”, tradução latina de dia\ tw=n i)di/wn barw=n)18; este movimento é
retilíneo. A primeira inovação, suficientemente clara e explícita nos textos e
fragmentos de Epicuro, não dá lugar a discrepâncias hermenêuticas. A segunda

16 Como fica claro na contundente crítica que vem em seguida, a qualificação, na melhor

das hipóteses, é apenas condescendente. A tradução mais apropriada parece-nos “Epicuro,


homem esperto” ...
17 Assim traduzimos, pelas razões apontadas na nota 15, o termo “vim”. É este que tem

a conotação mais próxima à famosa “causa eficiente” dos manuais de filosofia. Ao passo
que “cause informatrice”, boa tradução francesa de “causam efficiendi”, corresponde às
causas formal e final dos escolásticos. Ao acusar Epicuro de ignorá-la, Cícero arromba uma
porta aberta, ou, o que dá no mesmo, rejeita dogmaticamente a própria posição filosófica
atomista: a ordem do todo provém do acaso e não de um espírito transcendente ou
imanente.
18 Carta a Heródoto, §61. As referências ao texto de Epicuro conservados por Diógenes

Laércio remetem à edição inglesa, Lives of Eminent Philosophers, já citada, e à edição italiana,
Epicuro. Lettere sulla fisica, sul cielo e sulla felicità, de Francesco Adorno, que se serve do texto
estabelecido por Arrigheti. Milão, Biblioteca Universale Rizzoli, 1994.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 15

suscitou e continua suscitando, desde as acerbas críticas que recebeu por parte de
Cícero, uma longa série de polêmicas.
Num estudo cujos resultados foram parcialmente publicados19, procura-
mos mostrar, reconstruindo, em suas grandes linhas, este longo debate transmi-
tido dos antigos aos modernos, que a doutrina do clinamen, exposta por Lucrécio,
mas associada por uma longa tradição de dois milênios ao pensamento original
do próprio Epicuro, longe de constituir, como pretenderam tanto os críticos
como muitos epígonos, um recurso indispensável (porque se não desviassem da
queda vertical, os átomos nunca se encontrariam, nem portanto formariam
mundos), não somente não corresponde a nenhuma exigência de sua física, como
também nela introduz, desnecessariamente, uma brecha teórica, na medida em
que apela para um efeito sem causa20. Sustentamos, em particular, que a ausência
do termo pare/gklisij21, referente grego de clinamen, e do argumento correspon-

19 “Clinamen: o milenar prestígio de um falso problema”, p. 179-212, in Ética e política no


mundo antigo, H. Benoit e P.P. Funari (orgs.), Campinas, IFCH/FAPESP, 2001. Reproduzido
em Amor Scientiae, “Festschrift” em homenagem a Reinholdo Aloysio Ullmann, Porto
Alegre, Edipucrs, 2002, p. 405-37. Retomamos aqui, com modificações, passagens deste
estudo, cujo título vale apenas na medida em que refuta, no terreno da historiografia
filosófica, uma certa linha de interpretação que imputa a Epicuro a doutrina do clinamen. Mas
essa doutrina, tal como enunciada em Lucrécio e retomada ao longo de dois milênios por
intérpretes e comentadores do epicurismo, não é, em si mesma, um falso problema
filosófico. Mesmo porque o critério para aferir a “falsidade” de um problema depende de
uma posição filosófica prévia ...
20 Bréhier, enfatizando o caráter espontâneo do desvio cosmogônico, que ocorre em

lugar e tempo indeterminados, lembra que os adversários do epicurismo não pouparam


sarcasmos contra este “coup de pouce” do “físico atrapalhado ao não ver os fatos se
enquadrar em sua teoria”. Menciona ainda a observação de Santo Agostinho em Contra os
Acadêmicos, de que assumir tal indeterminação era “abandonar toda a herança de
Demócrito”. Émile Bréhier, Histoire de la Philosophie, tome premier. L’Antiquité et le Moyen Age.
II Période Hellénistique et Romaine, Paris, Felix Alcan, 1934, p. 346-47.
21 O Thesaurus Graecae Linguae, volume 6, Paris, Firmin Didot, 1842-1847, refere no

verbete pare/gklisij os significados: “Defluxio et inclinatio in latus”, empregado por


Galeno em anatomia (por exemplo, “vulvae ad latus inclinatio”) e “Declinatio”,
acrescentando: “De atomis Epicuri”. Só que, como o fará também A. Bailly no mesmo

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dente, nas Cartas a Heródoto e a Pitocles, em que Epicuro sintetiza seu pensamento
cosmológico, explica-se pela simples razão de que não integram sua concepção
do fundamento das coisas e que, portanto, longe de constituir um indispensável
complemento, configuram um corpo estranho à lógica interna de sua filosofia.
Do ponto de vista da história da filosofia, para a qual (como para todos os demais
ramos da história), a referência aos documentos é indispensável, este silêncio de
Epicuro constitui, por si só, um forte argumento a favor de nossa posição, a
saber, que, enquanto tal, a segunda inovação de sua física, denotada por Cícero e,
antes dele, por Lucrécio, pelo advérbio “deorsum” (para baixo), tradução latina
de h( ka/tw fora/22 (literalmente, o transporte para baixo), não conduz a nenhu-
ma aporia, nem exige, portanto, o apelo à doutrina do desvio ou declinação es-
pontânea dos átomos.
Vale notar que Lucrécio utiliza muito menos, quando expõe esta sua
doutrina no De rerum natura (II, 216-93), o substantivo latino clinamen, pelo qual a
posteridade a designou, do que das formas verbais decedere (v. 219), declinare (v.
221), inclinare (v. 243), declinare (v. 250), declinando (v. 253), declinamus (v. 259). Cli-
namen só aparece no final desta exposição (verso 292). O termo, muito pouco
empregado, vem do verbo clino, que também existe em grego (kli/nw), com o
mesmo significado (inclinar). O parentesco com inclinare e declinare salta aos olhos.
Muito provavelmente, sob reserva de uma investigação filológica mais acurada, o
prestígio do termo clinamen se deve justamente ao fato de, por ser raro, prestar-se
mais do que declinação ou inclinação para denotar o desvio espontâneo.
Ele não comparece, porém no enunciado inicial da doutrina:

verbete de seu Dictionnaire Grec-Français, define pare/gklisij como “inclinaison de côté”,


referindo dois exemplos, ambos atribuídos a Epicuro, mas tirados de dois doxógrafos que
viveram respectivamente cerca de trezentos e cinqüenta e setecentos e cinqüenta anos
depois do Mestre do Jardim: Plutarco (Moralia, 883a, etc.) e Stobeu (Eclogarum physicarum et
ethicarum libri II, 1, 346).
22 Carta a Heródoto (§61).

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 17
Corpora cum deorsum rectum per inane feruntur,
Ponderibus propriis, incerto tempore ferme,
Incertisque locis, spatio decedere paulum,
Tantum quod momen mutatum dicere possis. (De rerum natura, II, 217-220).

As palavras-chave destes quatro versos são deorsum, rectum e decedere.


(Cícero, na passagem acima citada, emprega também “deorsum”, mas escreve “ad
lineam” em vez de “rectum”). A prova de que os átomos23 devem necessa-
riamente declinar vem logo a seguir, sob a forma de um raciocínio por absurdo:

Quod nisi declinare solerent, omnia deorsum,


Imbris guttae, cadere per inane profundum,
Nec foret offensus natus, nec plaga creata
Principiis : ita nil unquam natura creasset. (221-24)

Se os átomos não “costumassem declinar”, não se entrechocariam, nem


criariam natureza alguma ... Para evitar esta conseqüência absurda (já que
evidentemente, há mundos, o nosso em todo caso), Lucrécio afirma que Epicuro
teria introduzido a hipótese de que ocorrem desvios na trajetória retilínea dos
átomos, que os fazem chocar-se uns contra os outros e, através destes
entrechoques, gerar um mundo, ou modernizando a expressão, um sistema solar
ou uma galáxia. Este desvio, que ocorreria em lugar e tempo indeterminados, de
maneira espontânea, isto é, sem causas, estaria aquém do limite de nossa percepção,
constituindo pois uma inferência sobre o invisível.
Sem dúvida, a fórmula “nisi declinare solerent”, isolada de seu contexto,
poderia ser interpretada como significando apenas que os átomos habitualmente
desviam-se da queda vertical para descrever, em conseqüência das constantes
colisões, trajetórias ascendentes ou oblíquas. Mas a estrofe 217-220 é hermeneu-
ticamente inseparável da seguinte (221-24) e nesta, o omnia deorsum do verso 221
abre a frase que conclui no verso 222: Imbris guttae, cadere per inane profundum.
Todos os átomos (livres), como gotas de chuva, cairiam (se não declinassem) em
direção do “fundo” do vazio. Declinare do verso 221 só pode, pois ser inter-

23Os versos 221-24 não deixam nenhuma dúvida a respeito da tradução de “corpora”
no verso 217: o poeta ali designa os átomos e não os corpos compostos.

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18 João Quartim de Moraes

pretado em termos de mudar de rumo abrupta e arbitrariamente, por “iniciativa”


própria e não por força de uma colisão. Esta declinação espontânea é, portanto
apresentada por Lucrécio como causa, ou condição no sentido forte, da gênese
dos compostos. Sem ela, os átomos estariam condenados a nunca se encontrar,
não podendo, portanto, gerar corpos compostos (versos 223-24). Para Epicuro,
ao contrário, a prova evidente de que os átomos são infinitos em número está em
que, como vimos, se finitos fossem, aí sim, seriam arrastados e dispersos pela
imensidão. O fato de serem infinitos constitui condição suficiente para que
colidam (Carta a Heródoto, §42).
Por isso subscrevemos, contra a opinião de Marie Cariou, a de Solovine,
que considera os versos II, 217-24 como estando “em contradição flagrante” não
somente com o pensamento do Mestre, mas também “com tudo o que (Lu-
crécio) diz alhures”24, isto é, nos versos 80-132, que descrevem o movimento dos
átomos no vazio como expansão “in cunctas undique partis”. Particularmente
significativa é a passagem em que o poeta compara o movimento dos átomos
isolados no vazio à agitação dos pequenos grãos de poeira que podemos observar
quando um raio de sol penetra numa zona de sombra. Este permanente combate
das partículas de matéria no feixe luminoso permite formar uma imagem “da
contínua agitação dos elementos primordiais no vazio imenso”25. A imagem nos
parece, entretanto, adequada à física de Leucipo e Demócrito e não à de Epicuro.
Sugere, com efeito, átomos inumeráveis flutuando (e não em queda livre) no
vazio.
A explicação proposta por Solovine para a origem da divergência filosófica
de Lucrécio relativamente a Epicuro é a mesma de que se servira Bignone para
sustentar a hipótese de que a doutrina do clinamen foi inventada por este, numa

24 Maurice Solovine, “Note sur le clinamen”, in Épicure.Doctrines et maximes, Paris,


Hermann, 1965, p. 179. A edição original do livro, publicada em 1940, contém um prefácio
do próprio Solovine, datado de Paris, abril de 1938. Na edição de 1965, de que nos
servimos, há uma introdução de Jean Pierre Faye, infelizmente demasiado carregada de
efêmeros modismos intelectuais, em que retoma contra Solovine, mas sem qualquer
argumento novo, a imputação a Epicuro da doutrina do clinamen.
25 ib., p. 179-80.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 19

fase tardia de sua trajetória filosófica, para replicar a críticas dos acadêmicos e
peripatéticos. O poeta romano, preocupado em provar, contra os aristotélicos e
os estóicos, que os corpos (compostos) leves não tendem naturalmente para
cima, argumenta, nos versos II, 184-215 (logo antes, portanto, de atribuir aos
átomos a faculdade de declinar afim de formar mundos), que a chama não se
ergue por si própria, e sim porque é pressionada pelo ar. Não fosse esta pressão,
ela cairia para baixo, “já que todos os corpos pesados, por si próprios, dirigem-se
para baixo” (verso 190). Escapou-lhe que “para baixo” só designa uma direção
unívoca no interior de um mundo constituído e que, portanto os corpos
elementares, dirigindo-se para baixo, não caem no vazio profundo à maneira de
gotas de chuva. Cair no interior de um aglomerado sideral não tem o mesmo
sentido que cair no vazio, já que neste os átomos isolados não caem na mesma
direção. Não é preciso, pois que os átomos declinem para se encontrar e criar
mundos.
Também Mayotte Bollack empreendeu, com o objetivo de restabelecer o
significado verdadeiro da doutrina do clinamen , um esforço de análise de De rerum
natura II, 184-293, em que, retomando a linha hermenêutica predominante,
imputa a Epicuro o princípio da declinação espontânea dos átomos26. Sua análise
é rigorosa e minuciosa, mas a argumentação filosófica não tem o mesmo fôlego
que a filológica. Sustenta que a “teoria dos minima” (Carta a Heródoto, §58 e ss.)
permitiu “distinguir as duas trajetórias anteriores aos choques”27. Oferece como

26 Mayotte Bollack, “‘Momen mutatum’ (La déviation et le plaisir, Lucrèce, 184-193)”,

acompanhado de um apêndice da autora e de Jean Bollack e de “Histoire d’un problème” de


Heinz Wismann, in Cahiers de Philologie 1, Études sur l’épicurisme antique, Université de Lille III,
1976.
27 loc. cit., p. 195-96. Curiosa ou sintomaticamente, a nota a que remete esta afirmação

(nota 4, p. 195), em vez de citar a fórmula precisa em que Epicuro teria confortado tal
interpretação, cita Derrida (!), que em “Lucrèce et le naturalisme”, Les études philosophiques, 16,
1961, p. 22, vê no “clinamen ... a determinação originária da direção do movimento do átomo, a síntese do
movimento e de sua direção” (itálico no original). Ela mesma reconhece, entretanto, que o estudo
de Derrida não permite “resolver os problemas do texto nem compreender as aporias da
doutrina”. É o caso de perguntar por que então o citou.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
20 João Quartim de Moraes

prova um fragmento de Aétio: “os átomos se movem ora segundo a reta


(kata\ stagmh/n), ora segundo o desvio (kata\ pare/gklisin); os (movimentos)
para cima (ta\ de\ a)\nw kinou/mena) (ocorrem) segundo o choque e a rebatida
(kata\ plhgh\n kai\ palmo/n). Para a autora, daí se infere que “a queda retilínea
e o desvio são apresentados como as duas possibilidades alternativas de um
mesmo movimento, que é expressamente oposto ao movimento das rebatidas,
oriundo dos choques”28. Note-se que o texto de Aétio refere-se ao movimento
dos átomos sem aludir a qualquer anterioridade relativamente aos choques e que
fala em movimento segundo a reta e não, como ela diz, em “queda retilínea”. Além
disso, salvo incontestável prova gramatical em contrário, não nos parece obriga-
tório entender que os dois movimentos do átomo estão expressamente contra-
postos às rebatidas.
Ainda que fosse justa a interpretação de M. Bollak, dela não se poderia
extrair nenhuma conclusão definitiva a respeito do pensamento original de
Epicuro, nem de Lucrécio. O doxógrafo Aétio viveu no século I de nossa era.
Três séculos separam-no, pois do Mestre do Jardim e um século do grande
epígono romano. Constatação que nos conduz de volta à única fonte incon-
testável do pensamento dos dois filósofos, a saber, os textos que se lhes podem
atribuir com certeza.
Segundo Lucrécio, o desvio espontâneo é necessário não somente para
explicar a gênese dos compostos, mas também a autonomia da conduta. Se
imperasse na natureza um inelutável encadeamento de todos os movimentos, se
nada pudesse romper os nexos mecânicos, donde proviria a liberdade de
movimentos que constatamos em todos os viventes?
Libera per terras unde haec animantibus exstat,
Unde est haec, inquam, fatis avolsa potestas,
Per quam progredimur quo ducit quemque voluntas? (256-58)

No De fato (X, 22) e no De natura deorum (I, 25), Cícero dirige contra Epi-
curo o argumento de Lucrécio. No De fato declara que “Epicuro introduziu esta

28 ib., p. 196.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 21

explicação por temer que se os átomos fossem arrastados por seu peso natural e
necessário, não haveria nada livre em nós, já que o movimento da alma resultaria
do movimento dos átomos” e, no De natura deorum, que “se os átomos fossem
arrastados para baixo por seu próprio peso (in locum inferiorem suopte pondere),
nada estaria em nosso poder”. Seríamos submetidos, como tudo mais, à férrea
necessidade do movimento atômico. Para fugir desta conclusão, Epicuro teria
atribuído aos átomos a faculdade “de declinar um pouquinho (declinare
paululum) do movimento para baixo (deorsum)”. “Melhor teria sido calar-se do
que resistir tão descaradamente (impudenter)! É mais torpe (turpius) lançar tal
argumento do que reconhecer não dispor de argumento algum!”29. Não ocorreu
ao grande autor romano a hipótese de que nem tudo que Lucrécio escreveu pode
ser imputado ao filósofo do Jardim, nem, menos ainda, que este não precisava de
argumento algum para resolver um problema estranho a seu pensamento!
Tampouco ocorreu a Cícero, mas nisso o zelo crítico o terá levado a forçar
o pensamento do próprio Lucrécio, que, em boa lógica, se o desvio espontâneo é
necessário para explicar o encontro dos átomos, ele será supérfluo para explicar a
liberdade, que já estaria inscrita na indeterminação radical dos próprios átomos. É
aceitável que Lucrécio, num poema didático, em que defende e ilustra o
epicurismo, apresente (nos versos 256-58 acima referidos) a vontade livre dos
viventes como uma das conseqüências desta indeterminação radical. Mas não que
um crítico aponte duas aporias, independentes uma da outra, que teriam obrigado
Epicuro a introduzir uma explicação torpe e descarada ... Fundamentar a
liberdade na espontânea mudança de rota dos átomos só teria sentido se esta não
fosse necessária para explicar os entrechoques de que mundos se engendram.
Note-se, ademais, que Epicuro não julgou necessário recorrer ao desvio
espontâneo dos átomos para rejeitar peremptoriamente, na Carta a Menequeu
(§133-34), a tese de Demócrito de que tudo se produz pela necessidade

29 Vale notar que “declinare paululum” corresponde a “decedere paulum” de De rerum


natura, II, 217.

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22 João Quartim de Moraes

(“pa/nta te kat” a)na/gkhn gi/nesqai”)30 e para declarar que nosso arbítrio não
tem dono (to\ de\ par” h(ma=j a)de/spoton).
A mais elaborada defesa da atribuição a Epicuro da doutrina do desvio
espontâneo é a de Ettore Bignone. No estudo que consagrou à “doutrina epicú-
rea do clinamen”, reunido em apêndice ao notável L’Aristotele perduto e la formazione
filosofica di Epicuro31, reconhece que a ausência de qualquer alusão à declinação dos
átomos nos textos remanescentes do Mestre do Jardim é filosoficamente
motivada, já que a Carta a Heródoto, que se propõe explícita e enfaticamente expor
ao discípulo as “doutrinas fundamentais da física” (§35 e ss.), explica o movi-
mento dos átomos sem qualquer referência à declinação. Tampouco nos
fragmentos do Sobre a natureza encontrados em Herculanum e restaurados graças
à laboriosa paciência de gerações de eruditos, encontrou-se qualquer alusão a um
desvio espontâneo dos átomos no vazio. Desta constatação Bignone não infere,
entretanto, que o princípio da declinação espontânea seja estranho ao pensa-
mento de Epicuro, mas sim que se trata de uma elaboração tardia, posterior aos
textos remanescentes, visando a responder às críticas provenientes dos acadê-
micos e dos peripatéticos. Como todas as interpretações “evolucionistas”, esta se
apóia na sólida evidência de que nenhuma filosofia nasce pronta no cérebro do
pensador, mas também no potencialmente falacioso recurso de resolver
dificuldades hermenêuticas dissolvendo-as no fluxo do tempo.
A demonstração de que a doutrina do clinamen não corresponde a nenhu-
ma exigência do sistema de Epicuro (além de nele introduzir, desnecessariamente,
uma brecha teórica, a saber, o recurso a um efeito sem causa, por onde investiram
seus críticos antigos e modernos) deve contemplar os dois argumentos em que se
desdobra a tese oposta: a explicação das cosmogonias e a da liberdade ética. A
segunda foge a nosso tema, mas pouco teríamos a acrescentar à fina e concisa

30
D. L., IX, 45.
31
Utilizamos a 2a. edição, póstuma, Florença, La Nuova Italia, 1973. A 1a. edição é de
1936. O apêndice sobre o clinamen está no volume II, p. 409-56.

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contra-argumentação de Maurice Solovine32. Quanto à primeira, que concerne ao


movimento dos átomos no vazio, a aporia surgiu na medida em que, na trilha do
deorsum e do cadere de Lucrécio33, a maioria dos tradutores e comentadores
modernos entendeu por “caduta”, “chute”, “fall”, “queda” etc., a queda vertical
dirigida para o “fundo” do vazio e daí inferiu que, sem o clinamen, os átomos
não se encontrariam nunca.34 Os partidários do clinamen simplesmente não
levam em conta que o infinito não tem fundo nem topo, nem “o” ponto mais
alto, nem “o” ponto mais baixo, como declara enfaticamente a mesma Carta a
Heródoto (§60): não se deve predicar o alto e o baixo a respeito do infinito
(tou= a)pei/rou w(j me/n a)nwta/tw kai\ katw/tatw ou) dei= kategorei=n to\ aÓnw
hÄ ka/tw), como se nele houvesse um ponto absolutamente mais alto (a)nwta/tw)
e um ponto absolutamente mais baixo (katw/tatw). No infinito, com efeito, não

32 Maurice Solovine é particularmente incisivo a propósito do pretenso condicio-

namento da liberdade do querer pela declinação dos átomos. Pondera que decido agir ou
abster-me da ação, interromper a ação ou a inação, em função de um quadro de
circunstâncias configuradoras da situação em que decido ou deixo de decidir, ou em função
de uma reflexão mais madura. O que significaria, em qualquer e em todas estas hipóteses, a
pretensa intervenção ou ao menos condicionamento do clinamen? “Se é ele que desempenha
papel decisivo em minha determinação, minha reflexão é inútil e não sou livre. Mas se minha
conduta é determinada por motivos sérios, não vejo direito a que serve o clinamen”. Solovine,
“Note sur le clinamen”, in Épicure. Doctrines et maximes, Paris, Hermann, 1965, p. 182-83.
Acrescenta que sendo a alma, para Epicuro, composta de um gênero particular de átomos e
dividida em alma irracional, espalhada pelo corpo todo e alma racional, situada no peito, “os
atos instintivos e automáticos, devidos à primeira, distinguem-se nitidamente dos atos
refletidos, devidos a esta” (ib., p. 183).
33 Sem excluir a hipótese de que Lucrécio pode ter sido inspirado por algum epicurista,

grego ou romano, dos muitos cujos escritos se perderam.


34 Entre os intérpretes modernos, não há acordo nem a respeito da justificação filosófica

da hipótese do clinamen (uns enfatizam o aspecto cosmogônico; outros a liberdade ética),


nem da razão pela qual não a encontramos nos textos do próprio Epicuro. Muitos
contentam-se com constatar essa ausência para recorrer imediatamente a Lucrécio, dando
por garantido o direito de imputar àquele o que este escreveu. Mas já no século XIX a
ausência do termo e da questão nos textos dele remanescentes está claramente assinalada.

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tem sentido falar em posições absolutas. A trajetória (fora)/ dos átomos isolados
no vazio não pode, pois receber tais predicados.
Este enunciado em forma de preceito (ou) dei)= leva em conta, sem dúvida,
as críticas formuladas por Platão e principalmente por Aristóteles contra os que,
concebendo o infinito separado dos sensíveis, sustentam haver algo que seja ele
próprio infinito: “como uma parte do infinito poderia estar em cima, outra em
baixo, outra na extremidade, outra no centro?35”. E acrescenta: “todo corpo
sensível está num lugar e as espécies e diferenças do lugar são alto, baixo, em
frente, atrás, direita e esquerda e estas se determinam não somente em relação a
nós e por posição, mas também no próprio todo. Ora, é impossível que elas
estejam no infinito”36. Portanto, a pergunta “onde?” só tem sentido relativamente
aos corpos.
Em que pese à autoridade que lhe confere sua estupenda edição de
Epicuro, consideramos inadequada a tradução que Isnardi Parente oferece da
fórmula acima referida de X, 60: “Quando si parli dell’infinito, non si devono
intendere l’alto e il basso nel senso dei due valori estremi”37. Ela enfraquece as
palavras a)nwta/tw kai\ katw/tatw, vertendo-as por “due valori estremi”, o que
sugere haver alto e baixo no infinito, mas não o ponto mais alto e o ponto mais
baixo. Entendamos: haveria uma direção absoluta para cima e para baixo, embora
não haja o ponto ou valor extremo destas duas direções. Em abono desta
interpretação, M. Isnardi Parente assume a tese de “um universo perpendicular

35Aristóteles, Phys. III, 5, 204 a 8-9.


36ib., 205b 30-5. Note-se que a conclusão principal do argumento é de que não há corpo
infinito em ato; que não há lugar infinito em ato é uma conclusão secundária utilizada como
premissa para a conclusão principal:

!))(r plw=j d ¦ei) a)du/naton to/pon aÓpeiron eiÅnai, e)n to/p% de\ pa=n sw=ma,
a)du/naton aÓpeiron ti eiÅnai sw=ma. (ib., 205b 35-206 a 2).

Mais adiante, em IV, 215 a 6-9 e ss., reitera não haver no infinito nem no vazio alto,
baixo, ou meio.
37 Isnardi Parente, op. cit., p. 167.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 25

no qual as partículas de matéria física deslocam-se de cima para baixo”38, sem


maiores justificações além de remeter a um único intérprete, respeitável embora39,
nem preocupação de compatibilizá-la com a infinitude do todo, isto é, de explicar
como ela própria entende o caráter alegadamente perpendicular do infinito e,
mais radicalmente, como pode o infinito ter forma.
Mais razoável nos parece admitir que o espaço infinito não pode ser
perpendicular nem adotar qualquer formato e que as direções para cima e para
baixo não têm caráter absoluto e, portanto que não tem sentido caracterizar
como queda, nem mesmo como linha vertical, o movimento originário e fundamental
dos átomos dispersos pelo vazio infinito: ele é retilíneo, de velocidade igual à do
pensamento, esclarece Epicuro, já que o vazio não lhes opõe nenhuma
resistência, mas não “cai” já que não há um “em cima” absoluto do qual pudesse
cair nem um “em baixo” absoluto para onde estivesse caindo.

3. O desvio atômico como desvio teórico


Se a atribuição da doutrina do “desvio espontâneo” a Epicuro baseia-se
num falso problema, provocado pela interpretação em termos absolutos da
“queda” dos átomos no vazio, daí não segue que esta doutrina, tal como
enunciada em Lucrécio e retomada ao longo de dois milênios por intérpretes e
comentadores do epicurismo, seja, em si mesma, um falso problema filosófico. O
critério para aferir a “falsidade” de um problema depende de uma posição
filosófica prévia, bem como o interesse filosófico de um debate não se restringe a
seu aspecto histórico-documental e à reconstituição “ad auctoris mentem” de um
“sistema” de pensamento. O fato de que, mesmo alheia, segundo nós, ao
pensamento de Epicuro, a doutrina do clinamen tenha sido associada, ao longo de

38 ib., p. 13 e nota 4.
39 A saber o artigo “Epicurus. His perpendicular universe”, Classical Journal , XLIV, 1948,
p. 58-9, de Norman De Witt, conhecido principalmente pelo livro Epicurus and his philosophy,
Minneapolis, p. 168, ao qual ela também remete. Há boa resenha das obras de De Witt em
O.R. Bloch, Actes VIII Congrès Ass. Budé, p. 95. Ver também a resenha de J. Brunschwig, R.
phil., 1957, p. 386.

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dois mil anos de hermenêutica e de reflexão, ao atomismo epicurista, constitui,


por si só, uma questão filosófica, que pode ser examinada em termos de uma
“bifurcação” do epicurismo, cuja origem seria uma “visão” do movimento atô-
mico no infinito, distinta da inspiração original de Epicuro, porque caracterizada
pela introdução, na explicação da gênese dos mundos e na interpretação dos
fundamentos da liberdade ética, de um princípio ativo de indeterminação.
Exatamente por ser filosófica, esta visão distinta não é inocente. Sustentar,
com os partidários do clinamen, que a indeterminação da trajetória atômica seria a
condição do encontro dos átomos e/ou a matriz da escolha entre duas condutas
opostas (o arbítrio é livre porque os átomos desviam da linha reta), é aceitar que a
derrogação das leis da matéria possa perturbar a certeza de que os corpos
elementares não contêm desígnios impenetráveis à sabedoria. É manifestamente
para conjurar esse efeito perturbador que Lucrécio (cujo projeto filosófico não
tinha a pretensão de inaugurar uma nova vertente do epicurismo, mas, ao
contrário, defender e ilustrar o do Mestre) insiste, em dois dos versos já referidos,
em que o desvio espontâneo deve ser o mínimo necessário:

[...]incerto tempore ferme,


Incertisque locis, spatio decedere paulum,
Tantum quod momen mutatum dicere possis.
(De rerum natura II, 218-20)

A apresentação da tese do desvio nestes célebres versos é acompanhada,


com efeito, de expressões que lhe atenuam o impacto. Em lugar e em tempo
incertos, os átomos desviam um pouco a trajetória (“spatio decedere paulum”).
Para evitar que os átomos abusassem da liberdade de declinar, provocando um
caos carregado de incertezas suscetíveis de perturbar o mais sereno dos sábios, o
poeta insistiu em que o desvio seria o mínimo possível: “tantum quod momen
mutatum dicere possis” (“o bastante apenas para poderes dizer que mudou”).
Parece-nos evidente, entretanto, que mesmo um mínimo desvio introduziria no
cosmos um princípio de indeterminação suscetível de afetar a serenidade que traz
ao sábio o conhecimento do fundamento das coisas.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 27

Do ponto de vista da história do atomismo, a introdução, ao lado das duas


causas fisicamente determinadas do movimento dos átomos, o peso e os rebotes,
de uma terceira, fisicamente indeterminável, que lhes seria intrínseca, configura
uma perspectiva “monadológica”. Com efeito, como assinalou Xénia Atanassié-
vitch remetendo a pertinente observação de O. Lange, ao atribuir “estados
interiores” ao átomo, a doutrina do desvio espontâneo do átomo “transforma-o
necessariamente em mônada”40. Embora essa conclusão nos pareça demasiado
enfática, já que Lucrécio reduzia o componente “monadológico” dos átomos ao
“decedere paulum” cosmogônico (a faculdade de desviar é apresentada como
intrínseca ao átomo, mas corresponde à necessidade extrínseca de que haja
encontros), é incontestável que se abre aí uma trilha, pouco suscetível de ser
caracterizada de materialista, que será percorrida, em distintos momentos e
contextos filosóficos, nomeadamente por Giordano Bruno, Leibniz e o Marx da
tese de doutorado41.
Sem dúvida, a filosofia não é escrava dos documentos: seu elemento é a
transparência do conceito. Justifica-se, pois que alguns dos mais notáveis
comentadores modernos de Epicuro, mesmo reconhecendo que a doutrina do
desvio espontâneo está ausente de seus textos conhecidos, consideraram-na parte
integrante de seu pensamento, cuja expressão completa estaria, nesta hipótese, em
Lucrécio. Assim, Karl Marx, mesmo admitindo, já nos cadernos preparatórios de
sua tese de doutorado sobre a Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e em
Epicuro, que a doutrina do clinamen só está claramente atestada no poeta romano,
considera “indiferente” que ele a tenha “extraído de Epicuro ou inventado”42. O
amálgama entre o Mestre do Jardim e seu ilustre epígono é portanto explicita-
mente assumido: hegelianamente desinteressado do aspecto historiográfico do

40 X. Atanassiévitch, op. cit., p. 72.


41 Differenz der demokritischen und epikureischen Naturphisophie, in MEGA I, 1, Dietz Verlag
Berlin, 1975.
42 Karl Marx, Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro, Lisboa, Presença,

1972, p. 18. (A passagem citada pertence ao primeiro caderno preparatório sobre Epicuro,
datado do inverno de 1839, Berlim). As traduções de que nos servimos não são satisfatórias.
Confrontamo-las sempre com o texto original referido na nota anterior.

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pensamento e, no que concerne às diferenças filosóficas, exclusivamente interes-


sado nas que separam Demócrito de Epicuro, trata o epicurismo de Lucrécio
como se fosse em tudo conforme ao de Epicuro. O que lhe importa é justificar a
interpretação do epicurismo como expressão mais conseqüente da tendência das
filosofias helenísticas à afirmação da auto-consciência do sábio face ao cosmos
desencantado e a conseqüente libertação dos espíritos subjugados pelo ancestral
temor perante a fúria das forças naturais, que eles concebiam, claro, não como
naturais e sim como manifestação de paixões divinas.
A hipótese de que a doutrina do clinamen, dominante na hermenêutica,
configura uma das compreensões possíveis do atomismo e da ética materialista,
que a justo título podemos designar por lucreciana, remete a outra compreensão
possível do materialismo antigo, mais fiel ao pensamento de Epicuro, a saber, a que
fundamenta a gênese dos mundos e/ou a liberdade da vontade na aglomeração
fortuita de átomos que se entrechocaram mecanicamente no vazio infinito. Esta
compreensão, originária, sustenta que os átomos, espontaneamente, seguem
trajetória retilínea, mudando-a somente pela força de cegos entrechoques e não
por iniciativa própria, portanto sem recorrer a uma declinação espontânea. O jogo
de palavras se impõe: a doutrina lucreciana do desvio configura um desvio
doutrinário relativamente aos textos de Epicuro.
Ao desvelar-nos a radical contingência do destino humano, cuja trama se
tece não, como pretendia Demócrito, sob o ditado inelutável da Necessidade eri-
gida em lei da natureza, mas sobre o pano de fundo do entrechoque e aglome-
ração fortuita dos átomos indiferentes a nosso destino, a física epicurista nos põe
diante de nossa liberdade ética, cujo fundamento é a ausência de qualquer telos
que nos transcenda. A deliberação incide sobre a contingência do futuro e,
portanto se sobrepõe ao efeito mecânico da agitação dos átomos corpóreos.
Em “Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre”, texto que
constitui, tanto pelo conteúdo filosófico quanto pela data em que foi escrito
(1982)43, peça-chave de seu testamento intelectual, Louis Althusser apóia-se em

43 Publicado postumamente em Écrits philosophiques et politiques, Paris, Stock/Imec, 1994.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 29

Epicuro e na doutrina do clinamen para discernir, sob o nome de “materialismo


aleatório”, “a existência de uma tradição materialista quase completamente
desconsiderada (méconnue) na história da filosofia: o ‘materialismo’ da chuva, do
desvio, do encontro (rencontre)44 e da pega (prise) ou do dar liga”45 ... Como
tantos outros antes dele, entretanto, inclusive e principalmente o Marx da tese de
doutorado, interpreta Epicuro a partir de Lucrécio. Daí a chuva de átomos caindo
paralelos no vazio e a conseqüência que dela extrai, “que antes do mundo não
havia nada e que ao mesmo tempo todos os elementos do mundo existiam desde
toda a eternidade”. Melhor, não interpreta Epicuro. Inspira-se nele para sustentar,
grifando, que “a própria existência dos átomos só lhes provém do desvio e do encontro, antes
do qual eles só levavam uma existência fantasmagórica”46.
Importa-nos salvar aqui não tanto (embora também) a letra, mas, sobre-
tudo o espírito da filosofia de Epicuro. Para ele, o átomo é o ser absolutamente
considerado. O que não é corpóreo não é. Althusser força portanto, e muito, a
posição filosófica que identifica o ser aos átomos. Interpreta-a como significando
a radical gratuidade do mundo, que resulta de um encontro aleatório dos átomos
no vazio. Por isso, embora o cerne de seu argumento não seja o clinamen, mas,
como ele próprio enfatiza no título de seu ensaio, o “encontro aleatório”, vê no
desvio espontâneo a intuição fundante do epicurismo.
Por que o clinamen e não o mero encontro? Porque a “audácia” da filosofia
de Epicuro consistiria em sustentar “que a origem de todo e qualquer mundo,
portanto de toda e qualquer realidade e de todo e qualquer sentido se deve a um
desvio” e portanto em que “o Desvio e não a Razão ou a Causa seja a origem do
mundo...”. Dito “em outra linguagem”: o mundo é “fato consumado”, “suspenso

44 A tradução não satisfaz inteiramente. “Rencontre” tem forte conotação de espon-


taneidade. Em francês, “marcar um encontro” diz-se “donner rendez-vous”. A conotação
aleatória, a idéia do não-previsto, não marcado nem planejado, é essencial ao significado de
“rencontre”, mas constitui um sentido secundário da palavra “encontro”, tal como a
empregamos.
45 Louis Althusser, op. cit., p. 539-40.
46 Ib., p. 541-42.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
30 João Quartim de Moraes

ao encontro aleatório[...] provocado pelo desvio do clinamen”47. A filosofia deixa


de ser “o enunciado da Razão e da Origem das coisas”. Torna-se teoria da
contingência, da radical gratuidade. Mas nossa pergunta permanece: não bastaria,
para pôr em evidência a radical faticidade do mundo, concebê-lo como resultado
da aglomeração mecânica dos átomos? Mesmo porque nem todo encontro de
átomos produz aglomeração. Se seus formatos respectivos não os engancham
uns nos outros, eles se rebatem e se repelem.

4. A direção dos átomos no vazio


Dentre as contribuições recentes que ambicionaram trazer novos argu-
mentos e perspectivas ao debate sobre o epicurismo em geral e o movimento dos
átomos no vazio infinito em particular, merecem especial referência aquelas
publicadas em revistas de língua inglesa, notadamente em Phronesis, especializada
tematicamente na filosofia antiga e metodologicamente na filosofia analítica.
Quase todos estes estudos assumem que se pode imputar a Epicuro (sem levar
satisfatoriamente em conta que, para este, a infinidade dos átomos movendo-se
em todas as direções, dispensa inventar um desvio cosmogônico) tudo que
Lucrécio escreveu, inscrevendo-se, portanto na análise do que chamamos a
vertente lucreciana do epicurismo48.
Deste viés escapa, em parte, Tim O’Keefe. Após rebater convincente-
mente as justificações tradicionais do desvio (swerve) como “Archê of Collisions”,
retoma a hipótese de Bignone, de que esta doutrina teria sido elaborada em
contexto polêmico, sustentando que constitui réplica a críticas recebidas da escola
aristotélica. Ultrapassando o argumento convencional (que pergunta pelo
“primeiro choque”, esquecendo de que o movimento atômico é eterno),

47Ib., p. 541.
48A disputada questão do desvio espontâneo é o tema central de Elizabeth Asmis, “Free
action and the Swerve”, Oxford Studies in Ancient Philosophy, VIII, 1990, que comenta, além do
livro de Walker G. Englert, Epicurus on the Swerve and Voluntary Action, uma vasta bibliografia
sobre o tema, e de Jeffrey S. Purinton, “Epicurus on ‘free volition’ and the atomic Swerve”,
Phronesis, 1996, XLIV (4), 1999.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 31

transporta a questão para mais além do tempo. Admitamos que cada colisão
singular possa ser explicada por colisões anteriores. Faltaria ainda explicar
radicalmente porque há colisões (“why there are collisions at all), isto é, porque os
tipos de movimento são tais (why there exists these types of motions) em vez de se
reduzirem ao retilíneo para baixo49. Embora tenha antes lembrado que Epicuro,
provavelmente levando em conta a observação aristotélica de que “as noções de
‘em cima’ e de ‘embaixo’ não fazem sentido se o universo é infinito em tama-
nho”50, supõe, para desenvolver seu argumento, que “se o único movimento
natural fosse retilíneo para baixo (were straight down)”, então “we would expect
that the atoms would fall straight downwards, like drops of rain in the night”51.
Esta evocação, em ambiente noturno, da chuva primordial de Lucrécio, é sintoma
claro da fonte efetiva de seu raciocínio.
Se não há um “embaixo” absoluto, a hipótese de O’Keefe não tem fun-
damento, já que os átomos dirigem-se “para baixo” seguindo uma infinidade de
trajetórias não-paralelas e o fato de que são infinitos constitui condição suficiente
para que colidam. Tanto assim que Epicuro considera prova evidente de que são
infinitos em número o argumento por absurdo de que, se finitos fossem, aí sim,
seriam arrastados e dispersos pela imensidão52.
Além disso, como mostrou Marie Cariou, apoiada na estrutura argumen-
tativa do segundo livro do De rerum natura, quando expõe, num primeiro tempo (a
saber, em II, 80-114), as características do movimento atômico, o poema “não
invoca de modo algum a declinação”53. Ao contrário, o verso 93 declara que os
átomos se propagam “in cunctas undique partes”. Note-se a ênfase da expressão
(retomada no verso 131): o adjetivo “cunctus”, referido ao substantivo “partes” e
regido pela preposição “in” + acusativo, indica que os átomos se dirigem para todas

49Tim O’Keefe, “Does Epicurus need the Swerve as an Archê of Collisions?”, Phronesis,
1996, XLI (3), p. 314. A ênfase em itálico está no original.
50 Remete a Aristóteles, Física, IV, 8, 215 a 6-10.
51 O’Keefe, ib., p. 314-15.
52 Cf. Carta a Heródoto, §42.
53 Marie Cariou, L´atomisme. Gasendi, Leibiniz, Bergson et Lucrèce, Paris, Aubier, 1978, p.

153.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
32 João Quartim de Moraes

as direções no vazio, enquanto o advérbio “undique” reforça a afirmação: eles en-


caminham-se pela totalidade destas direções. Só bem mais adiante, quando esta-
belece “a existência, nos seres vivos de um poder voluntário que permite escapar
à fatalidade e... a correlação entre o que ocorre conosco e o que se passa no nível
dos átomos” (versos 251-93) 54, é que Lucrécio introduz a doutrina do clinamen.
Seria o bastante para reabilitar a ortodoxia epicureana do poeta romano?
Marie Cariou pensa que sim, interpretando o clinamen como um desvio relativo à
queda vertical dos corpos compostos. Os átomos por si mesmos não desviariam, isto
é, não mudariam espontaneamente de rota, contrariamente ao que têm entendido
quase todos os hermeneutas, ao longo de dois milênios. Só abandonariam a
trajetória retilínea “in cunctas undique partes”, relativamente ao movimento vertical
dos corpos compostos, que são os que nossos sentidos podem perceber. Mas
abandonam-na exclusivamente na medida em que acompanham o movimento
para baixo dos corpos compostos em que estão encapsulados. Permanecem,
entretanto, constantemente agitados pelo movimento fundamental de “queda
para a frente”, o qual assume aspecto vibratório, na medida em que, chocando-se
incessantemente contra a barreira que os envolve, descrevem curta trajetória de
vai e vem, sempre repetida. Os átomos que correspondem a nossas sensações e
idéias, vibram duplamente no composto humano, já que a alma está dentro do
corpo e os átomos que nos transmitem as imagens e impressões do mundo estão
dentro da alma.
O problema está em que não somente os críticos, mas também o próprio
Lucrécio, concebem o clinamen como um desvio dos próprios átomos, portanto
como uma declinação espontânea e não apenas provocada por seus entrechoques
ou relativa à queda vertical dos corpos compostos. O poeta, com efeito, não
poderia dizer mais com mais clareza, nos já referidos e comentados versos II,
221-24, que os átomos desviam espontaneamente, isto é, mudam de direção por
conta própria. Podemos, no máximo, conceder ao Lucrécio de Marie Cariou o

54 ib., p. 153.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 33

benefício da dúvida, já que, com efeito, a doutrina de II, 80-114 parece compa-
tível com a da Carta a Heródoto.
Recusar a espontaneidade do desvio dos átomos implica em sustentar que
se movem segundo princípios eternos e imutáveis. Ora, os princípios, no atomis-
mo, são os próprios átomos. (O vazio não tem propriedades, salvo ser o imenso
nada por onde se movem os corpos). Sabemos que a causa do movimento é o
peso. Supor que ele possa propelir as partículas corpóreas para direções quaisquer
seria introduzir uma indeterminação generalizada no fundamento mesmo das
coisas. É evidente, pois, que o peso exerce um efeito constante, imprimindo aos
átomos uma direção determinada. Qual? Antes de mais nada, o movimento é reti-
líneo. Esta é, com efeito, a característica a mais fundamental e a única universal, do
efeito exercido pelo peso sobre a trajetória dos átomos. Quer se dirijam para
baixo, para cima ou para os lados, os corpos vão sempre em linha reta. Pode-se,
claro, perguntar por que é retilíneo o movimento cuja causa é o peso. A resposta
mais plausível é que, não tendo propriedades, o vazio não pode exercer nenhum
efeito sobre a trajetória dos átomos. Eles se deslocam em linha reta porque ela é a
menor distância entre dois pontos. Para que dela se desviassem seria necessária a
intervenção de uma causa distinta do peso (ou o clinamen, uma não-causa), já que
as mesmas causas produzem os mesmos efeitos e o efeito do peso é propelir os
átomos para a frente.
De um ponto dado, entretanto, podem-se traçar infinitas retas, mas, face à
infinidade de trajetórias retilíneas possíveis, a trajetória de cada átomo só pode
seguir uma delas, à exclusão de todas as outras. A resposta óbvia é que eles se
dirigem para baixo. Mas como bem notou Jean-François Balaudé, em sua
introdução às obras de Epicuro, “... é claro que os átomos não seguem nenhuma
direção absoluta : não caem para baixo do todo, como se tendessem a se
depositar no fundo, mas caem relativamente a eles mesmos, devido à não-
resistência do vazio”, concluindo que “os átomos, que caem por seu próprio
peso, não se dirigem entretanto para baixo”55. A interpretação seria excelente se

55 J.-F. Balaudé, Épicure. Lettres, maximes, sentences. Paris, Librairie Générale Française,
1994, p. 91.

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34 João Quartim de Moraes

por “direção absoluta” pudéssemos entender apenas um ponto situado no fundo


do vazio, portanto exterior ao átomo, para o qual ele se dirigiria. Mas o átomo,
absolutamente considerado (isto é, em si e sem nenhuma relação com outro
átomo), segue, segundo Epicuro, uma trajetória para baixo, que é absoluta não
somente no sentido de que, determinada pelo peso próprio56, não obedece a
nenhum princípio extrínseco de determinação, mas também, diferentemente do
que sustenta Balaudé, no de que sua direção não é qualquer, mas “para baixo”.
Com efeito, após notar que a velocidade dos átomos no vazio é a mesma para os
mais e os menos pesados (já que não encontram obstáculo algum que os retenha),
ele acrescenta: “tampouco é diverso o movimento para cima ou oblíquo, pro-
vocado pelos choques, do movimento para baixo causado pelo próprio peso”
(h( ka/tw dia\ tw=n i)di/wn barw=n)57.
Mesmo tendo advertido que não se pode predicar o baixo (e o alto) do
infinito, Epicuro caracteriza, pois, explicitamente o movimento fundamental,
provocado pelo peso, como se dirigindo para baixo (ka/tw), portanto, como queda,
para distingui-lo daqueles que, por efeito dos entrechoques, desviam-se para cima
ou para os lados. Aquele, por ser fundamental, é perene: os átomos estão sempre
“caindo”. Estes são muito prováveis, ocorrem freqüentemente, mas por definição
são extrínsecos. Acrescentam-se, mais exatamente, sobrepõem-se, enquanto
determinantes da direção, ao fator essencial. Não é, com efeito, somente por
terem peso, mas, principalmente, por serem impenetráveis, inalteravelmente
compactos, que os átomos, quando não se engancham uns nos outros, rico-
cheteiam. A trajetória determinada pelos entrechoques corresponde, portanto, ao
efeito composto de duas forças58: o peso próprio, que propele para “baixo” em
linha reta, e a impenetrável solidez dos átomos, que os rebate, quando eles

56 Vale insistir em que, se os átomos não tivessem peso, ou se o peso que tivessem fosse
irrelevante para determinar-lhes o movimento, flutuariam no vazio, como supunham Leu-
cipo e Demócrito, obrigados a recorrer à hipótese de turbilhões cósmicos para explicar a
gênese dos mundos.
57 Carta a Heródoto, §61.
58 Note-se que Epicuro no §61 se serve do termo du/nameij para designar a força do

choque.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 35

colidem sem se juntar, na direção determinada pelo ângulo do entrechoque. A


segunda força se sobrepõe à primeira, sem que seus efeitos se confundam. O
peso próprio continua a propelir “para baixo”, mas agora esta locução adverbial
justifica plenamente as aspas: como o choque dirige os átomos para cima ou para
os lados, “para baixo” torna-se sinônimo de “em frente”, isto é, o átomo “cai” na
direção para a qual o choque o projetou. A rigor, esta também é a interpretação
de Balaudé, quando declara que os átomos caem sem contudo se dirigir para
baixo. Mas, assim como “cair” em português, “tomber” em francês significa, no
sentido próprio, ser propelido para baixo pelo próprio peso. Se cair para baixo é
um pleonasmo, cair, mas não para baixo é um paradoxo (como subir, mas não
para cima). Para evitar este modo paradoxal de se expressar, recorremos a “em
frente”. Quanto ao fundo, a questão se esclarece ao levarmos em conta que, no
vazio infinito, ir para a frente e ir para baixo se confundem.
Por ter interpretado a queda em sentido absoluto, Howard Jones oferece
uma análise fundamentalmente equivocada, a despeito de cuidadosa, do caráter
“composto” do movimento atômico provocado pelo choque. Sustenta, com
efeito, que

...what happens to particular atoms after this deflection” (a saber, aquela


“determined by the angle at which the two atoms meet”) “can vary. Some atoms
will experience in their new trajectory no further immediate contact which other
atoms. In these cases, when the directional impulse which they have received as a result of the blow
diminishes, the effect of their weight supervenes and they begin gradually to resume their former path
downwards through the void.59

O raciocínio que sublinhamos é sintomático. Porque o “directional


impulse” haveria de diminuir? Epicuro afirma claramente na Carta a Heródoto, §61,
que no vazio os átomos se movem, quer na vertical, quer na oblíqua, com a
velocidade do pensamento, já que não encontram nenhuma resistência. Em si
mesma a expressão “impulso direcional” induz a erro. O choque não constitui
um “impulso” mas meramente um desvio de trajetória. A força que impulsiona é

59 Howard Jones, The Epicurean tradition, Londres e Nova Iorque, Routledge, 1992, p.
33-4.

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sempre o peso intrínseco do átomo, ao qual se associa, nos choques, sua absoluta
insecabilidade. O choque afeta a direção da trajetória, mas não o “impulso”
enquanto tal. Para que pudesse ocorrer alguma “diminuição de impulso”, seria
necessário que houvesse no vazio outra força, além do peso, por exemplo uma
força gravitacional que atraísse o átomo para o “fundo” do vazio. Para Epicuro
tal “força” simplesmente não existe. O único efeito do peso é a queda vertical na
direção determinada pelo choque, ou, mais exatamente, como escreve o próprio
Jones, pelo “ângulo de encontro” dos átomos. Adepto, também ele, da interpre-
tação predominante, para a qual o choque é condicionado pela pare/gklisij,
Jones atribui ao átomo de Epicuro uma força que ele não tem (a de declinar
espontaneamente) e um efeito que ele não sofre (perder velocidade na oblíqua). 60
Poder-se-ia, evidentemente, perguntar se, ao sustentar que os átomos não
caem verticalmente no vazio, mas deslocam-se em linha reta para a frente em todas
as direções, não estaríamos forçando o texto acima referido da Carta a Heródoto,
que contrapõe a trajetória para cima ou oblíqua à que se dirige para baixo. Como
mostra, entretanto, seu contexto, é num sentido relativo que ka/tw (para baixo) é
atribuído ao infinito (como a direção para a qual se dirigem os átomos isolados
no vazio). É sempre relativamente a algum corpo que podemos predicar o alto e
o baixo. Tanto assim que, em cada mundo particular (no nosso, por exemplo), o
significado destas relações, ou de leste e oeste, não é o mesmo que em outros
mundos, isto é, nas infinitas outras concentrações de átomos aglutinados em ilhas
siderais, situadas abaixo ou acima, à direita ou à esquerda daquela em que
vivemos. O cume de uma montanha que, de meu ponto de vista, está acima de
minha cabeça, estará abaixo dos pés de um condor que o sobrevoa. Já um
astronauta em excursão lunar veria a Terra acima de sua cabeça; só a veria abaixo
de seus pés se estivesse na face oculta da Lua e pudesse atravessar-lhe a espessura
com o olhar.
Se a trajetória dos átomos não tem um “terminum ad quem”, se não há
um ponto absoluto para o qual se dirijam, a direção de suas trajetórias é relativa a

60 loc. cit., ib.

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A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 37

eles próprios. Um átomo rebatido para cima “cai” tanto quanto o rebatido para
baixo ou para o lado, já que por “queda” só se pode entender o efeito do peso no
vazio. “Para cima” ou “para o lado” denotam, se nossa interpretação é boa, a
mudança de direção provocada pelo choque considerada relativamente à trajetória anterior.
Subir neste sentido topológico é deslocar-se na direção oposta à anterior ao
choque e obliquar assumir uma direção que forma um ângulo maior que 0º e
menor que 180º relativamente à direção anterior à que descreviam os átomos
antes de serem rebatidos pelo choque. Mas, relativamente a si próprios, conti-
nuam “caindo” no vazio infinito por força do próprio peso, porque, além deste,
não há outra causa da “queda”. Não caem para baixo porque para baixo não tem
sentido absoluto, mas “caem”, isto é, seguem em frente até novo choque. Mas
exatamente porque em frente é a direção no vazio absolutamente considerada (é
neste sentido que é sinônimo de queda), não se dirigem nem para cima nem para
os lados, porque estas direções são sempre relativas à mudança de trajetória
resultante do choque com outros átomos.
Não podemos, é verdade, apontar nenhum texto de Epicuro que autorize
explicitamente esta interpretação da queda, mais literalmente, do movimento
(fora)/ para baixo, causado pelo próprio peso61, em termos de movimento
retilíneo para a frente62. Parece-nos que se chamou “para baixo” o movimento
fundamental do todo universal, que não tem alto nem baixo absolutos, foi porque
todas as direções (para cima, para baixo e oblíquas) obedecem à linha reta e,
portanto seguem “em frente”. Foi, pois, para distinguir o movimento absoluto
dos demais que o chamou “para baixo”. Por que não chamá-lo “oblíquo” ou
“para cima”? No que concerne a “oblíquo”, a resposta nos parece clara: uma
trajetória só pode ser dita oblíqua se forma um ângulo >0º<180º com a trajetória

61Ib., §61.
62 Epicuro não se serve nem do adjetivo o)rto/j, nem do advérbio o)rtw=j, referentes
possíveis de “em frente”. O advérbio o)rtw=j, é verdade, emprega-se quase sempre em
sentido moral (=agir retamente), mas, em vários autores, o adjetivo ocorre em sentido físico,
por exemplo o)rto/j ei)j o(don poreu/etai (= (ele) é transportado em linha reta pelo cami-
nho). Note-se que o adjetivo comparece, neste exemplo, empregado em sentido adverbial.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
38 João Quartim de Moraes

de outro átomo. Um movimento considerado relativamente a outro não pode ser


o movimento fundamental do átomo considerado em si. Quanto a “para cima”,
trata-o também como relativo. Poderia, em princípio, tratá-lo como absoluto, mas
neste caso, teria de tratar “para baixo” como relativo. Se não o fez, provavel-
mente foi por ter transposto metaforicamente para o vazio infinito aquilo que a
sensação nos mostra: os compostos se movem com velocidades diferentes63;
dentre eles, os sólidos e os líquidos, a pedra como a chuva, tendem a cair, isto é a
dirigir-se para o centro dos aglomerados siderais. Para o alto, isto é para a
periferia (sempre no interior de um composto “meteórico”) dirigem-se os corpos
mais leves, compostos de átomos mais tênues e que, entrechocando-se menos no
interior de seu envoltório, não retardam o movimento.
Assim pois, átomos infinitos, em movimento perpétuo, percorrem retili-
neamente o infinito vazio na direção em que os propeliu o último choque que
receberam (já que “estatisticamente” todos ou quase todos já se chocaram alguma
vez), até que um novo choque os faça mudar de direção (ou os aprisione num
composto, onde seus movimentos tornar-se-ão como que vibratórios). Salvo,
claro, os que se prenderam uns aos outros ao se chocar e formaram incontáveis
“cósmoi”.
Não se pode, porém, afirmar que todos os átomos tenham se chocado e
portanto, sido desviados da linha de queda fundamental. É possível que, havendo
infinita quantidade de átomos, alguns deles estejam desde sempre caindo isolados,
com a rapidez da luz, unicamente por força de seu próprio peso. Mas também é
possível, considerando que os átomos se movem “desde” toda a eternidade, que
todos já tenham sofrido choques. Como diria Epicuro, as duas hipóteses são
compatíveis com as sensações. Mas é certo, e decisivo, que há átomos se propa-
gando em todas as direções, não sendo, portanto de modo algum necessário
imaginar um “desvio” ou “declinação” espontânea para explicar como eles se en-
contram.

63 Carta a Heródoto, §62.

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 39

Entretanto, embora não haja alto e baixo absolutos no vazio epicureano, as


posições e trajetórias dos átomos ou de corpos compostos quaisquer não são
meramente relativas ao observador. Embora negue caráter absoluto às direções opostas
no espaço, Epicuro reconhece-lhes a objetividade. Os átomos mantêm entre si
relações topológicas absolutas válidas para quaisquer pontos neste espaço que ficou
conhecido pelo nome de seu ilustre compatriota, o geômetra Euclides. O átomo a
está mais perto do átomo b do que do átomo c, portanto b está entre a e c; suas
trajetórias respectivas estão se aproximando (ou afastando) umas das outras etc. É
o que exprime Epicuro em X, 60, logo após advertir que “alto” e “baixo” não têm
sentido no infinito. O argumento é notável na medida em que tematiza a relação
entre o finito e o infinito. Se pudéssemos traçar uma linha rumo ao infinito na
direção do espaço que está “acima da (nossa) cabeça” (to\ u(per kefalh=j), não
poderíamos sustentar que a direção para a qual esta linha aponta esteja igual-
mente acima e abaixo de nosso ponto de referência; tal suposição é impossível
(aÐma aÓnw te eiÄnai kai\ ka/tw pro\j to\ au)to/! tou=to ga\r a)du/naton dianohq
h=nai). O argumento deve ser entendido não como prova de que há direções
absolutas para cima e para baixo (elas são sempre relativas ao observador) mas
somente que há relações absolutas de oposição. Ele ficará ainda mais claro, em
nosso entender, se completarmos a oposição entre o espaço u(per kefalh=j e
to\ u(poka/tw, antropologicamente referida à cabeça e aos pés, por aquela que
parte de nossas mãos (decia///a)ristera/). Parece-nos, com efeito evidente que a
linha traçada rumo ao infinito a partir da mão direita vai no sentido absoluta-
mente oposto à que partiria da mão esquerda e que ambas formam um ângulo
reto com as que partem de nossa cabeça e de nossos pés. As retas infinitas que
partem da cabeça, dos pés e das mãos, que são “corpos constituídos” no interior
de um mundo, mostram apenas que as posições relativas ao observador projetam-se
no infinito como oposições absolutas.
Por isso, a projeção no infinito de um ponto de vista finito (fórmula
pleonástica, já que todo ponto de vista é finito) é apta a determinar uma relação
absoluta. Se chamo de “alto” determinada direção, não posso também chamá-la
de “baixo”. Não há, portanto posições absolutas no infinito, mas há relações

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
40 João Quartim de Moraes

absolutas, como o são, no exemplo escolhido por Epicuro, as direções opostas.


Por isso, se o princípio de que o infinito não tem formato não refutasse a supra-
referida hipótese de que ele concebe o espaço como perpendicular, a conside-
ração da oposição entre a esquerda e a direita mostraria que ele é quadrado ...
Vale assinalar, enfim, que, na Carta a Pitocles, Epicuro deixa aberta a ques-
tão do movimento de nosso mundo, bem como a da forma da Terra. Se ela for
plana, as linhas traçadas para cima a partir da cabeça de qualquer observador
rumariam todas na mesma direção. Para todos os terráqueos, seguiriam “para
cima”, assim como as que da cabeça partem na direção dos pés, seguiriam todas
“para baixo”. Mas se for esférica, a linha para cima da cabeça de quem está num
pólo partiria no sentido oposto daquela imaginariamente traçada por alguém si-
tuado no pólo oposto.

5. Do primado do círculo ao da reta


Do ponto de vista da história da física e, particularmente, da cosmologia,
as contribuições mais marcantes de Epicuro foram a abolição do privilégio lógico
e ontológico conferido pelos sistemas geocêntricos ao movimento circular e a
radical recusa da noção aristotélica de um “lugar natural” para o qual os corpos
seriam atraídos. Sua outra inovação, a de que a causa do movimento dos átomos
é seu peso intrínseco, não podia resistir à introdução do princípio de inércia e à
conseqüente distinção entre peso e massa.
Mas com a adoção daquele mesmo princípio fundador da física moderna,
o movimento circular passou a ser considerado como composto e portanto como
cognoscível a partir do movimento retilíneo, que embora não seja considerado
como mais “perfeito” do que o circular (a ciência moderna procura separar a
astronomia da teologia) é certamente mais simples. Não foi a cúpula celeste que
forneceu ao físico-matemático moderno o exemplo mais inteligível de movimen-
to. Nos textos do século XVIII, notadamente, o exemplo prosaico do choque
entre as bolas de bilhar é invocado para ilustrar as relações entre massa, força e
velocidade. É neste contexto teórico que o movimento dos planetas em torno do
Sol (e não mais em torno da terra) se reduz a mero padrão de medida. Sem dúvida, a

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 14, n. 1, p. 7-47, jan.-jun. 2004.
A Linha Reta e o Infinito na Refundação Epicureana do Atomismo 41

sucessão dos dias e dos anos também servia aos Antigos de padrão de medida.
Mas, tal como teorizada por Aristóteles, a regularidade desta sucessão correspon-
dia à perfeição do movimento circular dos corpos celestes. Desnecessário insistir
em que este privilégio conferido ao círculo está muito mais distante da concepção
moderna do cosmos do que a atomística inaugurada por Leucipo e Demócrito.
Para Aristóteles, talvez não seja inútil lembrar, cada um dos quatro corpos
simples tende naturalmente a ocupar seu lugar próprio na esfera sub-lunar. A
terra, o mais pesado de todos, concentra-se em torno do centro do planeta; a
água vem logo acima, depois o ar e enfim o fogo, corpos mais leves, que tendem
a subir para a periferia do planeta. Epicuro contesta radicalmente o postulado
aristotélico de que o universo tem um ponto central em torno do qual os corpos
pesados se aglomeram. Como poderiam os corpos ser atraídos por um ponto
abstrato? A própria distinção aristotélica entre corpos pesados (que caem para o
centro do planeta) e corpos leves (que sobem para a periferia) é ilusória. Todos os
corpos têm peso. Chamamos leves os que têm pouco peso, pesados os que têm
muito, mas o peso, enquanto tal, é uma propriedade geral dos corpos.
Não que Aristóteles ignorasse esta distinção. Assim, numa passagem im-
portante da Metafísica64, ao explicar que a medida é aquilo pelo qual a quantidade
é conhecida, observa que o pesado e o rápido são comuns aos contrários
(to\ ga\r ba/roj xai\ ta/xoj koino/n en toi=j e)nanti/oij)65. Temos aqui um sen-
tido de to\ ba/roj que sugere o sentido moderno. Ele esclarece, com efeito,
que um e outro (ba/roj xai\ ta/xoj) se dizem em dois sentidos. No primeiro,
peso e rapidez (ou velocidade) designam respectivamente tudo que tem algum
peso e alguma rapidez, portanto também o leve, que possui algum peso e o
lento, que possui alguma rapidez (ou velocidade): “e)sti ga/r ti ta/xoj kai\ tou
brade/oj ...”66 No segundo, pesado e rápido denotam apenas o que é muito ou
mais pesado e o que é muito ou mais rápido, contrapondo-se a leve e lento, isto é,

64 Metafísica X, 1, 1052 b 27 e ss.


65 ib., b 27.
66 ib., b 30-31.

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ao que no primeiro designamos como pouco ou menos pesado e pouco ou


menos rápido.
Quer denotando o gênero, quer denotando uma de suas qualidades con-
trárias, nos dois sentidos de Metafísica X, portanto, o peso, para ele, é sempre
maior (ou menor) peso, sempre oposição, implícita ou explícita. Ele apenas
expressa a mesma oposição sob duas categorias diferentes. No primeiro sentido
enfatiza a comunidade de gênero, expressando a oposição pela quantidade (pouco
ou muito peso); no segundo enfatiza a oposição, expressando-a por qualidades
opostas “pesado” (= “muito pesado”) e “leve” (= “pouco pesado”). Nos dois
sentidos a oposição permanece, mesmo porque sempre é possível imaginar um
corpo leve que, comparado a outro ainda mais leve, pareça pesado (e o seja, no
primeiro sentido). Se no sentido genérico do peso a diferença qualitativa
permanece implícita, no sentido de contrariedade no interior do gênero, é a
quantidade que fica implícita: leve = menos pesado; pesado = mais pesado.
Estes esclarecimentos não são apenas semânticos. Pesado e leve se deter-
minam por diferenças quantitativas, mas são qualidades dos corpos que, no
aristotelismo, explicam a configuração do cosmos. Do ponto de vista do atomis-
mo, o equívoco de Aristóteles consiste em confundir a física dos fundamentos
com a dos corpos constituídos em mundos particulares. Sem dúvida, a observa-
ção confirma que o ar e mais ainda o fogo tendem a se expandir para cima, ao
passo que a terra e a água despencam. Mas isso ocorre, segundo Epicuro, porque
nosso mundo, ilha cósmica na infinita vastidão do Todo, é como uma gigantesca
célula em cujo interior os corpos mais pesados caem e os menos pesados, isto é,
mais leves, são empurrados ou rebatidos para cima. O essencial, insistamos, é que
por serem partículas corpóreas, os átomos têm peso e por terem peso, estão em
perpétuo movimento. Sem cometer o anacronismo de atribuir à atomística de
Epicuro o princípio da equivalência entre massa e energia, a concepção do átomo
como intrínseca e perpetuamente dotado de movimento não deixa de ser uma
antevisão, rude e intuitiva, das descobertas da física contemporânea.
Justamente por abolir o privilégio lógico e ontológico conferido pelos sis-
temas geocêntricos ao movimento circular (e não apenas substituir o privilégio do

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círculo pelo da linha reta), o epicurismo suprime também a hierarquia e, portanto,


a teleologia na natureza: as físicas do infinito tendem a ser filosoficamente
igualitárias. Podemos medir o alcance desta supressão analisando a fundamen-
tação aristotélica do primado ontológico e lógico do movimento circular (ele é
primeiro na ordem das realidades e também na ordem do conhecimento).
No livro VIII da Física, Aristóteles define o movimento regular por três
propriedades: eternidade, unidade e continuidade. Uma única espécie de movi-
mento reúne estas características: o movimento circular, mais simples e mais
perfeito do que o movimento retilíneo, como o prova Aristóteles em longa
demonstração67 na qual, notadamente, estabelece que ele é mais simples e mais
perfeito (a)ple= ga\r kai\ te/leioj ma=llon) do que o movimento retilíneo.68 Este
primado ontológico do movimento segundo o círculo vincula-se ao dos corpos
celestes. Em seu estudo sobre o céu, Aristóteles argumenta que, sendo o céu
divino, já que é um corpo divino (cuja matéria é o éter incorruptível), seu corpo
é circular e, portanto, por natureza, move-se sempre em círculo69. Contra as
interpretações que “puxam” Aristóteles para o horizonte da teologia cristã,
vale notar que “divino” (teión) é uma qualidade que comporta graus; assim,
dirá mais adiante que “a região superior é mais divina que a inferior”
(qeio/teroj ... to/poj o( aÄnw tou= ka/tw70).
Para Aristóteles, os atomistas, além de levar em conta apenas a causa
material, apelam para o nada como causa eficiente, já que é deslocando-se em
movimento turbilhonante no vazio (para ele, mera palavra sem correlato objetivo)
que os átomos se entrechocam, dando origem ao cosmos. Mas sua recusa desta
primeira versão histórica da Cosmologia materialista não se faz em nome de uma
concepção teológica (no sentido que sugere a hermenêutica cristã do aristote-

67 À qual é consagrado o capítulo 9 do livro VIII da Física. A definição do movimento


regular pelas três determinações referidas no texto (eternidade, unidade, continuidade) está
em Física, VIII, 8, 261 b 27-28 e ss.
68 Física, ib., 9, 265a 16-17.
69 Do Céu, II, 5, 286 a 9-12
70 Do Céu, ib., 288 a 4-5.

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lismo) e sim no de uma aplicação (que talvez possamos caracterizar adequada-


mente como formalista) da Geometria à explicação dos movimentos siderais.
Interessa-nos salientar, nesta “geometrização”, dois aspectos que mais direta-
mente concernem à análise das relações entre o movimento e o tempo: a análise
propriamente geométrica da continuidade e o significado ontológico desta análise
para sua concepção do movimento contínuo.
Na Física V, 3, Aristóteles, jogando com a forma nominal e a forma verbal
do termo, nota que é contínuo (sunexh/j) aquilo que se confunde ao juntar-se
(sune/xhtai) e diz haver “continuidade quando o limite de cada qual daqueles
que se tocam torna-se um só e o mesmo e, como mostra o termo, eles se
juntam”71. O contínuo “se encontra naqueles cuja natureza é tornar-se um só
quando entram em contacto”72. Examinando em seguida a continuidade do
movimento, declara que “um movimento absolutamente uno é necessariamente
contínuo, já que todo movimento é divisível e, portanto, se um movimento é
contínuo, ele é uno”73. À primeira vista, parece estarmos diante de meras
definições topológicas. Todo movimento é divisível, mas se for efetivamente
dividido, perde a continuidade. Um movimento “absolutamente uno” é aquele
que, embora, divisível em potência, nunca se interrompe, isto é, nunca se divide
em ato. Neste sentido a continuidade aparece como coextensiva à unidade. No
entanto, em Física IV, 11 (quando desenvolve a análise do tempo), Aristóteles
declara que, “já que todo movido é movido de algo a algo (e/)k tinoj ei/)j ti) e
como toda grandeza é contínua, o movimento se conforma à grandeza; é, com
efeito, porque a grandeza é contínua que o movimento é contínuo”74. Todo
movimento, portanto, é contínuo na medida em que a grandeza que ele percorre
é contínua.
Em si mesma, a grandeza é sempre contínua no interior de seus limites,
quaisquer que eles sejam. Quando, porém consideramos não a grandeza enquan-

71 Física V, 3, 227 a 11-12


72 ib., a 14-15.
73 Física, V, 4, 228 a 20-22.
74 Física, IV, 11, 219 a 10-13.

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to tal, mas a trajetória (isto é, a grandeza percorrida pelo móvel), o limite aparece
como solução de continuidade. A unidade do movimento consiste exatamente em
percorrer sem interrupção (isto é, continuamente) uma determinada trajetória.
Interromper significa romper a continuidade e, portanto, a unidade: com efeito, o
móvel que pára torna-se imóvel e o ponto onde pára interrompe a continuidade
da grandeza, isto é, atualiza sua divisibilidade. Na trajetória, o limite não é dado
pela grandeza, e sim pelo movimento, ou, mais exatamente, pela interrupção do
movimento. Segue-se que um movimento absolutamente contínuo é um
movimento que não se interrompe nunca. Aristóteles não chama tal movimento
de infinito, porque para ele o infinito em ato não existe. Este postulado
ontológico se exprime fisicamente na impossibilidade de se percorrer uma
grandeza infinita. Não há tampouco, para Aristóteles, grandezas infinitas. Mas há
movimentos que percorrem, sem nunca parar, grandezas finitas. Deste ponto de
vista, continuidade significa, para a grandeza, divisibilidade ao infinito e, portanto,
aponta para o infinitamente pequeno e, para o movimento, duração infinita e,
portanto, aponta para o infinitamente grande.
À luz destas considerações podemos compreender que no livro VIII da
Física, Aristóteles, que afirmara no livro IV a continuidade de todo movimento
(na medida em que se conforma à grandeza), nega a continuidade do movimento
retilíneo: “aquilo que é deslocado segundo uma linha reta e limitada não pode
deslocar-se continuamente”75. Com efeito, acrescenta mais adiante, “o que,
sobretudo mostra que o movimento retilíneo não pode ser contínuo é que, ao
voltar para trás, ele tem de parar”76. Está subentendido que nenhuma reta é
infinita e que, portanto, haverá um ponto final em cada reta, no qual o móvel terá
de marcar uma pausa antes de continuar o movimento em outra direção. A
incompatibilidade desta concepção com o atomismo, notadamente com o de
Epicuro, é evidente. Os átomos só modificam suas trajetórias retilíneas através do
vazio infinito quando ocorrem choques que as desviam ou quando eles se
engancham para formar corpos compostos. O que sugere uma linha de reflexão

75 Física, VIII, 8, 261 b 31-32.


76 ib., b 262 a 12-14.

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sobre as conseqüências desta discrepância para a concepção do tempo. Como


este se concebe como uma linha em movimento segundo o antes e o depois (tal é
o modo de ser do contínuo sucessivo), constata-se uma aparente incoerência
entre a infinidade do tempo e a inexistência de retas infinitas. Na cosmologia
aristotélica esta “incoerência” se resolve, como tantas outras, pela distinção entre
potência e ato. Só o presente é. Daí não se infere que o tempo não seja no mesmo
sentido em que o vazio não é.
O mesmo não ocorre com o movimento circular: nada o impede “de ser
contínuo e de não se interromper em tempo algum; ele vai, com efeito, de um
termo a este mesmo termo, enquanto que o movimento segundo a reta vai de um
termo a outro”77. É, portanto com geométrica concisão que Aristóteles nos
explica que para ser absolutamente contínuo (isto é, para durar infinitamente) o
movimento deve ir do mesmo ao mesmo (caso do círculo) e não do mesmo ao
outro (caso da reta). Retomará mais demoradamente esta distinção no capítulo
seguinte do livro VIII, vale dizer, praticamente no final de sua Física:

Pareceu-nos correto concluir que o movimento circular é uno e contínuo e que o


retilíneo não o é. Para o retilíneo, com efeito, o começo, o fim e o meio são
determinados e lhe são intrínsecos, de maneira que há para o movido um termo
inicial e um termo final (nos limites, o inicial como o final, há sempre repouso).
Para o circular, ao contrário, estes termos todos permanecem indeterminados, já
que, dentre os pontos contidos numa linha (circular) não há razão para considerar
este e não aquele como um limite. Cada ponto, com efeito, é, com igual direito,
começo, meio e fim. Por conseguinte, aquilo que se move em círculo está sempre
tanto no começo quanto no fim e nem no começo nem no fim.78

O caráter ontológico do privilégio conferido ao círculo está apenas implí-


cito neste argumento geométrico. O movimento circular não tem, geometrica-
mente, nem começo nem fim. Vai do mesmo ao mesmo. Pode, portanto, mover-
se sem interrupção. Sabemos que os astros e as esferas celestes assim se movem.
Não vão a parte alguma, não adquirem nem perdem nada ao se mover. Exibem,
em cada um e em todos os pontos de sua trajetória absolutamente contínua, a

77 ib., 264 b 17-19.


78 ib., 9, 265 a 27 b 1.

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plenitude de seu ser. Por isso mesmo, o movimento fisicamente mais perfeito é
ontologicamente o mais estéril, se é lícito empregar esta imagem biológica. Estéril
nos dois sentidos em que mais habitualmente nos servimos do termo: dele nada
nasce (ao contrário dos movimentos retilíneos da copulação, da gestação, do
parto) nem morre nada (no sentido em que uma solução é estéril ou um líquido
qualquer esterilizado). A esterilidade, no caso, é perfeição: não falta nada ao corpo
etéreo (no sentido próprio de feito de éter puríssimo) de maneira que, para ele,
mover-se não é buscar algo que lhe falte ou perder algo que tenha, mas ser
simples e plenamente. A célebre definição do movimento como enteléquia do
que está em potência enquanto tal significa, aplicada ao movimento circular, ir do
mesmo ao mesmo e, portanto permanecer no mesmo. A potência está colada ao
ato: a diferença ontológica entre possibilidade e realidade reduz-se ao mínimo.
No primeiro motor, o mais divino dos seres, ambas se confundem num ato puro.
Mas neste ponto mais alto da metafísica aristotélica, estamos mais além do
movimento: o primeiro motor move as esferas na plenitude ontológica de sua
própria imobilidade.
Longe, portanto de se confundir com o tempo, o movimento circular da
esfera apresenta a imagem da eternidade. A imagem do tempo, ao contrário, é,
como a série dos números, uma linha reta orientada. Uma linha em movimento
contínuo, mas que não vai do mesmo ao mesmo como o círculo. Vai do outro ao
outro. O presente, com efeito, é sempre outro e nenhuma parte do tempo
coexiste com nenhuma outra. Que o curso retilíneo do tempo se deixe medir pelo
curso circular da esfera do Todo e também o meça, pode parecer um paradoxo,
mas constitui, em todo caso, no horizonte do aristotelismo, para o qual não há
infinito em ato, uma inelutável constatação. A solução aristotélica deste aparente
paradoxo consiste em caracterizar o tempo como um número.
Já no horizonte do epicurismo, para o qual o todo se “compõe” do vazio e
dos átomos, ambos infinitos, a imagem do tempo como uma reta infinita apenas
reflete a da eterna trajetória retilínea dos átomos.

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