Você está na página 1de 8

A Reforma Protestante e a propaganda religiosa:

pinturas de Lucas Cranach, o velho

Elvio Nei Figur*

Resumo: Lucas Cranach foi um pintor renascentista germânico. Adepto da Reforma


Protestante, apoiou Lutero em tudo que este dizia e pensava e, promovendo seus retratos,
alargou a fama do reformador. Ele produziu uma diversidade de pinturas e xilogravuras que 918
retratam suas percepções dos ensinamentos do amigo. Suas obras, impressas em panfletos
e/ou expostas em igrejas, serviram como propaganda do movimento reformatório, bem
como das temáticas religiosas abraçadas. Através de uma analise semiótica de algumas de
suas pinturas, o presente trabalho aborda a comunicação da fé luterana por meio da arte de
Cranach como importante meio de comunicação e ferramenta eficaz na divulgação da
mensagem cristã defendida por Lutero.

Palavras-Chave: Protestantismo. Comunicação. Arte. Mídia. Cranach.

Introdução:
Admirador de Albrecht Dürer, um dos grandes pintores alemães do renascimento,
Cranach atingiu grande renome como pintor a partir de 1520. Sua amizade com Lutero e
afinidade com as doutrinas luteranas o tornaram o pintor mais conhecido da Reforma
Protestante na Alemanha.
Usando-se do modelo peirceano pretende-se descrever aqui uma sucinta analise
semiótica de algumas de suas obras religiosas. Baseado nas categorias: primeiridade;
secundidade e; terceiridade (MOIMAZ, & MOLINA, 2009), o modelo compõe-se de uma
primeira impressão (primeiridade); a tomada de consciência da relação entre signo e o
objeto representado (secundidade), e; a interpretação da mensagem (terceiridade). Assim,
pondera-se que a obra de Cranach tornou-se importante ferramenta na ampliação da fama
de Lutero, na propagação do movimento e na difusão das temáticas religiosas abraçadas.

Breve Biografia
Lucas Maler nasceu em Kronach, Bavária, em 1473. Em homenagem à cidade natal,
adotou o nome artístico de Lucas Cranach (Figura 1). Quando seu filho, que recebeu o

*
Mestrando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato:
elviofigur@gmail.com.
mesmo nome, também começou a fazer sucesso como pintor, acrescentou a expressão “o
velho” ao final do nome. Cranach viveu em Wittenberg entre 1504 e 1550 e tornou-se o
pintor oficial da corte a convite de Frederico III, príncipe eleitor da Saxônia. Por volta de
1508, adotou a serpente alada com asas de morcego (Figura 2) como símbolo/assinatura de
sua obra.

919

Figura 1:
Autorretrato‟ / Figura 2:
1550 / Assinatura em uma
Florença obra de 1514

Nessa época, a arte e a cultura desempenhavam papel vital na preservação dos


estados alemães medievais. Frederico, como grande conhecedor da arte contemporânea e
colecionador de antiguidades, cercou-se dos melhores talentos na arte e no ramo acadêmico
a fim de atrair o máximo de atenção para a nascente Universidade de Wittenberg fundada
por ele em 1502.
Diplomata nato, Lucas foi confidente dos três eleitores Saxões que serviu ao longo da
vida. Como empresário dos ramos farmacêutico, gráfico e artístico, Cranach se tornou um
dos cidadãos mais ricos e influentes de Wittenberg na década de 1520. Eleito para o
conselho da cidade em 1519, serviu nessa posição por mais de trinta anos, sendo nove deles
(três mandatos), como Bürgermeister, ou Prefeito (OZMENT, 2011).
Quando Martinho Lutero chegou a Wittenberg para ser professor de Bíblia na
universidade, a amizade entre ambos enflorou. Este foi padrinho de um dos filhos do pintor
que, por sua vez, foi testemunha do casamento do ‘herege’ com a ‘ex-freira’ Catarina em
1525 (Figura 3).
Figura 3: M. Lutero e Catarina, 920
Figura 4: Bíblia Ilustrada, 1534.
1528 / Hannover

Cranach apoiou Lutero em tudo que este dizia e pensava e, promovendo seus
retratos, ajudou a alargar a fama do reformador. Ele ainda produziu uma diversidade de
pinturas e xilogravuras que retratam suas percepções dos ensinamentos do amigo. Suas
obras, impressas em panfletos e/ou expostas em igrejas, serviram como propaganda do
movimento reformatório, bem como das temáticas religiosas abraçadas.
Lucas também pintou vários retratos da família de Martinho Lutero, além de ilustrar
a primeira edição do Novo Testamento alemão em 1522 e a Bíblia Ilustrada de 1534 (Figura
4). Foram mais de 5.000 obras concluídas até seu falecimento em 1554, além de outras
póstumas concluídas pelo filho Lucas, o jovem.

Cranach, Lutero e a propaganda da Reforma


A arte de Lucas Cranach, sem duvida, foi importante propaganda da fé luterana na
época. O making of – registro do processo de produção – da Reforma, pode ser analisado,
em boa medida, considerando-se a relação entre esses dois grandes nomes de Wittemberg,
Lutero e Cranach, suas respectivas obras e mútua cooperação.
Em 1524, auge do nascimento da reforma, ambos criaram um escudo próprio para
identificação do reformador (Figura 6). O que mais motivou essa criação foi o sucesso de
livreiros que conseguiram piratear a Bíblia traduzida por Lutero antes mesmo de ela ser
impressa na gráfica criada em 1520 por Cranach e Christian Döring (OZMENT, 2011). O selo
se tornou a marca de autenticidade das obras do reformador e traz um cordeiro, lembrando
o Cristo, segurando uma bandeira da cruz com a perna direita enquanto seu sangue jorra
enchendo um cálice (‘da salvação’). Mais tarde, por volta de 1530, o escudo se juntou à Rosa
de Lutero (Figura 7), que pretende ser um sumário da teologia do reformador como ele
mesmo expressa;
Primeiro, ali deve estar uma cruz preta dentro de um coração. [...] Embora a
cruz seja preta, que mortifica e também causa dor, ela nunca permite que o
coração perca sua cor, não destrói sua disposição natural, isto é, a cruz não
mata, pelo contrário mantém a vida. [...] Tal coração, no entanto, é
colocado numa rosa branca, para indicar que a fé confere alegria, conforto
e paz; [...] Tal rosa deve ser colocada sob um campo celestial, visto que este
tipo de alegria no Espírito e fé é o começo da alegria celestial futura. [...] Em
torno deste campo, um anel de ouro, porque a salvação no céu perdura
para sempre e nunca tem fim. Como o ouro é o mais nobre e melhor metal,
assim a salvação é preciosa e além de tudo alegria e bênção [...] Este é o
921
meu ‘compendium theoligae’ *o sumário da teologia+ (Apud KRODEL, 1983,
p.358-359).

Figura 7: A Rosa
Figura 6: Brasão
de Lutero
de Lutero, 1524

A Rosa, apesar de não ter tido influência direta de Cranach para sua formulação, é
um arquétipo da relação entre a teologia e a arte na propaganda da mensagem do
reformador. Ela não apenas sintetiza a complexa formulação teológica luterana, mas a
expressa de forma simples. É a linguagem simbólica capaz de incitar o observador à
meditação. Este também á o caso de A Bênção de Cristo às Crianças, de 1546, (Figura 8).
Nela há uma crítica indireta às indulgências e, ao mesmo tempo, uma crítica à recusa, por
parte dos anabatistas, ao batismo infantil. Dessa obra teriam sido publicadas 20 versões
diferentes (HOFFMANN, 2015).

Figura 8: „A Bênção de Cristo às Crianças‟,


1546 / Schwäbisch Hall Figura 9: „Lei e Graça‟ / 1539 / Schneeberg
Em 1539 Lucas pintou Lei e Graça (Figura 9) a fim de representar visualmente o plano
da salvação conforme a compreensão de Lutero. Nessa obra, seguindo conselho do
reformador, Lucas inseriu a cruz no centro da pintura destacando o Cristo, e não o clero
religioso, como centro do anuncio do evangelho.
Em Altar da
Reforma, exposto na
igreja de Santa Maria em 922
Wittenberg (Figura 10),
encontramos o trabalho
mais ambicioso,
demorado e pessoal de
Cranach (OZMENT,
2011). Nele o pintor
Figura 10: procurou retratar a
Altar da
Reforma, 1547 mensagem protestante a
respeito da salvação e o
que, segundo a compreensão dos reformadores, seria a verdadeira igreja de Jesus Cristo.
Esta se encontraria onde se administra o batismo, a santa ceia, e onde os pecados são
confessados e perdoados pela graça divina.
Assim, no centro observa-se a ceia representada com figuras geométricas
perfeitamente desenhadas. No centro do círculo da mesa está o cordeiro e os discípulos à
volta com Jesus. O salão é aberto ao mundo convidando o observador a olhar além e, por
outro lado, a integrar-se ao grupo. Judas aparece com o saco de moedas conversando com
Jesus, mas já com um pé fora do circulo. O servo, em pé, é o que está com vestes mais
luxuosas, o que remete às palavras de Jesus; aquele que deseja ser maior, que sirvam os
outros (Mateus 20.26). O jovem servo teria sido inspirado na figura do filho de Lucas
Cranach que o teria auxiliado na obra (HOFFMANN, 2015). O sevo alcança o cálice a Lutero,
retratado com o disfarce de ‘cavaleiro Jorge’ adotado por ele quando exilado em Wartburg
(OZMENT, 2011) onde traduziu a Bíblia para o alemão. É Lutero quem recebe o cálice e o
devolve ao grupo, uma referencia ao que seria, na compreensão luterana, a verdade do
evangelho retomada pelo reformador e devolvida à comunidade cristã.
A pintura da esquerda, lembrando a centralidade desse sacramento ao lado da ceia,
retrata um batismo. Aquele que o realiza seria uma representação da figura de Filipe
Melanchton, professor de grego na Universidade de Wittemberg, e importante articulador
teológico e sistemático da reforma ao lado de Lutero. A pia batismal em tamanho grande
mostra a possibilidade de submersão, até mesmo de um adulto. À direita de Melanchton,
está novamente Lucas Cranach. Empunhando uma toalha, ele está pronto para tomar em
mãos tanto o recém-nascido em sua nova função de padrinho. À esquerda de Melanchton
923
está o eleitor Frederico, também como padrinho do batizado (OZMENT, 2011).
Já a pintura da direita é uma ilustração do que seria o Oficio das Chaves na teologia
luterana. Há a representação do primeiro pastor protestante da Igreja de Santa Maria e
confessor de Lutero, Johannes Bugenhagen, em seu confessionário aberto. Há duas pessoas,
uma ajoelhada sobre a qual o pastor coloca uma chave, absolvendo-o, e outra pessoa que,
aparentemente, não se arrepende dos seus pecados. Dela o pastor retém a ‘chave da
absolvição’.
A pintura mais famosa é a disposta na base. Nela vemos a centralidade da cruz, pois
na teologia de Lutero, ela seria o conteúdo e o fundamento de tudo o que acontece na
igreja. A mortalha na qual o crucificado está envolto, permanece em movimento, tanto em
direção ao pregador como em direção aos ouvintes. Essa seria uma representação da
terceira pessoa da trindade que manteria a mensagem do Cristo viva e presente na pregação
e na vida do povo (HOFFMANN, 2015). No púlpito está Lutero com a Bíblia aberta e
apontando para o Cristo tido como o centro da doutrina anunciada. Do outro lado, no
mesmo quadro, está representada, a família de Lutero. O pequeno Johannes, primogênito
do reformador e afilhado de Cranach, é o jovem de casaco vermelho entre as pernas de sua
mãe (OZMENT, 2011). Também estão representados alguns membros da congregação de
Wittemberg e, grisalho e com barba longa, próximo à parede, o próprio Lucas que, com essa
aparição, se identifica com a nova igreja.
Lutero e Cranach aparecem mais de uma vez no Altar da Reforma. A intenção do
pontor ao incluir príncipes, esposas e filhos na obra, parece ser a de perpetrar a vida cristã
dos apóstolos e a vida da congregação que se reúne ali, atenuando, assim, os dezesseis
séculos de distância cronológica e acentuando a contemporaneidade da mensagem que a
obra pretende transmitir.
Cristo na cruz (Figura 11) é uma espécie de
‘obra póstuma’ de coautoria com o filho. Iniciada em
1552, a obra só foi concluída em 1555, portanto,
após a morte de Cranach em 1554. É considerado o
monumento visual mais importante e a expressão
artística mais incisiva e sucinta da fé protestante
(OZMENT, 2011). Exposta na igreja de São Pedro e 924
São Paulo, em Weimar, a obra sintetiza a história da
humanidade e da salvação na interpretação luterana.
Em primeiro plano está novemante a cruz, e
também a mortalha do crucificado em movimento.
Figura 11: Cristo na Cruz / 1552; Ao lado esquerdo, observa-se Jesus derrotando a
Concluída por Lucas Cranach, o
jovem / 1555 / Weimar morte e o diabo. Ao lado direito Lutero mostra a
Bíblia enquanto o sangue do crucificado jorra sobre a cabeça do homem ao seu lado
identificado como o próprio pintor. Cranach não aparece como um profeta ou reformador,
mas como um penitente solitário em sinal de oração. Lucas Cranach, o jovem, teria acrescido
essa figura à obra após a morte do pai. Argumenta-se que o fato de a imagem de Lutero
tomar as mesmas dimensões que as imagens de Cranach e João Batista juntos seja uma
evidência dessa posterior inserção (OZMENT, 2011). Ao inserir a imagem do pai entre dois
expoentes da mensagem do Cristo, o filho do célebre pintor, acreditava que o pai era, de
fato, uma testemunha da fé cristã protestante e uma personificação do movimento religioso.
O conjunto da obra remete ao cristianismo primitivo e seu ‘renascimento’ com a
Reforma. Em pé, diante da cruz e com a Bíblia na mão, Lutero espelha cenas de fundo:
Moisés, atrás da cruz, com as tábuas da lei; um homem fugindo do ataque do inimigo, (ou da
força da lei?); tendas fazem lembrar o povo judeu em peregrinação; à frente das tendas está
representado o episódio da serpente de bronze levantada por Moisés no deserto – o que
remete à passagem de Jesus no terceiro capítulo do Evangelho de João, e; bem ao fundo o
que parece ser o anuncio da ‘boa nova’ aos pastores de Belém acerca do Messias prometido
já a Adão e Eva. O reformador, em primeiro plano, com os olhos voltados para o alto e face
serena, simboliza a fé e a esperança de salvação através da mensagem da crucificação e
ressurreição de Cristo, base de sua mensagem religiosa.
Considerações Finais
Lucas Cranach é o pintor mais conhecido da Reforma Protestante na Alemanha.
Apoiando Lutero e promovendo seus retratos, sua obra foi importante ferramenta na
propagação do movimento e da mensagem religiosa. Buscou-se aqui a descrição de uma
sucinta analise semiótica de algumas de suas obras nas quais o pintor expressa afinidade
com o movimento. Assim, observa-se que a arte da pintura (além da musica e da imprensa)
foi ferramenta e importante meio na propagação da mensagem religiosa da Reforma. Como
925
esse ensino se baseia na ideia de dependência do homem com relação ao sacrifício de Cristo
para sua salvação, essa mensagem se tornou devota na arte evangélica de Cranach que, não
obstante, tomou parte nela pessoalmente, afinal, os ‘objetos’ são mais bem conhecidos em
sua relação com o homem.
Pode-se acrescentar, por fim, que, de certa forma, o envolvimento da população e o
sucesso da reforma foi tanto causa como consequência da participação também da arte da
pintura como mídia de propaganda religiosa.

Bibliografia Básica
HOFFMANN, Christian. Cranach e Lutero. In: BUSS, Paulo W (org.). Lutero e a Comunicação: O uso da
mídia na proclamação do Evangelho. Textos do 5º Simpósio Internacional de Lutero. Porto Alegre:
Concórdia, 2015.

KRODEL, Gottfried G. Luther’s Works. Philadelphia: Fortress, 1983.

MOIMAZ, Érica Ramos & MOLINA, Ana Heloísa. A Contribuição da Semiótica Peirceana para análise
da pintura histórica. Encontro Nacional de Estudos da Imagem (2.: 2009: Londrina, PR). Anais... : UEL,
2009.

OZMENT, Steven. The Serpent & The Lamb: Cranach, Luther, and the Making of the Reformation.
Yale University Press: New Haven and London, 2012.

THE REFORMATION of Religious Images: Lucas Cranach the Elder and Martin Luther. Disponível em:
<https://epistole.wordpress.com/2009/12/21/the-reformation-of-religious-images-lucas-cranach-
the-elder-and-martin-luthers-bible-of-1534/>. Acesso em: 01 out. 2015.

Fonte das Imagens


www.lucascranach.org; http://blogs.bodleian.ox.ac.uk; https://de.wikipedia.org;
www.artbible.info

Você também pode gostar