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ANO 14 / Nº 155 R$ 18,00

18 24 34
EUA × CHINA TRABALHO, FAMÍLIA, WI-FI
MIAMI HERALD, LE MONDE, WSJ e FT
VAI Corinthianssssss
A GEOPOLÍTICA BEM-VINDOS À A COBERTURA ENVIESADA
PÓS-PANDEMIA SOCIEDADE SEM CONTATO! DA AMÉRICA LATINA
POR PHILIP S. GOLUB POR JULIEN BRYGO POR ANNE CORREA E RENAUD LAMBERT

LE MONDE
00155

diplomatique
9 771981 752004

BRASIL

.
2 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
“NÃO SE MUDA NADA, ACELERA-SE”

Vender Audis
na Birmânia
POR SERGE HALIMI*

D
a criação, em 1950, da Comuni- mércio. Em plena crise do coronaví-

© Cesar Habert Paciornik


dade Europeia do Carvão e do rus, quando a maior parte dos
Aço à da União Europeia (UE), habitantes da União Europeia vivia
passando pelo Tratado de Ro- ainda confinada, as tensões sino-a-
ma e pelo Mercado Comum, os ar- mericanas se envenenavam e
quitetos da Europa tiveram por ini- Washington transgredia, gargalhan-
migos declarados o protecionismo e do, quase todas as “regras” do comér-
a soberania. Não devemos estranhar, cio que os Estados Unidos haviam
portanto, que, mesmo num momen- subscrito, aguardávamos suas refle-
to em que a economia internacional xões sobre a globalização. Pois bem,
periclita e o emprego desaparece, a elas se resumem a isto: não se muda
UE planeje, imperturbável, novas nada, acelera-se. Algumas empresas
ampliações (Albânia, Macedônia) e sanitárias voltarão ao Velho Conti-
negocie os próximos acordos de li- nente, não há outra escolha. “Mas se-
vre-comércio (México, Vietnã). O rá uma exceção”, adverte Hogan.1 E,
Reino Unido saiu batendo a porta? dirigindo-se àqueles que falam de
Não tem importância, os Bálcãs es- curtos-circuitos, de recessão, ele re-
tão chegando. E amanhã, se for pre- plica: “Em 2040, 50% da população
.

ciso, virá a Ucrânia. mundial viverá a menos de cinco ho-


Ninguém consegue obrigar um ras da Birmânia. [...] Parece-me evi-
bandido a agir contra sua natureza. dente que as empresas europeias não
Ora, a Europa é obcecada por cons- vão querer se privar desse filão. Seria
truir um grande mercado. Sem fron- uma enorme tolice”. Aliás, ele já sabe
teiras, direitos aduaneiros ou sub- em que empregará os próximos me-
venções. Com efeito, sem novas ses: “Devemos aprofundar nossos
liberalizações comerciais, ela cairia acordos de livre-comércio existentes tornou, no correr dos anos, uma “glo- to de civilização ao qual soube asso-
por terra. É a chamada “teoria da bi- – com cerca de setenta países – e pro- balização em miniatura”.2 As normas ciar seu nome. 
cicleta”: ou pedalamos rumo a uma curar assinar outros”. comerciais que ela sonhou impor ao
maior integração, ou a queda é inevi- No momento, os intelectuais polí- planeta inteiro, por motivo do tama- Serge Halimi é diretor do Le Monde
tável. O mundo sonhado por Bruxelas grafos e a web multiplicam projetos nho de seu mercado, se desfizeram Diplomatique.
lembra uma enorme poça de óleo para o “mundo que virá”. São poéti- em pedaços diante de seus olhos per-
bem escorregadia sobre a qual cami- cos, polifônicos, benevolentes, com- plexos, mas mesmo assim ela conti- 1   “Union européene doit rester ouverte sur le
nhões de transporte deslizam ao som plexos, solidários etc. No entanto, nua aferrada a “regras” ao mesmo monde” [A União Europeia deve permanecer
da Ode à alegria. permanecerão verborrágicos e inú- tempo caducas e prejudiciais. Vender aberta para o mundo], Le Monde, 8 maio 2020.
2   C f. Henry Farrell, “A most lonely union” [Uma
Ouçamos, por exemplo, Phil Ho- teis caso não atentem para a arquite- carros da Audi na Birmânia continua união muito solitária], Foreign Policy, Washin-
gan, atual comissário europeu do Co- tura de uma União Europeia que se sendo seu único ideal, o único proje- gton, DC, 3 abr. 2020.
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 3
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EDITORIAL

A aposta
no caos
POR SILVIO CACCIA BAVA

A
situação é desesperadora. Vive-
mos uma epidemia que já mata
mais de mil pessoas por dia no
Brasil, sem que o governo fede-
ral tenha adotado uma estratégia de
defesa da vida e mobilizado todos os
recursos disponíveis para controlar a
Covid-19. O vídeo da reunião minis-
terial de 22 de abril, além de todos os
seus desatinos, mostra que o governo
nem sequer aborda a pandemia que
se alastra pelo país. Ao contrário,
Bolsonaro sabota a proposta de isola-
© Claudius

mento social e se choca com as orien-


tações da Organização Mundial da
Saúde e de seu próprio Ministério da
Saúde, o que já levou dois ministros a
se demitirem em plena pandemia.
.

Pesa sobre o presidente da República


a acusação de estar promovendo um
genocídio dos brasileiros.
Dados recentes, de 14 de maio,
nos dizem que, dos R$ 18,9 bilhões
destinados ao combate à Covid-19 no eram R$ 200 na proposta original do Essa situação de convulsão social sociedade e no Congresso, o PT, o
âmbito do Fundo Nacional de Saúde, Executivo, mas foram ampliados pelo permitiria ao presidente buscar mo- maior partido brasileiro, e os demais
apenas R$ 8 bilhões foram pagos. A Congresso, ainda que insuficientes bilizar as Forças Armadas e implan- partidos de oposição? Quais são suas
insuficiência e a lentidão dos repas- para alimentar uma família, chegam tar um estado de sítio. Com isso, Jair propostas e seu engajamento para
ses aos fundos estaduais e munici- com atraso e lentidão. Nem todos os Bolsonaro e seus filhos resolveriam enfrentar a crise de saúde, a profun-
pais de saúde merecem destaque que deles precisam recebem. Há uma seus problemas com a Polícia Fede- da recessão e o desemprego que já é
num quadro de uma relação extre- orientação do governo federal de re- ral, com o Judiciário e com o Parla- grande e vai se tornar maior?
mamente conflitiva do presidente cusar 33% das solicitações. E a se- mento, o que parece ser a maior preo- Esse imobilismo do campo de-
com governadores de vários estados, gunda parcela ainda não foi paga e cupação do presidente do Brasil. mocrático abre espaço para Bolso-
especialmente de São Paulo, do Rio não se tem prazo definido para isso. Mas a aposta no caos é comparti- naro avançar em sua estratégia de
de Janeiro e do Nordeste do país.1 Embora haja dotação para as cestas lhada pelas elites brasileiras, que até golpe. Há uma agenda de urgências a
Os ataques presidenciais à políti- de alimentos para a população indí- agora respaldam o governo Bolsona- ser implementada, e o primeiro pas-
ca de isolamento têm a adesão de gena, nada lhes foi entregue. Após ro? A Febraban, a Fiesp e a CNI conti- so é a conformação de uma frente
uma significativa parcela da popula- mais de dois meses de isolamento, a nuarão a apoiar as pretensões ditato- antifascista. As disputas entre parti-
ção mais pobre, composta de traba- fome começa a bater às portas dessa riais do capitão? As Forças Armadas dos por força das eleições munici-
lhadores informais e desempregados, população empobrecida. se alinharão com o golpe pretendido pais, que aliás ninguém discute e
que vivem de bico e de venda de pro- Pela falta de políticas públicas ca- pelo presidente? O Judiciário foi con- não sabemos quando vão ocorrer,
dutos nas ruas e precisam trabalhar pazes de enfrentar a pandemia e com trolado por Bolsonaro ou vai assumir não podem impedir a formação des-
para obter a cada dia os recursos para a fome chegando às populações mais seu papel constitucional de defesa da sa frente.
sobreviver. Esses brasileiros e brasi- empobrecidas, situação que alguns democracia e imputar ao presidente Alguns sinais recentes mostram
leiras mais pobres, que somam mais analistas identificam como deliberada os crimes que ele já cometeu? A Polí- atos de resistência democrática dian-
de 80 milhões de pessoas, se não tive- e de responsabilidade do governo fe- cia Federal vai concluir os inquéritos te das seguidas manifestações de rua
rem recursos públicos para se man- deral, é previsível que entraremos em que envolvem Bolsonaro e seus fi- dos bolsonaristas. No domingo, 24
ter, passarão fome e desespero. Pro- um período, a curto prazo, de convul- lhos? O Congresso vai ser controlado de maio, um grupo de sindicalistas e
por o fim do isolamento é uma sões sociais – e, eventualmente, de sa- pelo presidente, que está comprando das torcidas organizadas do Grêmio
política perversa, pois convoca a ex- ques aos supermercados. Pode-se re- o apoio do Centrão? e do Inter retomou a ocupação das
pansão da pandemia. petir no Brasil situações que já ocorrem Essas são as questões centrais ruas e impediu a manifestação dos
Em vez de garantir o isolamento em outros países. Sem que seja possí- desta conjuntura, e não o uso da fascistas, um pequeno e barulhento
dos mais pobres pagando o auxílio- vel enterrar os mortos, como aconte- hidroxicloroquina. grupo de pessoas vestidas de verde e
-pandemia para que fiquem em casa, ceu em Guayaquil, no Equador, nem E cabe também outro questiona- amarelo. 
o governo federal segura esses recur- levar comida para filhos e familiares, o mento. Para além de manifestos e
sos para forçar o fim do isolamento e desespero vai desencadear a violência declarações, qual é a estratégia dos
1   J osé Roberto Affonso e Elida Graziane Pinto,
a retomada das atividades econômi- e o caos, como apontam as últimas democratas para enfrentar o capitão “Pouca saúde”, Le Monde Diplomatique Bra-
cas. O repasse dos R$ 600/mês, que manifestações populares no Chile. e o golpe em curso? O que fazem, na sil, 19 maio 2020.
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PANDEMIA

É nóis por nóis!


Agora que a situação se complica, o coronavírus chega às periferias das grandes cidades, às favelas, ao interior,
às regiões mais pobres do país; agora que a morte, o desemprego e a fome batem à porta, de quem essas
pessoas podem esperar amparo, proteção, cuidados? A quem elas poderão recorrer?

POR SILVIO CACCIA BAVA*

ter acesso a essa mínima proteção so- Comunitária Cabana, Ananindeua-


cial. Os que adoecem já não encon- -PA); organizar campanhas educati-
Quem é que vai cantar a dor que nóis sente? tram socorro da parte dos equipa- vas (projeto Saúde e Alegria, Rádio
Quem é que vai sangrar na linha de frente? mentos de saúde pública, que não Rural de Santarém-PA); coletar fun-
Quem é que vai somar, fortalecer a corrente? têm mais capacidade de atender à de- dos e distribuir cestas de alimentos
Se não for nóis por nóis, quem é que vai ser pela gente? manda, sucateados que foram ao lon- para as famílias com fome; ajudar no
go dos últimos anos. cadastramento para ter acesso ao au-
A286, “Nóis por nóis” O medo de que os problemas se xílio-pandemia do governo; cobrar
agravem também é expresso por es- dos governantes o atendimento
sas lideranças comunitárias. Em pri- emergencial de suas necessidades.
meiro lugar, elas temem a expansão A importância dessas iniciativas

N
o mundo inteiro, o discurso tração da receita nas mãos do gover- do contágio. Por conta da falta de de solidariedade é enorme. Sem elas,
neoliberal está mudando e re- no federal limita suas ações. amparo governamental e das políti- a tragédia certamente seria maior. E
conhecendo a importância do As orientações para o combate à cas de desinformação – de responsa- aqui podemos avaliar a importância
Estado como único agente ca- epidemia são impossíveis de ser bilidade principalmente da Presi- das organizações da sociedade civil.
paz de atender ao interesse público cumpridas. Isolamento? Ficar em ca- dência da República e do chamado São elas que, articuladas em redes,
nesta pandemia, prover a segurança sa nas favelas? Como alimentar a fa- Gabinete do Ódio, o centro produtor pressionam os poderes públicos para
.

alimentar e os serviços e equipamen- mília sem trabalhar? Lavar as mãos? da desinformação –, a adesão às me- o atendimento das necessidades dos
tos de saúde necessários, e enfrentar Mas não tem água na torneira todos didas de combate à pandemia é bai- mais pobres, organizam o trabalho
o desafio da profunda recessão e de- os dias... xa. Em segundo lugar vem a fome. voluntário e oferecem apoio e acolhi-
semprego que se anunciam. Os in- De fato, as palavras do governo ig- Em terceiro lugar, a falta de acesso a mento aos mais necessitados.
vestimentos públicos são considera- noram a existência e as formas de vi- equipamentos de saúde.1 São associações de moradores,
dos essenciais para a retomada das da de mais de 80 milhões de brasilei- Abandonados à própria sorte, es- sindicatos, órgãos de imprensa inde-
atividades econômicas. ros, a parcela da população que se ses territórios da pobreza vão se arti- pendentes, rádios comunitárias,
Infelizmente, no Brasil o governo habilita a receber os R$ 600 de socor- culando e enfrentando as condições igrejas, grêmios estudantis, escolas
Bolsonaro não investe na saúde – ro, a parcela que mais precisa de pro- adversas como sempre fizeram, lan- de samba, torcidas de futebol, coleti-
aliás, segura os recursos disponíveis teção, amparo, cuidados. Paulo Gue- çando mão da solidariedade, assu- vos informais de cultura, associações
para o enfrentamento da Covid-19 des acha que com esses recursos as mindo responsabilidades e tarefas profissionais, ONGs, universidades,
para não repassá-los a governadores babás vão passear na Disneylândia. que deveriam ser políticas públicas, enfim, uma infinidade de formas de
de oposição – e continua querendo Agora propõe a redução para R$ 200 lançando seu apelo aos demais seto- organização que criam coletivos e
destruir o Estado e privatizar tudo do socorro pela pandemia se essa res da sociedade para que os socor- permitem ações conjuntas.
que é público. Contra o isolamento, o doação ultrapassar três meses. ram neste momento. A base dessa solidariedade é uma
governo federal também não paga ou Os brasileiros mais pobres não E o que vemos surgir em meio à ética humanista, de cooperação, de
atrasa o auxílio-pandemia, os R$ 600 podem contar com o amparo, a pro- crise é uma extraordinária rede de valores que se afirmam como funda-
por três meses, para forçar os mais teção e o acolhimento do governo dos solidariedade que se baseia nas or- mentos da convivência plural e demo-
pobres a sair para o trabalho. E, para brasileiros. As políticas públicas ou ganizações existentes, que tomam crática, que afirmam o respeito à dife-
sustentar sua posição contra o isola- não chegam, ou chegam de maneira todo tipo de iniciativa para cuidar de rença, a dignidade e o bem-estar de
mento, produz desinformação e fake insuficiente aos territórios da pobre- seus pares, para cuidar do território todos como meta comum da socieda-
news, confundindo as pessoas e esti- za. Nunca a chaga da desigualdade que habitam com os recursos que de. Mesmo a doutrina liberal defende
mulando a volta à vida normal. foi tão escancarada. Anuncia-se uma podem mobilizar. E, ao se organiza- que o Estado deve prover condições
O resultado é o pior possível. Com tragédia humanitária com a conjuga- rem para essas tarefas, conquistam a dignas de vida para todo cidadão e
mais de 25 mil mortes por Covid-19 ção de crise sanitária, crise alimentar adesão e a solidariedade de outros considera a democracia a melhor for-
em maio e uma curva ascendente de e desemprego, os quais não se resol- setores da sociedade, como pessoas ma de regulação dos conflitos e das
contaminação e mortes, o Brasil já é o vem de um dia para o outro. e entidades das classes médias, em- diferenças sociais. São as organiza-
segundo país, depois dos Estados Lideranças comunitárias nas ci- presas e igrejas. ções independentes, a força da socie-
Unidos, mais afetado pela pandemia. dades de São Paulo, Rio de Janeiro, As iniciativas são muitas: monito- dade civil articulada e os movimentos
E o desastre será maior no futuro pró- Belo Horizonte, Manaus e Distrito rar a saúde dos moradores da favela e sociais que garantem a democracia e
ximo, pois não há nenhum plano pa- Federal já identificam a fome e a in- criar um posto de atendimento de o quanto esta inclui os mais pobres e
ra combater a pandemia nem para segurança alimentar como os princi- saúde e casas de isolamento em seu distribui a riqueza produzida.
enfrentar economicamente a reces- pais problemas nas favelas. Sem ren- território (Paraisópolis, São Paulo); Não é de hoje – pode-se dizer mes-
são e o desemprego. O presidente tro- da e sem trabalho, falta dinheiro para desinfetar regularmente as ruas da mo que tem mais de dez anos – que
cou dois ministros da Saúde nos últi- tudo, inclusive para as máscaras e o comunidade (Favela Santa Marta, está sendo orquestrada uma campa-
mos dois meses e o cargo está vago. material de higiene pessoal. A difi- Rio de Janeiro); produzir e distribuir nha de enfraquecimento e mesmo de
Os governos estaduais e municipais culdade de acesso ao auxílio emer- máscaras e material de higiene; pro- destruição das formas de organiza-
fazem o que podem, e é importante gencial, produzida pelo próprio go- duzir vinhetas educativas e informa- ção e representação da sociedade ci-
que se reconheça isso, mas a concen- verno, impede milhões de pessoas de ção, combatendo as fake news (Rádio vil. Tudo isso pelo medo de que a es-
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querda ganhe outra vez as eleições e prefere a democracia como forma de Essa é a proposta de criação de partidos da Frente Antifascista se en-
para manter os privilégios e os inte- governo e reconhece a importância uma frente antifascista para enfren- gaja em lutas por mudanças estrutu-
resses das elites econômicas e finan- dos partidos políticos, sem os quais a tar o surgimento de um novo capita- rais. As lições deste momento de crise
ceiras, que veem como ameaça ao democracia não existe. lismo bárbaro, com novas formas au- em que todo o custo recai sobre os
seu controle da sociedade as pressões Segundo pesquisa Datafolha di- toritárias de governança, centrada na trabalhadores ensinam, mais uma
por direitos e pela redistribuição da vulgada em janeiro deste ano, a defe- sociedade do controle, na censura, vez, que ninguém vai defender todos
riqueza feitas pelos que estão priva- sa da democracia conta com a maio- no fim das liberdades. aqueles que vivem do próprio traba-
dos de seus direitos. ria (62%). Mas é importante observar “Toda proposta política é sempre lho. Ou eles se organizam, se articu-
A situação dos sindicatos, com a tendência. O apoio à democracia uma fórmula para tentar articular de lam e se constituem como sujeitos
suas fontes de recursos cortadas por caiu sete pontos percentuais de 2018 um modo específico vontades diver- políticos, ou serão submetidos a no-
decisões do governo; o corte do finan- para 2019, e o número de indiferentes sas. São as práticas que apontam no vas e mais perversas formas de domi-
ciamento das ONGs por fundos públi- aumentou de 13% para 22%. Os que sentido do questionamento da do- nação. A autonomia nunca foi tão im-
cos; o corte do orçamento das univer- defendem a ditadura permaneceram minação capitalista que alimentam portante para constituir um poder
sidades públicas; a perseguição aos com os 12%.2 O que se apresenta co- a formulação de uma alternativa po- capaz de pressionar por mudanças. 
setores sociais de resistência demo- mo demanda é uma nova forma de lítica. Nós lutamos por uma trans-
crática e à imprensa opositora; o ata- democracia e novos partidos políti- formação social pela qual a popula- *Silvio Caccia Bava  é diretor do Le Mon-
que e criminalização dos partidos de cos; os pesquisados não querem mais ção se assenhore dos seus meios de de Diplomatique Brasil.
esquerda; a destruição das reputa- do mesmo. vida. E é pela constituição de um no-
ções de lideranças da oposição; a per- O desafio é politizar essas redes vo sujeito político capaz de ser por- 1   P esquisa realizada pela USP, articulada com a
seguição física e o assassinato de lide- de solidariedade e construir as pon- tador de uma vontade coletiva de Rede de Pesquisa Solidária, com 72 lideran-
ças comunitárias nas cidades mencionadas.
ranças de movimentos sociais – tudo tes dessas organizações que operam transformação social que esse pro-
Publicada pela Folha de S.Paulo (25 maio
isso tem como propósito o enfraque- nos territórios e articulam o protesto cesso pode se dar”. 3 2020).
cimento e a destruição da sociedade social com o mundo da política. A A proposta da Frente Antifascista 2   Datafolha divulgada em 1º de janeiro de 2020
e publicada por El País em 12 de janeiro de
civil e das representações coletivas. O Frente Brasil Popular e a Frente Povo é importantíssima, mas não pode dar
2020.
indivíduo, sozinho, isolado, se vê im- Sem Medo são expressão desse esfor- conta das mudanças profundas que 3   Eder Sader, “Autonomia popular e vontade po-
potente diante do poder autoritário. ço. Elas agregam diferentes movi- nossa sociedade requer. Nenhum dos lítica”, Desvios, n.2, 1
Mesmo com toda essa onda de mentos sociais, toda uma ampla rede
destruição, vemos uma sociedade ci- de entidades, e se mobilizam em de-
vil vibrante, que não se rendeu a esse fesa dos interesses comuns, das de-
poder autoritário. Ainda não temos mandas sociais e da democracia. A
condições de avaliar em nível nacio- criação das frentes carrega o sentido
nal a extensão dessas redes de solida- da politização do social, isto é, da ex-
riedade que se constroem na crise, plicitação do conflito e do debate de
.

mas é um grande movimento. A ques- que há alternativas para enfrentar a


tão que se coloca é se elas podem ir crise sem que todo seu peso recaia
além dessa dimensão do auxílio hu- unicamente sobre os trabalhadores.
manitário. Em alguns casos é possí- No entanto, a politização do so-
vel dizer que sim, quando elas pres- cial feita por essas frentes, pela im-
sionam o poder público para que este prensa contra-hegemônica e pela in-
atenda a suas necessidades. Podem telectualidade que se alinha à defesa
até promover panelaços, mas têm da democracia não é suficiente para
seus limites. Elas formulam deman- enfrentar o poder instituído. Na de-
das, não disputam políticas públicas. mocracia que temos, as eleições e os
As ruas, que são o espaço público partidos políticos continuam essen-
por excelência para as grandes mani- ciais. Por essa razão, esse movimento
festações, estão interditadas pela de solidariedade entre os mais po-
pandemia. Mesmo as grandes mani- bres, e que convoca amplos setores

ius
festações, como as de junho de 2013, da sociedade a apoiá-lo, precisa se

l au d
mudam muito pouco o comporta- encontrar com a coalizão de partidos
©C
mento das instituições democráticas, que pede o impeachment de Bolso-
desde sempre controladas pelos po- naro. E isso é uma responsabilidade
deres econômicos. A situação atual é dos partidos. O primeiro passo é o
de agravamento da crise, com a fome, afastamento do presidente. O segun-
o desemprego e o desespero tomando do é disputar com essa coalizão as
conta da cena. O aumento da tensão eleições municipais. O terceiro é ins-
social prenuncia momentos de ruptu- taurar um novo processo constituin-
ra. O sofrimento é geral e crescente. te para recuperar direitos e criar um
São poucos os espaços de decisão novo sistema político.
de que o cidadão participa. Muito do
que foi construído no passado, como
os conselhos e conferências de políti-
cas, já foi destruído. Por onde então
vai se expressar toda essa energia de
inconformismo e revolta? Na negação
das instituições políticas que susten-
tam esse estado de coisas. Os parti-
dos políticos e o Parlamento estão en-
tre as instituições mais depreciadas
pela opinião pública. Mas é bom fri-
sar que essa avaliação é sobre nossa
democracia e os atuais partidos polí-
ticos. A ampla maioria dos brasileiros
6 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

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DO DESÂNIMO À DESOLAÇÃO

O laboratório e a experimentação
do trabalho na pandemia do capital
A pandemia do capital tratou de demonstrar sua impostura: “colaboradores” estão sendo demitidos aos milhares,
“parceiros” estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego e os pequenos empreendedores
não encontram consumidores e veem sua renda se esvanecer

POR RICARDO ANTUNES*

PRIMEIRO ATO capital tratou de demonstrar sua im- Vale ressaltar que esses dados não ção e letalidade. Senão, o que signifi-
O mundo principiou este trágico ano postura: “colaboradores” estão sendo refletem o que vem se passando no ca a enorme pressão de amplas par-
de 2020 de modo muito diferente. Não demitidos aos milhares, “parceiros” presente (segundo trimestre), dada a celas do empresariado predador que
bastasse a recessão econômica global estão podendo optar entre reduzir os expansão exponencial da pandemia exige junto ao governo-de-tipo-lúm-
e em curso acentuado no Brasil, já salários ou conhecer o desemprego e no Brasil, mas tão somente o pouco pen 2 a imediata volta ao trabalho e à
visualizávamos no radar sinais de os pequenos empreendedores não en- que era visível até os primeiros dias produção, em meio à explosão de
expressivo aumento dos índices de contram consumidores e veem sua de março, visto que o desemprego mortes que não param de crescer por
informalidade, precarização e desem- renda se esvanecer. (tanto aberto quanto aquele por de- conta da pandemia? Será para pre-
prego, quer pela proliferação de uma É bom recordar, porém, que mes- salento) está em grande medida invi- servar os empregos, como dizem?
miríade de trabalhos intermitentes, mo antes da explosão da pandemia a sibilizado pela paralisação de amplos A resposta é de singela clareza e es-
ocasionais, flexíveis etc., quer pelas realidade cotidiana do labor já vinha setores da economia, permitindo tão tá estampada não só no país, mas em
formas abertas e ocultas de subocu- expressando uma outra nomenclatu- somente uma aproximação sintomá- todos os rincões do mundo. Da China
pação, subutilização e desemprego, ra: pejotização, trabalho intermiten- tica da realidade. Se a esses dados in- à Suécia, da Alemanha à África do Sul,
todos contribuindo para a ampliação te, subocupação, subutilização, cluirmos os subocupados (que traba- da Índia aos Estados Unidos, da Fran-
.

dos níveis já abissais de desigualdade infoproletariado, cibertariado, escra- lham menos de 40 horas) e os ça ao México, do Japão à Rússia, com a
e miserabilidade social. vidão digital, professor delivery, frila subutilizados (que segundo o IBGE eclosão da pandemia do capital, a
Paralelamente a esse quadro so- fixo, precári@s inflexíveis etc., ter- englobam tanto os subocupados co- criação de riqueza e de lucro se estan-
cial crítico, o léxico empresarial que minologia essa que, com tom irônico mo os desocupados e a força de tra- cou, dada a paralisação da produção,
se expandia no universo maquínico- e crítico, se originou da própria lavra balho potencial),1 teremos uma ideia com exceção das chamadas ativida-
-informacional-digital estampava do trabalho. É por isso que uberiza- mais precisa do tamanho da tragédia des essenciais (aliás, ao ampliar ou
muita pomposidade: platform eco- ção tem hoje o mesmo traço pejorati- social que não para de se amplificar restringir essa definição, cada gover-
nomy, crowd sourcing, gig-economy, vo que walmartização ostentou no país que em fins de maio se en- no estampa seu nível de maior sujei-
home office, home work, sharing eco- quando se falava das condições de contra no epicentro da pandemia. ção e servilismo ao capital).
nomy, on-demand economy, entre trabalho nos hipermercados. Como as corporações globais sa-
tantas outras denominações, sem es- Se esse ainda era o cenário no Na- SEGUNDO ATO bem melhor do que ninguém que a
quecer que os altos gestores (outrora tal de 2019, com Trump, Bolsonaro, Foi nessa situação verdadeiramente força de trabalho é uma mercadoria
presidentes e diretores das grandes Orban e outras aberrações asseme- catastrófica, em que a simultaneida- especial, uma vez que é a única capaz
corporações) foram renomeados co- lhadas, tudo começou a se agravar de da crise econômica, social e políti- de desencadear e impulsionar o com-
mo chief executive officer (CEO). Até o com o advento da pandemia. Com a ca se verificou, que a nova pandemia plexo produtivo presente nas cadeias
coaching foi inventado, afinal seria propagação global do coronavírus, o aterrissou em nossos aeroportos. produtivas globais que hoje coman-
preciso alguém que ganhasse um que era desanimador se tornou deso- Muito distante de um vírus cuja res- dam o processo de criação de valor e
bom cacau para realizar algum afago lador. E a crise econômica que atingia ponsabilização se devesse a algum de riqueza social, os capitais apren-
espiritual. duramente o Brasil passou a ser am- desmando da natureza, tão ao gosto deram bem, ao longo destes quase
E esse novo palavrório, propalado plificada pelas crises do governo Bol- da apologética da ignorância que ho- três séculos de dominação, a lidar
pela gramática do capital, somou-se sonaro-Guedes, uma simbiose nada je se esparrama aqui e alhures, o que com (e contra) o trabalho.
àquele já consolidado e que adultera- esdrúxula entre concepções ditato- estamos presenciando, em escala Sabedores de que, se efetivassem
va os reais significados etimológicos riais e fascistas e uma variante de global, é resultante da expansão e ge- a completa eliminação do labor, eles
das palavras, que todos conhecemos: neoliberalismo primitivo, devastan- neralização do sistema de metabolis- se veriam na incômoda posição de
manter sempre a resiliência, atuar do ainda mais nosso chão social já mo antissocial do capital. extinguir seu próprio ganha-pão, sua
com muita sinergia, converter-se em bastante desertificado. Carregando uma lógica essencial- alquimia diária, cotidiana e ininter-
autêntico colaborador e em verdadei- Alguns dados estampam essa mente destrutiva, esse metabolismo rupta está voltada indelevelmente
ro parceiro, vangloriar-se da nova crueza. Na mensuração referente ao só pode viver e se reproduzir por para reduzir ao máximo o trabalho
condição de empreendedor, exercitar primeiro trimestre de 2020, o IBGE meio da destruição, seja da natureza, humano necessário à produção. E as-
o trabalho voluntário (em verdade apresentou uma intensificação das que jamais esteve em situação tão de- sim se faz por meio da introdução
uma “sutil” imposição, visto que o condições desumanas da classe tra- plorável, seja da força de trabalho, compensadora do arsenal maquíni-
voluntariado se tornou condição sine balhadora: atingimos o contingente cuja derrelição, corrosão e dilapida- co-informacional-digital disponível,
qua non para obtenção de emprego), de 12,9 milhões de desempregados, e ção se tornaram absolutamente in- ou seja, pelo uso das tecnologias de
entre tantos outros vitupérios à lin- a informalidade (flagelo que se tor- sustentáveis. Sendo expansionista e informação e comunicação (TIC),
guagem, que lhe imputam novas nou leitmotiv da ação do capital) su- incontrolável, desconsiderando a to- “internet das coisas”, impressão 3D,
“significações”. perou a casa de 40%, com cerca de 40 talidade dos limites humanos, socie- big data, inteligência artificial, tudo
Mas o inesperado fez essa fume- milhões de trabalhadores e trabalha- tários e ambientais, o sistema de me- isso enfeixado, em nossos dias, na
gante nomenclatura, que parecia tão doras à margem da legislação social tabolismo antissocial do capital mais do que emblemática proposta
bela, virar pura balela. A pandemia do protetora do trabalho. alterna-se entre produção, destrui- da indústria 4.0.
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 7
VAI Corinthianssssss

© Victor He/Unsplash   
Que esse complexo tecnológico-
-digital-informacional não tenha co-
mo finalidade central os valores hu-
mano-sociais, isso é mais do que
uma obviedade. Ou será que alguém
acredita que a guerra entre a norte-a-
mericana Apple e a chinesa Huawei
tenha como principal objetivo me-
lhorar substantiva e igualitariamen-
te as condições de vida e trabalho
dos bilhões de homens e mulheres,
brancos, negros, indígenas, imigran-
tes, que perambulam entre o desem-
prego, subemprego, informalidade e
intermitência? Alguém pode imagi-
nar que o objetivo das grandes cor-
porações globais seja dar-lhes traba-
lho digno, salários justos, vida
dotada de sentido, atendimento ple-
no de suas necessidades materiais e
simbólicas?
Um breve olhar para as condições
de trabalho da terceirizada global Fo-
xconn, em suas unidades na China
onde produz a marca Apple, nos reve- O arsenal maquínico-informacional-digital precariza ainda mais o labor e dificulta o ganha pão de muitos
lou dezessete tentativas de suicídio
em 2010, das quais treze lamentavel- as demandas requeridas, dando-lhes Há ainda outros exemplos ilustra- Assim, por meio desses e de outros
mente se concretizaram. Podemos a aparência de neutralidade.3 Junta- tivos das experimentações do capital mecanismos, novas modalidades de
lembrar também as rebeliões contra mente com a inteligência artificial e em curso. A simbiose entre trabalho corrosão do trabalho vêm ganhando
o famigerado “sistema 9-9-6”, prati- todo o arsenal digital canalizado pa- informal e mundo digital vem permi- forte impulsão durante a pandemia e
cado pela Huawei (e tantas outras ra fins estritamente lucrativos, isso tindo que os gestores possam sonhar se ampliando nas mais diversas ativi-
empresas chinesas do ramo digital, vem possibilitando a criação de um com trabalhos ainda mais individua- dades econômicas, invadindo também
como a Alibaba), que significa traba- novo monstrengo que adultera a con- lizados e invisibilizados. Ao percebe- o espaço público e as empresas esta-
.

lhar das 9 às 21 horas (9 horas), seis cretude e efetividade das relações rem que o isolamento social realiza- tais. Poucas semanas atrás, o CEO da
dias por semana. Fácil, não? contratuais vigentes. Os trabalhos do durante a pandemia vem Petrobras somou-se ao coro ao dizer
Mas, se assim caminhava o admi- assalariados transfiguram-se em fragmentando a classe trabalhadora que a estatal pode “trabalhar com 50%
rável mundo do trabalho antes da ex- “prestação de serviços”, o que resulta e assim dificultando as ações coleti- das pessoas em casa” e assim “liberar
plosão do coronavírus, o que está em sua exclusão da legislação social vas e a resistência sindical, eles pro- vários prédios que custam muito”.5 Va-
sendo gestado no presente, em plena protetora do trabalho. Impulsiona- curam avançar na ampliação do ho- le recordar que, logo antes da eclosão
pandemia do capital? Quais experi- dos pelo ideário da empulhação, que me office e do teletrabalho. Desse do coronavírus, houve uma importan-
mentações do trabalho estão sendo os fazia sonhar com um “trabalho modo, além da redução de custos, te greve nacional dos petroleiros.
maquinadas nos laboratórios do ca- sem patrão”, converteram-se no que, abrem novas portas para uma maior Em meio a tanta maquinação,
pital, enquanto uma parte expressiva em O privilégio da servidão, denomi- corrosão dos direitos do trabalho, imaginar que o apoio de R$ 600 (por
da classe trabalhadora preenche os nei escravidão digital. acentuando a desigual divisão so- três meses) para os que se encontram
túmulos que, a céu aberto, estão aco- Realizando jornadas de trabalho ciossexual e racial do trabalho e em- na informalidade seja suficiente para
lhendo seus corpos? frequentemente superiores a 8, 10, 12 baralhando de vez o tempo de traba- reduzir o flagelo e o vilipêndio a que
ou mais horas por dia, muitas vezes lho e de vida da classe trabalhadora.4 estão submetidos só é possível para
TERCEIRO ATO sem folga semanal; percebendo salá- Os bancos, que exercitam uma um governo que pratica a necropolí-
Se nossa análise está na direção cer- rios baixos e que estão sendo subtraí- pragmática de enorme enxugamento tica e a necroeconomia, o que o levou
ta, se estamos apreendendo o cheiro dos durante a pandemia, sem expli- há décadas, uma vez que têm se utili- a “descobrir” que existem mais 40
da coisa, a principal forma experi- cação por parte das plataformas zado intensamente do arsenal digital, milhões de trabalhadores/as invisí-
mental do labor pós-pandêmico se digitais; padecendo das demissões já devem estar fazendo os cálculos de veis, dura constatação do principal
encontra no trabalho uberizado. Uti- sem nenhuma justificativa; tendo de quanto vão lucrar com a introdução resultado de sua política genocida. 
lizando-se ilimitadamente da infor- arcar com os custos de manutenção do home office e do teletrabalho.
malidade, flexibilidade, precarização de veículos, motos, celulares e equi- Vale, por fim, destacar outro *Ricardo Antunes  é professor titular de So-
e desregulamentação, traços mar- pamentos etc., começamos a desven- exemplo que tem sido emblemático: ciologia do Trabalho do IFCH-Unicamp. Aca-
cantes do capitalismo no Sul global (e dar, nos laboratórios do capital, os o EAD (ensino a distância). Essa prá- ba de publicar Coronavírus: o trabalho sob
que se expandem intensamente tam- múltiplos experimentos que preten- tica, que vem se intensificando du- fogo cruzado (e-book, Boitempo, São Paulo,
bém no Norte), coube às grandes pla- dem implantar depois da pandemia, rante a pandemia, tanto no ensino 2020) e uma nova edição atualizada de O
taformas digitais e aplicativos, como que se pode assim resumir: explora- privado como no público e especial- privilégio da servidão (Boitempo, 2020).
Amazon (e Amazon Mechanical ção e espoliação acentuadas e ne- mente nas faculdades privadas, além
1   V  er Ricardo Antunes, Coronavírus: o trabalho
Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Fa- nhum direito do trabalho. de objetivar a redução dos custos e sob fogo cruzado (e-book), Boitempo, São
cebook, Airbnb, Cabify, 99, Lyft, Se a desmedida empresarial aumentar os lucros, visa fortalecer Paulo, 2020.
iFood, Glovo, Deliveroo, Rappi etc., continuar ditando o tom, teremos grandes conglomerados privados 2   C onforme Ricardo Antunes, Politica della ca-
verna , Castelvecchi, Roma, 2019.
dar um grande salto pela adição das mais informalização com informati- “educacionais”. Recentemente, co- 3   C onforme Vitor Filgueiras e Ricardo Antunes,
tecnologias informacionais. zação, “justificada” pela necessidade mo noticiou amplamente a impren- “Plataformas digitais, uberização do trabalho
E aqui os algoritmos se destacam, de recuperação da economia pós-Co- sa, a Laureate, que congrega várias e regulação no capitalismo contemporâneo”,
Contracampo, Niterói, 2020.
visto que são programas cuidadosa- vid-19. E sabemos que a existência de faculdades privadas, além de utili- 4   Sobre home office, teletrabalho e seus usos e abu-
mente preparados para processar uma monumental força sobrante de zar robôs na correção de trabalhos sos, ver Ricardo Antunes, Coronavírus..., op. cit.
imenso volume de informações (tem- trabalho favorece sobremaneira essa sem conhecimento dos alunos, de- 5   Juliana Estigarribia, “‘Podemos trabalhar com
50% dos funcionários em casa’, diz CEO da
po, lugar, qualidade), capazes de tendência destrutiva do capital mitiu mais de uma centena de Petrobras”, Exame, 15 maio 2020.Petrobras”,
conduzir a força de trabalho segundo pós-pandêmico. professores. Exame, 15 maio 2020.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
A CLOROQUINA ECONÔMICA

Que a austeridade fiscal Na pandemia ficou evidente para


quem quiser ver que os governos na-
cionais não são como famílias. Países

não volte da quarentena


do mundo todo expandem seus gas-
tos públicos sem restrições. Mesmo o
FMI passou a recomendar que é o
momento de gastar sem equilíbrio
fiscal. Os que diziam que “acabou o
dinheiro” hoje argumentam enver-
No pós-pandemia, o conservadorismo econômico concentrará todos os esforços no gonhadamente pelo aumento de gas-
resgate de uma suposta normalidade, apoiado no argumento de que a dívida pública tos. Afirmar que “acabou o dinheiro”
equivale a dizer que o Estado não tem
cresceu e com uma retórica de que é necessário pagar a conta da crise. De outro capacidade de taxar mais, de se endi-
lado, será preciso apontar para a hipocrisia e a demagogia desse discurso vidar nem de imprimir dinheiro.
No entanto, essa visão convencio-
POR PEDRO ROSSI* nal ainda contamina o debate sobre o
financiamento do combate à pande-
mia. É sintomática a procura por fon-

A
pandemia atingiu o Brasil em deve gastar mais do que ganha, diz o sim, quando políticas de estímulo tes orçamentárias, patrimoniais e até
meio à aplicação de uma agen- argumento. aceleram o crescimento econômico, externas para financiar o gasto, co-
da de reformas centrada na Essa comparação não é apenas o governo está aumentando também mo se o governo estivesse sujeito às
austeridade e na redução do pa- parcial e simplificadora, mas essen- sua receita. E o gasto público em mo- restrições de um orçamento domésti-
pel do Estado na economia. A realida- cialmente equivocada, pois desconsi- mentos de crise econômica, princi- co. O discurso e as ações de Paulo
de concreta impôs uma mudança no dera três fatores essenciais. O primei- palmente com alto desemprego e Guedes buscam realocar recursos do
rumo da política econômica e trans- ro é que o governo, diferentemente elevada capacidade produtiva ocio- orçamento, vender reservas cambiais
formou o debate fiscal no Brasil. das famílias, tem a capacidade de de- sa, reduz o desemprego e gera cresci- e patrimônio público e demandar sa-
Em poucas semanas, o gasto pú- finir seu orçamento. A arrecadação mento. Por fim, o terceiro fator não é crifícios de funcionários públicos.
blico passou do grande problema do de impostos decorre de uma decisão menos importante: as famílias não Recentemente, a imprensa noti-
Brasil para a principal solução. Na re- política, e está ao alcance do governo, emitem moeda, não têm capacidade ciou que o Tesouro Nacional negocia
tórica de alguns, o Estado que estava por exemplo, tributar pessoas ricas de emitir títulos em sua própria um empréstimo de US$ 4 bilhões pa-
quebrado se reconfigurou e o dinhei- ou importações de bens de luxo, para moeda e não definem a taxa de juros ra pagar o auxílio emergencial, entre
ro, que tinha acabado, reapareceu. ampliar o atendimento de hospitais. das dívidas que pagam. Já o governo outros programas sociais. A notícia
Mitos sobre a questão fiscal caíram Ou seja, enquanto uma família não faz tudo isso. surpreende pela falta de bom senso,
.

por terra e dogmas foram deixados de pode definir o quanto ganha, o orça- Portanto, a metáfora que compara já que o auxílio emergencial não é pa-
lado diante de uma realidade imposi- mento público decorre de uma deci- os orçamentos público e familiar é go em dólar e o governo não precisa
tiva. Assim, a crise postergou o deba- são coletiva sobre quem paga e quem dissimulada e desvirtua as responsa- de recursos externos e, caso precisas-
te sobre as reformas e criou um “qua- recebe, quanto paga e quanto recebe. bilidades que a política fiscal tem na se, ainda existem em torno de US$
se consenso” entre os economistas de O segundo fator que diferencia o economia, em suas tarefas de induzir 340 bilhões de reservas cambiais.
que é preciso gastar com saúde, assis- governo das famílias é que, quando o o crescimento e amortecer os impac- O uso das reservas cambiais para
tência social e apoio às empresas e governo gasta, parte dessa renda re- tos de crises e dos ciclos econômicos financiar gastos domésticos também
trabalhadores. torna sob a forma de impostos. As- na vida das pessoas. faz pouco sentido e tem um caminho
No entanto, a sinalização do go-

© André Lucas
verno e dos economistas de mercado
é uma retomada rápida e ainda mais
radical da agenda de austeridade fis-
cal. No pós-pandemia, o conservado-
rismo econômico concentrará todos
os esforços no resgate de uma supos-
ta normalidade, apoiado no argu-
mento de que a dívida pública cres-
ceu e com uma retórica de que é
necessário pagar a conta da crise.
De outro lado, será preciso apon-
tar para a hipocrisia e a demagogia de
um discurso incoerente, anacrônico
e fragilizado pela evidente falta de
aderência à realidade, mostrar que
não existe conta a ser paga pelo coro-
navírus e que o caminho alternativo
confere ao gasto público um papel
fundamental para a retomada do
crescimento com redução das desi-
gualdades sociais.

MITOS SOBRE O FINANCIAMENTO


DO GASTO NA PANDEMIA
A visão convencional sobre política
fiscal, diariamente repetida nos
principais meios de comunicação,
trata o orçamento público como se
fosse um orçamento familiar. Assim
como uma família, o governo não Cenas da favela do Vietnã, localizada no Jabaquara, na Zona Sul de São Paulo
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 9
VAI Corinthianssssss

fiscal tortuoso, que passa pela venda der que sustenta que a melhor opor- cursos do conjunto da sociedade. O
de dólares no mercado doméstico e tunidade para impor as ideias desemprego é um desperdício de re-
pelo uso dos reais obtidos. O resulta- radicais é no período subsequente ao cursos sociais, além da violação do
do é um gasto financiado pela venda de um grande choque social. direito humano ao trabalho. Se o
de ativos, e não pelo aumento da dívi- Vamos lidar, no debate público, mercado não garante o emprego, o
da. Na prática, o governo já tem ven- com a falsa questão: como pagar a Estado deve ajudar por meio do gasto
dido reservas cambiais não para fi- conta do combate ao coronavírus? público. Ironicamente, o gasto públi-
O olhar da cidadania
nanciar gastos, mas para reduzir a Essa pergunta será conveniente para co hoje pode aumentar a capacidade
dívida. Já foram mais de US$ 40 bi- o discurso pró-austeridade, pois dia- de a sociedade pagar uma conta que
lhões vendidos em menos de um ano. loga com o senso comum e com a fal- nem sequer será paga amanhã.
O mais grave é a combinação de sa comparação entre a economia do-

Na luta
políticas de venda de reservas cam- méstica e as finanças públicas. UM FUTURO SEM AUSTERIDADE
biais com políticas de endividamento Afinal, quando alguém toma empres- Desde 2015 ouvimos que os cortes de
externo, o que aumenta a vulnerabi- tado, esse alguém deve pagar. gastos e as reformas iriam gerar
lidade externa e é receita conhecida crescimento, mas o que vimos foi

pela
para tragédia. Já temos problemas desemprego, crise e piora nos indica-
suficientes, não precisamos flertar As famílias não emitem dores fiscais. A austeridade foi
com velhos erros. moeda, não têm capaci- contraproducente.
Na verdade, o governo não precisa Ela também desfinanciou o SUS e
de fontes externas para financiar o
dade de emitir títulos em fragilizou a estrutura de proteção so-
gasto social. Nem precisa de dinheiro
prévio nem de taxar para depois gas-
sua própria moeda e não
definem a taxa de juros
cial em um contexto de aumento da
pobreza e das desigualdades sociais.
construção
tar. Não há restrição financeira para das dívidas que pagam O Brasil certamente poderia estar
o gasto; para além de regras e imposi- melhor para enfrentar a economia.
ções jurídicas, basta gastar e depois o
Banco Central avalia a base monetá- Nesse ponto, há dois argumentos
Essa mesma austeridade que já
maltratou a economia brasileira pode de uma
ria/meta de juros e recolhe dinheiro que mostram que não existirá uma ser catastrófica se retomada após o
em troca de dívida. conta do coronavírus a ser paga. O fim do isolamento social. A pandemia
O que chamamos de emissão de
moeda é a permissão para o Banco
Central fazer lançamentos contábeis
primeiro é bastante simples: a dívida
pública não precisa ser reduzida. Pa-
péis serão pagos, outros serão emiti-
deixará marcas e trará a necessidade
de reconstrução. Famílias e empresas
devem sair da crise mais endividadas
sociedade
na conta única do Tesouro, de onde dos. Esse é o padrão do comporta- e com menos renda, reduzindo a ca-

mais justa,
saem todos os gastos públicos. Essa mento das dívidas soberanas: dívida pacidade do setor privado de alavan-
.

emissão de moeda – que desmistifica pública não se paga, se rola. car o crescimento. Passada a crise sa-
por completo a ideia de que acabou o Isso também vale para as expe- nitária, o Estado precisará ter um
dinheiro – não vai impedir em nada o riências históricas de grande endivi- papel ativo na retomada, coordena-

solidária e
aumento da dívida pública, mas aju- damento público, como na Inglaterra ção e indução dos investimentos.
da a operacionalizar o gasto público durante a Segunda Guerra Mundial, A crise também criará novas de-
em um momento como este, quando quando a dívida pública chegou a mandas por proteção social e servi-
precisamos de urgência. E o aumento 250% do PIB. Essa dívida não foi paga, ços públicos. O programa de “renda

sustentável.
da dívida é necessário e não será um mas se reduziu ao longo do tempo em básica emergencial” pode se prolon-
problema. relação ao PIB em um ambiente de al- gar muito além do período de isola-
to crescimento e juros baixos. Além de mento social, já que a recuperação da
NÃO EXISTE CONTA não ter sido paga, a dívida não com- renda e da produção não será imedia-
CORONAVÍRUS A SER PAGA prometeu a capacidade de o país rea- ta. As demandas da saúde pública
No Brasil, a austeridade fiscal foi ven- lizar uma ampla expansão dos gastos também devem aumentar em relação
dida como uma fábula da cigarra e da públicos que construiu o Estado de ao passado recente, dada a necessi-
formiga. O argumento moral aponta bem-estar social, tanto na Inglaterra dade de atendimento continuado aos
que os excessos devem ser remedia- quanto em outros países que saíram atingidos pela Covid-19, de manuten-
dos com abstinência e sacrifícios. Es- destruídos e endividados da guerra. ção da nova infraestrutura e equipa-
Quartas, às 17h,
ses excessos têm várias faces – gastos O segundo argumento que des- mentos e de preparação para uma Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
sociais, aumento de salário mínimo, mente a existência da “conta do coro- próxima ameaça sanitária. Ribeirão Preto: 107,9 FM)
intervencionismo estatal, Constitui- navírus” passa pelo entendimento do Dessa forma, é preciso enterrar a
ção de 1988 –, e o remédio tem nome: papel do gasto público no crescimen- austeridade fiscal e revogar o teto de
austeridade fiscal. to econômico. Dizem que, quanto gastos. A dívida pública não será um Quartas, à meia-noite
A mesma lógica será usada na saí- mais o governo gastar, maior será a problema. Praticamente todos os TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
da da quarentena, e o centro do dis- conta a pagar. Mas isso perde sentido países do sistema vão conviver com Vivo Fibra e 186 da Vivo.
curso será a dívida pública. Já se ou- quando se percebe que, se o governo dívidas públicas mais altas. Esse será
vem por aí os argumentos habituais não gastar e a economia desabar, a tal um “novo normal”. A trajetória da dí-
de que a dívida pública não pode ser “conta” aumenta. vida pública em relação ao PIB pode
um fardo para a futura geração, que O gasto público é renda do setor ser estabilizada não com cortes de
as despesas de hoje vão virar impos- privado; a dívida pública é ativo; e o gastos e aumento da carga tributária,
tos amanhã e que teremos de fazer déficit público é superávit do setor mas com crescimento econômico.
um esforço para reduzir a dívida pú- privado. Ao gastar, o governo aumen- A austeridade fiscal é a cloroquina observatorio3setor
blica. A direção das propostas será de ta a renda do setor privado e realoca da economia: é prescrita como remé-
manutenção do teto de gastos, priva- recursos. Ao se endividar, o governo dio, apesar de não ter eficácia com-
tizações e aprofundamento das re- pega dinheiro de quem tem riqueza provada e apresentar um monte de observatorio3setor
formas que reduzem os gastos com sobrando e entrega uma dívida. efeitos colaterais. 
funcionalismo público e relativizam Quando a economia opera abaixo
direitos sociais. Será o momento do de sua capacidade, com desemprego, www. observatorio3setor.org.br
que Naomi Klein chamou de “doutri- o gasto público pode melhorar a efi- *Pedro Rossi  é professor do Instituto de
na do choque”, uma filosofia de po- ciência do sistema e aumentar os re- Economia da Unicamp.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
LIÇÕES DAS CRISES ECONÔMICAS

A escalada da desigualdade to! São medidas paliativas, expressa-


mente conjunturais, como impres-
são de moeda, renda mínima

em meio à “coronacrise”
emergencial, compra de ativos fi-
nanceiros e gastos no sistema de saú-
de. Medidas estruturais, como tribu-
tação progressiva, imposto sobre
grandes fortunas e garantias consti-
tucionais de direitos sociais, não es-
As crises têm nos ensinado muitas coisas. Uma delas é o aumento exponencial da tão na pauta da coronacrise. Em sín-
vulnerabilidade social, que acaba criando condições para um processo acentuado de tese, os Estados nacionais estão
recorrendo a políticas keynesianas
centralização e concentração de renda e patrimônio para depois negá-las.
No Brasil, por exemplo, o sistema
POR JULIANO GIASSI GOULARTI* tributário regressivo, que pune os
mais pobres, acaba sustentando o
exorbitante gasto estatal com o siste-

Q
uando a epidemia de coronaví- faz o trabalho de limpar o mercado, bens, comprando equipamentos, ma financeiro e com os programas
rus foi descoberta pelos chine- jogando capital (pequeno, médio ou contratando serviços ou reciclando de subsídios creditícios e incentivos
ses, em dezembro de 2019, a grande) e trabalho (qualificado ou títulos podres. Sabem também que, fiscais para o capital – sem conside-
economia-mundo já dava sinais não) para a franja do sistema. no decurso de uma transação de sal- rar a reforma trabalhista, que preca-
de desaceleração. No meio da guerra Para tanto, com a coronacrise, os vamento, bilhões e mais bilhões de rizou as relações de trabalho, a refor-
comercial com os Estados Unidos, o governos foram obrigados a adotar dólares são injetados para sustentar a ma da Previdência, que praticamente
crescimento econômico da China re- políticas de distanciamento social e não desvalorização do valor. Ao ga- nega o direito à aposentadoria, e o
gistrou, em 2019, seu pior resultado quarentena para impedir o avanço da rantir a realização do valor, não ne- teto dos gastos, que congelou os gas-
em trinta anos (6,1%). De todo modo, Covid-19. Seguindo orientações de cessariamente o Estado está assegu- tos em saúde e educação. Logo, a ca-
o crescimento do PIB norte-america- infectologistas, o lockdown provocou rando condições necessárias para pacidade do governo brasileiro de es-
no (2,3%), da zona do euro (1,2%) e a interrupção das atividades normais uma política de redistribuição de tabelecer respostas proativas para
brasileiro (1,1%) também ficou abaixo de circulação de pessoas, produção renda monetária. O socorro estatal, enfrentar a crise da Covid-19 e mini-
das expectativas. Com a coronacrise, de mercadorias, consumo corrente, na valorização do capital, também mamente proteger os trabalhadores
em 2020, a previsão para o crescimen- trocas comerciais, investimentos não é sinônimo de ascensão social está comprometida.
to, “vaca sagrada dos economistas” programados e linhas de crédito. As- daqueles que estão marginalizados Para tanto, dentro da estrutura do
(Celso Furtado), foi para o brejo. sim, a ruptura de todos os circuitos na franja do sistema. modo de produção capitalista, o que
.

Desde a crise financeira interna- econômicos e fluxos de pessoas é o coronavírus fará no Brasil, e no
cional, em 2007-2008, e a crise da zo- acompanhada por uma escalada mundo, será multiplicar o cortiço
na do euro, em 2010, a economia- acentuada das desigualdades, que se Nos próximos vinte Tom-All-Alone, de Charles Dickens (A
-mundo apresenta sintomas de tornou mais veloz com a coronacrise. anos, cerca de quinhen- casa noturna), e o número de Gente
morbidade e, de maneira cada vez O choque na oferta e na demanda de- Pobre, de Fiódor Dostoiévski. É certo
mais recorrente, está propícia a cri- sintegrou o equilíbrio geral walrasia-
tos indivíduos deixarão que a população urbana de São Pau-
ses. Mesmo que houvesse uma plena no, que acontece quando em todos os mais de US$ 2,1 trilhões lo, Quito, Lima, Caracas, Cidade do
recuperação do sistema econômico mercados há perfeita compatibilida- em herança México e Washington estará mais
mundial, em 2020 a Covid-19 acele- de entre a quantidade demandada e desnutrida e miserável nos próximos
rou a crise econômica que já estava ofertada aos preços vigentes. anos. Se hoje existem mais de 200 mil
em processo. Como pano de fundo, Pela evidência histórica, não é di- Na coronacrise, como nas crises favelas espalhadas pelo mundo, cuja
juntamente com a crise do petróleo, a fícil dizer que a consequência dessa de 2007-2008 e 2010, aquele Estado de população varia de algumas cente-
coronacrise tem provocado uma sé- crise, acentuada pela Covid-19, não bem-estar que nasceu como resposta nas a mais de 1 milhão de pessoas,
rie de contradições imediatas nas será o fim do neoliberalismo e das ao conflito armado de 1939-1945 tem esse número será bem maior pós-co-
economias nacionais, como desem- políticas liberais. Num sistema eco- sido novamente requisitado. Com es- ronacrise. Em breve, nos próximos
prego, perda da renda monetária e nômico como este, em que a acumu- se pedido, fica evidente o caráter po- vinte anos, cerca de quinhentos indi-
empobrecimento das famílias, com lação e a valorização do valor são a sitivo da política de desenvolvimento víduos deixarão mais de U$S 2,1 tri-
forte tendência a se prolongar nos essência, e não aparência, a anar- social. Porém, a escalada do regime lhões em herança para seus herdei-
próximos anos. quia da produção e o aumento da de- de acumulação financeira, sob a in- ros, uma soma maior que o PIB dos
Destarte, as crises têm nos ensina- sordem econômica são combatidos fluência de políticas liberais de des- países do Mercosul.
do muitas coisas. Uma delas é o au- com políticas de Estado, diga-se, de regulamentação, tensionou o Estado A Fantine de Victor Hugo (Os mi-
mento exponencial da vulnerabilida- grandes proporções. Quando a ri- de bem-estar, fazendo os direitos so- seráveis), a Maheude de Émile Zola
de social, que acaba criando queza capitalista, em seu movimen- ciais e a cidadania começarem a des- (Germinal), o Fabiano de Graciliano
condições para um processo acentua- to expansivo, encontra seu limite, moronar como um castelo de cartas. Ramos (Vidas secas) ou mesmo o
do de centralização e concentração esbarrando em sua própria valoriza- No âmago da “era de ouro” do capita- Chico Bento de Rachel de Queiroz (O
de renda e patrimônio. Segundo rela- ção, como a crise atual, há um pro- lismo, a política estatal de proteção quinze) se reproduzirão aos milhares
tório da ONG Oxfam, de toda a rique- cesso de socialização do prejuízo pe- social e cidadania produziu mudan- na Ásia oriental e no Pacífico, na Eu-
za gerada no mundo em 2017, cerca de lo Estado. Quanto maior a crise, ças qualitativas na sociedade euro- ropa e na Ásia central, na América La-
82% foram parar nas mãos do 1% mais maior o dispêndio de recursos públi- peia. Contudo, a periferia do sistema tina e no Caribe, no Oriente Médio e
rico do planeta. O relatório ainda cos pelo Estado para garantir a acu- capitalista não sabe o que é um Esta- no norte da África, no sul asiático e
mostra que a riqueza dos bilionários mulação capitalista. do de bem-estar, até porque a prote- na África subsaariana. Todavia, mes-
aumentou, em média, 13% ao ano, Munidos de poder econômico e ção social do centro dinâmico foi mo diante da miséria, parafraseando
desde 2010 – seis vezes mais do que os lobby político, os proprietários dos construída com base na superexplo- Franz Kafka, há esperança suficiente
salários dos trabalhadores (2%) – e meios de produção recorrem à políti- ração da periferia. e infinita para a construção de uma
que oito homens têm a mesma rique- ca estatal para salvar seu capital. Sa- Partindo do princípio dos “paco- sociedade baseada nos princípios da
za que os 3,6 bilhões mais pobres do bem os capitalistas que o Estado tes de estímulos” dos governos na- justiça, mas não para nós. 
mundo. Esse indicador mostra que a exerce uma influência considerável cionais no combate à coronacrise,
escalada entre riqueza e pobreza não na economia de mercado por meio da nenhum deles sinaliza a construção *Juliano Giassi Goularti é doutor pelo
é convergente. Em todo caso, a crise demanda efetiva, seja adquirindo de um Estado de bem-estar. Isso é fa- Instituto de Economia da Unicamp.
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 11
VAI Corinthianssssss
CIENTISTAS E NEGACIONISTAS

A disputa de discursos
sobre a pandemia
Em poucos meses, a pandemia de Covid-19 alcançou quase todos os países do planeta. Ameaça a saúde e modifica
o cotidiano de bilhões de pessoas. Ressuscita demandas e expectativas sobre o Estado. Abre espaços para a
importância da solidariedade na sociedade. Ofusca o papel redentor do mercado no imaginário hegemônico

POR JORGE OSVALDO ROMANO, THAIS PONCIANO BITTENCOURT, PAULO AUGUSTO ANDRÉ BALTHAZAR, LIZA UEMA, EDUARDO BRITTO SANTOS,
ANNAGESSE DE CARVALHO FEITOSA, RENAN ALFENAS DE MATTOS, PAULO PETERSEN, JUANITA CUELLAR BENAVIDES, ANA CAROLINA AGUIAR SIMÕES
CASTILHO, CAROLINE BOLETTA DE OLIVEIRA AGUIAR, ÉRIKA TOTH SOUZA, LARISSA RODRIGUES FERREIRA, MYRIAM MARTINEZ DOS SANTOS
E VANESSA BARROSO BARRETO*

N
a maioria das interpretações, a za ou não reconhece a amplitude e a 1.230 mortes; não sou coveiro com jum religioso para ficar livre desse mal.
pandemia não é vista só como importância da pandemia – é uma gri- 2.588 mortes; e daí? Lamento, quer que Essas lideranças defendem a reaber-
uma crise sanitária. Neste arti- pezinha4 –, privilegiando a sustenta- eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não tura do comércio e dos templos, assim
go convidamos o leitor a olhar bilidade da economia ao incentivar a faço milagres quando questionado so- como soluções controversas, como a
para a pandemia como um “aconteci- volta ao trabalho e o fim das medidas bre o crescimento para 5.083 mortes; imunização por meio de óleo ungido
mento”. O filósofo Byung-Chul Han, restritivas de isolamento social hori- chegou no limite, não tem mais con- ou pela cloroquina de Jesus.
recuperando Nietzsche e Foucault, zontal e do lockdown. versa com 6.759 mortes; organização A efetividade desse discurso está
destaca que o “acontecimento” abre De outro, o discurso científico, de- de um churrasco para 3 mil pessoas em construir identidades políticas
uma fissura na certeza dominante. É fendido por médicos sanitaristas com no Palácio da Alvorada – substituído apontando seu polo antagônico num
tão imprevisível e repentino como um apoio de instituições como a Organi- por um passeio de jet ski no Lago Pa- “eles” que articula atributos e deman-
evento natural. Apresentando um no- zação Mundial da Saúde e a Fiocruz, ranoá – quando o país atingia 10.627 das negativas vinculadas a grupos
vo exterior ao sujeito, o acontecimen- de governadores (São Paulo, Rio de mortes; o desemprego, a fome e a misé- opositores. Ao mesmo tempo, por
to representa descontinuidades e até Janeiro, Maranhão e os demais do ria serão o futuro daqueles que apoiam contraste, permite articular e confor-
.

rupturas que criam oportunidades.1 Nordeste), da maioria dos governos a tirania do isolamento total, no dia mar politicamente um “nós” positivo,
Alterando a normalidade estabe- estrangeiros (Rússia, China, Argenti- em que o número de mortes chegava identificado como “o povo”.
lecida pelas relações de poder domi- na, França, Alemanha, Nova Zelândia a 15.662; quem é de direita toma clo- No “eles” se articula uma cadeia de
nantes, o acontecimento pandemia etc.), além do papa, e reproduzido roquina; quem é de esquerda, tubaína, significados5 e elementos negativos
Covid-19 coloca em suspense a for- sobretudo nas mídias tradicionais. debochando dos críticos à sua cam- como anti-Trump, democratas, en-
mação hegemônica vigente, dando Tal discurso privilegia o cuidado com panha de flexibilizar o uso da cloro- treguistas, mídia corporativa, China,
margem à disputa política de discur- a saúde e a sustentabilidade da vida, quina, quando o país superou 1.100 OMS. E, no caso brasileiro, os fecha-
sos – com suas narrativas nas dimen- defendendo o isolamento social hori- óbitos num dia, alcançando o total de -tudo, antipatriotas, ex-aliados trai-
sões nacional e internacional. zontal – fique em casa – e até o lock- 17.971 mortes. dores, como os ex-ministros Mandetta
Neste artigo apresentamos algu- down como melhor forma de garantir O tom discursivo é emocional, e Moro e governadores como Doria
mas ideias de um trabalho mais am- a vida e o êxito futuro em termos de apelativo, incisivo e até agressivo em e Witzel, líderes do Congresso como
plo,2 com base nos princípios da aná- sustentabilidade econômica. muitos contextos. As performances Maia e Alcolumbre, juízes do STF,
lise do discurso propostos por Laclau procuram desqualificar as medidas mas também China, a imprensa e a
e Mouffe e da abordagem de marcos A ANÁLISE POLÍTICA DO de priorização da saúde: circular sem mídia tradicional e os permanentes
interpretativos.3 Procuramos recons- DISCURSO NEGACIONISTA proteção de máscaras, aperto de mãos inimigos de esquerda, compostos por
truir o campo discursivo sobre a pan- Nas práticas discursivas de porta-vo- sem luvas, incentivo a aglomerações governadores do Nordeste, comunistas
demia com os principais discursos em zes do discurso negacionista, o diag- como manifestações, carreatas e cultos. e ditadores. O “eles” das lideranças de
disputa – o negacionista e o científico nóstico do problema nega ou minimi- As soluções propostas ao enfren- igrejas pentecostais é análogo ao do
–, que articulam com ênfases diferen- za a importância da pandemia como tamento da pandemia passam pela presidente do Brasil, agora também
tes dois polos temáticos: a sustentabi- um risco à sustentabilidade da vida, priorização da sustentabilidade eco- identificados como pessoas sem fé,
lidade da economia e a sustentabili- tratando as medidas de isolamento nômica. No caso do presidente dos convertidas numa personificação do
dade da vida. A análise continua com social horizontal como histeria e pâ- Estados Unidos, vemos uma recupe- mal e equiparadas ao coronavírus.
a identificação de seus respectivos nico criados pela mídia e por auto- ração de seus lemas de campanha: A cadeia do “nós” construída pelo
porta-vozes nacionais e internacio- ridades de oposição, já que as conse- America First e Keep America Great. presidente dos Estados Unidos articu-
nais; o diagnóstico e as soluções pro- quências do tratamento não podem ser Para tratar a Covid-19, destaca-se o la aos seus lemas America First Again
postas; a construção antagônica das mais danosas que a própria doença. uso da hidroxicloroquina, mas tam- e Keep America Great, atores e valores
identidades na forma de um “eles” A injustiça desse impacto é projetada bém a aplicação de injeção de desinfe- como republicanos, conservadores,
(os inimigos) e um “nós” (o povo); os sobre a população e sobre as regiões tante ou colocar a luz solar dentro do nacionalistas, fazendeiros, classe mé-
meios de divulgação e reprodução dos mais pobres do país, sendo justificada corpo. No caso do presidente do Bra- dia, crescimento econômico, liberdade
discursos; a reconfiguração política pelo castigo do desemprego e da fome. sil, propostas de relaxamento do iso- e trabalho, mídias sociais de diálogo
derivada dessa disputa e as visões de Práticas discursivas do presidente do lamento social horizontal: o Brasil não direto, sem manipulação, protecionis-
futuro pós-pandemia. Brasil são um exemplo das adaptações pode parar; cada familiar deve cuidar mo, valorização do indivíduo e livre
De um lado, temos o discurso ne- do discurso no caminho da negação dos mais idosos; não pode deixar na iniciativa. As práticas discursivas do
gacionista, defendido por algumas da pandemia: fantasia quando ain- conta do Estado. E, seguindo Trump, presidente brasileiro articulam um
autoridades como o presidente dos da não havia mortes no país; histeria propõe também a hidroxicloroquina. “nós” que aglutina o Brasil não pode
Estados Unidos e o do Brasil, lideran- quando apareceu a primeira morte; As lideranças pentecostais locais, por parar, deixa o mito governar, deixa o
ças econômicas e religiosas pentecos- gripezinha quando havia onze mor- sua vez, defendem a força da fé para povo trabalhar, os patriotas, empresá-
tais, e difundido principalmente nas tes; medinho ao alcançar 202 mortes; curar a Covid-19 e, reforçadas pelo rios e industriais que garantem os em-
mídias sociais. Esse discurso minimi- está indo embora quando se chegou presidente, convocaram juntos o je- pregos, a economia que é vida, mídia
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independente, a verdade, a boa ciên- destacam a cooperação internacional nández destaca o acordo construído se daria entre uma direita gerencial re-
cia, os homens de Deus, os cidadãos de na economia e nas pesquisas de va- pelos argentinos de cuidar de todos, ciclada em oposição à extrema direita
bem. E as lideranças de igrejas pente- cinas e medicamentos. O presidente de todas e de “todes”. No Brasil, se so- fundamentalista (segmento da direita
costais incluem nessa cadeia o presi- Fernández, da Argentina, ressalta que mam o Estado democrático de direito; que se radicaliza em extrema direita).
dente, as igrejas abertas, os defensores é preferível que as fábricas estejam va- o Brasil precisa, a Câmara aprova; os Junto a esse novo antagonismo, per-
da família, os trabalhadores fiéis, abrir zias porque seus trabalhadores estão brasileiros que querem paz; gestão efi- manece e se reproduz – ainda que em
tudo porque causa menos danos, os jo- em quarentena e não porque possam ciente; o núcleo do bom senso que ar- menor intensidade – o antagonismo
vens que têm de voltar a trabalhar. O ter se contagiado ao irem trabalhar, ticula Judiciário, Ministério Público, advindo da contenda eleitoral, mas
seu “nós” é sintetizado no coronafé. adoecer ou morrer. A solução da crise Congresso, governadores, prefeitos e reatualizado, agora sob o risco da
passa também por mudar um siste- ex-ministros; responsabilidade e senso hegemonia da extrema direita, pola-
A ANÁLISE POLÍTICA ma capitalista que se preocupa mui- de humanidade. rizada entre o presidente e seus alia-
DO DISCURSO CIENTÍFICO to mais com o financeiro do que com dos em oposição à esquerda (petista
Na prática discursiva dos porta-vozes o produtivo, que concentra renda en- A PRODUÇÃO DE ANTAGONISMOS ou não) e aos setores liberais unidos
do discurso científico, a pandemia de tre poucos e distribui a pobreza entre Na disputa entre os discursos ne- numa frente pela democracia.
Covid-19 é diagnosticada como crise milhões. Para a Fiocruz, um esforço de gacionista e científico, por meio da A divulgação e reprodução dos
planetária, e não uma guerra: uma todos, regras claras e a colaboração do identificação do “eles” e do “nós”, são discursos negacionista e científico no
crise sanitária e humanitária, mul- setor privado, dos empresários e do se- produzidos e ressignificados antago- Brasil dividem as mídias. Nas mídias
tidimensional, que coloca em xeque tor público: aí entra a política com “P” nismos que expressam projetos po- tradicionais, encontramos um alinha-
o modelo civilizatório. Ela agrava maiúsculo. Os governadores de São líticos e visões de sociedade em luta mento dos veículos corporativos tradi-
problemas de cunho socioeconômico Paulo e do Rio de Janeiro procuram pela hegemonia. Na prática discursiva cionais com o discurso científico, mas,
preexistentes, tais como fragilidade buscar o equilíbrio entre salvar vidas de Trump, os antagonismos nacio- nas mídias digitais, esse alinhamento
dos sistemas de saúde e do modelo e manter a economia, as duas coisas nais e internacionais se intensificam. se dissolve e práticas discursivas ne-
econômico, desigualdade social den- andam juntas. Para o governador do Na dimensão nacional, é marcado gacionistas ganham visibilidade, com
tro dos países e entre os países ricos e Maranhão, o problema é o desali- pela disputa eleitoral e radicaliza a dominância no WhatsApp, uma rede
pobres. Neste contexto, defende que o nhamento entre gestores estaduais e oposição entre America First Again, digital popular e estruturada em gru-
problema se potencializa mais quan- federal: só será possível vencer essa republicanos e as mídias sociais sem pos privados de compartilhamento.
do a questão da economia vem antes pandemia quando todas as agendas manipulação vs. anti-Trump, demo- Pesquisas também apontam que a
da preservação da vida, o que leva à estiverem alinhadas. cratas, entreguistas e a mídia corpo- televisão – particularmente a Globo –,
irresponsabilidade e ao desrespeito às O discurso científico articula um rativa. Na dimensão internacional, o volta a ganhar confiabilidade no con-
medidas de prevenção. A cultura do “eles” negativo que, no caso dos ato- antagonismo reforçado coloca a Chi- texto da Covid-19, do isolamento e do
descarte de pessoas promovida pelo res internacionais, aglutina a pande- na e o vírus chinês, a OMS ineficiente descrédito das fake news.6
mundo das finanças, a desarmonia e mia da irresponsabilidade; governan- que defende os interesses chineses, a Assim como Trump, ao mesmo
o egoísmo que, juntos, levam ao des- tes e empresários preocupados apenas globalização que ameaça a soberania, tempo que hostiliza as mídias tradi-
.

respeito às orientações da OMS por com a economia; o charlatanismo a imigração descontrolada e o terro- cionais, o Twitter é o principal meio
ganância. dos falsos profetas; os grupos nega- rismo, em oposição ao Keep America de comunicação direta do presidente
Esse diagnóstico destaca como in- cionistas que minimizam a Covid-19, Great, protecionismo a manufaturas brasileiro com seus apoiadores, com
justiças as terríveis perdas de vidas hu- desrespeitam e desacreditam as me- nacionais prejudicadas por acordos in- pelo menos uma tag diária relaciona-
manas, as histórias, sonhos e expecta- didas orientadas pela OMS; a cultura ternacionais, valorização do indivíduo da ao seu governo alcançando os tren-
tivas frustrados que estão por trás dos do descarte de pessoas promovida no e da livre-iniciativa, defesa nacional e ding topics. Em seu canal no YouTube,
números; o impacto da crise na vida mundo das finanças; cada um por si combate ao autoritarismo e ao terro- o presidente mantém lives periódicas
dos mais vulneráveis, com mortes, de- como resposta à crise; a falta de coo- rismo no mundo. No caso do papa, o onde comenta os assuntos da semana.
semprego, falências, miséria e fome; a peração internacional; a xenofobia; antagonismo destacado é entre falsos
solidão causada pelo vírus. No Brasil, empresários miseráveis que demitem profetas, governantes, empresários e A RECONFIGURAÇÃO POLÍTICA
as práticas discursivas destacam que na crise. No Brasil se somam à cadeia elites preocupadas apenas com lucro E A DISPUTA DISCURSIVA
estamos lutando contra o coronavírus de equivalências do “eles” do discurso e economia, defensores da cultura do Apontamos no início do artigo que a
e contra o Bolsonavírus. É o vírus do científico: a irresponsabilidade; a pro- descarte, cultores do egoísmo, a segre- pandemia como acontecimento, ao
extremismo, cujo pior efeito é ignorar moção do ódio e o fazer política em vez gação, a histeria, a desigualdade social alterar a normalidade estabelecida
a ciência e negar a realidade. de governar; populistas; o presidente e e o preconceito contra migrantes, mi- pelas relações de poder dominantes,
O tom é técnico – embasado em re- seus filhos, o gabinete de fake news; noria e mais vulneráveis, em oposição colocaria em suspensão a hegemonia
latórios da OMS –, mas eventualmen- golpistas; os que atentam contra a ao povo católico, pobres e excluídos, vigente. As disputas discursivas reme-
te também assume o tom emocional. Constituição, os semeadores do caos, governantes comprometidos com justi- tem a uma confrontação entre dife-
Como exemplo internacional, Putin, cavaleiros do apocalipse; manifestan- ça social, sustentabilidade ambiental e rentes práticas e projetos antagônicos.
ao comparar o país a uma grande fa- tes de carreatas, milicianos ideológi- preservação da vida. Tal confrontação implica escolhas en-
mília. No contexto nacional, Doria, cos, aliados da doença; aqueles que Na prática discursiva negacionista tre visões opostas de sociedade. Num
ao se expressar de forma emocional ameaçam a imprensa ou que ignoram do presidente brasileiro, o antagonis- país marcado por antagonismos, ante
e moralmente negativa: vocês, que de- a ciência e negam a realidade, os in- mo principal se situa entre o Brasil situações que saem da normalidade
fendem a abertura, estão preparados sensatos e os indiferentes. não pode parar, deixa o mito governar, como as que envolvem a pandemia
para carregar os caixões com as vítimas O “nós” dos atores internacionais, deixa o povo trabalhar, os patriotas, de Covid-19, as propostas para en-
do coronavírus? como a OMS, destaca a solidariedade em oposição aos que apoiam a tira- frentá-la exigem escolhas por parte
As soluções e propostas destacam global e a responsabilidade dividida; nia do fecha tudo, os antipatriotas. das lideranças de ações políticas que
que os governos devem tomar medidas o papa inclui a fraternidade da co- As lideranças de igrejas pentecostais visam manter suas bases dentro do
de isolamento social da população, munidade humana; os que reconhe- ressignificam esse antagonismo como “nós” e ampliá-las por meio de novos
mas também fornecer meios para que cem a vulnerabilidade física, cultural coronafé vs. coronavírus. Nas práticas aderentes. Assim, o resultado da dis-
a população possa ficar em isolamen- e política diante da pandemia; os que discursivas científicas do presidente puta entre os discursos negacionista
to. A elaboração de vacina é essencial alertam para o perigo do vírus da in- da Câmara dos Deputados e dos go- e científico, com seus impactos na
para sair da pandemia. Para a Igreja diferença egoísta. Putin e Xi Jinping vernadores de São Paulo e Rio de Ja- reconfiguração das identidades, pode
Católica, vocalizada pelo papa Fran- destacam o povo unido, a proativi- neiro, desponta a criação de um novo ser acompanhado pelas pesquisas de
cisco, além da fé e da esperança de um dade e a adoção rápida de medidas antagonismo que emerge com força opinião que avaliam os governos.
mundo melhor, é primordial seguir as de contenção da pandemia; empresá- no contexto da Covid-19. Esse anta- Líderes estrangeiros do discurso
orientações de prevenção da OMS, a so- rios comprometidos com a agenda de gonismo, que está dividindo a ampla científico, como Fernández, obtive-
lidariedade internacional, a remoção desenvolvimento nacional; o futuro coalizão de direita que permitiu o ram aumento do apoio popular du-
das desigualdades. Putin e Xi Jinping compartilhado da humanidade. Fer- triunfo eleitoral do atual presidente, rante a pandemia de Covid-19 em
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24% em um mês,7 enquanto Trump mitiria o aprofundamento da domi- junto aos setores populares, enquan- -Graduação de Ciências Sociais em De-
perdeu 7% de apoio no mesmo espaço nação neoliberal, financeira e preda- to instrumento de mobilização para a senvolvimento Agricultura e Sociedade e
de tempo.8 tória, manipulando a crise para criar emancipação. ao Curso de Relações Internacionais do
No Brasil, pesquisas apontam a mais desigualdades, mais exploração Procurando recuperar os apren- DDAS/ICHS, da Universidade Federal Ru-
perda de apoiadores do presidente e mais injustiças.11 Já Michel Wievior- dizados e tentando superar os pre- ral do Rio de Janeiro.
com seu discurso negacionista. Por ka entende que não são as ideias que conceitos do mainstream intelectual
exemplo, na pesquisa CNT/MDA en- faltariam, mas as figuras, os líderes e dominante no campo progressista,
1   B yung-Chul Han, Psicopolítica , Ayne, Belo
tre janeiro e maio, a avaliação positi- os atores políticos com suficiente legi- Mouffe, em artigo recentemente pu- Horizonte, 2018.
va caiu de 34,5% para 32%; e a nega- timidade e credibilidade para levá-las blicado pelo Le Monde Diplomatique 2   Os resultados dessa pesquisa mais ampla,
tiva aumentou de 31% para 43,4%.9 a cabo.12 E Walden Bello considera que Brasil, lembra que os movimentos que compreende a análise específica das prá-
ticas narrativas dos principais porta-vozes
Tal tendência ocorre junto com uma haveria demasiada ira, ressentimento populistas aparecem sempre no con- dos discursos negacionista e científico em
radicalização no apoio e na oposição e insegurança liberados de forma que texto de crises do modelo hegemô- nível nacional e internacional, assim como re-
ao presidente: segundo o Datafolha, tanto a extrema direita como a esquer- nico. Assim, a estratégia populista flexões sobre o papel das mídias e os debates
no campo intelectual, serão publicados em
entre dezembro e abril, o ruim/pés- da teriam condições de aproveitar de esquerda se apresentaria como sequência no Le Monde Diplomatique Brasil
simo passou de 36% para 38%, en- essa tormenta subjetiva para produzir pertinente na saída da crise da Co- online.
quanto o ótimo/bom cresceu de 30% transformações.13 vid-19.18 Ao populismo de esquerda 3   A análise política do discurso se fundamenta
no olhar de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,
para 33%. Qualquer que seja o futuro, será caberia expandir a democracia para para os quais as disputas de narrativas pre-
A pesquisa da Vox Populi feita construído por enunciadores e orga- um maior número de áreas com a in- sentes no contexto democrático remetem a
entre 18 e 26 de abril identifica uma nizadores de ideias como essas. E há clusão dos atores descartáveis, e tam- uma confrontação entre diferentes práticas e
projetos antagônicos. O discurso político que
mudança na base eleitoral do presi- iniciativas no âmbito internacional bém aprofundá-la. Para isso, propõe conforma as narrativas em disputa tem a virtu-
dente. Metade dos 30% que avaliam em curso. Pela direita, o grupo The uma ruptura com a ordem neoliberal de e o poder de articular as identidades múlti-
como bom ou ótimo conformariam o Movement, formado em torno de Ste- e o capitalismo financeiro, que são plas e contingentes dos sujeitos (E. Laclau,
Los fundamentos retóricos de la sociedad,
núcleo duro de aderentes ao seu dis- ve Bannon, ex-estrategista-chefe da incompatíveis com a democracia, e FCE, Buenos Aires, 2014). A análise dos mar-
curso negacionista. A outra metade campanha de Trump à presidência procura estabelecer uma nova for- cos interpretativos ( frame analysis ) desenvol-
tem mudado: grupos de maior renda em 2016 e assessor “informal” do pre- mação hegemônica que coloque no vida por autores como Snow, Benford e Gal-
ván considera o discurso político um conjunto
e mais escolarizados (parte da classe sidente brasileiro. O grupo, com sede centro a igualdade, a justiça social e a articulado de marcos de interpretação da rea-
média) passam a se opor ao negacio- em Bruxelas, procura formar lideran- sustentabilidade. A estratégia é criar lidade que estrutura o pensamento, a fala e as
nismo. Porém, o negacionismo tem ças, promover e articular campanhas uma vontade coletiva, um “nós” que ações individuais e coletivas (D. Snow e R.
Benford, “Ideology, Frame Resonance and
ganhado eco nos setores populares de de extrema direita na Europa e no possa transformar as relações de po- Participant Mobilization”. In: B. Klandermans,
menor renda e escolarização. É bem mundo – uma internacional conser- der e instaurar um novo modelo eco- H. Kriesi e S. Tarrow (eds.), From Structure to
significativa a queda da rejeição a vadora que promove nacionalismos nômico e social em torno do Green Action: Comparing Social Movement Resear-
ch across Cultures [Da estrutura à ação: com-
esse discurso no Nordeste, base do lu- xenófobos, anti-imigrantes e funda- New Deal e que procure democrati- parando a pesquisa sobre movimentos so-
lismo. Isto é, membros das classes C, mentalistas. A influência da extrema zar a ordem socioeconômica, crian- ciais em diferentes culturas], JAI Press,
.

D e E, com a deterioração das condi- direita populista vem crescendo, pau- do condições para uma transição Greenwich, 1988).
4   Destacamos em itálico as palavras ou os sig-
ções econômicas e a redução de aces- latinamente ocupa espaços e apoios ecológica.19 nificados expressos nas práticas discursivas
so ao emprego e aos serviços públicos nos setores empobrecidos e nas clas- Com a disputa dos discursos nega- dos porta-vozes.
(com a emenda constitucional de teto ses médias afetados pela globalização, cionista e científico, a crise da pande- 5   Ou “cadeia de equivalências”, na análise de
Laclau e Mouffe (op. cit.).
dos gastos sociais), ficariam mais sen- e se mostra posicionada para aprovei- mia de Covid-19, ao recriar fronteiras 6   Disponível em: https://anchor.fm/mancheto-
síveis às práticas discursivas do pre- tar o descontentamento do povo com políticas com base em velhos e novos metro/episodes/1-Podcast-do-Manchetme-
sidente com soluções que priorizam o acontecimento da Covid-19. antagonismos, assinala a volta do po- tro-o-comportamento-da-TV-durante-a-crise-
-do-coronavrus-ecbkk6.
a renda (coronavoucher) e a volta ao Por outro lado, na esquerda, o mo- lítico e oferece uma nova dimensão 7   Disponível em: https://761b6f02-2853-490f-
trabalho, mais que a sustentabilidade, vimento pró-democrático e pan-eu- à estratégia populista. Dependendo -8ebf-b60e11417c5e.filesusr.com/ugd/1cc-
a vida e a saúde. ropeísta DiEM25 e o Instituto Sanders, das forças que se apropriem dela e 2 f 9 _ 6 2 9 3 e e c 4 d c f 74 6 2 e 8 3 d 0 d -
d988b440e2e.pdf?index=true.
dos Estados Unidos, lançaram no dia da maneira como se construa a opo- 8   Disponível em: om/sites/default/files/ct/
POLITIZANDO A PANDEMIA: 12 de maio de 2020 a Internacional sição “nós/eles”, essa pandemia pode news/documents/2020-05/2020_reuters_
UMA “SOPA DE FUTUROS INCERTOS” Progressista. Mais de quarenta polí- levar a uma radicalização dos valores tracking_-_core_political_coronavirus_trac-
ker_05_13_2020_.pdf.
E o futuro pós-pandemia? Intelectuais ticos e intelectuais – entre eles Noam democráticos ou a soluções auto- 9   Disponível em: https://cdn.cnt.org.br/direto-
de todo o mundo se debruçam sobre Chomsky, Yanis Varoufakis e Fernan- ritárias.20 Estaríamos, assim, numa rioVirtualPrd/6b767840-4489-4901-afff-aed-
essa reflexão. Num recente livro com do Haddad – assinaram o lançamen- corrida entre uma desglobalização 024d3c41b.pdf.
10  G . Agamabem et al., Sopa de Wuhan – Pen-
o sugestivo título de Sopa de Wuhan,10 to. Chomsky destaca a necessidade progressista e uma regressão social samiento Contemporaneo en Tiempos de
Slavoj Žižek considera que a pande- urgente de promover um Green New e ecológica profunda. Qual será o re- Pandemias, Aspo, 2020.
mia golpeou de morte o capitalismo Deal: uma proposta para transformar sultado? Não sabemos. A formação 11  Ignacio Ramonet, “La pandemia y el sistema
mundo”, Le Monde Diplomatique (Espanha),
e que poderá surgir uma nova era, de o sistema econômico por meio da re- hegemônica está em suspense e o fu- 25 abr. 2020
um novo tipo de comunismo, baseado dução drástica de emissões de gases turo está em aberto. O que podemos 12  Michel Wieviorka, entrevista de Eduardo Feb-
na colaboração global, na regulação e de efeito estufa, apostando na eficiên- intuir é que, num contexto pós-Co- bro em Página 12, 3 maio 2020.
13  Walden Bello, entrevistado por Eduardo Feb-
no controle da economia. Byung-Chul cia energética.14 Nesse sentido, Ramo- vid-19, “o pior será pior e o melhor bro em Página 12, 10 maio 2020.
Han, por sua vez, afirma que o vírus net complementa que a resposta pós- será melhor”.21  14  Noam Chomsky, entrevistado por Marta Peira-
realizará o que o terrorismo não con- -pandêmica deveria fundar-se no que no, El País, 17 maio 2020.
15  Ignacio Ramonet, op. cit.
seguiu, quando o estado de exceção Edgar Morin denomina de economia *Jorge Osvaldo Romano, Thais Poncia- 16  Walter Bello, op. cit.
passa a ser a ordem normal; o capita- verdadeiramente regenerativa, basea- no Bittencourt, Paulo Augusto André 17  Ver, por exemplo, Jorge O. Romano (org.), Pai-
lismo continuará com mais força, e re- da no cuidado e na reparação.15 Balthazar, Liza Uema, Eduardo Britto xão e razão: os discursos políticos na disputa
eleitoral de 2018, Veneta, São Paulo, 2018.
gimes autoritários surgirão ou se con- A esquerda teria muitas ideias, Santos, Annagesse de Carvalho Feito- 18  Para Mouffe, seguindo Laclau, o populismo
solidarão, pois o vírus potencializou mas uma grande pobreza de estraté- sa, Renan Alfenas de Mattos, Paulo Pe- seria uma estratégia de construção de uma
as tecnologias de vigilância digital e o gias e lideranças unificadoras eficazes. tersen, Juanita Cuellar Benavides, Ana fronteira política, por meio do estabelecimen-
to de uma oposição entre os dominantes (eli-
Estado policial, com a aprovação dos Como diz Walden Bello, as personali- Carolina Aguiar Simões Castilho, Caro- tes) e os dominados (o povo). Tudo depende
cidadãos. Para Ignacio Ramonet, ape- dades carismáticas estão principal- line Boletta de Oliveira Aguiar, Érika da maneira como se constrói a oposição nós/
sar de a velha normalidade ter gerado mente à direita.16 A paixão e a razão Toth Souza, Larissa Rodrigues Ferreira, eles, do contexto histórico e das estruturas
socioeconômicas nas quais se desenvolve
a pandemia, o mainstream neoliberal são cada vez mais indissociáveis nas Myriam Martinez dos Santos e Vanessa (Chantal Mouffe, “Controvérsia sobre o popu-
procurará recuperar essa velha nor- escolhas e na mobilização política.17 Barroso Barreto  são pesquisadores e es- lismo de esquerda”, Le Monde Diplomatique
malidade pelos efeitos do que Naomi E a esquerda tem muito que aprender tudantes do Grupo de Pesquisa “Discurso, Brasil, maio 2020).
19  Chantal Mouffe, op. cit.
Klein aponta como capitalismo do sobre como operar essa integração Redes Sociais e Identidades Sociopolíticas 20  Chantal Mouffe, op. cit.
choque – a nova normalidade per- entre paixão e razão, principalmente (Discurso)”, vinculado ao Programa de Pós- 21  Michel Wieviorka, op. cit.
14 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
COM JON BIDEN, A DEPRESSÃO DA ESQUERDA NORTE-AMERICANA

Nos Estados Unidos,


mente perdem o emprego ou põem a
chave debaixo da porta e ponto final.
Em um piscar de olhos, passamos de
uma das economias mais florescen-

“no fundo, nada vai mudar”


tes do mundo para uma nova Grande
Depressão: saltamos todas as etapas
intermediárias, assistindo ao desem-
prego em massa e às falências em sé-
rie de grandes e pequenas empresas.
Nenhum país conta tantas vítimas de Covid-19 – mais de 100 mil em maio – quanto os Aqui, no país do individualismo, o
Estados Unidos. Além disso, a falta de uma rede de proteção médica e social provoca indivíduo-rei foi literalmente sub-
mergido, arrebatado pelas correntes
uma crise que não se via há um século. Em ano eleitoral, esse quadro poderia provocar anônimas da doença e do colapso
um terremoto político. Entretanto, a reeleição de Trump não está descartada, e seu rival econômico. Parentes estão na imi-
apenas ambiciona um retorno à era Obama nência de morrer sozinhos, em um
hospital qualquer por aí, e os restau-
rantes concorridos, para onde
POR THOMAS FRANK* afluíam em massa os fregueses,
fecharam as portas – seus jovens e
ambiciosos chefs estão ocupados

E
ste é o pior momento da história diante da atual crise histórica. Nosso vírus causou mais devastação, preci- preenchendo formulários de auxílio-
dos Estados Unidos. A pande- presidente, Donald Trump, ex-astro sou há poucas semanas enterrar os -desemprego, como milhões de seus
mia que os profetas do desastre de reality shows na TV, não apenas corpos em valas comuns, com a ajuda semelhantes.
anunciavam havia décadas caiu revelou sua total incompetência, co- de escavadeiras. E tudo isso se desenrola em condi-
sobre nós sem que estivéssemos mi- mo também pôs em risco a saúde pú- Colocar o país em quarentena ções meteorológicas excepcionais.
nimamente preparados. Nosso go- blica graças às suas lucubrações idio- pressupunha, evidentemente, sus- Aqui, em meu cantinho da América
verno mastodôntico, tão pronto em tas, divulgadas praticamente todos pender a vida econômica, que estava [Bethesda, um subúrbio de Washing-
tempos normais a explorar a fundo o os dias para todos os lares norte-a- em pleno vapor havia apenas dois ton], gozamos a primavera mais
menor reflexo de medo, sobretudo mericanos. Enquanto escrevo estas meses. Na América, não existe um espetacularmente agradável que já
quando isso é conveniente para a ex- linhas, o país quase inteiro está con- mecanismo para suavizar os efeitos vimos. Para os prósperos colarinhos-
trema direita, permaneceu amorfo finado. A cidade de Nova York, onde o de tal bloqueio – as pessoas simples- -brancos que vivem nos arredores, a
epidemia teve início numa paisagem
que se diria pintada por Fragonard:
.
© Pixabay

ao surgirem os primeiros medos, os


narcisos se abriram, depois as tuli-
pas; as magnólias e as cerejeiras flo-
resceram; em seguida, foi a vez das
azaleias e dos rododendros; agora, os
cornisos em flor estendem um arco
sobre nossa cabeça quando saímos
para correr nas calçadas e ruas tran-
quilas, vazias, de Bethesda.
Esse contraste irônico se mostra
para onde quer que olhemos.
Quem possui uma voz capaz de
ecoar pelos Estados Unidos agora se
rejubila com o fato de a pandemia
confirmar de maneira gritante todas
as suas crenças anteriores. Em certas
mídias, ela ilustra aquilo que se co-
mentava sobre a ignorância e a lou-
cura do presidente Trump. Para os
conservadores, demonstra o que eles
vêm repetindo há anos a respeito dos
esquerdistas de alma delicada, com
seu desejo suicida de deixar entrar
qualquer um no país. Aos olhos de to-
dos esses, a pandemia foi o pretexto
para um carnaval de presunção.
No entanto, vai ficando cada vez
mais claro que, em vez de reforçar as
crenças tão caras ao consenso norte-
-americano, esse episódio as pulveri-
zou. Durante décadas, o país exibiu
sua capacidade manufatureira a tal
ponto que todos reconhecem ser esse
o preço a pagar para entrar na era da
informação. Seríamos uma nação de
colarinhos-brancos aptos a fazer coi-
sas inovadoras, como medicamentos
ou manuais de direito; obras do espí-
Biden se prepara agora para uma eleição que será apenas um referendo pró ou contra Trump rito, que importariam muito e pesa-
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 15
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riam pouco. E eis aonde chegamos, posto por um salário de miséria, sem ção presidencial debateram várias mado, ao passo que Trump, afun-
vítimas de uma penúria de máscaras, que ninguém se preocupasse com vezes. Refletindo o espírito da di- dado num narcisismo patológico,
testes e mesmo álcool em gel, com sua vulnerabilidade à epidemia. reita do país, muitos representantes transpira ressentimento e vive
nossos distintos dirigentes bizarra- Caem doentes nos mercados ou frigo- pareciam, num primeiro momento, procurando meios de se tornar
mente incapazes de persuadir anti- ríficos, enquanto os empregadores ter rompido – claramente e não sem desprezível. Mais: é inconcebível que
gos parceiros comerciais de que a que lhes dão ordem de trabalhar – os criatividade – com os velhos pressu- alguém possa gerir uma crise sanitá-
Terra é plana e que eles nos devem famosos colarinhos-brancos da era postos de seu partido. Mas, depois ria e econômica de maneira tão cala-
entregar sem demora as mercadorias da informação – permanecem pru- que o favorito da situação, o ex-vice- mitosa como o atual presidente e
das quais precisamos. dentemente em casa, no sofá, gozan- -presidente Joe Biden, venceu as pri- esperar que os eleitores o convidem a
O sistema norte-americano de do a miraculosa resiliência das cota- márias na Carolina do Sul, quase repetir seu desempenho.
saúde pública e lucros privados, ções da Bolsa (obrigado, Congresso; todos os outros se recolheram, anun-
construído ao longo de décadas por obrigado, Federal Reserve). Seu tra- ciando seu apoio ao vencedor. O UM SLOGAN PRODIGIOSO
contribuições entusiastas dos dois balho se acomoda facilmente a um único que continuava no páreo, o se- Mas, “no fundo, nada vai mudar” se
partidos políticos que se alternam no cotidiano seguro, feito de e-mails e nador de Vermont Bernie Sanders – Biden se tornar presidente, conforme
poder, mostrou-se absolutamente in- videoconferências. principal reformador de nossa época ele próprio assegurou a seus patroci-
capaz de responder aos desafios da e figura aclamada pela juventude –, nadores. Aí está um lema prodigioso
pandemia. Por uma razão simples: ainda tentou resistir por algum para um período como o atual. Meus
ele nunca foi concebido para fins de O sistema norte- tempo, mas finalmente desanimou amigos de esquerda são unânimes
saúde pública. No curso de minha vi- americano de saúde diante da marcha irresistível dos em dizer que estão tristes. Seu herói
da, a mensagem implicitamente en- acontecimentos. Bernie Sanders, que em janeiro pare-
dereçada a seus usuários pelo siste-
pública e lucros Biden, o homem que emergiu cia invencível, foi vencido. Agora, es-
ma de saúde sempre foi que esse era privados mostrou-se dessa efervescência, era o mesmo tão fechados em casa repassando no-
um verdadeiro privilégio ao qual só absolutamente incapaz que prometia fazer o mínimo possí- mes de pássaros que os internautas
se tinha acesso em caso de êxito e de responder aos vel. Seu partido se prepara agora pa- trocam pelo Twitter. Eu partilho seu
prosperidade individual. Um sistema ra uma eleição que será apenas um mau humor, mas os desafios são de
meritocrático, tanto pelas recompen-
desafios da pandemia referendo pró ou contra a figura natureza bem diversa. A perspectiva
sas que prodigaliza aos grandes mé- odiada de Trump. Eis-nos então em de imobilismo total após a presente
dicos e aos pequenos gênios da in- Se você acha que os trabalhadores um clima político paradoxal, em que catástrofe já basta para nossa desgra-
dústria farmacêutica quanto por sua não vão suportar por muito tempo grande parte do eleitorado norte-a- ça; no entanto, a cada dia a imprensa
maneira de segmentar nosso atendi- semelhante situação, você está certo. mericano gostaria de optar pela mu- nos informa de que a ordem antiga
mento. Os pacientes pobres, sem co- Embora a informação a esse respeito dança decisiva que lhe propõem, continua se fortalecendo. Sem cessar,
bertura ou com cobertura defeituosa, seja uma mercadoria rara, pois o jor- mas em que o partido que encarna um novo esquema surge para inun-
mas que também precisam cuidar de nalismo social praticamente desapa- esse anseio faz tudo para decepcio- dar de dinheiro público os cofres das
.

seus ossos quebrados ou de seus ór- receu nos Estados Unidos, há sinais nar. Devemos assim escolher entre empresas ou para apressar a tomada
gãos doentes, veem-se com frequên- de que a ação sindical nos locais de dois homens brancos, idosos e con- de poder pelo Vale do Silício. Neste
cia arruinados por contas astronômi- trabalho recobrou fôlego. Há pouco, servadores, conhecidos por sua rela- mesmo instante, o governador demo-
cas. A ideia de que deveríamos parar um dos lobistas mais influentes da ção maleável com a verdade, acusa- crata do estado de Nova York, Andrew
de sangrar essas pessoas e pensar, América, o inimigo dos sindicatos dos de agressões sexuais e estranhos Cuomo, aproveita a oportunidade do
antes, em distribuir-lhes gratuita- Rick Berman, advertiu seus clientes à esperança de reformas democráti- confinamento para convencer Bill
mente testes e tratamentos contra a quanto aos riscos de uma “rebelião cas. Mais uma vez, a velha ordem foi Gates e outros bilionários da tecnolo-
Covid-19 é tão contrária à concepção parcial da força de trabalho”.2 Com providencialmente restaurada. gia a reprogramar o futuro de sua re-
corrente sobre a política de saúde efeito, numerosas greves espontâ- gião. E, no momento, não podemos
neste país que temos dificuldade em neas eclodiram nas últimas semanas fazer absolutamente nada para
calcular quando e como essa decisão pelos quatro cantos do país.3 Se você acha que os impedi-los.
necessária será tomada. Cada uma dessas constatações trabalhadores não vão Um medo nos invade no contexto
A epidemia terá produzido ao me- aponta na mesma direção: a do desa- da pandemia, o de que a própria de-
nos uma consequência benéfica: re- parecimento súbito da confortável
suportar por muito mocracia seja reformatada em nossa
formular nossa compreensão do visão de mundo adotada e imposta ao tempo semelhante ausência. O sistema nos tapeou, pois
mundo social. Não faz muito tempo, resto do planeta pelos dirigentes nor- situação, você está certo foi concebido para isso, mas, enquan-
para o norte-americano instruído e te-americanos no curso dos anos to estamos fora da jogada, outros to-
pensante, um trabalho que não exi- 1970, 1980 e 1990. A situação, por mam as decisões que alterarão nosso
gia diploma universitário era indig- aqui, é prenhe de possibilidades. Tu- Contudo, repito: o estado da opi- amanhã. Apressam-se a reformular
no.1 Uma coisa pesada, desagradável do pode acontecer. nião, nos Estados Unidos, é tal que, nosso contrato social enquanto ve-
e poluente, feita por quem às vezes Por enquanto, ainda se cultiva a com um dirigente bem escolhido, mos televisão e nos consolamos com
votou em Trump e cuja vida se desa- ironia tenebrosa e patológica do libe- coisas notáveis poderiam acontecer. uma dose de bebida. 
grega porque merece desagregar-se. ralismo norte-americano. A institui- Sem isso, nosso horizonte se limita
Há poucos anos, o bilionário demo- ção que deveria nos ajudar a superar ao senhor Biden, um veterano afável *Thomas Frank,  jornalista e historiador, é
crata Michael Bloomberg espantava a antiga maneira de ver as coisas é o de Washington implicado em grande autor de The People, No: A Brief History of
os alunos da Universidade de Oxford Partido Democrata – de fato, a única parte nos desastres que assinalaram Anti-Populism [Povo, não: uma breve histó-
com suas teorias enfatuadas sobre as capaz de realizar hoje essa tarefa. as três últimas décadas: acordos co- ria do antipopulismo] (a sair em julho pela
elites que sabem “refletir e analisar”, Ora, apenas algumas semanas antes merciais contrários aos interesses Metropolitan Books, Nova York).
ao contrário da ignorância presumi- de o coronavírus explodir nos Esta- dos assalariados, Guerra do Iraque,
da dos camponeses e operários. dos Unidos, esse mesmo partido legislação falimentar cruel, encarce- 1   Ver Lizzie O’Shea, “Les emplois qualifiés
conseguiu, em uma alegre autocele- ramentos em massa, ataque sem pre- n’existent pas” [Empregos qualificados não
existem], Le Monde Diplomatique, maio 2020.
TUDO PODERIA bração pública, banir toda possibili- cedentes às liberdades individuais 2   “Anti-union operative warns business of historic
ACONTECER. CONTUDO... dade de mudança na política norte- chamado Ato Patriota... Ele até se ga- rise in labor activism” [Lobista contrário aos
Atualmente, esses operários e cam- -americana a curto prazo. Seus ba de ter, no início de sua carreira po- sindicatos adverte empresários quanto a uma
efervescência histórica no ativismo trabalhis-
poneses são tudo que nos impede de dirigentes pareciam empenhados lítica, favorecido segregacionistas. ta], The Intercept, Nova York, 1º maio 2020.
cair no abismo. Muitos deles, neste em desperdiçar a crise. Biden tem boas chances de Disponível em: https://theintercept.com.
momento, estão fora de casa, arris- Algumas palavras de explicação. vencer, não há dúvida. A despeito de 3   “Covid-19 strike wave interactive map” [Mapa
interativo da onda de greves em razão da Co-
cando a vida em meio aos vírus. Ou- Nos últimos meses, os candidatos à sua carreira, ele é um político de vid-19], Payday Report, Chattanooga. Dispo-
tros foram obrigados a retomar seu investidura democrática para a elei- tradição clássica, acessível e esti- nível em: https://paydayreport.com.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

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UMA ILUSTRAÇÃO DAS AMBIGUIDADES DO FEDERALISMO

No Texas, armados
contra o confinamento
Confinar a população para protegê-la do vírus? A proposta está longe de ser unanimidade no Texas, onde certas
lideranças enxergaram na medida um atentado contra as liberdades individuais

POR MAXIME ROBIN*, ENVIADO ESPECIAL

C
ada estado dos Estados Unidos presentantes para o Congresso de fechamento de fronteiras internacio- Estamos em maio, o país está
tem sua própria história sobre o Washington. Eles também escolhe- nais, mas demonstrou certa indife- imerso na confusão em função da
vírus. A do Texas começou de rão a maioria dos legisladores do “es- rença em relação ao interior do país. gravidade do problema sanitário e
repente em 6 de março, quando tado da estrela solitária”, que se reú- O presidente possuía armas podero- das escolhas políticas. Pouco antes, a
Steve Adler, prefeito democrata da nem a cada dois anos sob a cúpula de sas, como a Lei de Produção da Defe- Casa Branca publicou um guia desti-
capital, Austin, declarou emergência granito do Capitólio de Austin. Seus sa, aprovada no início da Guerra da nado a estados ansiosos para reabrir
municipal e cancelou um festival in- poderes se estendem a todos os as- Coreia e que permite intervir em comércios, lojas e serviços. Essas vin-
ternacional uma semana antes da da- pectos da vida dos texanos – tributa- grandes corporações. Tem sido usada te páginas escritas em letras grandes
ta marcada. Ainda não haviam sido ção, saúde, aborto, porte de armas, esporadicamente, às vezes de manei- não citam nenhum estudo, e seus cri-
relatados casos de Covid-19 na cida- transporte e pena de morte. A impor- ra estranha (por exemplo, para forçar térios foram definidos por um sena-
de. Adler tomou a decisão depois que tância da votação em 2020 é ainda trabalhadores de matadouros a tra- dor democrata de Connecticut como
várias empresas californianas como maior porque o partido vencedor po- balhar, apesar dos riscos à saúde que “criminalmente vagos”. De acordo
Apple, Facebook, Intel e Netflix can- derá redesenhar o mapa eleitoral do enfrentam). Na maioria dos casos, com um desses critérios, um estado
celaram a visita ao estado, preocupa- Texas a seu favor, como após cada Trump trabalhou voluntariamente só pode retomar as atividades se o
.

das em enviar seus funcionários para censo populacional. com grandes grupos, de acordo com número de infecções cair por catorze
um evento com meio milhão de pes- A realidade da Covid-19 ainda não seus próprios termos financeiros. De dias consecutivos.
soas do mundo todo. O festival, South havia se consolidado no imaginário resto, seu gerenciamento da crise se Esse não é o caso do Texas, onde o
by Southest, é essencial para a cultu- da população. Falava-se em “exército resume ao desejo de reativar a econo- número de casos estava aumentando
ra norte-americana; durante quinze de voluntários”, “porta a porta”, aper- mia a todo custo, mesmo que isso sig- quando as restrições foram flexibili-
dias, ele reúne a elite do entreteni- tos de mão “sete vezes mais eficazes nifique minimizar a realidade esta- zadas, em 1º de maio. O estado é em-
mento, da música, do cinema e da que um comercial de TV”. A palavra tística da doença. blemático na luta do Partido Republi-
tecnologia. Entre dois shows, é possí- “vírus” foi usada apenas uma vez pa- cano para ver a economia recomeçar,
vel ouvir personalidades tão diversas ra humilhar um oponente democrá- independentemente das consequên-
quanto Kim Kardashian-West, Noam tica, Beto O’Rourke, por seu fraco de- Até os processos cias sanitárias. Estimulados com os
Chomsky e o CEO do Twitter. O cra- sempenho eleitoral: “O’Rourke é o eleitorais estão incertos. apelos de Trump para “libertar” os
chá de “platina” para participar de coronavírus da política”, brincou um estados, cerca de cem manifestantes
conferências custa US$ 1.600. O estrategista que veio especialmente
Como será a votação no – uma coalizão heterogênea de liber-
evento é suficiente para garantir des- de avião de New Hampshire. Dois Texas? Presencial? Por tários, ativistas nacionalistas e anti-
de a vida durante um ano de vários dias depois, o Dow Jones registrou carta? Não se sabe vacinas – reuniram-se do lado de fora
trabalhadores sazonais da indústria sua maior queda desde 2008 (–10%). do Capitólio de Austin no dia 18 de
hoteleira, até a dos veículos de trans- Em 11 de março, a NBA interrompeu abril. Vários gerentes de bares e estú-
porte com motorista, passando pela o campeonato; no dia 12, a Organiza- Trump também contou forte- dios de tatuagem texanos acampa-
entrega de pizza. O cancelamento do ção Mundial da Saúde declarou ofi- mente com os governadores. Os cin- ram, armados, em frente ao seu esta-
SXSW soou como um prelúdio do de- cialmente uma “pandemia” que logo quenta estados assumiram a respos- belecimento para desafiar as
sastre econômico e de saúde que as- acabaria com tudo o que parecia tri- ta sanitária ao seu lado e se restrições. A polícia interveio em al-
sola atualmente o país. vial nessa reunião política: a chegada encarregaram de encontrar másca- guns casos. Em Odessa, a mídia local
No dia seguinte ao decreto do es- dos participantes de avião; um pro- ras, respiradores e exames de emer- estacionada do lado de fora do bar do
tado de emergência, cerca de cin- grama de campanha no qual a eco- gência, de acordo com sua vontade e Big Daddy Zane filmou a prisão da
quenta caciques e militantes do Par- nomia ocupava a quinta posição na meios, ainda que o presidente os cul- dona do estabelecimento e de seus
tido Republicano do Texas (RPT) lista de assuntos prioritários – atrás pe pela insuficiência. Os governado- apoiadores armados com rifles
reuniram-se em uma igreja evangéli- da liberdade religiosa, da proteção de res, no entanto, lamentaram a falta semiautomáticos.
ca na Rua Guadalupe, no centro de fetos e da defesa do porte de armas. de coordenação do governo federal, “Desde 1871, é completamente le-
Austin. O objetivo da reunião, revela- De repente, a Covid-19 embaralhou que os levou a competir pelos equi- gal no Texas andar na rua com uma
do no microfone pelo líder do parti- todas as cartas. Em poucas semanas, pamentos disponíveis. “Estamos lu- arma de cano longo, mesmo sem li-
do, James Dickey: recrutar voluntá- a taxa nacional de desemprego exce- tando um contra o outro”, resumiu o cença”, contou-nos em março Mi-
rios para as próximas eleições. deu a de 1933; quase 2 milhões de governador do estado de Nova York, chael Cargill, vendedor de armas e
“Estamos no modo de defesa”, aler- texanos perderam o emprego; o pre- Andrew Cuomo, em uma de suas en- instrutor de tiro em Austin, durante
tou Karl Rove, consultor-chefe do ex- ço do petróleo entrou em colapso. Até trevistas diárias à imprensa, em 31 um curso ministrado para cerca de
-presidente (texano) Georges W. os processos eleitorais estão incertos. de março. “As empresas literalmente vinte pessoas que desejavam obter
Bush e agora comentarista da Fox Como será a votação no Texas? Pre- nos dizem por telefone: ‘Desculpe, a uma licença para o porte de armas.
News e do Wall Street Journal. Em no- sencial? Por carta? Não se sabe. Califórnia venceu o leilão’. É como Cargill é um elétron livre na capital
vembro próximo, os cidadãos do Diante da pandemia, Donald fazer lances no eBay com outros cin- texana: negro, gay e republicano, es-
Texas elegerão um senador e 36 re- Trump foi ofensivo desde o início no quenta estados.” se pequeno proprietário está lutando
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17
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possível. Essas pessoas estão mais


© Matthew T Rader/Unsplash

preocupadas em conservar energia


do que em salvar vidas”.
O principal argumento eleitoral a
favor da reeleição de Trump, a saúde
da economia, está em franco descré-
dito, o que fez os republicanos opta-
rem por acusar os prefeitos das gran-
des cidades, em geral democratas, de
restringir os direitos constitucionais
dos norte-americanos e transformar
o país em uma ditadura. Eles conde-
nam qualquer democrata eleito que
tenha confinado sua população se-
veramente. O procurador-geral Ken
Paxton, equivalente ao ministro da
Justiça do Texas, ameaçou processar
a cidade de Austin, qualificando de
“orwelliana” a obrigação de usar
máscara.
Em um estado ferozmente contrá-
rio ao imposto sobre a renda, o Te-
souro texano – financiado em grande
parte por um coquetel de IVA (taxa
sobre o consumo), impostos sobre a
produção de combustíveis fósseis e
impostos sobre a bomba de combus-
tível – está experimentando um de-
Texas é emblemático na luta dos Republicanos para ver a economia recomeçar, independentemente das consequências clínio brutal em suas receitas. Sua
economia era a mais dinâmica da
para estender os direitos de porte das um ditador, quando a Constituição mídia sobre o enfrentamento que União: o Texas produz 40% da ener-
armas de fogo que comercializa. Ele do Texas estabelece que a assembleia empreendeu contra o tribunal de gia fóssil extraída nos Estados Uni-
encoraja os afro-americanos a reivin- legislativa deve se reunir em tais cir- Dallas acabaram levando Luther pa- dos. Desde 2012, Austin lidera o re-
.

dicar seus direitos constitucionais de cunstâncias. O estado pode dar avi- ra a prisão por uma semana. “A últi- corde de crescimento urbano nos
terem uma para se defender em tem- sos, mas cabe ao povo decidir como ma coisa que os políticos texanos Estados Unidos. A pandemia jogou
pos de perigo. Cargill precisou lutar agir”, protestou. E prossegue: “Foi as- querem é enviar uma mulher loira e um balde de água fria nesse supera-
para que sua “loja de armas” fosse re- sim que a América foi construída. Se branca para a cadeia”, diz Cargill. Em quecimento econômico. Anterior-
conhecida como “comércio essen- você tem medo de ficar doente, fique poucos dias, quase todos os políticos mente, o estado havia superado cri-
cial” durante a pandemia: “Um poli- em casa”. Cargill, que precisou sus- republicanos do Texas se uniram à ses graças ao preço do petróleo: o que
cial veio fechar minha loja após uma pender as aulas por um mês, tem nes- cruzada da cabeleireira, contradi- prejudicou a economia de outros ter-
denúncia. Eu o informei que a segun- ses cursos sua principal fonte de ren- zendo o decreto do governador Greg ritórios não produtores, encheu os
da emenda [o direito de portar uma da, uma vez que ele diz não ganhar Abbott. Acentuando o desconforto, cofres do Tesouro texano. O inverso
arma] é essencial para a Constituição muito com a venda de armas. A perda Trump prestou homenagem à cabe- acontece agora. Há um oceano de
dos Estados Unidos. Que em tempos financeira o preocupa mais do que o leireira em uma entrevista em seu “ouro negro” represado em centros
de crise, com o risco de tumultos, os vírus, que “vai ir e vir em ondas por programa favorito, Fox and Friends, e de armazenamento, os superpetro-
texanos têm o direito de se proteger”, anos, enquanto isso de fechar um es- levantou o assunto durante a visita leiros permanecem no mar e os pre-
disse. O procurador-geral do Texas tabelecimento por três meses pode do governador Abbott à Casa Branca ços caíram até negativarem, em abril,
confirmou essa opinião, e a loja per- condená-lo a não voltar a funcionar. no dia 7 de maio. Logo depois, o go- pela primeira vez na história (veja ar-
maneceu aberta durante toda a pan- Muitas empresas não têm estrutura vernador mudou seu decreto, a Su- tigo na pág. 27).
demia, registrando um número re- para sobreviver nessas condições”. prema Corte do Texas anulou a sen- Sem petróleo e sem para-choques,
corde de novos clientes. tença de Luther e o confinamento foi a economia do Texas torna-se impo-
Como um dos poucos estados da suspenso em todo o Texas. tente diante da atual crise sanitária.
União que foi brevemente indepen- Sem petróleo e sem “Essa senhora recrutou homens O estado é medalha de ouro no nú-
dente (com uma embaixada em Lon- para-choques, a econo- armados para proteger seu salão, mero de cidadãos não cobertos por
dres instalada entre 1836 e 1845), o violando a lei. E o governador cedeu um seguro-saúde. E o desemprego
Texas às vezes é propenso a surtos de
mia do Texas torna-se à pressão”, resume Mike Siegel, can- crescente pode piorar o cenário, já
febre separatista; o último foi na dé- impotente diante da didato democrata ao Congresso, que nos Estados Unidos esse seguro
cada de 1980, após uma crise de pe- atual crise sanitária contatado por telefone. Tanto nesse muitas vezes é fornecido pelo empre-
tróleo. A desconfiança em relação ao caso como em muitos outros, os re- gador. Como no resto do país, cente-
intervencionismo de Washington é publicanos parecem agir como se nas de milhares de moradores estão
mais forte nesse estado que em ou- Nas horas vagas, Cargill publica apenas a parcela mais animada de solicitando subsídios de desemprego,
tros lugares. Encorajado por um ba- um podcast semanal dedicado à polí- seu eleitorado representasse todo o a ponto de saturar as insuficientes
lanço ainda relativamente leve do ví- tica e às armas de fogo. Em um episó- país, o que todas as pesquisas con- plataformas de telefone da Texas
rus (menos de 5 mortos por 100 mil dio recente, ele recebeu uma cabelei- tradizem no momento. Para explicar Workforce Commission. As autorida-
habitantes em meados de maio, em reira de Dallas, Shelley Luther. Essa o comportamento das autoridades des não parecem se compadecer: a
comparação com o índice de 140 por texana adquiriu, em poucas sema- republicanas, Siegel destaca a pres- Suprema Corte do Texas autorizou
100 mil no estado de Nova York), Car- nas, o status de celebridade nacional. são exercida pelos doadores de cam- novamente os despejos e a cobrança
gill considera que os direitos indivi- Sua luta para manter o salão aberto panhas eleitorais: “No Texas, não há de dívidas a partir de junho, selando
duais devem prevalecer sobre os im- rapidamente se transformou em um limites para as contribuições de o implacável retorno aos negócios as
perativos sanitários. Ele acusa o desafio para as autoridades republi- campanhas políticas. Abbott é apoia- usual [como sempre]. 
governador de ter agido por decreto canas do Texas. Primeiro foi multada, do financeiramente por empresas
durante a pandemia, “quase como mas sua teimosia e a repercussão na que desejam reabrir o mais rápido *Maxime Robin  é jornalista.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

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A RECOMPOSIÇÃO PLANETÁRIA

Três hipóteses geopolíticas


geográficos especializados, em fun-
ção de suas vantagens comparativas.
A Apple, um caso paradigmático, é
abastecida por duzentas grandes

para o pós-pandemia
empresas subcontratadas, a maioria
absoluta de origem asiática – China
(39%), Taiwan e Sudeste Asiático
(23%), Japão (16%) –, localizadas em
24 países. Essas empresas também se
abastecem no mercado mundial
A brutal desaceleração da economia mundial por causa da pandemia obriga as grandes (matérias-primas e componentes).
potências a repensar suas estratégias industriais e comerciais. Muitos países, incluindo Tal esquema se aplica, com algumas
variações, a todas as empresas do se-
os EUA, continuarão seus esforços para se tornarem menos dependentes da China. tor de eletrônicos, elétrica, automoti-
As reconfigurações que se anunciam não estarão isentas de tensões geopolíticas, vo e vestuário. A Nike, por exemplo,
e as que se estabelecem entre Washington e Pequim estão entre as maiores mobiliza fábricas subcontratadas em
quarenta países, além de comprar
matéria-prima de outros onze, em
POR PHILIP S. GOLUB* todos os continentes, mas concen-
trados principalmente na China, no
Vietnã e na Indonésia. Da mesma
Devemos acreditar que, desta vez, forma, cadeias transcontinentais es-
os Estados Unidos serão exauridos truturam o mercado farmacêutico
pela pandemia de Covid-19, enquan- global. Mesmo setores estratégicos
to a China, com seu forte Estado de- como a aeronáutica, cujos sistemas
© Renato Zechetto

senvolvimentista, saberá tirar pro- de produção já foram geografica-


veito de uma crise sem precedentes? mente menos dispersos, tornaram-
É o que afirmam alguns observado- -se bastante segmentados. A Airbus
res diante dos imensos danos causa- não apenas recorre a uma infinidade
dos na terra de Donald Trump por de subcontratadas, como também
um governo e um sistema econômico possui unidades de montagem na
e social fracassados. A crise poderia China (Tianjin) e nos Estados Unidos
acelerar o reequilíbrio Leste-Oeste, (Mobile, Alabama). O mesmo fenô-
.

um fenômeno estrutural, mas as ca- meno ocorre com a Boeing, cujo re-
pacidades dos Estados Unidos e as curso à terceirização só cresce: em
vulnerabilidades da China não pre- meados dos anos 1960, o 727 era qua-
nunciam uma reviravolta. Seria mais se inteiramente fabricado em solo
provável assistirmos a uma reestru- norte-americano; cinquenta anos
turação do sistema capitalista globa- depois, 70% do trabalho de concep-
lizado em favor de uma maior seg- ção e de fabricação do 787 estava nas
mentação e do aumento das mãos de parceiros externos.
rivalidades. A China está no centro de cadeias
regionais e globais. De plataforma de
ONDA DE CHOQUE montagem de produtos de compa-
NOS DOIS SENTIDOS nhias estrangeiras destinados ao
A pandemia provoca um choque eco- mercado mundial, nos anos 1990, ela
nômico e social sistêmico tão agudo se tornou, desde o final dos anos 2000,
quanto comprimido no tempo. A o “centro mundial de fornecimento
transmissão global dos choques de de produtos de valor agregado”, liga-
oferta e demanda foi abrupta e inten- do “a outros grandes polos (econômi-
sa por causa da desarticulação das cos) regionais”, explica a Organização
cadeias produtivas que estruturam a Mundial do Comércio (OMC).2 Assim,
economia capitalista desde o final da o súbito fechamento de fábricas que
década de 1980, e depois em decor- garantiam a produção de componen-
rência da queda universal da deman- tes intermediários e a montagem de

U
ma crise persistente é uma pro- Foi isso que o historiador Fer- da produzida pela contração de eco- produtos finais perturbou o conjunto
va de resistência: os fortes a nand Braudel escreveu em 1977,1 em nomias amplamente colocadas em das cadeias de suprimentos e de pro-
atravessam, os fracos sucum- uma reflexão sobre os lentos movi- quarentena (mais de 4 bilhões de dução em escala regional (Ásia orien-
bem a ela. O centro não se que- mentos de descentralização e recen- pessoas foram confinadas, de uma tal) e global. Foi o que aconteceu, em
bra a cada golpe. Pelo contrário. Há tralização da economia-mundo eu- forma ou de outra). A depressão mun- particular, na província de Hubei, um
alguns anos, vivemos uma crise ropeia desde o século XIV e da dial que temos pela frente promete dos grandes centros de fluxos de in-
mundial que promete ser forte e du- economia capitalista mundial nos ser longa e profunda. vestimento estrangeiro direto, onde
radoura. Se Nova York sucumbir – o séculos XIX e XX, ambos provocados O alto grau de interdependência já investiram 167 das quinhentas
que eu não acredito que vá acontecer por “crises prolongadas na econo- das economias explica a natureza ge- maiores empresas norte-americanas
–, o mundo terá de encontrar ou in- mia geral”. Desde então, seu julga- ral do choque. As cadeias de produ- em volume de negócios.
ventar um novo centro; se os Estados mento não foi desmentido. Durante ção e de valor globais causam uma A onda de choque se transmite
Unidos resistirem [...], eles poderão a crise financeira global de 2008, o segmentação transnacional das dife- nos dois sentidos, pois, em uma se-
sair mais fortes da prova, pois as ou- centro também não quebrou, embo- rentes etapas da produção – pesquisa gunda etapa, o acesso chinês aos in-
tras economias provavelmente sofre- ra a autoridade internacional dos Es- e desenvolvimento, concepção, ex- sumos importados necessários para
rão muito mais do que eles com a tados Unidos, já arranhada pelas tração de matérias-primas, produ- a recuperação da economia e das ex-
conjuntura hostil pela qual estamos guerras dos anos 2000, tenha se ção de componentes, montagem, co- portações foi inibido pelas políticas
passando.” fragilizado. mercialização – em nós industriais e sanitárias de confinamento e pelo fe-
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 19
VAI Corinthianssssss

chamento de fronteiras fora da Chi- sistêmico que promove modelos al- da por dois campos que se acusam bens públicos internacionais e mun-
na. A recuperação da demanda mun- ternativos de governança”.5 No en- mutuamente de excessiva compla- diais, como políticas globais eficazes
dial por produtos fabricados na tanto, em relação a essas questões e a cência para com a potência oriental. nas áreas de saúde, meio ambiente,
China, ou em qualquer outro lugar, é muitas outras, a Europa mostra in- Em 29 de abril, o presidente dos Esta- alimentação e redução da pobreza.
improvável a curto e médio prazo. consistência: doze países europeus, dos Unidos afirmou que “a China fará Outra, oposta, é instalar uma situa-
Nas regiões mais ricas do mundo, por exemplo, privatizaram total ou todo o possível para que eu perca esta ção de descentralização radical, ca-
o medo da infecção soma-se ao fan- parcialmente seus portos, ou assina- eleição”. Dois dias depois, uma das fi- racterizada por uma concorrência in-
tasma do rebaixamento social e do ram concessões com empresas esta- guras em ascensão do Partido Demo- tensificada, na qual os Estados
empobrecimento. Isso certamente tais chinesas. crata, ex-candidato às primárias de procurariam maximizar seu poder e
também se passa na China, onde os Nos Estados Unidos, onde a as- seu partido, respondeu: “Muito pelo minimizar sua insegurança, em um
recentes dados oficiais sobre desem- censão da China desperta preocupa- contrário – Trump é o candidato dos jogo de soma zero de ganhos e per-
prego urbano (6,2% de uma popula- ções crescentes desde o início dos sonhos da China, que gostaria de tê-lo das. Retornaríamos, assim, à lógica
ção ativa urbana de 440 milhões) não anos 2000, o governo Trump vinha como interlocutor por mais quatro da rivalidade e do cada um por si vi-
incluem as zonas rurais nem a enor- trabalhando para desacoplar o país anos. Em seu primeiro mandato, gente no final do século XIX e início
me massa de migrantes internos. Es- oriental da economia norte-america- Trump não colocou a China de joe- do século XX, outro momento de
timativas apontam que o número de na e mundial muito antes da epide- lhos, tornou-a mais poderosa”.7 colapso.
desempregados estaria de fato em mia. Sua diplomacia econômica Por fim, em uma terceira hipóte-
torno de 205 milhões,3 um quarto da coercitiva (a “guerra comercial”) bus- se, poderia se desenhar uma configu-
população ativa total – uma taxa ca cortar as cadeias, reduzir o acesso A participação do ração híbrida, misturando coopera-
equivalente àquela observada nos Es- da China a tecnologias de ponta e le- comércio no PIB é de ção e rivalidades nos diferentes
tados Unidos (22% no final de abril). var as empresas transnacionais a re- campos da política internacional.
Uma reestruturação profunda das tornarem a seu país de origem.6 Mais
38% na China, contra Das três hipóteses, esta última pare-
cadeias de valor é inevitável. Empre- discretamente, Japão e Taiwan pres- 28% nos Estados Unidos ce a mais plausível. As dinâmicas em
sas e países vão tentar reduzir sua ex- sionam suas empresas a levar suas curso não favorecem a primeira de-
posição a choques e perturbações instalações produtivas para outros las. Embora concebível, um retorno à
exógenos por meio de circuitos mais países que não a China: o programa MISTURA DE COOPERAÇÃO anarquia internacional sob uma for-
apertados e mais facilmente contro- de estímulo à economia do Estado ja- E RIVALIDADES ma quimicamente pura também pa-
láveis, regionais, que deverão ser pri- ponês prevê US$ 2,2 bilhões em sub- Mais poderosa? O Estado chinês tem rece pouco provável, embora anime
vilegiados por razões imperativas de sídios para a deslocalização de em- grandes capacidades de intervenção, manifestamente alguns espíritos. Na
segurança (econômica, alimentar, de presas japonesas para fora da China. mas não é conveniente subestimar terceira hipótese, estaríamos em um
saúde). As implicações políticas des- A pandemia não mudou a política suas vulnerabilidades. O acesso con- mundo próximo àquele que conhece-
sas mudanças serão significativas. conduzida pela Casa Branca. Pelo tínuo ao mercado mundial é uma mos após 1947, porém mais segmen-
Afirmando “tirar lições do momento contrário, estão em elaboração leis questão fundamental para a China, tado, desprovido de autoridades re-
.

que atravessamos”, Emmanuel Ma- que obrigam as empresas farmacêu- ainda mais do que para os Estados conhecidas, e descentralizado. 
cron avaliou que “é loucura delegar a ticas a produzir e se abastecer nos Es- Unidos, cuja economia é menos in-
outros nossa comida, nossa proteção, tados Unidos, bem como uma série ternacionalizada: a participação do *Philip S. Golub  é professor da Universi-
nossa capacidade de cuidado, em su- de novas restrições à exportação de comércio no PIB é de 38% na China, dade Americana de Paris (AUP)
ma, todo o nosso contexto vital. Pre- componentes tecnológicos para a contra 28% nos Estados Unidos. Sua
cisamos recuperar o controle”. Para China. A retórica do governo é parti- dependência externa energética e 1   F ernand Braudel, La dynamique du capitalis-
os países mais ricos, a crise realmen- cularmente agressiva, com o secretá- agrícola tem crescido constantemen- me [A dinâmica do capitalismo], Arthaud, Pa-
ris, 1985.
te lançou uma dura luz sobre a con- rio de Estado, Mike Pompeo, e muitos te nas últimas décadas. Sua seguran- 2   “Global value chain development report 2019.
tradição entre sua segurança e as es- parlamentares das duas câmaras do ça alimentar, problema ligado às res- Technological innovation, supply chain trade,
tratégias de transnacionalização de Congresso acusando abertamente a trições ecológicas, é um desafio and workers in a globalized world” [Relatório
global de desenvolvimento da cadeia de valor
suas empresas, e evidenciou o perigo China de esconder a origem da pan- crucial: 20% das terras aráveis da 2019. Inovação tecnológica, comércio da ca-
de depender tão singularmente da demia e até de ter deliberadamente China foram degradadas pela agri- deia de suprimentos e trabalhadores em um
China para seu abastecimento. Mar- deixado a doença se disseminar para cultura intensiva.8 Embora a partici- mundo globalizado], Organização Mundial do
Comércio, Genebra, 2019.
cos Rubio, um senador dos Estados que o país não fosse sua única vítima pação das exportações no PIB tenha 3   C f. Frank Tang, “Coronavirus: China’s unem-
Unidos adepto do livre-comércio, fez econômica. Alguns, como o senador caído – de uma média de 28,4% entre ployment crisis mounts, but nobody knows
a seguinte declaração: “Há trinta republicano Lindsey Graham, presi- 2000 e 2009 para 20,9% entre 2010 e true number of jobless” [Coronavírus: crise do
desemprego na China cresce, mas ninguém
anos, nosso país decidiu que a aloca- dente da Comissão Judiciária do Se- 2018 –, elas continuam sendo uma sabe o verdadeiro número de desemprega-
ção de capital mais eficaz levava à nado dos Estados Unidos, pedem o importante fonte de crescimento e de dos], South China Morning Post, 3 abr. 2020.
deslocalização de nossa produção no cancelamento da dívida do país com captura de tecnologia, por meio das 4   F ox News, 17 mar. 2020.
5   “Communication conjointe au parlement euro-
exterior. Era mais barato na China, e a China, a aplicação de uma “tarifa empresas estrangeiras presentes na péen, au conseil européen et au conseil sur
não apenas na China. Bem, agora es- pandemia” sobre as mercadorias chi- China. Apesar do aumento da diver- les relations UE-Chine – Une vision stratégi-
tá clara a vulnerabilidade que essa nesas e a imposição de sanções con- sificação de sua economia em geral, a que” [Comunicação conjunta ao Parlamento
Europeu, ao Conselho Europeu e ao Conse-
escolha nos trouxe. [...] Às vezes, a tra autoridades chinesas por “negli- China ainda não alcançou a fronteira lho sobre Relações União Europeia-China –
alocação de capital mais eficaz con- gência grave e engano deliberado” na tecnológica em muitas áreas, como a Uma visão estratégica], Comissão Europeia e
traria o interesse nacional”.4 gestão da epidemia. A resposta diplo- aeronáutica.9 Portanto, o fim do Alto Representante da União para os Negó-
cios Estrangeiros e a Política de Segurança,
As preocupações com a depen- mática de Pequim não é menos agres- mundo aberto não parece algo favo- 12 mar. 2019.
dência externa e com a penetração siva, brandindo a ameaça de represá- rável para as posições chinesas. Nem 6   Ler “Entre les États-Unis et la Chine, une guer-
chinesa em setores tecnológicos sen- lias econômicas, sobretudo contra para os Estados Unidos. Embora mais re moins commerciale que géopolitique” [Es-
tados Unidos × China: uma guerra menos
síveis vêm de antes da crise atual. Em países dependentes do mercado chi- autônomo em muitos níveis, sobretu- comercial do que geopolítica], Le Monde Di-
2019, a Comissão Europeia publicou nês, como a Austrália, que seguem os do tecnológicos e militares, o país es- plomatique, out. 2019.
um relatório dizendo que “a China é, Estados Unidos nessa área. Quanto a tá seriamente fragilizado do ponto de 7   Pete Buttigieg, “China wants four more years
of Trump” [China quer mais quatro anos de
simultaneamente, um parceiro de Pompeo, a China já o qualificou de vista econômico. Trump], The Washington Post, 1º maio 2020.
cooperação com o qual a União Euro- “inimigo comum da humanidade”. Na incerteza do momento, tudo o 8   Cf. Marie-Hélène Schwoob, “Progrès et con-
peia tem objetivos estreitamente ali- Com quase dois terços dos cida- que podemos fazer é explorar hipóte- traintes de l’écologie: l’exemple des chemins
de dépendance de l’agriculture chinoise” [Pro-
nhados, um parceiro de negociação dãos dos Estados Unidos expressan- ses sobre as próximas configurações gresso e restrições ecológicas: o exemplo dos
com o qual a União Europeia deve en- do, agora, uma opinião negativa sobre mundiais. Uma delas é o estabeleci- caminhos de dependência da agricultura chi-
contrar um equilíbrio de interesses, a China – 20% a mais do que no início mento de uma cooperação mais es- nesa], Monde Chinois, n.56, Paris, 2018.
9   C f. Jean-Paul Maréchal, “Le C919, un A300
um concorrente econômico em bus- da presidência de Trump –, a campa- treita, por meio de instituições inter- chinois?” [C919, um A300 chinês?], Choi-
ca de liderança tecnológica e um rival nha presidencial no país será disputa- nacionais encarregadas de fornecer seul Magazine, n.9, Paris, jan.-abr. 2020.
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PEQUIM PRESSIONADA POR EXIGÊNCIAS DE TRANSPARÊNCIA SANITÁRIA

Por que desconfiar das


das capitais de província. A diferença
no tipo de tratamento acarreta forço-
samente a diferença na contagem.
Além disso, a organização geográ-

estatísticas chinesas
fica e hierárquica dos cuidados au-
mentou as dificuldades de acesso e
contagem: o sistema é piramidal,
com os meios concentrados nos gran-

sobre o coronavírus
des hospitais, mesmo em se tratando
da formação do pessoal.5 Os diplo-
mas dos médicos, como os dos enfer-
meiros, exigem anos de estudo, con-
forme as estruturas onde eles vão
A assembleia geral da OMS realizada entre 18 e 19 de maio, sob uma chuva trabalhar. Ou seja, quem é formado
de críticas, propôs tratar toda futura vacina contra a Covid-19 como um para um hospital local não pode exer-
cer a profissão em escala provincial e
“bem comum”. Nada que acalme os Estados Unidos, que acusam Pequim não dispõe dos mesmos protocolos
pelo desastre sanitário e destacam a fragilidade dos números de mortes de cuidados para com os pacientes.
declaradas. Mas o que esconde essa polêmica sobre os dados? Resumindo, a oferta de cuidados di-
verge bastante de uma zona geográfi-
ca para outra. Identificar de maneira
POR CARINE MILCENT* homogênea os casos de complicações
e mortes ligadas à Covid-19 é, pois,
impossível na China.

E
nquanto os Estados Unidos se ma de saúde pública urgente, de al- A organização deveria ter reagido A estimativa do número de víti-
afundam na crise sanitária, Do- cance internacional: só havia então de outra forma ou mais rapidamente? mas de uma epidemia está sempre
nald Trump e seu governo apon- onze casos fora da China, o que tal- Além de suas próprias regras, ela de- num intervalo de erro, corrigido em
tam o dedo para a China, acu- vez explique essa decisão. Em 24 de pende dos números chineses e sua seguida graças a comparações sazo-
sando-a de ter minimizado a janeiro, ela recomendou a adoção de eventual manipulação. Pelo que se nais e longitudinais. Na China, a
gravidade da epidemia. Os Estados programas de testes em todos os paí- viu no mundo em meados de maio margem de erro é grande, por razões
Unidos, seguidos pela Austrália, que- ses afetados. No mesmo dia, Xi (mais de 300 mil mortes), o número objetivas. Resta saber se correções
rem agora promover uma pesquisa in- Jinping reconheceu a gravidade da si- de óbitos chineses, de 4.633, será rea- serão feitas. Para além desses aspec-
ternacional. Denunciam a Organiza- tuação – em discurso acolhido por lista? Vários parâmetros entram aqui tos estatísticos, os números da crise
.

ção Mundial da Saúde (OMS), cujo um tuíte de Trump, em que este exal- em jogo. De início, conhecer os dados sanitária respondem igualmente a
diretor é acusado de complacência, ou tava “os esforços da China e sua verdadeiros é sempre problemático. arranjos ligados à política interna e à
mesmo cumplicidade, com Pequim. transparência”.1 Em 31 de janeiro, Não importa o lugar nem a epidemia geopolítica chinesas.
Para entender a polêmica, a cro- quando o balanço chinês contava 10 (gripe, por exemplo), os números No interior do país, as autoridades
nologia dos fatos é crucial. Os primei- mil pessoas contaminadas e 213 fale- “reais” só podem ser calculados re- se encarregaram de conter a ansieda-
ros casos comprovados remontam a cidas, a OMS admitiu a “urgência in- trospectivamente. Quando alguém de da população. De que a província
novembro de 2019 e, desde o início de ternacional”, fato raríssimo porque, morre num hospital, a atribuição de de Hubei tenha procurado delibera-
dezembro, vários médicos deram o desde sua criação, em 7 de abril de seu óbito a esta ou àquela causa pare- damente minimizar a gravidade da
alerta, ao preço de prisões e intimi- 1948, ela só havia feito isso cinco ve- ce por vezes complicada, em razão situação, não resta dúvida. Chegando
dações. No fim de dezembro, a China zes: para a gripe H1N1 (em 2009), a das comorbidades. Em se tratando de ao poder com a firme vontade de lu-
mencionou pela primeira vez um ví- poliomielite (em 2014), o vírus zika óbito fora da estrutura hospitalar, de- tar contra a corrupção, Xi Jinping vi-
rus novo surgido em Wuhan, em um (em 2016) e o ebola (em 2016 e de no- terminar a causa se torna ainda mais sou as baronias locais, que, por isso,
mercado de animais teoricamente vo em 2019). Seria preciso esperar até difícil, sem que haja aí, necessaria- tentam manter o poder central o
proibidos para consumo. Em 5 de ja- 10 de fevereiro para que ela enviasse mente, a vontade de enganar. mais longe possível de seus assuntos
neiro de 2020, a OMS declarou que, ao local uma equipe composta de es- O acesso aos cuidados também de- internos. É de crer que os dirigentes
segundo as informações chinesas, pecialistas de diversas nacionalida- sempenha seu papel. Se a primeira dé- de Wuhan, a fim de evitar tumulto,
“nenhuma prova significativa de des (Alemanha, Coreia do Sul, Esta- cada após a epidemia da síndrome tenham querido conservar as rédeas
transmissão entre humanos e ne- dos Unidos, Japão, Nigéria, Rússia e respiratória aguda severa (Sars, na si- pelo maior tempo que pudessem (por
nhuma infecção por agentes de saúde Cingapura).2 gla inglesa, 2003) assistiu à introdução tempo demais, sem dúvida) antes
foram registradas”. Só em 15 de janei- A partir daí, os Estados Unidos de medidas públicas que cobriram que Pequim as tomasse, ainda mais
ro ela reconheceu a transmissibilida- não deixaram de fazer acusações ca- quase a totalidade da população, o sis- que a ascensão, no partido, dos diri-
de do vírus para o homem – justa- da vez mais graves à OMS. Após um tema permaneceu marcado por uma gentes locais depende de seu desem-
mente no momento em que um período de relativo silêncio, esta con- oferta de serviços comunitários de penho, que implica critérios diversos
laboratório chinês partilhava, com a tra-atacou, assegurando, no fim de qualidade insuficiente e por omissões (crescimento, luta contra a poluição,
comunidade científica, a sequência abril, ter advertido “no momento cer- de graves consequências, ficando de nível social...). Essa atitude reflete o
genética do Sars-CoV-2. Fato bastan- to” os países da urgência sanitária. fora boa parte da população. Todo tra- regime autoritário do país, mas tam-
te curioso, o laboratório foi fechado Lançou um projeto de colaboração tamento além do protocolo predefini- bém a grande descentralização na
no dia seguinte ao dessa publicação. mundial (ACT-Accelerator) com o ob- do devia ser pago pelo paciente. aplicação de sua política – o que é fre-
Em 22 de janeiro, tudo começou a jetivo comum de “garantir que todos quentemente subestimado.
se acelerar na China com o bloqueio tenham acesso a todos os instrumen- SISTEMA PIRAMIDAL Já o poder central procurou con-
autoritário da província de Hubei, tos destinados a vencer a Covid-19”.3 Em plena crise sanitária, uma parte jugar dois objetivos aparentemente
cuja capital é Wuhan. O confinamen- António Guterres, secretário-geral da dos chineses não pôde se tratar por incompatíveis: enfatizar a gravidade
to seria estendido ao país inteiro, mas ONU, apoia o projeto: “Não se conce- razões financeiras. O reembolso dos da epidemia a fim de justificar as me-
os dirigentes se concentraram nessa be uma vacina ou tratamentos para testes pela autoridade central só con- didas de confinamento extremas e,
província. As pessoas ficaram presas um só país ou região, ou metade do tornou o obstáculo parcialmente. Po- ao mesmo tempo, dar a impressão de
em casa a fim de desacelerar o ritmo mundo”.4 Essas declarações ecoam demos imaginar que inúmeras pes- que controlava a situação para ame-
de expansão da epidemia e depois como resposta à vontade inabalável soas morreram de Covid-19 sem nizar a angústia de 1,4 bilhão de ha-
detê-la. Nessa data, a OMS ainda não de Trump de reservar a exclusividade passar pelos grandes hospitais de bitantes. Do ponto de vista sanitário,
achava que aquele fosse um proble- de vacinas promissoras. Hubei (o epicentro da pandemia) ou vimos que os meios ficaram concen-
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 21
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trados nos grandes hospitais da pro- Nesse contexto de enormes dispa- tência que ela procura adquirir. Ele ao preço de uma “transparência” to-
víncia, chamados de nível 3. Ora, a ridades sanitárias, as autoridades en- não economiza símbolos. Em 28 de tal da vida privada.
escala não é a da França: Hubei, por traram num jogo muito complicado, janeiro, o governo anunciou a cons- Além disso, desenvolveram-se al-
exemplo, tem mais de um terço da su- em que a política e principalmente a trução de dois “hospitais” para aco- gumas tecnologias nas quais a China
perfície do país europeu. Portanto, o divulgação do número de óbitos pre- lher os pacientes infectados pela Co- se destaca com vantagem. Em hospi-
confinamento significa, de fato, a tendiam realçar a capacidade do Es- vid-19. Edifícios da cidade poderiam tais de Wuhan e de outros lugares, ro-
inacessibilidade física aos equipa- tado central para justificar um confi- ter sido requisitados, mas esse não bôs davam apoio aos cuidadores.
mentos médicos avançados para namento que tornava quase foi o caminho midiático escolhido. Desde antes da crise e no quadro das
grande parte da população. insuportável a vida de parte da popu- As câmeras acompanharam ao vivo reformas da saúde iniciadas há al-
lação. Essa mesma lógica vigora hoje a construção, e as imagens pulula- guns anos, os três gigantes da inter-
ESFORÇO DE COMUNICAÇÃO nos Estados Unidos, onde Trump vam na mídia chinesa e estrangeira. net (Alibaba, Tencent e Baidu) ofere-
Nos grandes estabelecimentos hospi- procura desobrigar o Estado federal Na verdade, outras estruturas foram cem serviços que incluem
talares chineses, a qualificação das da gestão da epidemia ao pôr toda a usadas, notadamente o Centro In- teleconsultas, consultas marcadas
equipes é comparável à dos países culpa na China. Nos dois casos, trata- ternacional de Exposições, em com antecedência nos hospitais para
ocidentais. O mesmo não ocorre nas -se de desviar o olhar da opinião pú- Wuhan. evitar longas listas de espera – que fa-
estruturas de porte mais modesto. Os blica dos verdadeiros problemas so- Como o epicentro da epidemia zem o papel de triagem em função da
primeiros estão nas grandes cidades, cioeconômicos da crise sanitária. agora se deslocou para a Europa e os patologia descrita, do prontuário do
densamente povoadas, de renda mais Se os números oficiais devem ser Estados Unidos, Pequim gostaria paciente e... do convênio privado. A
alta; as outras, nas zonas periféricas considerados com reservas, é preciso muito de fazer esquecer ao mesmo China, precursora, poderia tirar par-
ou rurais. Com um confinamento reconhecer o esforço atual de comu- tempo as origens da pandemia e os tido de sua experiência nesse merca-
muito rigoroso, as carências dessas nicação em comparação com o ado- números que difundiu, a fim de se do em plena expansão. 
estruturas agravam ainda mais as tado no episódio Sars em 2002-2003, apresentar como parceiro ou colabo-
desigualdades. Deve-se acrescentar graças principalmente à partilha dos rador, conforme o país – complemen- *Carine Milcent  é pesquisadora do Cen-
também que muitas vezes elas são dados científicos. Além disso, as au- tando, e mesmo assumindo, o papel tre National de la Recherche Scientifique
privadas e, portanto, mais caras. toridades comunicam por outros até então confiado a Washington. (CNRS), professora da École Économique
Acrescente-se a isso a precarieda- meios que não apenas o dos núme- Primeiro país a sair lenta e prudente- de Paris e autora de Health Reform in Chi-
de econômica: fora das metrópoles, os ros. Assim, na semana de 21 de janei- mente da crise, a China pretende pro- na: From Violence to Digital Healthcare
chineses trabalham geralmente em ro de 2020, a embaixada da China em mover seu modelo. [Reforma da saúde na China: da violência à
empresas médias ou pequenas, que Paris alertou a França sobre o caso Suas soluções investem na aceita- assistência médica digital], 2018.
não garantem direitos durante o con- de uma mulher que pegara um avião ção, pela população, de medidas que
finamento nem volta ao emprego de- em Wuhan e garantiu, nas redes so- implicam rastreá-la digitalmente. 1   T witter, 24 jan. 2020.
pois. Os camponeses e parte dos tra- ciais, apresentar os sintomas da Co- Toda pessoa que se desloca deve ser 2   “Report of the WHO-China joint mission on
coronavirus disease 2019 (Covid-19)” [Rela-
balhadores migrantes se encontram vid-19. As autoridades francesas a registrada e possuir um código QR
.

tório da missão conjunta OMS-China sobre a


em situação de fragilidade ainda mais examinaram, mas não houve isola- de identificação. O telefone celular doença do coronavírus 2019 (Covid-19)],
grave. Assim, as famílias com renda mento nem quarentena porque, na contém uma série de informações, OMS, 16-24 fev. 2020.
3   France Info, 24 abr. 2020.
menor enfrentam um duplo sofrimen- ocasião, os sinais de alerta enviados inclusive sanitárias, sobre modo de 4   “L’OMS lance une initiative pour rendre les
to: poucos recursos e cuidados insufi- por Pequim não pareciam suficien- vida, consumo, deslocamento, saí- outils contre le Covid-19 acessibles à tous” [A
cientes. Apesar do policiamento das temente inquietantes. das e vida social de cada cidadão. Já OMS lança uma iniciativa para tornar acessí-
veis a todos as ferramentas contra a Co-
redes sociais, a “sociedade civil” nem Hoje, Xi quer dar à China a ima- rotineiramente utilizado como meio vid-19], ONU Info, 24 abr. 2020.
por isso deixou de externar seu des- gem de um país que domina total- de pagamento, o celular se tornou 5   C f. “Évolution du système de santé – Ineffica-
contentamento e sua cólera, sobretu- mente a situação, do ponto de vista uma ferramenta de informação so- cité, violence, et santé numérique” [Evolução
do sistema de saúde – Ineficiência, violência e
do após a morte do doutor Li Wen- tanto interno quanto externo, a fim bre todos os aspectos da vida pes- saúde digital], Perspectives Chinoises, Hong-
liang, um dos que deram o alerta. de incrementar o status de superpo- soal. O direito de viver foi adquirido -Kong, n. 4, 2016.
© Adli Wahid/Unsplash

Pôsteres em homenagem ao médico chinês Li Wenliang, que alertou as autoridades sobre novo coronavírus e morreu de Covid-19 no dia 7 de fevereiro
22 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

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UMA NOVA CONDIÇÃO PARA O GÊNERO HUMANO?

Confinados na matrix
Contagens diárias macabras, vizinhança tóxica, previsões apocalípticas, imagens mórbidas em sequência: protegida
pelo combate à Covid-19, a mídia organizou o terror sanitário para uma população francesa tratada como uma criança
pequena. Interlocutores únicos de uma audiência confinada por dois meses, ela acabou por construir uma realidade

POR DENIS DUCLOS*

M
eses de doença e confina- boletins de meteorologia ou dos pre- ta. A comparação internacional se Sobre a propagação do vírus, a mí-
mento levaram populações gões da Bolsa, interpretadas em tem- mostra ainda mais eloquente quanto dia evita divulgar informações que
inteiras a depender cada vez po real e depois discutidas nos pro- à impossibilidade de um saber exaus- ponham em questão a doutrina go-
mais da mídia para se infor- gramas de debate. tivo. Perguntamo-nos se as incessan- vernamental e a necessidade de con-
mar, refletir, discutir e trabalhar. Em- tes batalhas de números publicados finamento – por exemplo, a hipótese
bora a distribuição da imprensa escri- UMA TECNOCIÊNCIA IDEALIZADA sobre a inclusão ou não de determi- de um menor impacto da epidemia
ta tenha sido prejudicada pelas Baseados em números parciais, ten- nada categoria de óbitos têm por alvo em países quentes e úmidos, ou sobre
medidas de confinamento, raramente denciosos e fragmentários, esses in- (compreensível) evitar a vergonha de populações jovens ou isoladas do flu-
seu consumo foi tão grande: jornais, dicadores de RO (número médio de um resultado “pior” que o do vizinho. xo comercial. Mas a desconfiança só
cadeias clássicas de rádio e televisão, pessoas infectadas por um portador Pode-se esperar então que os “plane- oferece um consolo limitado: é preci-
vídeos na internet, redes sociais, in- do vírus), taxas de mortalidade, tas” midiático e sanitário se fundam so também tranquilizar, insistir nas
formações 24 horas, fóruns e video- quantidade de doentes, de óbitos, de para criar os instrumentos de uma esperanças que nascem no seio da
conferências – o planeta midiático pacientes recuperados etc. chamam leitura universal imediata de todos os população e nas promessas das in-
zumbe como uma colmeia gigante, continuamente uma atenção inquie- dados seguros de contágio e morte. dústrias farmacêuticas. Os jornalis-
.

trocando mensagens sem parar. Em


que direção atos e pensamentos estão

© Rômolo D’Hipólito
sendo estimulados ou influenciados?
Difícil responder, mesmo filtrando
milhares de referências temáticas do
Google Notícias em cinco meses.1 Me-
nos em um aspecto: a mídia mundial
foi sem dúvida uma produtora do
acontecimento, impondo-lhe um sen-
tido intolerável e o alinhamento da
maioria dos Estados a uma mesma
política sanitária de exceção.
Apresentando-se como o coro de
um teatro trágico, posicionado entre o
público e os profissionais para lhes co-
municar suas posturas mútuas, a in-
formação globalizada colocou frente a
frente duas forças principais: cientis-
tas e autoridades de um lado, povos e
“pacientes” do outro. Mas, ligados e
submetidos à nova condição eletrôni-
ca do gênero humano, público e atores
não estão confinados juntos na cela de
uma mesma instância midiática?
Uma de suas manifestações mais
espetaculares não escapou a nin-
guém: as curvas, mapas e gráficos re-
lativos à epidemia, as ordens de con-
finamento, de quarentena e de
fechamento de fronteiras, que cativa-
ram e nutriram diariamente o con-
junto da mídia do planeta. Esses info-
gráficos – por meio dos quais se
produz a realidade (e não o contrá-
rio), a ponto de a estratégia mundial
de combate à Covid-19 chamar-se
“achatamento da curva” – consti-
tuem agora, na superfície do “plane-
ta” da mídia, analogias sanitárias dos
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23
VAI Corinthianssssss

tas enaltecem passivamente as re- da pelo governo francês e pelo con- vos”: a mídia homenageia os cuida- de renda imediata e a da “sobrevivên-
gras sempre virtuosas (ao que parece) junto da imprensa – sem que esperas- dores e relata as manifestações de so- cia” do futuro antropoceno. Os arti-
do “método científico”, que conduzi- sem, dessa vez, a confirmação de lidariedade da parte do público. Mas, gos críticos que sugerem correções
rão à descoberta do remédio “enfim outros pesquisadores.2 Não se diz o também aí, o “negativo” surge sem consideráveis a fazer no regime eco-
infalível”. Ignoram de bom grado a mesmo dos efeitos sanitários deleté- demora: se nos blindamos de virtude nômico permanecem evasivos, quan-
parte cada vez mais importante da rios do confinamento, observados editorial para recriminar as manifes- do não circunscritos à mídia “engaja-
fraca replicabilidade das experiên- em grande escala em países como a tações de xenofobia contra os asiáti- da” ou que divulga os engajamentos
cias e dos protocolos de prova ou, Índia e, de maneira mais difusa, no cos (ou os africanos na China), de- – indulgentes ou excessivos. Também
ainda, a não confiabilidade de nume- mundo ocidental. nunciamos de bom grado as pessoas quanto a estes últimos, estamos ain-
rosos testes positivos ou negativos. “que não respeitam as proibições” ou da longe de propostas políticas glo-
A expectativa versátil do coro mi- os reincidentes que se recusam a exi- bais, suscetíveis de serem articuladas
diático se depara aqui com um para- Os artigos críticos bir seus atestados, nova encarnação pelas classes políticas, que em toda
doxo: ela alimenta a crença em uma que sugerem correções de uma marginalidade individualista parte parecem confusas e solapadas
tecnociência idealizada, mas, ao e perigosa. Para censurar apressada- em sua própria razão de ser.
mesmo tempo, fustiga aqueles que
consideráveis a fazer mente o vizinho que tosse diante de No momento, a erupção intermi-
nos enganaram com anúncios pre- no regime econômico nós ou corre sem máscara, apoiamo- nável de intervenções parece querer
maturos ou que contestam a farma- permanecem -nos em notícias desagradáveis: daí a demonstrar que o grande aconteci-
cologia oficial. A suspeita de charla- ânsia de delatar, que lembra a ocupa- mento não é talvez a pandemia em si.
tanismo acompanha, como uma ção nazista. No entanto, as redes so- Para além dos estados de emergência
sombra, a fé tecnófila. Pressiona os Como se ninguém ousasse mais ciais e outros espaços de expressão e dos planos governamentais para a
pesquisadores, que também preci- exprimir hoje o que parecia evidente do público (as antigas “cartas dos lei- saída da crise, haveria agora alguma
sam de liberdade (para se enganar e ontem, nenhum jornalista achou útil tores”) regurgitam de posições extre- coisa insuperável nos confins de nos-
mudar de ideia), não importa a ur- lembrar estas palavras de Jean-Clau- mas, indicando aonde a mídia, mo- sas vidas, ligada ao triunfo suprana-
gência da encomenda. de Ameisen, imunologista de renome mentaneamente hesitante, talvez vá cional das baronias da internet: de-
Os avisos das autoridades sobre a (que, no entanto, era bem conhecido parar amanhã: rejubilando-se com mocratas ou não, estaríamos
limitação da liberdade comum se- da mídia), criticando já em 2007 a os programas de localização dos confinados no planeta mídia sem po-
guem uma orientação midiática simi- aplicação em nível internacional de amigos contaminados, com o passa- der escapar!
lar à das cifras, mas de outra maneira. “medidas de distanciamento social porte imunitário ou com a multipli- E isso como se, em última instân-
Suscitam ainda mais as paixões e que acentuam o isolamento das pes- cação de atestados. cia, a sociedade-mundo enfim se im-
controvérsias, inspiradas pela diver- soas, correndo-se assim o risco de co- pusesse a nós conscientemente, com
gência de interesses legítimos, mas locar as mais frágeis em situações A BALEIA DE JONAS tanto mais poder esmagador quanto,
também por análises opostas do acer- dramáticas e provocar sua morte in- Sabe-se bem o que dizer das institui- à semelhança da baleia de Jonas, ela
to (ou do erro) das políticas públicas. dependentemente da infecção pelo ções de cuidados para idosos, cujo nos teria engolido e dissolvido a to-
.

Isso se aplica, por exemplo, à ardente vírus da gripe”.3 O passado só volta à pessoal, em condições de trabalho dos com seus sucos algorítmicos, for-
disputa sobre o rastreamento das po- tona muito devagar e de maneira se- muito perigosas, simplesmente “fu- tes ou fracos, resistentes ou ávidos de
pulações. Quanto ao debate entre letiva, para dar apoio equívoco às po- giu”, abandonando-os (na Lombar- poder, anarquistas ou obcecados pe-
“imunização de rebanho” (defendida sições preferidas: fotos de pessoas, dia, mas também na França). Na la ordem, passivos ou criativos.
principalmente nos países do norte em 1918, mascaradas sob pena de pri- França de 1918, não se falava nos jor- Essa descoberta ora em curso não
da Europa) e “isolamento”, a mídia se são,4 arquivos exumados contando a nais do número crescente de pessoas é, em si, negativa. Uma “reaproxima-
exalta, talvez por causa da suspeita de repetição de quarentenas ao longo que se recusavam a morrer em nome ção social” será também necessária
irrealismo da primeira opção e do re- dos séculos etc. do bem coletivo (evocadas por Stan- para nossa saúde mental e física,
ceio de que ela possa alimentar, como A solidão do político obrigado a ley Kubrick em Glória feita de san- após o estado de isolamento de emer-
na Suécia, a preferência, não pela eco- tomar decisões e a assumir uma res- gue). Contudo, o mero fato de as fa- gência. Mas estamos avisados de que
nomia à custa da vida, mas pela liber- ponsabilidade excessiva lança-o nu- mílias colocarem (às vezes, à força) a moderação se sucede frequente-
dade à custa da saúde pública. ma espiral de medidas urgentes (co- seus idosos nessas instituições de mente ao descomedimento e que, tão
No caso das decisões que se im- mo Olivier Véran, ministro francês da “solidão assistida”, que contribuem logo a tal “normalidade” retorne em
põem como ordem jurídica, política Saúde, que declarou em 24 de março com quase 50% para as estatísticas volta e dentro de nossas telas, nós re-
ou militar-policial a toda uma popu- a propósito do confinamento: “Dura- de mortalidade por Covid-19, consti- cairemos rapidamente na sonolência
lação (estado de emergência, confi- rá enquanto tiver de durar”), às vezes tui um tema tão intimidador que gera tecnologicamente governada e mi-
namento), admitem-se de início suas inadequadas, e de defesas autoritá- um silêncio eloquente, para o qual a diaticamente assistida, esquecendo
justificativas oficiais, espalhadas rias (obstinadas ou falsamente im- mídia, constrangida, contribui. nossas resoluções angustiantes de
por todo lado, como o famoso “acha- postas pela situação) de seus atos, ao Toda essa gama de opiniões e con- autêntico desconfinamento, interno
tamento da curva” para “não sobre- preço da marginalização do debate. tradições tende, afinal, a ultrapassar e externo. 
carregar o atendimento”. Em segui- Mas, quando o erro não pode mais a linha de desinformação encomen-
da, uma dúvida prudente é insinuada ser disfarçado, vozes se levantam de dada. Forma-se, antes, uma trama *Denis Duclos  é antropólogo.
pelos computadores e câmeras. Ao todos os lados e a própria mídia co- global de percepções midiatizadas
mesmo tempo que acompanha a po- meça a participar do drama. A ence- do real, que passa a coexistir com 1   E ste texto se baseia na coleta e análise de
lítica, a mídia aceita cada vez menos nação do desastre (“a epidemia as- nossa sociedade-mundo. Um ilustra- milhares de artigos e vídeos em língua france-
sa, inglesa, italiana e espanhola publicados
a hesitação e a “cacofonia” dos políti- sassina” é cíclica, afrouxar o dor evocaria aqui um cardume gi- na internet entre 1º de janeiro e 11 de maio de
cos. E isso enquanto, supostamente, confinamento será “pior”, o colapso é gantesco de peixes cintilantes envol- 2020.
se reconhece o caráter positivo do iminente) forja um consentimento vendo a Terra, com cada um se 2   C f. Jonathan Roux, Clément Massonnau e
Pascal Crépey, “Covid-19: One-month impact
desacordo na democracia, pois ele oriundo do medo. Essa angústia não orientando em todos os sentidos in- of the French lockdown on the epidemic bur-
modera um ativismo histérico que parece, entretanto, provocar uma dividualmente, mas dando meia-vol- den” [Covid-19: impacto de um mês do lock-
pode se revelar mais catastrófico que reavaliação orgânica da sociedade- ta ao mesmo tempo. down francês sobre o fardo da epidemia], 22
abr. 2020.
a própria doença. -mundo. Bem ao contrário, alimenta Certamente, já emerge do conjun- 3   Jean Claude Ameisen, “La lutte contre la pan-
Já o debate sobre a eficácia real uma lassidão já nostálgica, piedosa, to da mídia, visto em detalhe, uma démie grippale: um lévier contre l’exclusion”
das políticas de prevenção exibe às adepta da “volta” a uma normalidade onda de questionamentos sociais em [A luta contra a pandemia gripal: uma alavan-
ca contra a exclusão], Esprit, Paris, jul. 2007.
vezes uma atitude precipitada. As- perdida, que se deve merecer me- profundidade, recortada pelo con- 4   C f. “In the 1918 flu pandemic, not wearing a
sim, a publicação, em 22 de abril, de diante uma disciplina social e higiê- traste expresso, quando do movi- mask was illegal in some parts of America.
um estudo segundo o qual o confina- nica da qual todos serão guardiões. mento dos “coletes amarelos”, entre What changed?” [Durante a pandemia de gri-
pe de 1918, não usar máscara era ilegal em
mento teria evitado pouco mais de 60 À reclusão forçada, opõem-se os “o fim do mês e o fim do mundo” – o algumas partes dos Estados Unidos. O que
mil mortes foi prontamente retoma- contatos “humanos” e “compassi- conflito latente entre a necessidade mudou?], CNN, 5 abr. 2020.
24 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
BEM-VINDO À SOCIEDADE SEM CONTATO!

Trabalho,

© Janett Adler
família, wi-fi
Os gigantes do setor digital dificilmente poderiam prever
que um teste em tamanho real de sua visão de sociedade
seria justificado por uma motivação sanitária. Durante
semanas, produtores e consumidores tiveram de resolver
seus assuntos por meio das telas, inclusive quando se
tratava da escola, do divertimento e da saúde

POR JULIEN BRYGO*

B
oas notícias no jornal das oito mundo virtual ganhou tal amplitude No dia 30 de março, o governo gência para atender apenas em
da noite do canal France 2 do no cotidiano que a posse de um dis- francês, comprometido com sua meta consultório.
dia 6 de maio de 2020. No quin- positivo conectado à internet parece de digitalizar 100% dos serviços pú- Quatro meses depois, o mundo
quagésimo dia de confinamen- mais do que nunca uma necessidade blicos até 2022 (“Ação Pública 2022”), desabou sobre o doutor Thibaud, pe-
to na França, enquanto a escassez de vital. Sem internet não há máscaras, recomendou que os franceses que go pelas telas – e pelo vírus. “Eu pe-
equipamentos sanitários fustigava o não há exame médico, não há home não saibam usar muito bem a inter- guei Covid-19”, ele nos contou no iní-
país em plena pandemia de Covid-19, office (que se estendeu a um quarto net acessem o Solidarité-numérique. cio de abril, em uma entrevista por
a Prefeitura de Paris anunciou que fi- da população ativa da França durante fr, um novo site lançado por uma coo- vídeo, com o semblante ainda cansa-
nalmente ia distribuir máscaras gra- o confinamento), não há acesso ao perativa de mediadores, a Mednum – do por duas semanas de combate à
tuitamente nas 906 farmácias da ca- registro da previdência social, da e que, felizmente, tem um número de doença. Assim que conseguiu ficar de
pital. Com uma condição, advertia aposentadoria nem à conta bancária. telefone. Uma última gentileza antes pé, o médico assumiu o lugar de um
Anne-Sophie Lapix, a apresentadora: Pegar um trem depois da quaren- de abandonar para sempre setores in- colega do 18º Distrito de Paris. E,
.

os parisienses precisavam “se inscre- tena sem internet? Impossível. No dia teiros da população? Algumas sema- após duas semanas de confinamen-
ver pela internet” – e depois baixar 7 de maio, a Sociedade Nacional de nas antes, Cédric O, secretário de Es- to, 60% a 70% de suas consultas pas-
um cupom, que devia ser impresso ou Estradas de Ferro e a região de Hauts- tado para Assuntos Digitais, anunciou saram a ser realizadas por vídeo, por
apresentado diretamente na tela do -de-France anunciaram a introdução que iria triplicar o orçamento desti- meio do site privado Doctolib, líder
celular à farmácia, para então terem de um sistema de bilhetes no modelo nado aos “Pass Numériques” (vou- francês em agendamento e consultas
acesso ao equipamento que é de uso “o primeiro que chegar leva”, para chers de treinamento digital) para 30 on-line. “Nunca imaginei que eu faria
obrigatório no transporte coletivo. quem quiser utilizar o trem regional milhões de euros, o equivalente a cer- isso. Falta calor humano, contato clí-
O que antes da pandemia de Co- com origem ou destino em Lille a par- ca de 2 euros por pessoa que não usa a nico, mas no contexto não é tão ruim,
vid-19 seguia no ritmo de um cavalo a tir de 11 de maio. Os bilhetes não são internet. Uma quantia irrisória, divi- pois no consultório [que ele divide
galope, agora avança na velocidade vendidos na estação: só podem ser dida entre o Estado e as coletividades com diversos colegas], é impossível
de um furacão, arrastando todos para obtidos pela internet. A substituição territoriais, para preencher uma lacu- se proteger totalmente contra a trans-
um novo mundo, o da internet. Uma de cerca de 5 mil postos de trabalho na digital cada vez mais profunda e missão dos micro-organismos, pois
experiência em escala real de um (bilheteiros, agentes de informação cada vez mais incapacitante – inclusi- há os botões dos painéis eletrônicos,
mundo sem contato. Antes, a internet etc.) na França em dez anos (mil deles ve para alimentar o sonho de perma- as maçanetas...”
era o local para pedir seguro-desem- apenas em 2019)2 por máquinas de necer saudável. No entanto, um detalhe chamou
prego, documento de identidade, au- vendas e aplicativos digitais foi um sua atenção quando o médico se viu
torização de residência e licença para prelúdio dessa situação. Qualquer TESTE PARA A na rotina das consultas on-line: “Pas-
o carro; agora, ela é também onde se pessoa que não tenha um smartpho- MEDICINA DO FUTURO sados alguns dias, comecei a me per-
requisita um equipamento sanitário ne, que não se dê bem com a internet Mesmo antes de se iniciar o confina- guntar aonde tinham ido parar os pa-
básico e se realizam as atividades re- ou simplesmente que não goste da mento, o fantasma da internet total já cientes com mais de 50 anos. Eles não
lacionadas ao trabalho, à saúde, ao ideia de estar permanentemente co- fazia parte do cotidiano do doutor estavam lá. Não apareciam na minha
lazer, à educação – e à família. nectada, e potencialmente vigiada, Thibaud Zaninotto, em Paris. No fi- tela. A média de idade da minha clien-
Entre 17 e 31 de março, de acordo estará presa em uma sociedade na nal de 2019, ele ainda estava “no tela, atualmente, está entre 25 e 30
com o site Médiamétrie, o tempo diá- qual quase tudo lhe será negado. front”, segundo suas próprias pala- anos: pessoas que sabem usar aplica-
rio de navegação digital dos franceses É um fato, porém, reconhecido pe- vras, no serviço de emergência de um tivo e sistema de vídeo”. O profissio-
chegou a 2h50, um aumento de 36% las autoridades: na França, muita gen- grande hospital de Paris. O que ele nal de saúde não hesita em falar em
em relação a março de 2019 (para a te- te não está conectada à internet. Se- viu ali o deixou “completamente ar- “triagem social”, fazendo um paralelo
levisão, foram 4h41 em média entre gundo o “Barômetro digital 2019”, a rasado”. “Pacientes de 70 anos deixa- entre o sucesso do Doctolib e as “filas
17 de março e 26 de abril, um aumen- proporção de habitantes do país que se dos por 48, 72 horas sozinhos, em intermináveis” diante dos consultó-
to de mais de um terço em um ano). diz “pouco acostumada” com a inter- uma maca no corredor, sem conse- rios que ainda oferecem consultas
Sejam professores obrigados ao ensi- net chega a 23% da população maior guir um copo de água; equipamentos sem hora marcada em seu bairro.
no a distância, médicos que tiveram de 18 anos, o equivalente a 13 milhões antigos e de baixa qualidade... Além Detectar uma infecção de ouvido,
de se conformar com a telemedicina, de pessoas. É o chamado analfabetis- de gastar uma quantidade incrível de diagnosticar uma inflamação, tratar
profissionais confortavelmente – ou mo digital.3 Para os 15% de indivíduos tempo procurando leitos disponíveis, um resfriado... “Como você vai ver
não – instalados em seus chinelos de de 15 anos ou mais que não usaram a tínhamos de passar quase 10 horas em uma tela a verdadeira cor do fun-
home office e até universidades que internet em 2019 ou para os 38% de por dia no computador lançando no do da garganta ou de um ouvido in-
decidiram iniciar seus alunos no tele- usuários que dizem não ter pelo me- sistema cada ato realizado.” Por isso, flamado? As telas mostram cores mo-
monitoramento para a aplicação de nos uma habilidade básica em infor- em dezembro de 2019, o médico de 30 dificadas. Eu tento fazer mais
provas em domicílio,1 a presença do mática, um mundo está se fechando. anos decidiu deixar a sala de emer- perguntas, e assim chego ao diagnós-
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tico. As pessoas vão se acostumar, eu forma de saúde que funciona com in- vel. Há palavras como ‘pedagoteca’, tais – que passeiam em Versalhes. “Os
acho. É uma experiência em escala teligência artificial, lançada pelo novos softwares como o Moodle, que programas que nos dão para traba-
real para a medicina do futuro, por- presidente Emmanuel Macron após o precisa ser acessado por meio do Bi- lhar estão entre o Minitel e o Windo-
que no momento não há escolha”, relatório Villani – a coletar uma gBlueButton, o serviço ‘Renater’. Pa- ws 95”, brinca Florian Petit, professor
diz, inclinando-se sobre sua câmera. quantidade considerável de informa- ra as conferências em pequenos gru- de Filosofia em uma escola de ensino
“Funciona muito bem do ponto de ções sobre os usuários durante o pos, temos de ‘compartilhar nossas médio em Senlis (Oise). “Eles pedem
vista técnico”, admite o doutor Thi- confinamento, “apenas com o objeti- telas’, ‘cancelar a publicação de ví- a utilização de espaços de trabalho
baud. “E, de qualquer forma, é muito vo de facilitar o uso de dados de saú- deos off-line’, ‘enviar PDFs’ aos alu- digitais e aplicativos, como o Iprof
melhor do que os recursos podres dos de para gerenciar a emergência sani- nos... É ilegível”. “Teríamos de fazer [uma interface entre a equipe e a ad-
hospitais públicos de Paris.” tária e melhorar o conhecimento do uma faculdade só para entender os ministração], mas desde os primeiros
De fato, a Doctolib tem pouco em vírus causador da Covid-19”.6 documentos que eles mandam”, iro- dias de confinamento nada funciona-
comum com a dilapidação organiza- niza a professora. va, tudo ficou saturado. Então eu fiz a
da do hospital público que escandali- UMA NOVILÍNGUA INTUITIVA Além de depender da qualidade mesma coisa que muitos outros pro-
zou o médico. O número de telecon- Um pequeno detalhe: a plataforma, dos equipamentos computacionais fessores fizeram: pedi que meus alu-
sultas na França atingiu quase meio que contém arquivos da Assurance dos professores, a educação a distân- nos passassem a usar o aplicativo
milhão durante a última semana de Maladie, faturas hospitalares, causas cia tira as coisas do lugar. Ela trans- Slack [uma plataforma norte-ameri-
março de 2020, segundo dados da As- médicas de morte, dados médico-so- forma aulas em séries que o aluno cana de “comunicação colaborativa”,
surance Maladie, contra 60 mil em to- ciais de pessoas com deficiência e pode parar a qualquer momento e re- cujo uso saltou 350% entre fevereiro e
do o ano de 2019. E a Doctolib – start- uma amostra de faturas de reembol- tomar aleatoriamente. “A ultratecno- março]”, explica. “Sobre a coleta de
-up criada com o apoio do Estado so de organismos de saúde comple- logia nos impede de pensar no essen- dados, é algo que incomoda muito,
francês e da incubadora Agoranov, mentar, está hospedada na “nuvem” cial, ou seja, no conteúdo das aulas e porque ninguém sabe nada sobre is-
que alcançou o nível de “unicórnio” [local de armazenamento de dados nos alunos”, reclama Yasmina, que so. Mas não temos escolha, pois, em
ao ultrapassar 1 bilhão de euros em informacionais] da Microsoft, em- pensa seriamente em jogar fora seu nome de uma continuidade pedagó-
valorização – teve 2,5 milhões de con- presa certificada no final de 2018 pa- jaleco de professora – e seus aplicati- gica muito questionável, pedem que
sultas por vídeo durante o confina- ra fazer a “hospedagem de dados” na vos digitais. “Agora temos de passar a se mantenha um vínculo digital diá-
mento. Financiada pela adesão dos França. Com a Cloud Act [Lei da Nu- vida em frente à tela do computador, rio com nossos alunos. As aulas viram
médicos (129 euros mensais por pro- vem], os governantes e os serviços de é uma catástrofe. Eu tenho um blo- um questionário de múltipla escolha
fissional), a Doctolib tinha 30 mil pro- inteligência dos Estados Unidos po- queio real na minha cabeça. O que no Google Form; os alunos são obri-
fissionais de saúde e 12 milhões de vi- derão acessar as informações conti- está implícito é que estamos diante gados a ter uma conta Google. Nada
sitas no final de 2017. Dois anos depois, das no servidor.7 A Comissão Nacio- de ‘nativos digitais’, millennials que disso está certo.” Embora a internet
em maio de 2019, 80 mil profissionais nal de Informática e Liberdade (Cnil) dominam perfeitamente as ferra- total tenha saltado aos olhos de todos
de saúde geraram 30 milhões de visi- expressou profunda preocupação, mentas, e precisamos alcançá-los!” durante a quarentena, tudo isso já es-
tas de pacientes por mês no site e no em um parecer emitido em 23 de No mundo inteiro, a escola pela tava encaminhado, o que transfor-
.

aplicativo para dispositivos móveis. abril, mas o governo não compartilha internet tem aprofundado as desi- mou esse período de crise em uma
No início de abril, o número de te- de suas posições. Assim é mais fácil gualdades escolares. “Afastados das volta de aquecimento.
leconsultas diárias – serviço lançado entender por que empresários fran- salas de aula pela pandemia de Co- A mesma coisa com o setor ban-
em janeiro de 2019 e cujo caráter pa- ceses e estrangeiros da alta tecnolo- vid-19, cerca de 826 milhões de alu- cário, que passou por uma liberali-
go, com um custo de 79 euros, foi sus- gia passeiam todo ano pelo Palácio nos do ensino básico e estudantes zação digna da década de 1980. No
penso desde o início da crise sanitá- de Versalhes para a cúpula “Choose universitários, metade do total, não final de dezembro de 2019, em Dun-
ria – passou de mil para 100 mil. “E France” [Escolha a França], organi- têm acesso a um computador em seu querque (norte da França), Hugo Bri-
aumenta a cada hora”, declarou à im- zada pelo governo francês. domicílio, e 43% (706 milhões) não cout, arquiteto microempreendedor
prensa Stanislas Niox-Château, co- Serviços públicos, saúde, entrete- têm internet em casa, embora o ensi- (ex-microempreendedor individual),
fundador e presidente da Doctolib, nimento... Raros são os setores que no digital a distância esteja sendo foi chamado pelo banco. Dois meses
que estima que, “quando a epidemia não mergulharam no mundo digital utilizado para garantir a continuida- antes, a instituição havia enviado ao
de coronavírus tiver passado, entre durante a pandemia de Covid-19. Na de da educação na grande maioria jovem de 28 anos um aviso: “Seguin-
15% e 20% das consultas médicas na educação, o confinamento foi parti- dos países”, alertou a Organização do a diretiva europeia sobre serviços
França serão feitas remotamente...”.4 cularmente propício para a experiên- das Nações Unidas para a Educação, de pagamento [DSP2], o nível de se-
Não há dúvida de que a Doctolib aca- cia em larga escala da sociedade sem a Ciência e a Cultura (Unesco) em co- gurança do acesso à sua área de
bará se tornando parte da solução pa- contato. Na França, os professores já municado à imprensa no dia 21 de cliente será reforçado. Para isso, ao
ra o problema dos desertos médicos. fazem a chamada por meio de um abril. Segundo o Instituto Nacional conectar-se à sua área de cliente, use
Também é muito provável que, após o “espaço de trabalho digital”, descrito de Estatística e Estudos Econômicos seu smartphone para confirmar a
confinamento, a conta bancária do pelo Ministério da Educação Nacio- (Insee), 19,2% dos franceses entre 15 operação”. Hugo está entre os cerca
jovem dirigente esteja mais gorda: em nal como um “pacote modular e ex- e 29 anos têm pelo menos uma defi- de 23% dos franceses que, em 2019,
2019, o ex-campeão de tênis “extre- pansível de serviços integrados ou ciência na área (informação, comu- não tinham um “telefone inteligen-
mamente dedicado”5 entrou, em 269º conectados, e interoperáveis”. Há nicação, software ou resolução de te”.8 Então ele não baixou o aplicati-
lugar, na lista da revista Challenges de anos os pais dos alunos podem con- problema). Todo professor tem um vo, não conseguiu se autenticar e le-
maiores fortunas da França. sultar on-line os boletins escolares caso para contar: alunos que “en- vou um sermão.
Quando se trata de dados bancá- ou a agenda de recados de seus filhos. viam todo o conteúdo de um e-mail Quando foi chamado ao banco, a
rios, pessoais e médicos, há muita Mas, com o vírus, as novas obriga- no campo ‘Assunto’”, outros que funcionária elevou o tom. Segundo
coisa em jogo para seguradoras, ções, já integradas, multiplicaram-se “abrem um novo tópico de discussão ela, sem esse objeto remotamente
anunciantes, forças da ordem e sites por dez. Com seu cortejo de novas a cada resposta enviada” ao profes- rastreável e sobretudo sem o aplicati-
comerciais. Os milhões de franceses palavras: uma novilíngua que supos- sor, isso sem falar daqueles que são vo, ele não poderia mais acessar sua
que agora fazem consultas via Doc- tamente deveria ser compreendida prolíficos em likes e outros comentá- conta bancária, nem pelo site. “Além
tolib deixam à disposição uma verda- por todo mundo de forma intuitiva. rios no Facebook, mas que não sabem disso, na agência do CIC onde fui
deira mina de ouro: informações de- “Em março”, explica Yasmina B., “enviar um anexo no e-mail”. A única chamado, só se via isto: a vitrine com
talhadas de saúde (histórico de professora em uma escola de arquite- certeza de Yasmina: “É muito mais smartphones à venda. Meu instinto
consultas, prescrições, número de tura francesa, que prefere permane- trabalho e afeta nossa vida pessoal”. de sobrevivência me diz para não
telefone e endereço de e-mail). Em 21 cer anônima, “a direção da institui- comprar esse aparelho”, confidencia
de abril de 2020, o governo baixou ção onde eu trabalho nos apresentou CONTINUIDADE PEDAGÓGICA Hugo, que, seis meses depois e apesar
um decreto autorizando a Caisse Na- em tempo recorde uma nota explica- QUESTIONÁVEL do confinamento, ainda não havia
tionale d’Assurance Maladie e a tiva sobre as novas ferramentas téc- Os grandes vencedores desse ensaio cruzado a fronteira do telefone inteli-
Health Data Hub – uma nova plata- nicas absolutamente incompreensí- geral: as start-ups e as gigantes digi- gente. No momento, ele se contenta
26 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss

com os extratos postais, mas não po- Ânes. Como o filho, eles não têm um geolocalização utilizado em Israel conversas por meio de objetos conec-
de mais fazer transferências ou com- smartphone nem o “aplicativo” para durante o confinamento e do sistema tados (equipados com microfones e
pras on-line por causa da falta de “fazer uma autenticação forte”. Com de pontos chinês, já em vigor.11 reconhecimento de voz: Siri para
autenticação. um funcionário e movimentos finan- Apple, Alexa para Amazon, ou Google
Ele também não pode desfrutar ceiros regulares, esse entrave traz di- O MARCO DA SEGURANÇA Home) e também fazer transferên-
do prazer de digitar um código de ficuldades. Jacky Bricout cita em par- PARAMÉTRICA cias para nós – após autorização via
acesso dezenas de vezes por dia, nem ticular a “campanha de doação em Embora a DSP2 “não tenha sido rece- SMS. “Amazon, Google e Apple já
de indexar seu nível de estresse com o curso para ajudar vários migrantes bida com bons olhos pelo mundo dos conseguiram a licença DSP2, mas
nível da bateria de seu celular. Segun- que atingiram a maioridade a pagar o serviços financeiros”, ela constitui ainda não a utilizam”, esclarece Mal-
do um estudo da Cass Business aluguel” na região. “um primeiro passo para a abertura donato. Premissa de um mundo onde
School, uma escola de negócios liga- Domiciliado no Crédit Mutuel de dos dados bancários”, escreve em seu o dinheiro estará sempre em movi-
da à City University of London, a per- Bourbourg, a cerca de 10 quilômetros blog Julien Maldonato, especialista mento. E onde a máquina antecipará
cepção de nosso ambiente muda se a de distância, ele explica que obteve a na empresa de auditoria financeira nossos desejos (e nossas compras)...
bateria de nosso celular estiver com seguinte resposta: “‘Você precisa Deloitte, que afirma estar otimista12 Contanto que se tenha internet.
5% ou com 95% de carga.9 “Não sou apenas financiar um smartphone pa- – para os bancos. Como os carros, os Esse ensaio geral para uma socie-
uma pessoa muito conectada”, con- ra sua associação’. Felizmente, o en- caminhões e os aspiradores de pó ro- dade ultraconectada, embora largue
fessa Hugo. “Já passo muito tempo no vio de extratos pelo correio ainda não bóticos, os bancos estão fadados a se milhões de cidadãos à própria sorte
computador trabalhando, me diver- foi cortado”, observa. “A única solu- tornar “autônomos”. A DSP2, elabo- pelo caminho, deixou visivelmente
tindo, enviando e-mails..., o que me ção para ainda ter contato humano é rada em nome da luta contra os hac- encantado Eric Schmidt, ex-dirigente
causa problemas nas costas. Não que- descobrir os intervalos em que nosso kers e as fraudes por meios informa- do Google. Em 10 de maio, no canal
ro andar o tempo todo com a internet consultor está na agência e ir nesse cionais, vai acelerar a digitalização e de televisão CBS News, ele confessou:
no bolso. Eu detesto isso. Acho ina- horário. Estamos fazendo as coisas permitir a mercantilização de um “Os meses de quarentena nos permi-
creditável que possuir um smartpho- como fazíamos quarenta anos atrás: verdadeiro tesouro de guerra: os da- tiram dar um salto de dez anos. A in-
ne agora seja um critério para poder tudo se resolve na agência, direta- dos bancários. Com essa liberaliza- ternet se tornou vital da noite para o
movimentar meu próprio dinheiro!” mente com humanos...” No entanto, ção, aprovada em 2015 e em vigor dia. Ela é essencial para fazer negó-
A introdução da diretiva de paga- o atendimento do Crédit Mutuel de desde 2018, muitas start-ups chama- cios, organizar a vida e vivê-la”. 
mento, a DSP2, que entrou oficial- Bourbourg, como muitas agências da das “agregadores” (Linxo, Bankin
mente em vigor em setembro de 2019, França, também vai fechar este ano. etc.) serão autorizadas a acessar as *Julien Brygo  é jornalista.
tem causado tanta ansiedade nos co- “Aproveite enquanto ainda há atendi- contas bancárias de seus clientes pa-
merciantes on-line, pequenos e gran- mento sem hora marcada”, disse o ra sugerir melhorias. 1   C f. Nina Valette, “Rennes: les étudiants vont
des, e em seus clientes que não pos- funcionário do banco antes do confi- No jargão bancário, isso se chama être télé-surveillés pendant les examens de fin
d’année” [Rennes: estudantes farão os exames
suem um telefone inteligente que o namento. Entre 2009 e 2016, 14,9% “segurança paramétrica”, como ex- finais sob telemonitoramento], France Bleu, 5
item “autenticação forte”, com a po- das agências bancárias desaparece- plica Maldonato: “Um cliente costu- maio 2020. Disponível em: www.francebleu.fr.
.

tencial obrigação definitiva de todos ram na França, de acordo com a Fe- ma comprar alimentos de baixa qua- 2   C f. Pauline Damour, “Guichets, tarifs: les usa-
gers de la SNCF au bord de la crise de nerf”
terem um smartphone, foi adiada pa- deração Francesa de Bancos, confor- lidade (cheios de transgênicos), com [Bilheterias, tarifas: usuários da SNCF à beira
ra o final de 2020 pela Autoridade me observa o jornal Le Figaro (15 mar. seu cartão de crédito, na mercearia do de um ataque de nervos], Challenges, Paris, 6
Bancária Europeia. Embora o prazo 2019). A agência do CIC onde Bricout bairro. O agregador então sugere que jul. 2019.
3   Ler Julien Brygo: “Peut-on encore vivre sans
tenha sido ampliado em um ano, o foi chamado não tem mais atendi- ele faça suas compras junto a lojas Internet?” [Ainda podemos viver sem inter-
horizonte é o mesmo: tudo terá de ser mento aberto ao público desde o ano parceiras que fornecem produtos or- net?], Le Monde Diplomatique, ago. 2019.
feito via smartphone – a menos que passado, e os clientes não podem en- gânicos. Outro vê que sua conta de 4   “ La téléconsultation médicale en plein essor”
[Teleconsulta médica em plena expansão],
os bancos decidam estabelecer um trar se não tiverem hora marcada. Se- combustível só aumenta, então a star- Reuters, 27 mar. 2020.
sistema de autenticação forte alter- rá a última etapa antes do fechamen- t-up sugere a compra de um carro 5   C f. Fabien Trécourt, “Stanislas Niox-Château:
nativo, o que não parece estar entre to definitivo? mais econômico”. E assim por diante. du tennis de haut niveau à Doctolib” [Stanis-
las Niox-Château: do tênis de alto nível à Doc-
as possibilidades. “Todas essas coisas que são apli- “Esses dados bancários permitirão tolib], Capital, Paris, 10 jul. 2018. Disponível
Quando está em sua fazenda fa- cadas de maneira autoritária – tele- detectar oportunidades de vendas em: www.capital.fr.
miliar em Brouckerque (norte do medicina, declarações de impostos adicionais. Vejamos o exemplo dos se- 6   C f. Jérôme Hourdeaux, “La Cnil s’inquiète d’un
transfert possible de nos données de santé
país), Hugo fica entre os 18% de fran- pela internet, educação a distância, guros”, propõe o especialista, citando aux États-Unis” [Cnil está preocupada com
ceses que vivem em uma “zona pou- certificados por QR Code [um picto- dois casos concretos: “Paul dirige seu uma possível transferência de nossos dados
co povoada”, na ponta da rede telefô- grama que pode ser lido por disposi- carro e enche o tanque três vezes por de saúde para os Estados Unidos], Media-
part, Paris, 8 maio 2020. Disponível em:
nica, sem a possibilidade de ter tivos móveis] – permitem que as au- mês. Isso permite que a seguradora o www.mediapart.fr.
internet de alta velocidade – o que toridades saibam tudo sobre nós: considere um ‘motorista por diária’ e 7   C f. Alice Vitard, “Malgré les inquiétudes, le
equivale a 22.500 comunidades ru- trabalho, renda, assistência social, ofereça um treinamento preventivo Health Data Hub est officiellement lancé”
[Apesar das preocupações, Health Data Hub
rais e a 63% do território da França.10 conta bancária, localização geográfi- de direção defensiva”. Ou ainda: foi oficialmente lançado], L’Usine Digitale, An-
A única solução: pagar 30 euros por ca. Não teremos mais acesso a nada “Laure quer ir para a Tailândia. Ela tony, 2 dez. 2019. Disponível em: www.usine-
mês por um pacote 4G, que transfor- sem smartphone. É uma verdadeira comprou uma passagem de avião e -digitale.fr.
8   “Baromètre du numérique 2019” [Barômetro
ma a rede móvel em banda larga para visão do inferno”, lança Jacky, que pagou sua acomodação pela internet. digital 2019], Centre de Recherche pour
o computador. Do outro lado do pá- também pensa no checkup de saúde Isso permite que a seguradora a iden- l’Étude et l’Observation des Conditions de Vie
tio, um casarão rural é onde vivem oferecido por seu fundo de previdên- tifique como uma ‘futura viajante’ e (Credoc), Paris.
9   Benjamin Ferran, “L’angoisse de la batterie
Jacky e Annie, seus pais, que trans- cia social em 2019. “Para poder fazer ofereça uma atualização de cobertura faible” [A angústia da bateria baixa], Le Figa-
formaram seu lar em uma proprieda- o checkup, é necessário se inscrever de seguro no exterior, propondo um ro, Paris, 6 out. 2019.
de dedicada à educação ambiental. pelo Doctolib – os serviços públicos seguro adaptado à sua viagem”. 10  “ La couverture des zones peu denses” [A co-
bertura de áreas pouco povoadas], Autorité
“Para eles, é pior ainda”, diz Hugo, usam esses aplicativos para econo- “Mais de 1 milhão de franceses já de Régulation des Communications Électroni-
“Eles estão completamente sem aces- mizar custos de atendimento e ter- passaram o marco da segurança pa- ques et des Postes (Arcep), 21 abr. 2020.
so à conta bancária.” ceirizar tudo o que podem.” Ele faz ramétrica”, lembra o especialista fi- Disponível em: www.arcep.fr.
11  Ler Félix Tréguer, “Urgence sanitaire, réponse
Como requer o confinamento, fa- uma pausa, depois lança: “Nós pas- nanceiro. Antes, talvez, de “concor- sécuritaire” [Emergência sanitária, resposta
lamos com eles pelo telefone. Os dois samos da diversão para as algemas. dar com o pagamento”..., a terceira securitária], Le Monde Diplomatique, maio
sexagenários habilidosos com as Nossa geração usufruiu de coisas parte do DSP2, que é a grande vanta- 2020.
12  Julien Maldonato, Marine Bauchère, Elsa Mal-
plantas começaram o ano diante do boas da internet (filmes, blogs, com- gem do Gafam (Google, Apple, Face- lein-Gerin e Chloé Dreher, “Ouverture des
fato consumado: não podem mais partilhamento de conhecimento), book, Amazon, Microsoft). Trata-se données: une bonne nouvelle pour les ban-
acessar a conta que possuem no Cré- mas o que será da próxima?”, ques- do self driving finance [financiamen- ques, assureurs et leurs clients!” [Abertura de
dados: boa notícia para bancos, seguradoras
dit Mutuel para sua associação de tiona o senhor, falando ao mesmo to autônomo], que permitirá aos gi- e seus clientes!], Blog Deloitte, 24 maio 2019.
educação ambiental, La Ferme des tempo do sistema de vigilância por gantes da internet acessar nossas Disponível em: www.blog.deloitte.fr.
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VAI Corinthianssssss
DEPOIS DA GUERRA DE PREÇOS ENTRE OS PAÍSES PRODUTORES

Petróleo, acordos

© Delfino Barboza/Unsplash
e desacordos
Há tempos os Estados Unidos delegaram a Riad o cuidado
de garantir um preço suficientemente elevado para o barril
de petróleo, em troca de proteção militar. Porém, ao obrigar
Washington a negociar com outros produtores, a atual
queda de preços evidencia a erosão desse arranjo, sem
que saibamos se ele será substituído por uma concorrência
sem regras ou por outra forma de regulação

POR SADEK BOUSSENA*

Países ricos já reduziram o consumo de petróleo e isso tende a se acelerar

O
dia 21 de abril de 2020 certa- APAGAMENTO DA confirmava uma mudança da relação sem de aumentar a produção, apro-
mente entrará na história co- LIDERANÇA DA OPEP de forças na oferta de petróleo bruto. veitando os baixos custos de
mo aquele em que o “ouro ne- Após lançar ameaças de sanções con- Na época, os países-membros con- produção.
gro” custou menos do que água tra a Arábia Saudita, Donald Trump trolavam 60% do mercado. Ao fixa- Apesar das advertências rituais,
de chuva. Nessa data, a Bolsa de com- coordenou em modo de emergência rem unilateralmente o preço de seu os países ocidentais continuaram re-
modities de Nova York fechou nego- os contatos com esse turbulento par- petróleo – tarifa com base na qual são lativamente conciliadores quanto à
ciando um barril de West Texas In- ceiro e com a Rússia, um inimigo es- calculados royalties e impostos, até política da Opep, em especial no que
termediate (WTI) ao preço negativo tratégico. No dia 12 de abril, as dis- então controlada pelas grandes em- concerne à exploração de petróleo
de US$ –37,63 no mercado futuro. cussões nesse grupo informal ad hoc, presas ocidentais –, eles concluíram a mais caro, como o de águas profun-
.

Metade da humanidade estava con- uma espécie de “triunvirato” do pe- conquista de sua soberania fiscal. das do Brasil, o petróleo pesado ca-
finada, por causa da pandemia de tróleo, chegaram a um acordo para a O aspecto mais importante para nadense ou o petróleo não conven-
Covid-19. A demanda por petróleo redução – também histórica – no os países ocidentais, porém, está no cional dos Estados Unidos. Assim,
chegou ao nível mais baixo de todos bombeamento de 9,7 milhões de bar- uso do petróleo como arma política nenhum dos diversos projetos de lei
os tempos, com oleodutos e petrolei- ris por dia, quase 10% da produção pelos países árabes. Atingidos por um anti-Opep examinados pelo Con-
ros transbordando pela quase satu- mundial. Chamado de Big Oil Deal embargo petrolífero em represália gresso dos Estados Unidos foi apro-
ração das capacidades de armazena- [Grande Acordo do Petróleo] por por seu apoio a Israel na guerra de ou- vado. Quando foi criada a Organiza-
mento. Os agentes financeiros, que Trump (em tuíte de 12 de abril), o tubro de 1973, os Estados Unidos, que ção Mundial do Comércio (OMC), em
especulam com o preço, viram-se acordo foi aprovado no dia seguinte precisam importar petróleo, passa- 1995, os grandes países não insisti-
com um mar de petróleo bruto no co- pelo grupo de países ricos do G20, ram a tentar reduzir sua dependência ram em incluir o petróleo entre suas
lo e tentaram desesperadamente se que inclui potências importadoras de em relação a uma região que conside- atribuições. Além disso, os windfall
livrar dele – inclusive pagando para petróleo, como a China, a Índia e ravam insuficientemente controlada profits [lucros que caem do céu] dos
que alguém o comprasse. membros da União Europeia, geral- nos planos geopolítico e militar.2 países exportadores, receitas suple-
Esse evento inédito não é menos mente interessados em preços bai- Após 1973, a segurança do abasteci- mentares advindas do aumento dos
surpreendente do que a sequência xos. Quem poderia imaginar, algu- mento de petróleo tornou-se uma preços, foram de toda forma reinjeta-
que o precedeu. Tudo começou com o mas semanas atrás, todos esses preocupação fundamental dos países dos nas economias dos países da
colapso da demanda de petróleo, um acontecimentos? Que tendências tais da Organização do Tratado do Atlân- OCDE sob a forma de importações ou
choque incomum em um mercado no eventos revelam e que mudanças na tico Norte (Otan). Em 1974, por inicia- depósitos. Os Estados Unidos conse-
qual as turbulências geralmente vêm regulamentação global do petróleo tiva dos Estados Unidos, os países da guiram até convencer a Arábia Saudi-
do lado da oferta. Como se não bas- eles anunciam? Organização para a Cooperação e o ta e as outras monarquias do Golfo a
tasse, seguiu-se uma guerra de pre- A primeira constatação que pode- Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotar um sistema de “reciclagem de
ços iniciada, em plena pandemia, pe- mos fazer: a crise confirma que está criaram a Agência Internacional de petrodólares”, que fortaleceu ainda
la Arábia Saudita. No dia 6 de março, em curso um apagamento da lideran- Energia (AIE), a fim de harmonizar mais o papel do dólar nas transações
o país anunciou que baixaria os pre- ça da Organização dos Países Expor- suas posições e trabalhar para a cons- petrolíferas.3
ços e que planejava elevar as exporta- tadores de Petróleo (Opep). Embora a trução de estoques estratégicos. Mais A Opep, porém, não se deixou en-
ções em abril. Os Estados Unidos fo- Arábia Saudita não tenha se preocu- discretamente, o país incentivou ou- ganar pela estratégia dos países da
ram pegos de surpresa pelo que pado em consultar os treze outros tras medidas, sendo a mais importan- AIE. Sua política de preços altos pare-
interpretaram como uma agressão à membros da entidade antes de lançar te o estímulo à produção fora da cia uma correção legítima do preço
sua indústria petrolífera, vinda, além seu ataque aos preços, nenhum deles Opep, com o objetivo de diversificar “vil” longamente imposto pelo “car-
do mais, de um aliado estratégico sequer reagiu publicamente a essa as fontes de suprimento. Reservas que tel das sete irmãs”, as grandes empre-
que conta com sua proteção militar.1 infeliz iniciativa. Durante muito não eram rentáveis antes de 1973 sas anglo-saxônicas que dominaram
A lei antitruste norte-americana não tempo, a entidade foi um agente in- (Mar do Norte, Golfo do México, Gol- a indústria do petróleo até a década
permite, em princípio, que o governo contornável do mercado petrolífero. fo da Guiné) passaram a ser explora- de 1970 (e que originaram a BP, a
federal intervenha formalmente no Criada em 1960, a Opep é responsável das. Sete dólares por barril a mais Chevron e a Exxon Mobil). Em sua
mercado. No entanto, dada a gravida- pelo primeiro choque do petróleo, bastariam para valorizá-las, mas os primeira cúpula de chefes de Estado
de da situação, a alguns meses das em 1973 – quando os preços saltaram países ocidentais se acomodaram à em Argel, em 1975, a Opep enfatizou
eleições, o presidente dos Estados de US$ 3 para US$ 11 o barril. A espe- política de manutenção de preços ele- que o petróleo devia ser remunerado
Unidos envolveu-se pessoalmente na tacular decisão de reduzir a produ- vados pela Opep. Sob uma condição: pelo “preço justo”, como um “recurso
resolução da crise. ção, causando o aumento do preço, que os países-membros se abstives- escasso e não renovável”. Na época, o
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clima era de preservação desse maná pela Opep+ (ampliada com mais dez por sanções contra a Rússia e a Arábia dades russas se fingissem satisfeitas
em proveito das gerações futuras. produtores, entre eles Rússia e Méxi- Saudita, tentando forçá-los a reduzir com um barril a US$ 42, o país não
Portanto, foi de maneira muito cons- co), a produção total dos Estados a produção.6 Em 16 de março, treze pode resistir por muito tempo a uma
ciente que a organização optou por Unidos passou em dez anos de 8% senadores republicanos enviaram guerra de preços. Isso explica a revi-
defender os preços em vez de aumen- para 14% do mercado mundial.5 De- uma carta ao príncipe herdeiro saudi- ravolta da Rússia, que acabou con-
tar sua participação no mercado. ve-se notar que essa conquista do ta, lembrando-o da “dependência es- cordando em reduzir sua produção
Até hoje prevalecia esse modus vi- mercado foi reforçada por uma con- tratégica” de seu reino em relação aos em 2,5 milhões de barris ao dia, uma
vendi. E assim, em quarenta anos, en- juntura geopolítica oportuna, que Estados Unidos.7 E o mais importan- amputação ainda maior do que aque-
quanto a demanda mundial cresceu impedia ou atrapalhava as exporta- te: no dia 9 de maio, o governo dos Es- la proposta pela Arábia Saudita em 4
40%, a Opep não aumentou sua pro- ções de grandes países produtores, tados Unidos anunciou a retirada da de março. Em outras palavras, a Rús-
dução total (entre 30 milhões e 33 mi- como Irã, Venezuela, Líbia, Iraque (e Arábia Saudita de suas baterias de sia pagou caro pelo Big Oil Deal. Pela
lhões de barris por dia). A Arábia Sau- até a Rússia), em razão dos embargos mísseis Patriot. Entendendo que sua primeira vez na história da Opep+,
dita já produzia 10 milhões de barris dos Estados Unidos contra eles... guerra-relâmpago começava a pare- seus esforços são equivalentes àque-
por dia em 1979, quase o mesmo nível No limite, a Arábia Saudita pode cer uma debandada, a Arábia Saudita les realizados pela Arábia Saudita. É o
de hoje, embora disponha das reser- ficar satisfeita com um ponto: ela tenta desde 11 de maio impressionar preço para congelar sua participação
vas que impõem os menores custos obrigou as outras potências produto- o mercado, anunciando, unilateral- de mercado no futuro? Para forçar os
de exploração. O país abandonou seu ras, incluindo os Estados Unidos, a mente, a redução de 1 milhão de bar- Estados Unidos a compartilhar o
objetivo oficial do início dos anos compor com a Opep+. Mas valeu a ris de sua produção, o que não causou ônus da manutenção de preços eleva-
1980 de aumentar a capacidade de pena? Ao agir sozinho, o reino per- grande efeito no preço. dos? Para suspender as sanções
produção para 20 milhões e, depois, turbou suas parcerias. Essa ação in- No entanto, para além dessas norte-americanas?
para 15 milhões de barris por dia. As tempestiva poderia revelar-se proble- pressões bilaterais, as autoridades A súbita mudança de rumo da
monarquias petrolíferas do Golfo tor- mática para o futuro. A Arábia dos Estados Unidos foram forçadas a Rússia é mais um exemplo da hesita-
naram-se extremamente ricas e cor- Saudita é hoje o líder de fato da orga- apagar o incêndio, envolvendo-se di- ção exibida pelos grandes produtores
tejadas. Ninguém falava em “fim do nização. Sua palavra representa os 33 retamente e sem subterfúgios em diante da alternativa estratégica en-
petróleo” ou em sua possível obsoles- milhões de barris produzidos ao dia uma negociação internacional para tre livre-mercado e regulamentação.
cência – todos supunham que haveria por todos os países-membros, embo- influenciar a cotação do petróleo. Is- Sauditas e russos foram tentados pela
tempo suficiente para vendê-lo a ra sua produção nacional chegue a so constitui um grande precedente: o concorrência desenfreada, mas re-
bons preços, e ninguém via vantagem apenas 10 milhões. Essa alavanca, choque dessa crise do petróleo terá cuaram diante do desastre anuncia-
em lutar por fatias de mercado. que alçou o país ao lugar de potência, revelado que também os Estados Uni- do. O episódio dos preços negativos
Agora – e esta é a segunda tendên- abriu-lhe as portas para o G20. Aban- dos precisam de uma regulamenta- deu uma amostra do que seria um
cia que se expressa por meio da crise donar a política de defesa de preços ção para esse produto, justamente mundo sem a rede de segurança da
atual – o mercado de petróleo está para negociar sem mandato em um eles, que há anos agem por conta Opep. Iniciado por Washington, o Big
em um equilíbrio instável perma- triunvirato informal de petróleo aca- própria. Oil Deal é um passo tímido rumo a
.

nente, cujo episódio mais recente é baria prejudicando a unidade da Quanto à Rússia, além de as san- outro tipo de regulamentação. Se até
sua expressão mais exacerbada. Os Opep. As dificuldades enfrentadas ções sobre o petróleo e o gás alimen- o início de 2021 o acordo conseguir
grandes produtores voltaram a se co- pelo Iraque, pela Venezuela e pelo Irã tarem um forte ressentimento contra restaurar um equilíbrio satisfatório
locar questões estratégicas funda- não devem obscurecer o fato de que os Estados Unidos – embargo às tec- em torno de US$ 50 por barril, esse
mentais. É mais interessante defen- esses países também são pesos-pesa- nologias avançadas relativas ao óleo procedimento poderá constituir a ba-
der um preço elevado ou aumentar a dos que podem causar problemas. Is- de xisto, sanções sobre empresas se para um mecanismo mais comple-
produção? É conveniente partilhar so sem falar dos outros membros, que participantes da construção do gaso- to. Mas isso pressupõe que, conside-
um mínimo de regulamentação in- não veriam mais interesse em parti- duto North Stream 2, sanções finan- rando as demandas da Arábia Saudita
ternacional, ou seria melhor retornar cipar de uma organização que não ceiras contra os bancos que finan- e da Rússia, os Estados Unidos dei-
à concorrência? E isso a começar pela lhes traga nenhuma vantagem. ciam a exploração das reservas da xem de capturar sozinhos quase todo
Arábia Saudita, pelos Estados Unidos O governo dos Estados Unidos, península de Yamal –, o país teme o aumento da demanda por petróleo,
e pela Rússia – os principais protago- por sua vez, visivelmente pego de que o óleo de xisto norte-americano comprometendo-se a contribuir mais
nistas da atual crise. surpresa, sinalizou estar determina- chegue ao mercado europeu, estraté- ativamente para a modulação da
do a reagir diante do desastre anun- gico para a Rússia. É por isso que os oferta. Em compensação, se o acordo
RIAD MIRAVA MAIS LONGE ciado. Segundo a consultoria Rystad Estados Unidos suspeitam que os não for capaz de elevar os preços a
Essa não é a primeira guerra de pre- Energy, se os preços permanecerem russos tenham tentado quebrar os um nível satisfatório, os interesses di-
ços, mas, ao contrário dos episódios em US$ 20 o barril, a produção diária produtores norte-americanos, sabo- vergentes desses participantes volta-
de 1986 e de 2014, a “Blitzkrieg” lança- de petróleo norte-americana deverá tando a iniciativa saudita de reduzir a riam a se evidenciar, abrindo o risco
da pela Arábia Saudita em plena pan- cair em 2 milhões de barris em 2020. produção da Opep+. Mas isso é dar de uma guerra de preços latente.
demia intrigou muitos observadores. Muitas empresas podem interromper crédito demais à Rússia. A recusa Ao lado dos grandes produtores, a
Alguns viram nela uma reação des- as perfurações, o que traria desem- russa pode expressar simplesmente o China constitui a última variável na
peitada do impulsivo príncipe her- prego e falências. É compreensível o desejo, por parte do país, de não se equação do petróleo. As consequên-
deiro Mohammad bin Salman (MBS) nervosismo de Trump, tão apegado à sentir mais sistematicamente preso cias da epidemia deram-lhe a oportu-
após o fracasso de suas negociações independência e ao domínio petrolí- pela aliança da Opep+. Sem ser indi- nidade de consolidar um status que o
com a Rússia para uma redução con- fero dos Estados Unidos. Continuar ferente aos preços (que lhe garantem país levou muito tempo para adqui-
junta da produção.4 Mas o reino sau- sendo o maior produtor do mundo, receitas fiscais e divisas), o governo rir. Nos últimos anos, a China teve
dita não poderia ignorar o impacto exportar mais do que importar, man- russo sempre mostrou preferência um papel muito ativo no setor de pe-
desastroso de sua iniciativa sobre os ter a exclusividade do dólar no co- pelos volumes, especialmente por- tróleo e gás. O petróleo é, assim como
produtores de petróleo norte-ameri- mércio de petróleo e a primazia mili- que está sob a pressão de suas com- o setor militar e o dólar, um de seus
canos. Difícil acreditar, nessas condi- tar no Oriente Médio são condições panhias petrolíferas, como a podero- pontos fracos na rivalidade com os
ções, em falta de habilidade. O país indispensáveis para esse domínio sa Rosneft, que sempre se opôs às Estados Unidos, constituindo uma de
certamente mirava mais longe: com a petrolífero, que garante ao país uma cotas do sistema Opep+. suas prioridades internacionais. As
ameaça de um possível retorno à vantagem tanto no plano econômico companhias petrolíferas chinesas es-
concorrência, forçar os Estados Uni- como no nível geoestratégico. RÚSSIA PAGOU CARO tão entre as maiores e mais ativas fo-
dos a negociar um ponto de equilí- Em um primeiro momento, após a PELO BIG OIL DEAL ra de suas fronteiras. A China Natio-
brio mais compatível com os interes- decisão tomada pelos sauditas no dia Em março, o presidente russo, Vladi- nal Petroleum Corporation, por
ses sauditas. 6 de março, o governo Trump aumen- mir Putin, provavelmente seguiu exemplo, possui 20% da Yamal LNG,
De fato, à sombra dos preços de- tou a pressão. Os produtores de xisto seus conselhos, e depois mudou de que opera uma enorme reserva situa-
fendidos pela Opep e, a partir de 2016, lançaram uma campanha de lobby ideia. Isso porque, embora as autori- da no Golfo de Ob, na Rússia. A China
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National Offshore Oil Corporation mesmo tempo, aumentou seu valor Todas essas mudanças devem im- Essa tendência de queda da cota-
(CNOOC) tem projetos, junto com a como mercado consumidor para os pactar a variável mais visível do mer- ção do petróleo desagrada aos defen-
Total, de exploração de reservas na países exportadores, como os do Gol- cado petrolífero, a saber, o preço do sores do clima. Eles veem o petróleo
Nigéria. Ao contrário da União Euro- fo – com os quais desenvolve uma barril. Esse preço, como o de outras barato como um risco para a rentabi-
peia, cuja demanda está caindo, a cooperação bilateral – ou aqueles mercadorias, contém uma renda. A lidade dos programas de substituição
China tem visto a sua aumentar em que, a exemplo da Rússia, da Vene- do petróleo, particularmente subs- energética. No futuro, esse grupo po-
uma inédita taxa de 7% a 10% ao ano. zuela e do Irã, enfrentam um embar- tancial, é composta por três cama- de aumentar a pressão sobre os go-
O país se tornou, assim, o maior con- go unilateral dos Estados Unidos. das. A primeira, a mais normal, justi- vernos a fim de atenuar a queda nos
sumidor do mundo, concentrando Hoje, todos os grandes produtores fica-se pelas diferenças de custo por preços, aumentando os impostos ou
13,5% da demanda. Para dar uma de petróleo e gás, incluindo os Esta- razões geológicas. Essa parte perdu- o preço do carbono, e de defender a
ideia de sua crescente influência no dos Unidos, disputam o mercado in- rará, seja qual for o regime petrolífe- rentabilidade dos programas de
mercado, basta destacar a importân- terno chinês. A China já começou a ro que está por vir. A segunda está re- substituição energética.
cia obtida pelo indicador da evolução usar essa posição para fortalecer sua lacionada ao fato de que se trata de O futuro dependerá do resultado
dessas importações semanais como capacidade de negociar preços de um produto “estratégico”, difícil de dessas pressões sobre os preços. Mas
referência para operadores e analis- compra, como já faz em relação ao substituir como combustível para o a crise mostrou que a concorrência
tas nos mercados internacionais, e gás natural liquefeito e sobretudo ao transporte. Essa parte tende a se re- pode assumir contornos diversos.
não apenas na Ásia. De fato, sua de- carvão, que tem nos preços de impor- duzir com o crescimento do papel de Parece que seus protagonistas enten-
pendência do petróleo, até o momen- tação do país a principal referência outras fontes de energia. Por fim, a deram que é melhor enquadrá-la em
to entendida como uma “fraqueza”, para o mercado mundial.8 terceira camada, de longe a maior um mínimo de regulamentação, em
poderia revelar-se um trunfo para Muito dependente do petróleo das três, é a que se sedimentou após vez de entregá-la à concorrência sem
que a China ganhe também, como re- importado, a China está claramente 1973, quando a Opep começou a fi- regras. 
presentante dos consumidores, o sta- se projetando na transição ecológica, xar preços muito distantes de seus
tus de ator decisivo para o equilíbrio ao contrário do que se passa com os custos de produção. *Sadek Boussena  foi ministro de Energia
do jogo do petróleo. membros do triunvirato da oferta. O É essa terceira camada que será da Argélia entre 1988 e 1991, presidente da
Já faz anos que a China tenta ga- país é o principal investidor do mun- gradualmente corroída com o desa- Organização dos Países Exportadores de
rantir a segurança de seu abasteci- do em energia renovável, possuindo parecimento da Opep e a exacerba- Petróleo (Opep) entre 1989 e 1991 e pro-
mento petrolífero. Por meio do proje- mais de 50% dos painéis solares e das ção da concorrência entre produto- fessor associado da Universidade de Gre-
to Nova Rota da Seda, ela estreitou os turbinas eólicas do globo, além de fa- res, em particular sobre a demanda noble (França) entre 1992 e 2013.
laços com os principais produtores bricar 90% dos ônibus elétricos em futura. Para conquistá-la, os produ-
de petróleo e gás, como a Rússia e os serviço. Sua frota representa metade tores devem investir na exploração e 1   C f. “Pétrole: quand l’Arabie saoudite agace
países da Ásia central. Principal des- dos veículos elétricos que circulam na produção. Assim se colocará a di- son allié américain” [Petróleo: quando a Ará-
bia Saudita irrita seu aliado da América], Le
tino dos grandes produtores do Golfo no mundo, criando um nicho ficuldade, para os produtores de pe- Temps, Lausanne, 22 abr. 2020.
Pérsico, ela também tem estabeleci- privilegiado. tróleos cujo custo de produção é mais 2   Ler Michael G. Renner, “Une longue guerre
.

do diversos grandes acordos bilate- elevado, de aumentar sua capacidade contre l’OPEP” [Uma longa guerra contra a
Opep], Le Monde Diplomatique, nov. 1988.
rais com eles, a ponto de irritar os Es- IMPACTOS NO PREÇO DO BARRIL de produção diante dos produtores 3   Ler Georges Corm, “L’OPEP face à la confis-
tados Unidos, que tratam a região Os países ricos da OCDE já reduzi- da Opep que decidirem não mais de- cation de la nouvelle rente pétrolière” [A Opep
como se fosse seu domínio. A diversi- ram o consumo de petróleo. Com a fender seus preços. Se eles também diante do confisco da nova renda do petró-
leo], Le Monde Diplomatique, set. 1975.
ficação das fontes de abastecimento emergência climática, esse movi- seguissem os russos e os norte-ame- 4   C f. Middle East Economist Survey, v.63, n.10,
da China se prolonga também para a mento vai se acelerar. A União Euro- ricanos na concorrência pelos volu- Nicósia, 6 mar. 2020.
África e a América Latina, embora o peia tem a meta de neutralizar o car- mes futuros, então se iniciaria uma 5   B P Statistical Review of World Energy, Lon-
dres, 2019. Todos os números sobre produ-
país às vezes esbarre nos limites de bono até 2050, com as energias era na qual os preços do petróleo ten- ção e consumo de petróleo mencionados no
sua ação, como ocorreu na Líbia, no renováveis ocupando o primeiro lu- deriam a se alinhar com os custos artigo são retirados dessa fonte.
Sudão e especialmente na Venezuela, gar – com mais de 50% de participa- mais baratos, empurrando-os para 6   Pétrostratégies [Petroestratégias], Paris, 13
mar. 2020.
que abriga as maiores reservas do ção – na matriz energética (que ex- um nível “normal” da ordem de US$ 7   “Trump told Saudi: Cut oil supply or lose U.S.
mundo. Em plena crise do coronaví- pressa a repartição das diferentes 20 a US$ 25, em vez de – como ocorre military support” [Trump para a Arábia Saudi-
rus, enquanto os Estados Unidos, en- fontes de energia primária necessá- hoje – ficarem no nível dos custos ta: corte a produção de petróleo ou perca o
apoio militar dos Estados Unidos], Reuters,
cabeçados por seu presidente, amea- rias ao abastecimento). Em toda par- mais elevados, como o petróleo de 30 abr. 2020.
çavam taxar o petróleo saudita te, em graus variados, programas de xisto norte-americano ou o das areias 8   
C f. Jean-Marie Martin-Amouroux, “L’énergie
importado, a China multiplicava sua substituição de combustíveis fósseis betuminosas de Alberta, que exigem en Chine: le tournant de Xi Jinping” [Energia
na China: a virada de Xi Jinping], Encyclopé-
segurança para consolidar contratos, por eletricidade preparam a transi- um limite de US$ 40 a US$ 50 para se- die de l’Énergie, Grenoble, 7 jul. 2019. Dispo-
aproveitando os preços baixos. Ao ção ecológica. rem rentáveis. nível em: www.encyclopedie-energie.org.
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UMA DOUTRINA QUE CONDUZ AO SUBDESENVOLVIMENTO

Na África, a promessa de
UM TANQUE DE RECURSOS
INEXPLORADOS
No fim dos anos 2000, após duas dé-
cadas de austeridade, o crescimento

“economia emergente” não


econômico estava de novo em moda
no contexto de uma estabilidade polí-
tica maior e de uma alta significativa
nos preços dos produtos de exporta-

passa de uma miragem


ção do continente, sobretudo maté-
rias-primas. A rápida expansão das
relações comerciais e financeiras en-
tre os países africanos e a China havia
contribuído para modificar a imagem
Agitado sem parar para saudar performances promissoras de diversas economias do continente. Este aparecia de súbito
africanas, o conceito de “emergente” oferece um rótulo aos países que se dobram como um viveiro de recursos “inex-
plorados” e como um mercado vasto,
aos dogmas neoliberais e às exigências do FMI e do Banco Mundial. Em geral, ele promissor, para as empresas estran-
cria ilusões de óptica de um crescimento que favorece apenas uma pequena minoria geiras ávidas por fornecer bens, servi-
ços e infraestruturas a uma popula-
ção jovem, que dobrava a cada 25 ou
POR NDONGO SAMBA SYLLA*
trinta anos. A percepção de uma
“África emergente” era insuflada pela
elevação das fortunas locais: entre
2008 e 2012, o número de africanos
ta socialista Paul Lafargue. 3 Na era capazes de investir pelo menos US$ 1
© Jean Enrich/Pixabay

neoliberal, não há necessidade de milhão passou de 95 mil para 140


criar palavras para transformar a mil.8 Em âmbito mundial, após a crise
realidade, pois isso exige esforço e financeira de 2007-2008, a aplicação
imaginação. É mais proveitoso in- pelos bancos centrais dos países do
vestir na polissemia: risco mínimo e Norte de políticas de taxas de juros
lucro máximo! A emergência se tor- nulas e de flexibilização quantitativa
nou o destino final para países cuja (quantitative easing) gerou uma
historicidade se resumiria a partir de abundância de capitais para os “mer-
.

então às antecipações de crescimen- cados emergentes”, agora convidati-


to e rentabilidade da finança global. vos em razão dos rendimentos eleva-
Apanhada de 1980 a 2000 no torno do dos que ofereciam. Inúmeros países
ajuste estrutural decretado pelo FMI africanos morderam a isca por meio
e pelo Banco Mundial, a África ficara da emissão de eurobonds – obrigações
até então excluída da categoria dos nomeadas em moeda estrangeira.
“mercados emergentes”. A narrativa Assim, em um relatório ao Senado
dominante girava em torno do mito francês com o título de L’Afrique est
segundo o qual, com exceção da Áfri- notre avenir,9 podia-se ler: “Hoje, é a
ca do Sul, incluída na sigla Brics (Bra- uma África plenamente integrada à
sil, Rússia, Índia, China e África do globalização que devemos nos diri-
Sul), e, até certo ponto, do Magreb e gir”. Os países francófonos ouviram
do Egito, ela estava “marginalizada” essa mensagem lisonjeira e tentaram
pelo trem de alta velocidade da glo- se mostrar atraentes. Dos catorze Es-
balização. As causas dessa “margi- tados que utilizavam o franco CFA,
nalização” no comércio mundial pu- somente a República Centro-Africa-
lulavam nos trabalhos acadêmicos e na, às voltas com uma instabilidade
na imprensa dominante.4 Ironia da política crônica, perdeu a ocasião de
Senegal ainda não saiu da categoria dos “países menos desenvolvidos” história: as mesmas pessoas que dis- adotar um programa econômico am-
seminavam esse discurso, destinado bicioso. Caso emblemático, o Senegal

E
ra uma vez a ideia de emergên- a África pós-colonial para o comu- a justificar um maior liberalismo nos instrui sobre os problemas da
cia do continente africano. Ela nismo. Teria sido desrespeitoso, en- econômico, comercial e financeiro, “emergência”.
surgiu, sem dúvida, em 1957, em tão, lembrar que se “emerge” de algu- puseram-se a elogiar a África emer- Em 2014, o Plano Senegal Emer-
um relatório de Richard Nixon ma coisa, não do vazio. Duas décadas gente (Africa rising) o tempo todo, gente (PSE) fixou o horizonte em
intitulado The Emergency of Africa [A depois, quando os meios financeiros embora a especialização econômica 2035. Sua orientação neoliberal
emergência da África].1 O então vice- se apossaram desse termo, as preo- do continente permanecesse a mes- transparece, entre outras coisas, no
-presidente dos Estados Unidos aca- cupações linguísticas praticamente ma. Depois de haver chamado a Áfri- objetivo de ver o país figurar em 2020
bara de voltar de uma viagem à África desapareceram. ca de “continente sem esperança” dos Top 50 do ranking Doing Business
durante a qual havia conhecido uma A expressão “Terceiro Mundo”2 em 2000,5 a The Economist se descul- do Banco Mundial,10 um indicador
dezena de dirigentes, entre eles os não era, de fato, muito atraente para pou honrosamente onze anos depois cuja pertinência econômica é duvi-
presidentes Kwame Nkrumah (Gana) os potenciais investidores, por causa com um título que refletia o clima da dosa.11 O principal indicador da
e Gamal Abdel Nasser (Egito). Qual da imagem de pobreza a que estava época: “The hopeful continent: Afri- “emergência”, no Senegal como no
seria o rumo do continente diante associada. Assim, o conceito novo e ca rising” [O continente da esperan- resto do continente, é sem nenhuma
das independências que se prenun- aparentemente mais dinâmico de ça: a África emergente].6 As empresas surpresa o crescimento anual do PIB.
ciavam? Tal era a pergunta crucial de “mercados emergentes” substituiu-a de consultoria sopraram a mesma Ainda que a fase 1 do PSE (2014-
um documento impregnado do re- no início dos anos 1980. Na época da trombeta: “Lions on the move” 2018) tenha atrasado, a conjuntura fa-
ceio de que a “propaganda” soviética Revolução Francesa, a burguesia em [Leões em marcha], profetizava o vorável – queda dos preços do petró-
e a situação preocupante dos negros ascensão inventava palavras para McKinsey Global Institute.7 Mas o leo, taxas de juros “abordáveis” em
nos Estados Unidos encaminhassem matar as coisas, no dizer do jornalis- que havia mudado? comparação com a média africana,
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pluviometria satisfatória – permitiu a assistência médica universal conti- jugado no plano financeiro. Sem pos- 2   V er Immanuel Wallerstein, “C’était quoi le tier-
uma taxa de crescimento econômico nua sendo uma promessa não cum- sibilidade de financiar seu déficit em s-monde?” [O que era o Terceiro Mundo?], Le
Monde Diplomatique, ago. 2000.
da ordem de 6% ao ano a partir de prida para a maioria dos senegaleses, moeda nacional, o país se acha mais 3   C f. Paul Lafargue, “La langue française avant
2012. Esse número, que faria empali- apesar de sua adoção oficial em do que nunca dependente da solicitu- e après la Révolution. Études sur l’origine de
decer de inveja os países desenvolvi- 2013.15 O Senegal ainda não saiu da de do exterior, sob a forma de mora- la bourgeoisie moderne” [A língua francesa
antes e depois da Revolução. Estudos sobre a
dos, deve, no entanto, ser interpreta- categoria dos “países menos desen- tórias de sua dívida externa e conces- origem da burguesia moderna], 1894. Dispo-
do com cautela. Em 2015, o PIB por volvidos”. No Índice de Desenvolvi- são de novos créditos. Os recentes nível em: www.marxists.org.
habitante do Senegal, em termos mento Humano (IDH) do Programa empréstimos obtidos junto ao FMI 4   C f., por exemplo, Alexander J. Yeats et al.,
“What caused sub-Saharan Africa’s margina-
reais, era da mesma ordem de grande- das Nações Unidas para o Desenvol- têm por contrapartida um “retorno” lization in world trade?” [O que provocou a
za de seu nível em 1960 – com a popu- vimento (Pnud), estava no 166º lugar, à ortodoxia orçamentária a partir do marginalização da África subsaariana no co-
lação passando, entretanto, de 3,2 mi- em um total de 189 países em 2019. próximo ano,17 o que poderá entravar mércio mundial?], Finance and Development,
v.33, n.4, FMI, Washington, dez. 1996.
lhões para 14,5 milhões.12 Em outras Isso o coloca entre os “países de de- a recuperação econômica. 5   T he Economist, 11 maio 2000.
palavras, o crescimento econômico se senvolvimento humano fraco”. Essa última constatação pode se 6   Idem, 3 dez. 2011.
inscreveu, no essencial, em uma di- À semelhança da maior parte dos aplicar a vários países africanos, co- 7   M cKinsey Global Institute, “Lions on the move:
The progress and potential of African econo-
nâmica de recuperação das “décadas países africanos, o Senegal até agora mo Gana, Quênia, Zâmbia, Etiópia, mies” [Leões em marcha: o progresso e o po-
perdidas”. Foi acompanhado ainda foi poupado, no plano sanitário, pelo Angola etc., que viram seu estoque de tencial das economias africanas], McKinsey &
por uma diminuição dos empregos coronavírus. Em contrapartida, no dívida pública externa ser multiplica- Company, New York, 2010.
8   W orldWealth Report 2013, Capgemini and
assalariados no setor formal, cujo nú- plano econômico, a pandemia deixou do por quatro entre 2008 e 2018.18 A RBC Wealth Management. Disponível em:
mero passou de 390.420 em 2012 para claros os limites do projeto de euforia da “emergência”, numa visão www.capgemini.com.
300.284 em 2018.13 Trata-se, portanto, “emergência”. retrospectiva, poderia durar enquan- 9   Jane Lorgeoux e Jean-Marie Bockel, L’Afrique
est notre avenir [A África é nosso futuro], rela-
de um crescimento sem emprego. Em Um mito a contestar é o de um to os países africanos obtivessem tório informativo n.104 (2013-2014), Sénat,
razão do papel importante desempe- crescimento “inclusivo”. Qual é o sig- bons preços para seus produtos de Paris, 29 out. 2013.
nhado pelo capital estrangeiro, o peso nificado de taxas de crescimento ele- exportação e/ou contassem com a 10  Plan Sénégal Émergent, no site do governo
do Senegal, Dacar, 2012. Disponível em:
dos pagamentos de rendas primárias vadas durante uma década se 52% “confiança” de seus credores. www.sec.gouv.sn.
(juros sobre a dívida externa, transfe- das habitações rurais não têm acesso A pandemia de Covid-19 fecha 11  C f. Justin Sandefur, “Is CGD marxist? Res-
rências de lucros e dividendos, remu- a água e sabão16, sem falar dos cortes ruidosamente a página da “emergên- ponding to red-baiting from the World Bank”
[O CGD é marxista? Resposta às acusações
neração de consultores estrangeiros) de água constantes em muitos bair- cia”. Hoje, as populações africanas de comunismo do Banco Mundial], Center for
aumentou de 2,2% para 4,4% do PIB ros da capital, Dacar? Diante da distinguem com maior clareza as Global Development, Washington, 13 nov.
entre 2010 e 2017, segundo o Banco “emergência sanitária”, as autorida- consequências da falta de soberania 2019. Disponível em: www.cgdev.org.
12  Segundo os indicadores de desenvolvimento
Mundial – outros tantos recursos e di- des fecharam as fronteiras e as esco- monetária, o perigo do endividamen- do Banco Mundial. Disponível em: www.data-
visas retirados do financiamento do las, interditaram as aglomerações e to externo, a armadilha do pretenso bank.worldbank.org.
desenvolvimento do país. Símbolo de os cultos religiosos coletivos, bem “livre-comércio”, a necessidade de 13  “Analyse diagnostique de l’emploi au Sénégal”
[Análise diagnóstica do emprego no Sene-
um acúmulo sem freios, a dívida pú- como a circulação entre as cidades. autossuficiência alimentar etc. E per-
.

gal], Centre d’Études de Politiques pour le


blica externa, que havia sido parcial- Impuseram o uso obrigatório de cebem a importância, para a África, Développement, Dacar, 2020; “Rapport de
mente eliminada no início dos anos máscaras nos serviços públicos, no de se unir contra um sistema multila- l’enquête sur l’emploi, les rémunérations et les
heures de travail au Sénégal” [Relatório da
2000 no quadro da iniciativa dos paí- comércio e nos transportes, além de teral que se fragmenta.  pesquisa sobre o emprego, os salários e as
ses pobres muito endividados (PPME) ordenar o fechamento dos mercados horas de trabalho no Senegal], Agence Natio-
e da iniciativa de anulação da dívida da capital aos sábados e domingos. *Ndongo Samba Sylla,  economista, é au- nale de la Statistique et de la Démographie,
Dacar, 2019.
multilateral (IADM), reconstituiu-se No entanto, o confinamento total re- tor, com Fanny Pigeaud, de L’arme invisible 14  Statistiques internationales sur la dette [Esta-
rapidamente, passando de US$ 2,8 bi- velou-se impossível e, financeira- de la Françafrique. Une histoire du franc tísticas internacionais da dívida], Banco Mun-
lhões para US$ 12,5 bilhões entre 2008 mente, fora do alcance de um gover- CFA [A arma invisível da Françáfrica. Uma dial, Washington, 2020.
15  Ver Anne Frintz, “Au Sénégal, les femmes en
e 2018. No período 2014-2018, corres- no que conta com as solidariedades história do franco CFA], La Découverte, première ligne” [No Senegal, as mulheres na
pondente à fase 1 do PSE, esse foi au- sociais para compensar as medidas Paris, 2018. primeira linha], Le Monde Diplomatique, jan.
mento de cerca de US$ 7 bilhões.14 muito tímidas de amparo aos mais 2014.
16  “Enquête démographique et de santé conti-
necessitados (ajuda alimentar, sub- 1   R
 ichard Nixon, “The emergence of Africa: Re- nue” [Pesquisa contínua de saúde e demográ-
O MITO DO CRESCIMENTO venção ao pagamento de contas de port to president Eisenhower by vice presi- fica], Agence Nationale de la Statistique et de
INCLUSIVO eletricidade etc.). dent Nixon” [A emergência da África: relatório la Démographie, Dacar, 2017. Disponível em:
do vice-presidente Nixon ao presidente Eise- www.ansd.sn.
Se os lares pobres e as pessoas inca- A pandemia teve a vantagem de nhower], The Department of State Bulletin, 17  C
 omunicado de 13 abr. 2020.
pacitadas se beneficiaram de bolsas, evidenciar que o Senegal estava sub- v.36, n.930, Washington, abr. 1957. 18  Banco Mundial, op. cit.

www.editoraunesp.com.br
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“QUANTO PIOR, MELHOR...”

A caquistocracia
Derivada do grego kakistos (superlativo de “mau”) e kratos (“poder”), a palavra significa “o governo dos piores”.
Inventada no século XVII para descrever a ascensão política de cidadãos menos qualificados ou menos
escrupulosos, ela ganhou um novo fôlego com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro

POR IBRAHIM WARDE*

S
tanley Hoffmann acreditava ria permite levantar o véu do indizí- a criação do Movimento Cinco Estre- Sem saber, Alfred Jarry (1873-
que a melhor explicação para o vel. Os comediantes às vezes se mos- las pelo comediante Beppe Grillo 1907) criou, na peça Ubu Rei, o ar-
início da Segunda Guerra Mun- tram tentados pelo exercício do mudou o jogo político. O ucraniano quétipo do tirano ganancioso e san-
dial podia ser encontrada em O poder; alguns caem na tentação. Nas Volodymyr Zelensky, um perfeito guinário. Durante sua primeira (e
rinoceronte, a peça de Eugène Iones- eleições presidenciais francesas de neófito na política, era conhecido última) apresentação no Théâtre de
co. Para o eminente acadêmico nor- 1981, o comediante Coluche inseriu- por seu papel em uma série televisiva l’Oeuvre, em 10 de dezembro de 1896,
te-americano, o absurdo da peça -se brevemente na campanha. Seu chamada Servo do povo. Ele interpre- a farsa causou escândalo em razão
“capta melhor do que qualquer traba- slogan: “A França está rachada ao tava um professor de História levado da vulgaridade de sua linguagem e
lho de História ou de Ciências Sociais meio; comigo, vai rachar o bico”. à presidência para acabar com a cor- de seu tema ultrajante. “Primo pata-
todos os absurdos e tragédias dessa Com a perda de crédito das elites no rupção no país. Em 2019, o ator can- físico” de Macbeth, de Shakespeare,
longa descida ao inferno”.1 A alegoria, poder desde a crise financeira e polí- didatou-se à eleição presidencial Ubu assassina Venceslau, rei da Po-
que trata da transformação de toda a tica de 2008, os humoristas seguem ucraniana. E teve uma vitória lônia, e toma seu lugar. Mas, uma vez
população (exceto um homem) em ri- de vento em popa. Na Itália, em 2009, esmagadora. no poder, ele manda matar tanta
noceronte, ilustra a dinâmica de um
totalitarismo que consegue conquis-

© Paulo Ito
tar até as mentes menos dóceis.
É frequentemente por meio do re-
gistro satírico que os artistas enfren-
.

tam os grandes problemas de seu


tempo. Em O grande ditador, dirigido
em 1940, Charlie Chaplin interpreta
dois papéis: o do ditador Adenoid
Hynkel, obviamente inspirado em
Adolf Hitler, e o de um pobre barbeiro
judeu submetido às perseguições.
Em suas cenas mais memoráveis, o
trágico se desenha por trás do burles-
co. Tudo que precisa ser dito está ali,
no ditador que se aproxima de um
globo terrestre e, após acariciá-lo,
apanha-o como se fosse uma bola
(que logo murchará) e começa ani-
madamente a jogá-lo para lá e para
cá, imaginando-se “imperador do
mundo”. Ou quando recebe seu cole-
ga Benzino Napoleoni, sósia de Beni-
to Mussolini, em um salão de cabelei-
reiro, e ambos se mostram
preocupados com a altura de seus
respectivos assentos.
Em 1997, o Prêmio Nobel de Lite-
ratura foi concedido a Dario Fo, dra-
maturgo, ator e diretor italiano, por
ter, “na tradição dos mágicos medie-
vais, fustigado o poder e restaurado a
dignidade dos humilhados”. Sua pe-
ça mais famosa, Morte acidental de
um anarquista, é inspirada em uma
famosa notícia da década de 1960.
Assassinato, suicídio ou apenas aci-
dente? Um louco, fugido de um hos-
pital psiquiátrico, pega o caso e finge
ser o juiz. Segue-se uma investigação
delirante, que semeia a confusão en-
tre os policiais.
Desde Aristófanes, a sátira dos
poderosos sempre rendeu. A bufona-
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gente que seus apoiadores o abando- cortesãos, e eles defendem apenas organizada para financiar uma equi- orgia para cleptocratas de primeira
nam e, com a ajuda do czar da Rús- seus próprios interesses. E o público pe de transição – que está, no entan- classe”. Se, nas palavras do Grover
sia, o derrubam. Ubu então embarca aplaude. Na melhor das hipóteses, al- to, prevista na lei (a qual dispõe que Norquist, presidente de uma associa-
para a França. guém solta um pequeno arroto de in- o financiamento pode vir tanto de ção de ativistas contrários ao paga-
Jarry havia compreendido a di- dignação. Tudo isso expressa que há, fundos federais como de doações mento de impostos, a Americans for
mensão de um poder sem limites. entre Il Cavaliere e seus subordina- privadas). Ele então começou a gri- Tax Reform, o objetivo daqueles que
Capaz de tudo, Ubu é uma “criança dos, uma clara consciência de que tar: “Estão roubando meu dinheiro! zelam pelo mercado é reduzir o ta-
terrível” que “profere frases estúpi- eles têm todos os poderes nas mãos e Estão roubando a porra do meu manho do Estado até que se possa
das com toda a autoridade de uma gozam de total impunidade”.3 dinheiro!”.5 “afogá-lo em uma banheira”, a in-
besta”. Ele é um ser grotesco e ignóbil Tendo alcançado o mais alto esca- competência pode ser até mesmo um
– e não esconde isso. Chega a exibir lão do Estado sem nenhuma expe- desejo, pois contribui para desacre-
certa transparência quando procla- O diabólico Steve Ban- riência pretérita no serviço público, ditar a ideia de serviço público. Às
ma enfaticamente seus projetos e non (depois expurgado) Trump não se cansa de exigir de fun- vésperas da Grande Depressão, as
seus métodos. Assim: “Tenho a honra cionários e colaboradores provas de virtudes da caquistocracia chegaram
de anunciar-lhes que, para enrique-
desde o início declarava lealdade incondicional. Como a ra- a ser celebradas. Em 1928, por exem-
cer o reino, farei perecer todos os No- seu grande projeto polí- inha de Alice no País das Maravilhas, plo, Homer Ferguson, ex-presidente
bres e tomarei seus bens”. Ou então: tico: “Desconstruir o ele reage às contrariedades com um da Câmara de Comércio dos Estados
“Quero ficar rico, não desistirei de Estado administrativo” “que lhe cortem a cabeça”. Seus ex- Unidos, declarou: “O melhor servidor
um centavo”. Ele afirma sua indife- purgos são constantes e têm os mais do Estado é o pior. Um homem de pri-
rença, quando não seu desprezo, em diversos pretextos: ter sido nomeado meira classe no serviço público é cor-
relação às regras que decreta e que Essa tendência se acelerou com a por um governo anterior ou perten- rosivo. Ele destrói nossas liberdades.
infringe. Megalomaníaco e autoritá- eleição de Donald Trump, em 2016. O cer ao “Estado profundo” (deep state), Quanto melhor ele for e quanto mais
rio, fala de si mesmo na primeira pes- arquiteto de sua vitória, o diabólico que deseja impedi-lo de governar. E tempo permanecer no poder, mais
soa do plural. Steve Bannon (depois expurgado), seus inimigos são alvo de tuítes mor- perigoso será”.7 
Ao longo de todo o século XX, não desde o início declarava seu grande tais ou de humilhações diversas.
faltaram dirigentes ubuescos – fos- projeto político: “Desconstruir o Es- Quando John Brennan teve sua prer- *Ibrahim Warde  é professor associado da
sem eles generais golpistas ou bufões tado administrativo”, isto é, desmon- rogativa de acesso a segredos de defe- Universidade Tufts (Estados Unidos).
sanguinários. Em Uganda, Idi Amin tar as estruturas postas de pé pelo sa revogada, o ex-chefe da CIA que se
Dada, que esteve no poder entre 1971 New Deal e consolidadas na década tornou comentarista político na tele-
e 1979, tornou-se uma lenda, e com de 1960 com as reformas do progra- visão ressuscitou uma palavra havia 1   S tanley Hoffmann, “The Arrival of World War
sua tirania fez centenas de milhares ma Great Society. Em seu livro sobre muito esquecida, em resposta a um II: An Anticlimax” [A chegada da Segunda
de vítimas.2 Na Romênia, Nicolae o “quinto risco” (o dos perigos im- tuíte do presidente: “Sua caquisto- Guerra Mundial: um anticlímax], The New
York Times, 1º set. 1989.
Ceausescu encarnou a loucura infan- previsíveis que apenas agentes pú- cracia está afundando”.6
.

2   Entre os filmes que trataram dele: General Idi


til do poder absoluto, construindo blicos experientes são capazes de ge- Derivada do grego kakistos (su- Amin Dada: un Auto-Portrait [General Idi
monumentos faraônicos em sua pró- rir), o ensaísta Michael Lewis detalha perlativo de “mau”) e kratos (“po- Amin Dada: um autorretrato], de Barbet
Shroeder (1974), e O último rei da Escócia ,
pria glória e concedendo a si mesmo os elementos dessa desconstrução: 4 der”), a palavra significa “o governo de Kevin Macdonald (2006).
os títulos de “Gênio dos Cárpatos” e não preencher certas posições, ou fa- dos piores”. Inventada no século XVII 3   Dario Fo, “Le nouveau fascisme est arrivé” [O
“Danúbio do Pensamento”. zê-lo apenas de maneira provisória; para descrever a ascensão política de novo fascismo chegou], Le Monde, 11 jan.
2002.
Com o novo milênio, surgiu um desmantelar as administrações exis- cidadãos menos qualificados ou me- 4   Michael Lewis, The Fifth Risk: Undoing Demo-
novo tipo de Ubu, na interseção entre tentes, esvaziá-las de sua substância, nos escrupulosos, ela ganhou um no- cracy [O quinto risco: desfazendo a democra-
a ideologia neoliberal e o crescente cortar seus recursos; desacreditar os vo fôlego com as eleições de Donald cia], W. W. Norton, Nova York, 2018.
5   Ibidem.
papel do dinheiro na política. Em especialistas e acusá-los dos projetos Trump e Jair Bolsonaro. O jornalista 6   Avi Selk, “Kakistocracy, a 374-year-old word
2002, Dario Fo já se preocupava com mais sombrios (foi assim que a estru- Alexander Nazaryan analisou as that means ‘government by the worst,’ just
os excessos do primeiro-ministro ita- tura encarregada de gerenciar uma qualificações dos membros do gover- broke the dictionary” [“Caquistocracia”, uma
palavra de 374 anos que significa “o governo
liano, o bilionário Silvio Berlusconi: possível pandemia foi extinta, há no Trump. Temos ali uma galeria de dos piores”, acaba de quebrar o dicionário],
“Estamos diante do paradoxo mais dois anos). Antes mesmo de assumir personagens malucos, notáveis em The Washington Post, 13 abr. 2018.
absurdo, digno do Ubu Rei, a farsa do o cargo, o presidente eleito foi toma- primeiro lugar por seus conflitos de 7   Thomas Frank, The Wrecking Crew: How
Conservatives Rule [Equipe de demolição:
impossível: fazemos as leis para o rei, do de tremenda ira ao saber que uma interesse e pela falta de competência como os conservadores governam], Metropo-
escolhemos os ministros entre seus arrecadação de fundos estava sendo para os cargos que ocupam – “uma litan Books, Nova York, 2008.
34 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
OBSESSÕES E ESTRABISMO EDITORIAIS EM RELAÇÃO À AMÉRICA LATINA

Retratos de missionários midiáticos


Por que Juan Guaidó é o verdadeiro presidente da Venezuela? Com que rapidez o chefe de Estado brasileiro deve
cortar as aposentadorias? Como os peronistas vão piorar a crise argentina? Do Le Monde ao Financial Times,
um punhado de “especialistas” latino-americanos interpretam as notícias políticas da região em função de suas
obsessões: livre-comércio e anticomunismo

POR ANNE-DOMINIQUE CORREA E RENAUD LAMBERT*

E
m 1969, um jovem funcionário permite que algumas certezas sejam trancos e barrancos para restaurar a cas cubanas próximas a Salvador Al-
público norte-americano per- confirmadas: o mercado liberta; a es- confiança do mercado” (12-13 maio lende. 2 Preocupado com as autorida-
guntou a Richard Nixon qual se- querda fracassa. Por essa razão, tal- 2018). Rathbone acredita que qual- des de Havana, Montaner refugiou-se
ria a região do mundo a que ele vez, ela está sob os cuidados de jorna- quer dificuldade do neoliberalismo em Miami em 1961. Obteve o status
deveria se dedicar para fazer uma listas um pouco particulares. pode ser resolvida com uma dose adi- de exilado político e depois trocou a
carreira de sucesso: “Especialmente cional de neoliberalismo. Desse mo- dinamite por uma máquina de
não a América Latina, da qual todos JOHN PAUL RATHBONE, do, existia “uma explicação simples” escrever.
riem”,1 respondeu o presidente. Um FINANCIAL TIMES para as dificuldades de Macri: “Ele Em 1996, ele coassinou o Manual
ano depois, Nixon mudou de ideia: a Responsável pelas páginas sobre a queria evitar repetir as terapias de do perfeito idiota latino-americano.3
eleição de Salvador Allende foi o sufi- América Latina no Financial Times choque do passado”. Em outras pala- Os autores dedicam ironicamente o
ciente para preocupá-lo e fazer que até maio de 2019 e ex-funcionário do vras, ele foi muito mole. Três meses trabalho aos “populistas” que teriam
declarasse, em 6 de novembro: “Não Banco Mundial, John Paul Rathbone depois, Rathbone lutava para escon- contribuído para arruinar o subcon-
devemos deixar a América Latina gosta de levar seus leitores pela con- der sua amargura. Apesar dos esfor- tinente no século XX: Juan Domingo
.

pensar que pode tomar esse caminho tracorrente. Enquanto o mundo está ços de Buenos Aires, a crise estava Perón (presidente argentino de 1946 a
sem sofrer as consequências”. preocupado com a eleição de um ex- consumada. “Um governo favorável 1955 e de 1973 a 1974), Salvador Allen-
Washington, desde então, passou a -militar de extrema direita, Jair Bol- ao setor privado, com um gabinete de (presidente do Chile de 1970 até
cuidar da relação com as juntas lo- sonaro, à frente do Brasil, o jornalista tecnocrático que líderes mundiais sua derrubada pelo general Augusto
cais, consideradas um baluarte con- sugeriu que estamos olhando na dire- desejam apoiar, e a Argentina conti- Pinochet, em 1973), Fidel Castro (lí-
tra a ameaça comunista. O jovem ção errada. O “terremoto real”, “se- nua sofrendo graves crises de pâni- der da Revolução Cubana) e ainda o
ambicioso, um certo Donald Rums- melhante ao Brexit e [à] eleição de co” (31 ago. 2018). “Mas que erro o escritor colombiano Gabriel García
feld, não seguiu o conselho de seu Trump”, teria ocorrido na verdade presidente cometeu?”, ele pergunta, Márquez. Ao darem as costas ao mer-
mentor. Tornou-se secretário de De- mais ao norte, em julho de 2018, com antes de completar: “uma resposta cado, esses líderes políticos e intelec-
fesa de George W. Bush entre 2001 e a eleição de Andrés Manuel López possível: déficit de comunicação”. tuais teriam condenado a região à de-
2006 e empreendeu diversas campa- Obrador (conhecido também como Filho de uma cubana residente riva econômica, não deixando outra
nhas norte-americanas contra os go- AMLO), o presidente social-democra- em Londres, Rathbone reivindica o opção senão a intervenção de forças
vernos de esquerda que chegaram ao ta do México (31 maio 2019). Salientar ressentimento de sua família pela Re- militares: “Esse grande carnaval de
poder na região. que Bolsonaro mostra nostalgia pela volução, porque a loja de seu avô foi ilusões representadas pelo Estado so-
O conselho de Nixon, portanto, ditadura que governou o Brasil de nacionalizada. “Durante muitos cial terminou em falência econômi-
não foi de grande valia. No entanto, 1964 a 1984 não deveria levar o leitor a anos, minha família fez o famoso ca, inflação descontrolada, pobreza
parece ter repercutido entre as equi- esquecer que AMLO representa a real brinde dos exilados, imaginando im- e, em resposta, ditaduras militares
pes editoriais da grande mídia. Do Fi- “ameaça à democracia liberal” na plicitamente a morte de Fidel Castro: sangrentas”.4 Para os autores, o pri-
nancial Times britânico ao New York América Latina. Se o mexicano exibe o próximo Natal será em Havana!” (2 meiro-ministro francês da época
Times, passando pelo Le Monde, ne- uma aparência inofensiva, seus dis- dez. 2016). também flertava perigosamente com
nhuma região do mundo sofre o des- cursos públicos trazem “traços auto- o socialismo: “Até [Alain] Juppe [...]
prezo editorial reservado à América cráticos característicos de muitos po- CARLOS ALBERTO MONTANER, não merece o rótulo de liberal”.
Latina. No espaço de um ano, entre pulistas latino-americanos”: “uma MIAMI HERALD E NUEVO HERALD Em 2007, os mesmos autores pu-
10 de março de 2019 e 9 de março de obsessão pela história”, uma tendên- O jornalista cubano Carlos Alberto blicaram O retorno do idiota. Os alvos
2020, o New York Times, por exemplo, cia a invocar “a vontade popular” e o Montaner se especializou em denun- dessa vez? Hugo Chávez (presidente
publicou duas vezes menos artigos “ódio ao neoliberalismo”. Para Ra- ciar o “populismo” nas colunas do da Venezuela de 1999 a 2013), Cristina
sobre a América Latina que sobre o thbone, pois, o mundo estaria dividi- Miami Herald e do Nuevo Herald, Kirchner (presidente da Argentina de
Oriente Médio e três vezes menos que do em duas categorias: aqueles que dois jornais diários da Flórida feroz- 2007 a 2015), Evo Morales e Rafael
sobre a África. estão convencidos das virtudes do mente anticastristas. Antes de “colo- Correa (respectivamente, presiden-
Quando a região é abordada, na mercado e aqueles que ameaçam a car a caneta na ferida”, Montaner te- tes da Bolívia entre 2006 e 2019 e do
maioria das vezes figura como espe- democracia. ve uma primeira vida dentro da Equador entre 2007 e 2017). Entrou na
lho do aumento das obsessões edito- Assim, o célebre jornalista do Fi- organização paramilitar contrarre- lista até o diretor de um periódico
riais ocidentais. Um exemplo? Fala- nancial Times comemorou em 2015 a volucionária Movimiento de Recu- francês não tão diplomático como es-
-se tanto sobre a Venezuela que até as chegada do empresário Mauricio Ma- peración Revolucionaria (MRR). Seu te, entre 1990 e 2008: “No topo das
críticas à política de austeridade fei- cri à presidência da Argentina. Quan- líder, Orlando Bosch, esteve envolvi- paradas” de idiotice ideológica, “o
tas por Jean-Luc Mélenchon, na Fran- do a tempestade financeira começou do na explosão do voo 455 da Cuba- inefável Ignacio Ramonet do Le Mon-
ça, ou Jeremy Corbyn, no Reino Uni- a abalar Buenos Aires, ele tentou na, em 1976, que matou 73 pessoas, de Diplomatique, essa plataforma
do, parecem convencer. A América tranquilizar seus leitores: “Em dois bem como em uma série de ataques inigualável da espécie no Velho Con-
Latina só parece interessante quando anos e meio, o governo avançou aos contra embaixadas e figuras políti- tinente”. O erro da corrente de pensa-
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 35
VAI Corinthianssssss

© Domínio Público
mento incorporada na publicação
que o leitor tem em mãos? Proferir
“calúnias” contra o liberalismo eco-
nômico, “ditadas pelo preconceito
econômico”, ainda que fossem “meti-
culosamente refutadas pela realida-
de”. Para se convencer das virtudes
da ortodoxia econômica, seria sufi-
ciente “observar como países como
Espanha ou Irlanda [...] chegaram
aonde estão”. Na época, os dois paí-
ses eram apresentados regularmente
como modelos de “sucesso” neolibe-
ral. A crise dos subprimes eclodiu al-
guns meses após a publicação do li-
vro, mergulhando Madri e Dublin em
um profundo marasmo.
Em 2006, um despacho da agência
de notícias espanhola EFE revelou
que Montaner havia recebido dinhei-
ro do governo dos Estados Unidos pa-
ra disseminar propaganda anticas-
trista. A revelação levou à demissão
do diretor do Miami Herald,5 mas não
à de Montaner. Recentemente, o jor-
nalista explicou que AMLO – cujas
boas relações com os empregadores
mexicanos irritam parte da esquerda
– “pretende estabelecer o comunis-
mo” (Expansión, 5 set. 2019) ao sul do
Rio Bravo; que a Venezuela havia se
transformado em uma “narcoditadu-
ra”, “aliada a terroristas islâmicos”
.

(El Nuevo Herald,13 ago. 2019); e que Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente da Venezuela, Iván Duque, presidente da Colômbia, e Mike Pence, vice-
os manifestantes chilenos mobiliza- -presidente dos Estados Unidos (da esquerda para a direita)
dos desde outubro de 2019 eram “ini-
migos da lei e da ordem”.6 no entanto, pertencem aos dois parti- reitos Humanos (CIDH) estimou o mas também cético em relação à mu-
dos mais radicais da direita venezue- custo da repressão ao movimento so- dança climática. 
PAULO PARANAGUÁ, LE MONDE lana (Primero Justicia e Voluntad Po- cial chileno: 26 mortos e quase 2.800
Na grande imprensa, todos os cami- pular), em um contexto de extrema feridos, incluindo 280 feridos nos *Anne-Dominique Correa é jornalista;
nhos levam às mesmas certezas: seja divisão da oposição no país.9 Aplica- olhos.10 Renaud Lambert é jornalista do Le Monde
na luta paramilitar anticomunista, da à França, a manobra sugeriria que Para O’Grady, a liberdade econô- Diplomatique.
como Montaner, seja na guerrilha, Marine Le Pen e Christian Jacob “re- mica vem em primeiro lugar. Desli-
como o jornalista brasileiro Paulo Pa- sumem” a oposição ao presidente zes homofóbicos ou misóginos do 1   C itado por Greg Grandin em Empire’s Wor-
ranaguá, do Le Monde. Responsável Emmanuel Macron. presidente brasileiro? São apenas kshop. Latin America, the United States and
pela América Latina na equipe edito- “brigas irrelevantes com a imprensa” the Rise of New Imperialism [Oficina do Impé-
rio. América Latina, Estados Unidos e a as-
rial do jornal diário “referência” da MARY ANASTASIA O’GRADY, (25 ago. 2019) que mascaram o essen- censão do novo imperialismo], Henry Holt,
França até 2019, Paranaguá militou, WALL STREET JOURNAL cial: Jair Bolsonaro confiou sua polí- Nova York, 2006.
na década de 1970, em uma organiza- Em sua coluna semanal no Wall Street tica econômica a um apóstolo da Es- 2   Ler Hernando Calvo Ospina, “L’équipe de
choc de la CIA” [A equipe de choque da CIA],
ção argentina que defendia a luta ar- Journal, em 27 de outubro de 2019, cola de Chicago, Paulo Guedes, Le Monde Diplomatique, jan. 2009.
mada, o Partido Revolucionário dos Mary Anastasia O’Grady soou o alar- ex-professor de Economia da Univer- 3   Álvaro Vargas Llosa, Plinio Apuleyo Mendoza
Trabalhadores – Fração Vermelha me: “Os jovens foram às ruas para sidade do Chile apelidado de “guru e Carlos Alberto Montaner, Manual del per-
fecto idiota latinoamericano, Plaza & Janes,
(PRT-FR), no qual era conhecido pelo promover a luta de classes” no Chile. do livre-mercado”. O’Grady celebra a Madri, 1996.
pseudônimo “comandante Saúl”.7 “Invadir ruas, queimar carros, rou- “revolução do mercado no Brasil” (29 4   Ibidem.
Posicionados cada um de um lado da bar, bloquear estradas e destruir set. 2019), e ainda assim tacha o go- 5   “ Dimite el presidente del Miami Herald tras el
polémico despido de dos redactores” [Presi-
barricada ideológica erguida durante transportes públicos” seriam as “es- verno brasileiro de tímido. Desde sua dente do jornal Miami Herald é demitido após
a Guerra Fria, Montaner e Paranaguá pecialidades da esquerda”, segundo a nomeação, em janeiro de 2019, Gue- despedir dois redatores], EFE, 3 out. 2006.
agora se entendem muito melhor, es- jornalista. Sem dúvida, Cuba e Vene- des anunciou a privatização dos Cor- 6   “Crisis en Chile: No es inteligente dormir con
el enemigo” [Crise no Chile: não é inteligente
pecialmente em relação à Venezuela. zuela estariam envolvidas. Para reios, da empresa operadora do Porto dormir com o inimigo], El Libero, Santiago, 8
Em abril de 2014, Paranaguá atri- O’Grady, as manifestações não refle- de Santos (Codesp) e do Serviço Fe- fev. 2020.
buiu oito mortes à repressão das for- tiam descontentamento popular, e deral de Processamento de Dados 7   C omo lembra o ex-editor-chefe do Le Monde
Diplomatique, Maurice Lemoine, em uma car-
ças da ordem após ataques da oposi- sim a ação de um “grupo de socialis- (Serpro). Mas O’Grady o convida a ir ta ao mediador do Le Monde, datada de 19 de
ção nesse mesmo mês e ano.8 Mais tas de extrema esquerda criado por mais longe: e se ele privatizasse a Flo- abril de 2014.
recentemente, destacou-se por uma Fidel Castro”; em suma, “terroristas resta Amazônica? 8   As opções editoriais de Paulo Paranaguá são
objeto de análises regulares de Lemoine, en-
leitura original do espectro político de esquerda”. Confrontado à tentati- Os incêndios que devastaram a tre elas “Venezuela: quand Le Monde fait sien-
venezuelano. Em um artigo dedicado va desse grupo de “tomar Santiago”, o grande floresta em 2019 são explica- nes les manipulations du commandant Saúl”
à visita de Julio Borges, Antonio Le- presidente chileno, Sebastián Piñera, dos por ela pela “ausência de incenti- [Venezuela: quando o Le Monde adota as ma-
nipulações do comandante Saúl], Mémoire
dezma e Carlos Vecchio à França, em teria sido “forçado a declarar estado vos econômicos para proteger a flo- des Luttes, Paris, 21 abr. 2014.
3 de abril de 2018, escreveu: “Juntos, de emergência e colocar o Exército na resta, já que ela não é objeto de 9   Ler Julia Buxton, “La droite dure à la manœu-
eles resumem as principais sensibili- rua” para preservar “a propriedade e nenhum título de propriedade priva- vre” [A direita difícil de manobrar], Le Monde
Diplomatique, mar. 2019.
dades da oposição, da centro-esquer- a vida privadas”. Em dezembro de da” (8 set. 2019). A única dificuldade é 10  Declaração à imprensa em 6 de dezembro de
da à centro-direita”. Os três homens, 2019, a Corte Interamericana de Di- que Guedes não é apenas neoliberal, 2019.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

VAI Corinthianssssss
KEIR STARMER É ESCOLHIDO NOVO LÍDER DO PARTIDO TRABALHISTA

O discreto adeus de Jeremy Corbyn


Após suscitar a esperança para bem além das fronteiras do Reino Unido sob a direção de Jeremy Corbyn,
o Partido Trabalhista designou um novo dirigente: Keir Starmer, que não chega a encarnar nem a continuidade
nem um retorno ao “New Labour” de Tony Blair. Seu principal trunfo? O fiasco da gestão da pandemia pelo
atual primeiro-ministro conservador, Boris Johnson

POR ANDREW MURRAY*

O
mandato de Jeremy Corbyn à
frente do Partido Trabalhista
terminou em abril, em meio a
um silêncio sepulcral. O Reino
Unido encontrava-se em pleno con-
finamento. Seu destino estava nas
mãos do Serviço Nacional de Saúde
(National Health Service, NHS), cujo
subfinanciamento e falta de efetivos
Corbyn não cessara de denunciar, e
à mercê de um primeiro-ministro
sem nenhuma experiência em ges-
tão de crise.
O vírus parecia ter esvaziado as
apostas na consulta interna destina-
da a encontrar um sucessor para Cor-
byn, no rastro do pesado fracasso de
seu partido nas eleições gerais de de-
zembro de 2019. Como previsto, Cor-
.

byn cedeu o lugar para Keir Starmer,


ex-porta-voz do Labour, que anga-
riou 55% dos votos entre os militan-
tes, simpatizantes e sindicalistas fi-
liados ao partido – um placar apenas
um pouco inferior ao obtido por Cor-
byn em 2015 (59,5%).
Starmer era procurador-geral an-
tes de entrar para a política e ser elei-
to para o Parlamento em 2015. Deu à
direção do Partido Trabalhista o to-

© Giorgia Massetani
que de notabilidade que faltava a seu
antecessor. Sua auréola de compe-
tência e autoridade revelou-se um
trunfo precioso na conquista de uma
base cansada de cinco anos de inces-
santes conflitos internos, permitin-
do que se apresentasse como um
candidato confiável ao posto de pri- mo no plano de construção de mora- “NADA MAIS QUE SOCIALISMO” anos de existência, o Labour havia
meiro-ministro. O antigo magistrado dias públicas etc. Consciente de que Pela primeira vez em sua história, a visto seus parlamentares, detentores
prometeu trabalhar para a reconci- uma ruptura com esse programa o ala de direita do Partido Trabalhista, tradicionais da autoridade no seio do
liação de sua família política, um ob- afastaria de três quartos dos partidá- que dominava havia gerações, de partido, renegados de maneira tão
jetivo que, considerando as divisões rios (mais numerosos que o total dos Herbert Morrison durante a Segunda humilhante.
que sempre a minaram, e mais ainda membros de todos os outros partidos Guerra Mundial a Tony Blair e David Certamente ainda é muito cedo
após o episódio neoliberal dos anos juntos), entre os quais muitos aderi- Miliband mais recentemente, fracas- para falar de uma virada irreversível.
Blair, parece difícil de atingir. O me- ram ao Labour atraídos pela linha de sou em apresentar um candidato ao A mídia saudou a vitória de Starmer
lhor que ele podia esperar era aplacar Corbyn, Starmer optou pela conti- posto de secretário-geral. Já se pres- como sendo um retorno à normalida-
um pouco a atmosfera febril e ultra- nuidade. É verdade que, após dez sentia que Jess Phillips, deputada de de. As primeiras decisões que ele to-
polarizada da era Corbyn. anos de uma brutal austeridade con- Birmingham, não estaria à altura do mou logo que eleito, à sombra da to-
Entretanto, o novo diretor do La- servadora, a necessidade de uma al- desafio, e ela abandonou a luta assim do-poderosa crise sanitária, tendem
bour tomou o cuidado de não diver- ternativa de esquerda impôs-se ao que compreendeu que lhe faltaria o a lhe dar razão.
gir da diretriz política fixada pela di- partido, cuja maioria não seguia os apoio dos militantes e dos sindicatos. Os dois partidários mais próximos
reção anterior – renacionalização das dogmas do “New Labour” dos anos Essa mudança de clima político de Corbyn, John McDonnell e Diane
estradas de ferro, injeção de dinheiro Blair – desregulação, privatizações, não teve a menor importância se Abbott, encarregados respectiva-
pago pelos ricos e pelas grandes em- diminuição de impostos. A ruptura comparada à reeleição de Corbyn em mente da economia e dos assuntos
presas nos serviços públicos, inter- com quarenta anos de hegemonia 2016, depois da campanha orques- internos, haviam indicado antes das
venção mais rigorosa do Estado no neoliberal bipartidária parecia no trada pelo grupo de parlamentares eleições que pediriam demissão em
insaciável setor bancário britânico e momento bem consumada, e poderia trabalhistas para demiti-lo de seu caso de fracasso de seu mentor. Ao se-
em outros âmbitos da economia, co- até recrudescer ainda mais. posto. Jamais, no decorrer de 120 lecionar os membros de seu próprio
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 37
VAI Corinthianssssss

gabinete fantasma, Starmer conduziu bem personificada pelo próprio Cor- rigentes trabalhistas tendiam a ne- sões anti-imperialistas do líder dos
quase todos os outros “corbynistas” byn, parlamentar discreto durante 32 gligenciar os aspectos mais contestá- trabalhistas não dissuadiram os
para a saída. Para substituí-los, não anos, mas figura familiar nas mani- veis da política europeia, como a eleitores a votar maciçamente em
buscou trazer os veteranos dos anos festações contra a guerra, a austeri- imposição de planos de austeridade seu partido.
Blair, a maioria aposentada desde a dade e as injustiças de todo tipo. Por- aos quatro cantos do continente, o Hoje, Starmer enfrenta uma pai-
ascensão de Corbyn e do golpe abor- ta-voz da Stop the War Coalition, um crescimento da influência do capita- sagem política profundamente con-
tado em 2016, mas optou por escolher coletivo que mobilizou 2 milhões de lismo, a opacidade democrática de turbada. Durante cinco anos, Cor-
os jovens centristas do grupo parla- pessoas em 2003 contra a invasão do Bruxelas e a política da “fortaleza Eu- byn e sua equipe se opuseram com
mentar, que apresentavam a vanta- Iraque, na maior manifestação do ropa” em relação aos que procura- força à austeridade dos governos
gem de não estarem implicados nas Reino Unido, Corbyn inaugurou seu vam asilo. Preferiam colocar à frente conservadores de David Cameron e
guerras de facções dos últimos anos. mandato à frente do Labour em 2015 a dimensão cultural da União ou as Theresa May e à sua vontade obsti-
Exceção notável, Rebecca Long-Bai- tomando a palavra em uma marcha virtudes das normas europeias em nada de cortar os serviços públicos e
ley, a candidata pró-Corbyn derrota- pelos direitos dos refugiados – uma matéria de meio ambiente, de consu- o nível de vida das classes médias e
da por Starmer, pôde conservar seu prática compartilhada por McDon- mo ou de trabalho, mais restritivas operárias em benefício dos ricos e
posto de porta-voz responsável pela nell e Abbott. McDonnell foi o primei- que as em vigor no Reino Unido. proprietários. Antes mesmo de o co-
Educação. Estamos longe de um “de ro chanceler de um gabinete fantas- ronavírus atingir o país, os conserva-
volta para o futuro”. ma a marcar regularmente presença dores de Boris Johnson mudaram
Starmer distancia-se dos traços nos piquetes de greve. Durante cinco anos, parcialmente o curso dessa política,
mais característicos de seu predeces- O percurso político de Corbyn Corbyn e sua equipe aumentando o salário mínimo em
sor, aqueles que produziram o “cor- muitas vezes foi ridicularizado (a pa- 6% e prometendo elevar as despesas
bynismo” – embora o próprio Corbyn lavra não é forte demais) por seus ini-
se opuseram com força públicas nos setores da saúde e in-
sempre tenha recusado esse termo, migos no seio do Labour, para os à austeridade dos fraestrutura. É o mínimo que po-
considerando que “não havia ali na- quais qualquer engajamento fora dos governos conservadores diam fazer para conservar seus votos
da além do socialismo”. bancos de couro do palácio de West- de David Cameron novamente conquistados nas cir-
O primeiro desses traços é o anti- minster traduz uma preferência in- cunscrições do norte. A hospitaliza-
-imperialismo. O antigo chefe dos fantil pela contestação em detrimen-
e Theresa May ção de Boris Johnson no auge da epi-
trabalhistas se opôs energicamente to da busca pelo poder. Sua atitude demia reforçaria essa tendência.
às guerras de intervenção no Iraque, ambivalente em relação às hipocri- Se a austeridade passou para se-
Afeganistão, Líbia e Síria, apoiando sias afetadas do parlamentarismo UMA PAISAGEM gundo plano, a ladainha das fraque-
corajosamente a causa palestina. suscitava menos preocupação entre POLÍTICA CONTURBADA zas na gestão da crise epidêmica –
Cético em relação à Organização do os parlamentares do que seu anti-im- A fratura no seio do Labour entre os despreparo, confinamento tardio,
Tratado do Atlântico Norte (Otan), perialismo. Em parte, é por essa ra- adeptos do liberalismo e os adeptos jogo perigoso com a teoria da “imu-
defendeu um desarmamento nu- zão que Corbyn fracassou em sua da democracia venceu o “corbynis- nidade coletiva”,1 penúria crônica de
.

clear unilateral e denunciou as liga- tentativa de reformar – até mesmo mo”. O conflito degenerou a partir de equipamentos de proteção para o
ções militares e econômicas do Rei- transformar – a natureza do Partido 2017, quando a promessa feita por pessoal da saúde, falta gritante de
no Unido com a Arábia Saudita e Trabalhista. Minoritário até 2018 no Corbyn de respeitar o resultado do testes – constitui para Starmer um
com outras ditaduras do Golfo. To- seio do comitê executivo do Labour e referendo de 2016 sobre o Brexit valeu novo foco. Sem eleição nacional du-
mou a palavra nas manifestações combatido no Parlamento por seu ao Labour conhecer sua mais expres- rante os próximos quatro anos, há
para criticar o presidente norte-a- próprio grupo político durante todo o siva ascensão eleitoral desde a Se- tempo para reconstruir. Obter o
mericano, Donald Trump, durante seu mandato, ele se viu de mãos ata- gunda Guerra Mundial, passando de mesmo resultado em 2023 que Cor-
sua visita a Londres. das. Suas reformas que buscavam a 30% dos votos em 2015 para 40% dois byn em 2017 parece um objetivo a
É verdade que, em matéria de polí- democratização interna foram mo- anos depois. A partir de então, os no- seu alcance.
tica externa, Corbyn teria enfrentado destas: um pouco mais de liberdade táveis do partido não cessaram de Se esse prazo pode convir a Star-
as piores dificuldades para introduzir para as associações locais não recon- tentar inverter o veredito do referen- mer, para Boris Johnson pode não
suas reivindicações se por acaso ti- duzirem as candidaturas de parla- do, reclamando um segundo escrutí- bastar. O Reino Unido é um dos paí-
vesse chegado ao número 10 da Dow- mentares rebeldes; recrutamento de nio, no lugar de um “soft Brexit” ses mais duramente atingidos pela
ning Street. Considerando as divisões uma equipe de organizadores para [Brexit suave] negociado. Essa estra- epidemia. Segundo algumas estima-
no seio dos trabalhistas sobre esses ajudar a reconstruir o Labour nas an- tégia, combinada com o bloqueio de tivas, os danos à sua economia são de
assuntos, não existe cenário plausível tigas regiões industriais onde seu en- qualquer iniciativa parlamentar para tal ordem que esta não se recuperará
no qual uma maioria parlamentar raizamento se atrofiara. resolver a crise, pulverizou a frágil antes de 2022 – uma perspectiva ain-
apoiaria um desarmamento nuclear, Corbyn nunca foi tão feliz como coalisão reunida em torno de Cor- da menos reluzente, visto que os ín-
menos ainda uma saída da Otan. No quando fazia campanha pelo país, byn. Consciente de que a manuten- dices econômicos do ano passado
entanto, é essa parte do programa de mas as pressões da vida parlamentar ção da esquerda à frente do partido correspondem aos de 2008, tendo o
Corbyn que provocou mais agitação pouco a pouco esvaziaram a vitalida- dependia essencialmente de seu de- país atravessado uma “década perdi-
entre as classes dirigentes, incluindo de de seu “corbynismo”. Essa dificul- sempenho nas urnas, a derrota dos da” de estagnação.
aí a ala da direita do Labour, enraiza- dade aumentou no momento em que trabalhistas nas eleições de dezem- Nesse sentido, a crise atual se
da em suas tradições imperialistas e ele precisava administrar as divisões bro de 2019 (32% dos votos), marcada confunde com a anterior. Apesar de
atlantistas. As elites poderiam, a ri- em relação ao Brexit, esforçando-se por um forte desinteresse nas cir- Boris Johnson clamar que superará a
gor, aceitar uma gestão pública das para reduzir o fosso entre os parla- cunscrições operárias do norte e do crise, as promessas do populismo de
águas, mas certamente não uma rup- mentares e a maioria dos partidários centro do país, revelou-se fatal para o direita correm o risco de se revelar
tura da aliança com Washington ou de um lado e a maioria de eleitores da secretário-geral e sua equipe, embo- não menos vazias que as do centris-
uma reviravolta na política britânica classe operária de outro. As dificul- ra muitos dirigentes tenham obtido mo neoliberal. 
no Oriente Médio. Apesar de Starmer dades da esquerda em imaginar um resultados ainda mais medíocres no
afirmar sua oposição às intervenções mundo fora da União Europeia aca- curso dos últimos quarenta anos. *Andrew Murray  é ex-conselheiro de Je-
militares, como a ocorrida no Iraque, baram por anunciar o fim do projeto Sem surpresa, a ala direita do La- remy Corbyn e líder do sindicato britânico
não se deve contar com ele para deso- de Corbyn, assim como arruinaram, bour apressou-se em atribuir a res- United. É autor de Fall and Rise of the Bri-
bedecer às tradições. na Grécia, a esperança do Syriza em ponsabilidade desse recuo a Corbyn tish Left [Ascensão e queda da esquerda
Isso nos leva à segunda novidade remediar a pobreza. Porém, o Syriza e ao seu posicionamento em relação britânica], Verso Books, Londres, 2019.
do “corbynismo”: o desejo de apoiar a estava mais alinhado com sua base à segurança e à imigração, mistu-
ação política nos movimentos so- eleitoral que o Labour. Em razão da rando a essas recriminações cons- 1   L
 er Théo Bourgeron, “Au Royaume-Uni, la ten-
tation de l’inéluctable” [No Reino Unido, a ten-
ciais, e não mais somente na rotina super-representação em seu interior tantes alegações de antissemitismo. tação do inevitável], Le Monde Diplomatique,
parlamentar. Essa estratégia é muito das elites do norte de Londres, os di- Dois anos antes, no entanto, as vi- abr. 2020.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  JUNHO 2020

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livros internet
A maneira que encontraram de mostrar que a Lei NOVAS NARRATIVAS DA WEB
n. 11.343, de 2006, tratava-se de uma nova ma-
neira de administração estatal da droga no Brasil Sites e projetos que merecem seu tempo
foi expressar uma lógica de menos punição e mais
prevenção, dando destaque a um dispositivo dividi- INUMERÁVEIS
do em duas metades: o médico e o criminal. Essas Site colaborativo que reúne pequenas fra-
PELA METADE: duas partes se revelam durante o percurso do livro, ses que dão mais significado a um núme-
A LEI DE DROGAS o que chama a atenção em seu título: há uma políti- ro: os mortos pelo coronavírus no Brasil.
NO BRASIL ca feita “pela metade”. A metáfora de um copo vazio Inumeráveis é um memorial dedicado à
Marcelo da Silveira Campos, de práticas médicas e cheio de práticas punitivas história de cada uma das vítimas da Co-
Annablume demonstra o que se tornou a Lei de Drogas. vid-19 no Brasil. Uma obra do artista Ed-
O autor nos mostra que a Nova Lei de Drogas, son Pavoni em colaboração com diversos

E m 2006 tivemos uma mudança substantiva na lei


que operava as ordenações referentes às subs-
tâncias ilícitas: era lançada a chamada Nova Lei de
na verdade, aumentou o encarceramento, e a po-
pulação prisional presa por drogas passou de 13%
para 30%. Se a ideia inicial era a preservação e
apoiadores, jornalistas e voluntários, que
continuamente adicionam histórias ao me-
morial. As histórias têm também sido lidas
Drogas. À primeira vista, ela mostrava, ao que pare- prevenção de usuários, após 2006 muitos deles fo- na televisão por atores da Globo, durante
cia e tudo indicava, pontos positivos para o avanço ram presos como traficantes, o que comprovou que, a programação. É como diz o site: “Não há
do debate das políticas públicas: a retirada da pena para o sistema de justiça, a diferença entre usuário quem goste de ser número; gente merece
aflitiva de prisão para o usuário de drogas unida à e traficante não está relacionada a definições de existir em prosa”.
sua entrada no serviço de saúde como fundamen- mercado e varejo. A diferenciação de ambos se dá <https://inumeraveis.com.br/>
tal para o tratamento e a não criminalização desse em função da classe social, escolaridade e origem
mesmo usuário. No entanto, para que tais propo- social, isto é, se alguém for escolarizado, tiver uma ONDE HÁ FUMAÇA
sitivas fossem aceitas, houve de rebote o aumen- profissão e morar em algum bairro central de algu- Inspirado em eventos reais vividos pelo
to da pena mínima de três para cinco anos para o ma metrópole, provavelmente não será enquadrado diretor Lance Weiler, uma instalação cha-
traficante. Se a intenção de não apenar o usuário e como traficante. mada Where There’s Smoke mostra de-
transformá-lo em questão de saúde pública foi para talhes da biografia de seu pai, fotógrafo
diminuir o encarceramento em massa, em números [Beatriz Brandão] Cientista social e jornalista. voluntário dos bombeiros que lutou anos
.

já expressivos e em constante crescimento, ela não Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio, pós- contra o câncer, e suas memórias. Weiler
deveria deixar de criminalizar os que se envolvem -doutoranda em Sociologia pela USP e pesquisa- é um pioneiro na arte de misturar lingua-
com o mercado de psicoativos. dora do Ipea. gens e tecnologia. A instalação imersiva
foi reconhecida como uma das mais inte-
ressantes dos Estados Unidos no ano em
que ocorreu, 2019. Misturava teatro, scape
toda a sua plenitude espiritual. O livro compila ma- room (um quarto com mistérios que preci-
teriais preciosos, alguns dos quais até então rele- sam ser desvendados para que se possa
gados ao segundo plano, a despeito da importância sair dele), documentários e fotografias.
que têm na decifração de nuances do pensamento <http://lanceweiler.com/where-theres-s-
do autor comumente desprezadas pelas leituras im- moke/>
pressionistas, que não apreendem senão o sentido
SEJA COMO FOR. literal do texto. O ESPÍRITO DE 1945
ENTREVISTAS, RETRATOS Pode-se destacar, por exemplo, a entrevista con- O cineasta inglês Ken Loach (Eu, Daniel
E DOCUMENTOS cedida a Maria Rita Kehl e Fernando Haddad, pu- Blake, de 2016, e Desculpe, você não es-
Roberto Schwarz, blicada na revista Teoria e Debate em 1994, ou a tava aqui, de 2018) fez em 2013 um docu-
Duas Cidades longa entrevista a Eva Corredor, também de 1994, mentário sobre o contexto do Reino Unido
em que Schwarz coloca em seus devidos termos o depois da vitória na Segunda Guerra Mun-

R oberto Schwarz não é um intelectual usual, da-


queles que nadam no sentido da corrente. Bem
ao contrário. No limite, sua trajetória pode ser vista
papel de Lukács em sua atividade crítica. Ou ainda a
entrevista a Louzada Filho e Gildo Marçal Brandão,
publicada originalmente na revista Encontros com
dial, com Winston Churchill. Apesar de
vencer a guerra, Churchill perdeu as elei-
ções para o Partido Trabalhista – a eco-
como a explicitação de um modelo de trabalho inte- a Civilização Brasileira , em 1979. Sem falar no re- nomia ia muito mal e, então, as pessoas
lectual que, dos anos 1960 até os dias de hoje, foi latório da polícia política da ditadura militar sobre o escolheram os socialistas para a retoma-
sendo cada vez mais colocado em questão. Pode-se ensaio “Cultura e política”, ou na carta inédita em da da Inglaterra. “Se o Estado pode pagar
mesmo dizer que a reflexão schwarziana foi ganhan- que conta ao mestre Antonio Candido as peripécias soldados para matar alemães, pode pagar
do intensidade em medida inversamente proporcio- de sua defesa de doutorado em Paris, com um dos trabalhadores para construir estradas e
nal ao declínio (no Brasil e no mundo) da figura do membros avaliadores tendo se recusado a aceitar hospitais”, era a ideia geral da campanha.
intelectual crítico irredutível às posições estabeleci- a tese, acusando-o de apresentar um trabalho in- Um site complementa com mais material o
das, mas antenado com o debate público do seu pre- compreensível – algo semelhante ao que havia se documentário.
sente – figura com a qual ele sempre se identificou. passado com Walter Benjamin na Alemanha, em < http://www.thespiritof45.com/>
Abarcando mais de cinco décadas de atividade, 1925, salvo o desfecho diferente, já que, no caso de
seu novo livro, Seja como for, dá um testemunho Schwarz, o obstinado avaliador acabou por se retirar
significativo desse itinerário singular, seja por meio da banca, que enfim aprovou o trabalho. [Andre Deak] Diretor do Liquid Media
da exposição de seu próprio pensamento, seja por Lab, professor de Jornalismo e Cinema na
meio de comentários ou retratos de intelectuais [Fabio Mascaro Querido] Professor do Departa- ESPM, mestre em Teoria da Comunicação
com quem manteve alguma interlocução. Nesse mento e do Programa de Pós-Graduação em So- pela ECA-USP e doutorando em Design
que é seu nono livro de crítica (afora dois de poesia ciologia da Unicamp. Confira versão ampliada desta na FAU-USP.
e uma peça de teatro), Schwarz se faz presente em resenha em diplomatique.org.br.
JUNHO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 39
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CANAL DIRETO SUMÁRIO
LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa de maio
Ano 14 – Número 155 – Junho 2020
Capa histórica, de um genocídio anunciado! www.diplomatique.org.br
Saul Isaias, via Instagram

Agradeço por tornarem público o acesso a infor- DIRETORIA


Diretor da edição brasileira e editor-chefe
mações tão importantes e de qualidade! “Não se muda nada, acelera-se”
Anna Carolina Brittes, via Instagram 2 Vender Audis na Birmânia
Silvio Caccia Bava
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Por Serge Halimi Rubens Naves
Todos crianças Editorial
Até os próprios técnicos e especialistas da área 3 A aposta no caos
Editor
Luís Brasilino
estão diante de uma situação nova, e as redes Por Silvio Caccia Bava Editora-web
aproveitam-se para angariar mais audiência, Bianca Pyl
Pandemia
deixando de lado a oportunidade de melhor
esclarecer e direcionar a grande massa.
4 É nóis por nóis! Editor de Arte
Cesar Habert Paciornik
Por Silvio Caccia Bava
Estamos bem de governo!
Estagiária
Jalmendes Roberto, via Instagram O laboratório e a experimentação Gabriela Bonin
do trabalho na pandemia do capital
Por Ricardo Antunes Revisão
As milícias digitais do capitão Lara Milani e Maitê Ribeiro
Todo santo dia eu recebo fakes replicadas Que a austeridade fiscal Gestão Administrativa e Financeira
pelos seguidores do mito. O Gabinete do não volte da quarentena Arlete Martins
Ódio continua ativo e ninguém faz nada. Por Pedro Rossi
Assinaturas
Fabio Silva, via Instagram A escalada da desigualdade assinaturas@diplomatique.org.br

em meio à “coronacrise” Tradutores desta edição


A hora do planejamento ecológico Por Juliano Giassi Goularti Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Teríamos de romper com esse sistema econômi- Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
A disputa de discursos sobre a pandemia
co-financeiro perverso. Não sei se conseguiremos, Vários autores Conselho Editorial
mas é o único caminho: saúde pública, renda Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
básica universal, taxação das grandes fortunas, A depressão da esquerda norte-americana
saneamento básico universal, sistemas agroflores- 14 Nos Estados Unidos, “no fundo,
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
tais, economia solidária, escolas públicas nada vai mudar” Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
de qualidade e por aí. Por Thomas Frank Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
Juliana Leite, via Instagram Uma ilustração das ambiguidades do federalismo
16 No Texas, armados contra o confinamento Assessoria Jurídica
.

Rubens Naves, Santos Jr. Advogados


Repensar. Reavaliar. É preciso uma nova Por Maxime Robin, enviado especial
ordem mundial, que viva em equilíbrio com Escritório Comercial Brasília
A recomposição planetária Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
a natureza, sem explorá-la em nenhum nível
e que tampouco explore o ser humano.
18 Três hipóteses geopolíticas
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br

para o pós-pandemia Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação


Gabriela Cardoso, via Instagram Por Philip S. Golub da associação Palavra Livre, em parceria com o
Instituto Pólis.

O arsenal bolsonarista: conflito Pressão sobre Pequim


e caos como métodos da ação política 20 Por que desconfiar das estatísticas
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
chinesas sobre o coronavírus diplomatique@diplomatique.org.br
Obscurantismo avança poluindo o debate, www.diplomatique.org.br
Por Carine Milcent
criando ruído, fazendo barulho sem dizer nada.
Assinaturas: Leila Alves
Calando a maior opositora: a razão. Uma nova condição para o gênero humano? assinaturas@diplomatique.org.br
Marcus Vinícius, via Instagram 22 Confinados na matrix Tel.: 55 11 2174-2015

Por Denis Duclos Impressão


Aos trancos e barrancos, Plural Indústria Gráfica Ltda.
Bem-vindo à sociedade sem contato! Av. Marcos Penteado de Ulhôa
o Brasil diante da crise 24 Trabalho, família, wi-fi Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
Triste a realidade de um país que se alumbrou com Por Julien Brygo MISTO
um discurso que não tem pés firmes na realidade.
Emílio Miranda, via Instagram Depois da guerra de preços entre
27 os países produtores
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resumidas para a publicação.
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1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
secretariat@monde-diplomatique.fr
Os artigos assinados refletem o ponto de Um novo líder do Partido Trabalhista
vista de seus autores. E não, necessariamen- 36 O discreto adeus de Jeremy Corbyn
www.monde-diplomatique.fr

te, a opinião da coordenação do periódico. Por Andrew Murray Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
com 37 edições internacionais em 20 línguas:
32 edições impressas e 5 eletrônicas.

39 MISCELÂNEA
ISSN: w
Capa: © Mag Magrela
Foto: Ines Sacramento
2º SIMPÓSIO VAI Corinthianssssss

DIREITAS
BRASILEIRAS

1 a 10
junho
2020

“BOLSONARO NO PODER” 04
entrevistas
especiais

Sessões 17 h - 1 8 h 3 0 e 1 9 h 3 0 - 2
1h 16
sessões
.

virtuais

ch i • A n d ré K ay se l • A n d ré Singer
Bia n
• Adalberto Cardoso • Alvaro d o B oi to • B en ja m in Te it el baum
re ia G al vã o • A n g el a A lo nso • Arman
• A n d
Le rn er • C on ra d o H u b n er M endes
B re n o B ri n g el • C am il a R oc ha • Celina sc o B ri to Cruz
• Fl áv ia R io s • Fr an ci
M u ss i • E st h er S ol an o • Fá bio Malini •
• Daniela • Jo n as M ed ei ro s • Jo rg e Chaloub
me Basto s
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arino • Lu
• Laura Carvalho • Leticia Ces N ic ol au N et to • P ab lo O rt el lado
ia n a C h ag u ri • M ário M ed ei ros • Michel
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egu el lo •
• Paulo Arantes • Rachel Men áv io C av al ca n te • Vi nicius Valle
Soa re s • S
• Ronaldo Almeida • Samuel

yo ut ub e. co m /c /i fc hu ni ca m p1
yo ut ub e. co m /d ip lo br as il
ou

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R E A LI Z AÇÃO

Programa de
Pós-Graduação
em Ciências Sociais
da UFJF

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