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Universidade Gama Filho Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em F d u c a ç ã o Física

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Podemos encontrar vários exemplos de sistemas universitários nos quais a
E E F E - USP
Educação Física ou as ciências dos esportes não possuem pós-graduações próprias.
Os formados na profissão realizam suas pós-graduações em outras áreas BiBLIOTE C A
disciplinares. Assim, não há nenhuma necessidade, naturalidade ou determinação
para que o modelo tenha que ser o nosso.

Parece-me de bom senso supor que o ensino de qualquer técnica ou arte pode
aperfeiçoar-se na medida que os instrutores detêm uma cultura geral mais ampla POR UMA TEORIA DA PRÁTICA
e rica e também conhecimentos gerais e específicos sobre a interação entre as
pessoas e os processos de ensino-aprendizagem. A sociedade moderna exige, sob
o ponto de vista cultural, formações mais prolongadas e amplas, decorrendo o
direito ao ensino superior. Porém, essa condição, é de tipo geral, não significando Mauro Betti
qtie um instrutor específico deva deter um título universitário para ensinar
eficientemente uma específica arte.
INTRODUÇÃO
^ A sociedade oferece crescentes oportunidades de realização de atividades
corporais fora da escola. Assim, o próprio papel da Educação Física escolar, V o u estabelecer inicialmente um debate com autores que, nos
quando meramente vinculado ao desenvolvimento físico e psicomotor, é fortemente
ú l t i m o s anos, e no meu e x c l u s i v o j u l g a m e n t o , c o n t r i b u í r a m
relativizado, embora as crianças gostem da Educação Física escolar. Em
contrapartida, as matemáticas devem ser aprendidas na escola, gostem ou não as significativamente para a c o n s t i t u i ç ã o de uma teoria da E d u c a ç ã o
crianças. Talvez esteja nesse gostar das crianças um dos pontos de atrito nas Física de matizes brasileiras, com^jíroposições bastante criativas e
relações entre educadores físicos e outros educadores dentro da escola. desafiadoras à inteligência. São eles: Bracht ( l 993), Tani ( l 988, 1989),
27 , Lovisolo (1994) e K o l y n i a k Filho (1994, 1995a 1995b). Depois,
(aso a imagem dos profissionais da área sobre o reconhecimento social fosse a p r e s e n t a r e i m i n h a p r ó p r i a p r o p o s t a , que j á se e s b o ç a r á
falsa, ou seja, caso a sociedade os valorize, estaríamos diante de um caso de
embrionariamente na primeira parte.
irrealismo coletivo ou de falsa consciência coletiva. Se fosse esta a situação deveria
ser outro o teor da análise ou da 'psicanálise '. Embora esta possibilidade mereça A d i s c u s s ã o a c a d é m i c a no â m b i t o da E d u c a ç ã o Física sempre
ser melhor analisada, aceito em minha argumentação a 'imagem de desvalorização ' foi presa fácil dos dualismos: E d u c a ç ã o Física versus esporte; esporte
como adequada à realidade cultural. versus j o g o ; teoria versus prática, etc. A sofisticação t e ó r i c a dos
28 ú l t i m o s anos superou alguns idealismos e ingenuidades da d é c a d a de
Para maiores especificações sobre o papel da educação escolar, conferir 80, mas gerou uma nova "macro-dicotomia", que detecto na d i v i s ã o
LO VISO LO (1995), acima citado.
dos atuais discursos sobre a Teoria da E d u c a ç ã o F í s i c a em duas
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grandes matrizes: uma, que vê a E d u c a ç ã o F í s i c a como á r e a de
Se interrogados sobre a automedicação, possivelmente os médicos respondam
conhecimento científico; outra, que a v ê como prática p e d a g ó g i c a .
que essa conduta é produto da desvalorização da profissão médica, da ignorância
do público, da ação dos balconistas ou dos laboratórios. Seja qual for a causa,
A matriz científica constituiu-se no Brasil a partir da influência
concordam em realizar campanhas, declarações e muitos outros tipos de ações norte-americana, com a p r o p o s i ç ã o da E d u c a ç ã o F í s i c a c o m o
encontra da automedicação. Uma leitura desconfiada sempre poderá insistir no disciplina a c a d é m i c a inicialmente feita por Henry (1978) ; e europeia, 2

fato de ser automedicação contrária aos interesses económicos dos médicos e mediante o filósofo p o r t u g u ê s Manuel S é r g i o ( S é r g i o , 1987, 1991),
apresentar, então, suas condutas como falsamente morais. que, por sua vez, foi assumidamente influenciado pelos franceses
Pierre Parlebas e Jean Le Boulch. A influência da Alemanha, com
sua " C i ê n c i a ( s ) do E s p o r t e " f o i mais m a r g i n a l e l o c a l i z a d a ,
possivelmente por dificuldades de interpretação s e m â n t i c a . Citarei
diretamente trechos de alguns destes autores, e sem muitas explicações

72 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2. p. 51-72. dez. 1996 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2. p. 73-127. dez. 1996 73
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Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em Educação Física
o leitor p o d e r á rapidamente identificar as ideias básicas:
D I S C I P L I N A A C A D É M I C A : A Educação Física como explicar ou compreender um determinado f e n ó m e n o social ou uma
disciplina a c a d é m i c a é um corpo organizado de conhecimentos que determinada parte do real (Bracht, 1992:35).
compreende aqueles fatos e h i p ó t e s e s organizados em torno da T a m b é m , é claro, os vários autores deste matriz t ê m diferentes
c o m p r e e n s ã o da f u n ç ã o do corpo humano praticando e x e r c í c i o c o n c e p ç õ e s sobre o que é e d u c a ç ã o , homem, sociedade, etc. N ã o
(Brooks, 1981:76). podemos nos alongar aqui a respeito disto.
. C I Ê N C I A D A M O T R I C I D A D E H U M A N A : C i ê n c i a da Cada uma destas matrizes oferece contribuições^ignificafivas,
c o m p r e e n s ã o e e x p l i c a ç ã o das condutas motoras, visando o estudo e mas t a m b é m cometem equívocos e esbarram em seus próprios limites.
constantes tendenciais da m o t r i c i d a d e humana, em o r d e m ao É o que passarei a apontar.
desenvolvimento global do indivíduo e da sociedade tendo como
fundamento s i m u l t â n e o o físico, o b i o l ó g i c o e o a n t r o p o s s o c i o l ó g i c o
[...]. Motricidade: processo adaptativo, evolutivo e criativo de um A M A T R I Z CIENTÍFICA: A PERDA DO OBJETO
ser práxico, carente dos outros, do mundo e da transcendência (Sérgio,
1987:153-157). Denunciamos recentemente (Betti, 1994) as l i m i t a ç õ e s que
C I Ê N C I A D A A Ç Ã O M O T R I Z : Disciplina que toma por atingiram o desdobramento das propostas de cientifização da Educação
objeto a a ç ã o motriz [ . . . ] , que permite analisar todas as formas de F í s i c a , o r i g i n á r i a s dos anos 60: f r a g m e n t a ç ã o e e s p e c i a l i z a ç ã o
atividade física, sejam individuais ou coletivas, e isto segundo todos crescentes, em d e c o r r ê n c i a do d e s e n v o l v i m e n t o de s u b - á r e a s ;
os modelos possíveis, até os mais matematizados (Parlebas, 1987:1 1). distanciamento entre a p r o d u ç ã o científica (definida como teoria) e o
Todas elas p r e s s u p õ e a e x i s t ê n c i a de um objeto de estudo mundo profissional (definida como p r á t i c a ) . Interpretamos este
(motricidade humana, a ç ã o motora, m o v i m e n t o humano, etc.) e f e n ó m e n o c o m o u m "deslocamento de f o c o " , de uma p r á t i c a
c a r a c t e r i z a m u m a á r e a de c o n h e c i m e n t o i n t e r d i s c i p l i n a r . historicamente situada ( E d u c a ç ã o Física) para uma E d u c a ç ã o F í s i c a
Evidentemente, as bases e p i s t e m o l ó g i c a s e filosóficas mais amplas entendida como ciência, na sua c o n c e p ç ã o tradicional, objetivando
que fundamentam estas propostas s ã o diferentes em cada autor. N ã o compreender e/ou e x p l i c a r u m a parte do real - o h o m e m em
vamos aqui detalhar estas diferenças, pois este n ã o é o principal movimento, a motricidade humana, etc. - sob a ótica das diversas
objetivo deste ensaio. Contudo, n ã o podemos deixar de observar que ciências da natureza e do homem. Isto levou os pesquisadores da
a p o s i ç ã o de Manuel Sérgio possui maior densidade filosófica que os E d u c a ç ã o F í s i c a a identificarem-se cada vez mais, em cada uma de
norte-americanos. suas sub-áreas, com as respectivas d i s c i p l i n a s - m ã e s . A partir d a í , o
A matriz p e d a g ó g i c a é um dos principais respostas à "crise" objeto científico j á não é mais o mesmo - uma conclusão que colhemos
da d é c a d a de 80, e resulta da a p l i c a ç ã o no campo da E d u c a ç ã o Física em Bracht (1993).
de teorias p e d a g ó g i c a s de base marxista, a p ó s uma t e n d ê n c i a a Vejamos agora outra perspectiva. Hoje em dia, n i n g u é m mais
p r i n c í p i o "humanista" ou "escolanovista": faz "aula de E d u c a ç ã o F í s i c a " , mas de a e r ó b i c a , h i d r o g i n á s t i c a ,
E d u c a ç ã o Física é E d u c a ç ã o [...]. Enquanto processo individual, m u s c u l a ç ã o , esporte, dança. A terminologia " E d u c a ç ã o F í s i c a " só
a E d u c a ç ã o Física desenvolve potencialidades humanas. Enquanto subsiste na Escola, mas j á é quase s i n ó n i m o de Esporte. N ã o cabe
f e n ó m e n o social, ajuda este homem a estabelecer r e l a ç õ e s com o aqui bu;->r as e x p l i c a ç õ e s deste f e n ó m e n o ; todavia, esta d i n â m i c a
grupo a que pertence (Oliveira, 1985:105). social ajuda-nos a compreender a substituição do termo igualmente
E d u c a ç ã o Física é a prática p e d a g ó g i c a que tem tematizado no âmbito a c a d é m i c o (Cinesiologia, Quinantropologia. etc): é preciso
elementos da esfera da cultura corporal/movimento [...] é antes de obter reconhecimento, status, entrar em sintonia com a sociedade -
tudo uma prática p e d a g ó g i c a f...] é uma prática social de i n t e r v e n ç ã o estamos sempre c o r r e n d o a t r á s do p r e j u í z o . . . Esta l i n h a de
imediata, e n ã o uma prática social cuja característica primeira seja a r g u m e n t a ç ã o aparece em vários autores, de ambas as matrizes U m

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outro m o t i v o aparece ainda para explicar a o p ç ã o pela e x p r e s s ã o no â m b i t o brasileiro deu-se com T a n i (1988, I 9 8 9 ) . P r o p õ e a
" C i ê n c i a " ou "Ciências do Esporte": ao mesmo tempo que a expressão Cinesiologia como uma c i ê n c i a básica, que objetiva "investigar de
E d u c a ç ã o Física n ã o se refere mais a práticas concretas, o termo forma abrangente e profunda o f e n ó m e n o m o v i m e n t o humano"
"esporte" torna-se p o l i s s ê m i c o , e passa a designar atividades diversas ( 1 9 8 9 : 9 ) , sem p r e o c u p a ç ã o c o m a a p l i c a ç ã o p r á t i c a dos
- fazer ginástica, correr na rua, escalar uma montanha, saltar de u m a conhecimentos. Seria composta por três s u b - á r e a s : b i o d i n â m i c a do
ponte preso por uma corda elástica. movimento humano, comportamento m o t o r e estudos sócio-culturais
A partir daí opera-se um e q u í v o c o . A E d u c a ç ã o F í s i c a é um do movimento humano. Observo que Tani n ã o p r o p õ e interações
conceito c o n t e m p o r â n e o , que surge no século X V I I I pela voz de entre essas s u b - á r e a s no nível da pesquisa básica. Por sua vez, os
filósofos preocupados com a e d u c a ç ã o , e - entendo eu - até hoje n ã o conhecimentos produzidos nestas sub-áreas seriam utilizados no nível
desenvolveu todas as suas potencialidades culturais. Se n ã o existe da pesquisa aplicada pelas áreas que necessitam de conhecimentos
mais "aula de E d u c a ç ã o Física", existe uma comunidade profissional sobre o movimento humano; n ã o só na E d u c a ç ã o Física, mas em
da E d u c a ç ã o Física, dona de u m a t r a d i ç ã o e de um saber-fazer relativos outras, como a fisioterapia e a terapia ocupacional.
ao jogo, a dança, ao esporte e a ginástica que não foi (por enquanto...) A E d u c a ç ã o Física, e n t ã o , seria
dominado por outra área. O professor de E d u c a ç ã o Física é hoje um u m a á r e a de p e s q u i s a s e m i n e n t e m e n t e a p l i c a d a s , de
elemento do i m a g i n á r i o social - veja-se, por exemplo, as várias p r e o c u p a ç ã o pedagógica e profissionalizante (...) cujos conhecimentos
telenovelas que nos ú l t i m o s dois anos i n c l u í r a m professores de produzidos serviriam de base para e l a b o r a ç ã o e desenvolvimento de
E d u c a ç ã o Física como personagens (e n ã o mais como "bobos da programas de e d u c a ç ã o física a nível formal e n ã o formal (1989:10).
corte", como "burros"). Este é um f e n ó m e n o novo, impensável há, Duas s u b - á r e a s constituiriam a E d u c a ç ã o Física: pedagogia
digamos, 10 anos atrás. A matriz científica pressente que n ã o pode do movimento humano e a d a p t a ç ã o do movimento humano, nas quais
desfazer-se da E d u c a ç ã o Física, e então - aí está o e q u í v o c o - reserva- a p r e o c u p a ç ã o precípua seria "a c o n d u ç ã o de estudos de características
lhe um lugar subalterno. integrativas e de síntese para facilitar a i n t e g r a ç ã o entre teoria e
Para Sérgio (1987:155), a " e d u c a ç ã o motora" é p r á t i c a " (p. 10). A integração e síntese s ã o de responsabilidade da
o ramo pedagógico da Ciência da Motricidade Humana, procura E d u c a ç ã o Física e n ã o da Cinesiologia.
o desenvolvimento das faculdades motoras imanentes no i n d i v í d u o , Embora critique o paradigma mecanicista da c i ê n c i a clássica,
através da experiência, da autodescoberta e a u t o d i r e c ç ã o [sic] do no qual os f e n ó m e n o s são fragmentados e vistos como complexidades
educando desorganizadas, T a n i p r o p õ e uma nova abordagem i n t e g r a t i v a
Já em Parlebas (1987:9-10) a E d u c a ç ã o Física aparece como (complexidade organizada, interação horizontal e vertical, r e l a ç ã o
"uma pedagogia, quer dizer, uma disciplina de intervenção que busca d i n â m i c a entre ser humano e meio ambiente) apenas para a E d u c a ç ã o
uma influência de tipo normativo sobre seus praticantes". Física, e n ã o para a Cinesiologia. Se a E d u c a ç ã o Física deve buscar
Observo que, nestas c o n c e p ç õ e s , o conhecimento flui numa conhecimentos básicos na Cinesiologia, e se s u b - á r e a s seguem na
só direção: da disciplina a c a d é m i c a ou c i ê n c i a para a profissão ou f r a g m e n t a ç ã o do conhecimento originário das c i ê n c i a s tradicionais,
E d u c a ç ã o Física. Aquela produz conhecimento científico, esta o compartilho com o leitor m i n h a d ú v i d a : a Educação Física não poderia
aplica. Espera-se, e n t ã o , que isto melhore o n í v e l dos s e r v i ç o s dar conta desta tarefas indo diretamente às " c i ê n c i a s - m ã e s " ? Por que
profissionais da área. Depois de Lawson (1990, 1993) é difícil seria necessário criar uma nova ciência " b á s i c a " ? Podemos ser melhor
acreditar nisto. Como ele demonstrou, estas crenças falharam porque s o c i ó l o g o s que os p r ó p r i o s s o c i ó l o g o s , melhor fisiólogos que os
n ã o levaram em conta as realidades comportamentais, culturais e próprios fisiólogos, e assim por diante?
políticas das práticas de trabalho \ Outra dificuldade reside na q u e s t ã o da metodologia. Tani
U m desdobramento mais criativo da corrente norte-americana admite que uma disciplina a c a d é m i c a caracteriza-se t a m b é m por

76 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 73-127, dez. 1996 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 1996 77
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diferença entre comportamento e atividade motora? Quem determina
possuir uma metodologia de pesquisa própria, e que a E d u c a ç ã o Física a intencionalidade do i n d i v í d u o ? Esta intencionalidade pode ser
n ã o a possui... ainda! Julga que esta é uma dificuldade comum às determinada a priori e idealisticamente pelo p r ó p r i o pesquisador?
á r e a s de conhecimentos mais recentes, sempre dependentes de Por que a " o r g a n i z a ç ã o da a ç ã o motora" seria a intenção p r i m á r i a , e
"metodologias elaboradas e adotadas em disciplinas mais tradicionais" não a " e s t é t i c a ou s a ú d e " ? Manoel operou uma violenta s e p a r a ç ã o
(1988:388). Uma metodologia surgiria com o amadurecimento da entre sujeito e objeto, comportamento e intencionalidade, homem e
disciplina, "como resultado da c o n d u ç ã o de pesquisas em que se mundo. Foi v í t i m a de um idealismo levado às últimas consequêrícTàs,
adaptam metodologias j á consagradas" (1988:388). e perdeu seu objeto quando o encontrou...
Deste raciocínio um pouco contraditório, permito-me concluir Isto n ã o que dizer que a E d u c a ç ã o Física n ã o possa constituir-
que a E d u c a ç ã o Física deverá construir sua metodologia na sua prática se enquanto área do conhecimento academicamente reconhecida, o
de pesquisa, c o m o u m a a d a p t a ç ã o c r i a t i v a de m e t o d o l o g i a s que poderá obter a partir da construção de seu objeto, da caracterização
emprestadas às c i ê n c i a s - m ã e s . Por isso entendo que, se fosse ser de sua interdisciplinaridade, e da d e f i n i ç ã o de sua função s ó c i o -
possível à E d u c a ç ã o Física ser uma ciência, ela seria uma c i ê n c i a política. O que define e d á sentido a uma área de investigação científica
aplicada, e jamais básica. Uma possível Cinesiologia n ã o possuiria nos dias de hoje s ã o c r i t é r i o s diferentes dos que presidiram a
metodologia de pesquisa própria, e nem um objeto "natural". O seu c o n s t i t u i ç ã o da c i ê n c i a moderna entre os s é c u l o s X V I e X V I I I . A
objeto n ã o poderia ser o movimento humano, simplesmente, pois b i o q u í m i c a , a agronomia, a psicologia educacional ou a medicina
dele a Física, a Psicologia, a Sociologia, e t c , podem perfeitamente são áreas legítimas e reconhecidas pelas suas contribuições específicas,
dar conta, prescindindo da E d u c a ç ã o Física. A p r o p o s i ç ã o de um que resultam de r e l a ç õ e s interdisciplinares e necessidades sociais
objeto assim t ã o abstrato, faz com que se perca a concretude das concretas. Por aí é que devemos buscar a l e g i t i m a ç ã o da E d u c a ç ã o
práticas corporais de nossa cultura. N ã o existe o movimento humano F í s i c a como conhecimento, e n ã o pelos mesmos c r i t é r i o s que
abstratamente considerado, mas seres humanos que se movimentam legitimaram no passado a Física, a Biologia, etc.
concreta e intencionalmente; que correm, saltam, j o g a m , d a n ç a m ,
Da mesma maneira, o crescente interesse social pelas atividades
nadam, num contexto social e institucional.
corporais de movimento abriu um e s p a ç o socialmente legitimado
Vejamos as d i s t o r ç õ e s a que este e q u í v o c o pode levar. N a para a p r e t e n s ã o de c o n s t i t u i ç ã o da E d u c a ç ã o Física enquanto área
esteira do modelo de Tani, Manoel (1995) procurou exemplificar
4
de conhecimento; ela n ã o surge pelo ideal da ciência pela ciência, do
sua c o n c e p ç ã o de objeto de estudo. Considera que um i n d i v í d u o A "amor ao conhecimento", como s u p õ e a corrente norte-americana da
corre em d i r e ç ã o a um ô n i b u s , e um i n d i v í d u o B corre ao redor do disciplina a c a d é m i c a .
campo. Para A , o movimento é um meio para um f i m ( n ã o chegar A s s i m , o que resta v á l i d o em Tani - e n ã o é pouco - é sua
atrasado ao trabalho, por exemplo), e este comportamento motor seria p r e o c u p a ç ã o com a E d u c a ç ã o Física enquanto "Pesquisa Aplicada",
objeto de estudo da Cinesiologia. Para B, a meta é melhorar a sua entendida esta como i n t e g r a ç ã o dos conhecimentos produzidos na
capacidade para o movimento, que neste caso, é um f i m em si mesmo, Cinesiologia (ciência básica) no contexto real das práticas de trabalho
e esta atividade motora seria o objeto de estudo da C i ê n c i a da da E d u c a ç ã o Física (a aula de E d u c a ç ã o Física na escola, a aula de
E d u c a ç ã o Física. Mesmo nos casos em que - afirma Manoel - o dança na Academia, e t c ) , em cujo nível seria possível produzir novos
indivíduo visa outros fins, tais como estética ou saúde, "a o r g a n i z a ç ã o c o n h e c i m e n t o s . Seu m é r i t o c o n s i s t e em p r o c u r a r f u g i r da
apropriada da a ç ã o motora torna-se um objetivo p r i m á r i o " (p. 6), j á fragmentação e da simplificação artificial das pesquisas de laboratório,
que o objeto de estudo da E d u c a ç ã o Física é entendido como " u m e em perceber que n ã o h á transferência e a p l i c a ç ã o e s p o n t â n e a de
conjunto de atos intencionalmente organizados para um f i m , o de conhecimentos da Cinesiologia para a E d u c a ç ã o Física.
melhorar a p r ó p r i a capacidade para o m o v i m e n t o " (p. 6). Tenho em alta c o n s i d e r a ç ã o o modelo de Tani por isto: a
O exemplo leva a muitos e m b a r a ç o s . Como fundamentar a

78 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 73-127, dez. 1996


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E d u c a ç ã o Física permanece em seu horizonte, compromete-se com que ela é "antes de tudo uma p r á t i c a p e d a g ó g i c a , portanto uma
ela. Foge, assim, à pior alternativa que o modelo norte-americano da p r á t i c a de i n t e r v e n ç ã o imediata" ( l 993:1 14). Estamos - indaga
" D i s c i p l i n a A c a d é m i c a versus P r o f i s s ã o " poderia acarretar: a total Bracht - procurando um "objeto" de uma p r á t i c a de i n t e r v e n ç ã o
o p o s i ç ã o entre a "pesquisa b á s i c a " e a prática da E d u c a ç ã o Física. que tem seu sentido no a p e r f e i ç o a m e n t o da praxis, e n ã o em sua
Com ela, os pesquisadores tem uma boa desculpa e metem-se cada c o m p r e e n s ã o ou por um objeto científico? N ã o v ê antagonismo entre
vez mais em áreas superespecializadas das c i ê n c i a s - m ã e s , com a as duas o p ç õ e s , mas considera que reconhecer a E d u c a ç ã o F í s i c a
c o n s c i ê n c i a aliviada por estarem contribuindo para a C i ê n c i a . . . E, é
5
p r i m e i r o c o m o p r á t i c a p e d a g ó g i c a é f u n d a m e n t a l para o
6

claro, em Tani a interdisciplinaridade n ã o fica e x c l u í d a , s e n ã o reconhecimento do tipo de conhecimento, de saber n e c e s s á r i o para


pressuposta na c o m p l e x i d a d e do o b j e t o , e na i n t e g r a ç ã o de o r i e n t á - l a e para o reconhecimento do tipo de r e l a ç ã o possíveF^-x
conhecimentos que deve guiar a pesquisa aplicada. Como realizar d e s e j á v e l entre a E d u c a ç ã o F í s i c a e o "saber c i e n t í f i c o " , ou as
esta i n t e g r a ç ã o e esta interdisciplinaridade, permanece como uma disciplinas científicas (1993:1 14).
q u e s t ã o n ã o totalmente esclarecida, j á que - mesmo Tani o admite - o Portanto, "enquanto área de estudo da realidade com vistas ao
modelo de ciência tradicional a inviabiliza. aperfeiçoamento da prática pedagógica", a E d u c a ç ã o Física precisaria
construir seu objeto "a partir da intenção p e d a g ó g i c a " (p. 1 14). Bracht
lembra aí que não se pode delimitar o objeto valendo-se de um recorte
A MATRIZ PEDAGÓGICA: da realidade empírica, quer dizer, a E d u c a ç ã o Física enquanto ciência
A PERDA D A E D U C A Ç Ã O FÍSICA não poderia definir-se por um setor do real que lhe corresponderia
como p r ó p r i o . Recorre a M a x Weber, para quem s ã o as r e l a ç õ e s
De o u t r o l a d o , os defensores da m a t r i z p e d a g ó g i c a , conceituais entre problemas, e n ã o as r e l a ç õ e s reais entre "coisas"
desesperados com o desaparecimento da E d u c a ç ã o Física, buscam que delimitam os diferentes campos científicos. Quando se aplica
r e s g u a r d á - l a no interior da Escola, restringindo o seu alcance um m é t o d o novo a novos problemas surge uma ciência nova. Assim,
conceituai, quando deveriam buscar a m p l i á - l o . Perdem igualmente a conclui Bracht, a " i n v e s t i g a ç ã o científica se organiza de fato em torno
E d u c a ç ã o Física quando a encontram. Antagonizam com o Esporte, de objetos c o n s t r u í d o s que n ã o tem nada em comum com aquelas
hostilizam as Academias, criticam as bases e p i s t e m o l ó g i c a s das unidades delimitadas pela p e r c e p ç ã o i n g é n u a ou imediata" (p. 1 1 5).
c i ê n c i a s da Natureza e associam a si p r ó p r i o s com as C i ê n c i a s Ora - prossegue - nas s u b - á r e a s da E d u c a ç ã o Física ( b i o m e c â n i c a ,
Humanas (e instalam aí uma nova dicotomia...). aprendizagem motora, sociologia do esporte, etc) "o m o v i m e n t o
É claro que simpatizo com as críticas feitas à " b i o l o g i z a ç ã o " da humano enquanto objeto científico n ã o é o mesmo" (p. 1 15), portanto,
E d u c a ç ã o Física, à suposta neutralidade da ciência, etc. Apenas um não t e r í a m o s um, mas v á r i o s objetos. D a í entendermos a t e n d ê n c i a
positivista muito rígido estaria em desacordo. Concordo t a m b é m com destas s u b - á r e a s buscarem sua identidade e p i s t e m o l ó g i c a nas
a necessidade de explicitar um projeto p o l í t i c o - p e d a g ó g i c o para a d i s c i p l i n a s - m ã e s , e n ã o na E d u c a ç ã o Física.
E d u c a ç ã o Física, embora n ã o me agrade a maneira como excluem o A seguir, Bracht busca analogias nas C i ê n c i a s da E d u c a ç ã o ou
"paradigma da condição física" do debate. Muitas destas ideias podem Pedagogia, e p r o p õ e a c o n s t r u ç ã o de uma disciplina " s í n t e s e ou
ser encontradas em Bracht (1992) e no Coletivo de Autores (1994); a articuladora que pudesse fornecer o saber necessário - ou que pudesse
caracterização da E d u c a ç ã o Física como um fenómeno eminentemente construir esse saber - para orientar a prática dos educadores" (p. 115).
escolar está claramente explicitada nesta última. Feitas estas observações Citando autores da Pedagogia, conclui que, como esta, a E d u c a ç ã o
iniciais, vamos nos deter numa contribuição mais recente de Bracht Física opera em um nível qualitativo diferente das ciências individuais
(1993), o pensador mais articulado e criativo desta matriz. que lhe d ã o suporte e p i s t e m o l ó g i c o , que se expressa na p r ó p r i a
Para ele, a busca do objeto da E d u c a ç ã o F í s i c a deve ter claro e l a b o r a ç ã o da teoria, em r e l a ç ã o dialética com a prática educacional.

80 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n, 2. p, 73-127. dez. 1996 Motus Corporis. Rio de Jonelro. v. 3. n. 2. p. 73-127, dez. 1996 81
Universidade Gama Filho
Revista de D i v u l g a ç ã o Cientifica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física
Reivindica para a E d u c a ç ã o Física, por Fim, o estatuto de uma ciência
especial,- ciência da e para a prática, terminologia que empresta à Tenho muitas q u e s t õ e s a dirigir a Bracht. A ciência clássica
Schmied-Kowarzik . 1
ou t r a d i c i o n a l a que se refere s ã o as C i ê n c i a s Naturais? O u o
A t é aqui nos entusiasmamos com suas c o n c l u s õ e s . Todavia, positivismo? A alternativa seriam as Ciências Humanas/Sociais? Mas
ao aprofundar seu entendimento sobre tal ciência, Bracht recorre a t a m b é m existe uma sociologia positivista... Parece-me ainda que
uma nova dicotomia: " P r e c i s a r í a m o s aclarar se a E d u c a ç ã o Física Bracht promove uma certa a s s i m i l a ç ã o entre o p o s i t i v i s m o e o
operaria a partir dos princípios e p i s t e m o l ó g i c o s das c i ê n c i a s naturais empirismo, e uma certa confusão entre positivismo e q u a n t i f i c a ç ã o ,
quando corrobora as c o n c l u s õ e s de Souza e S i l v a o entendimento 8
ou das c i ê n c i a s sociais e humanas" (p. 116). A c i ê n c i a c l á s s i c a
dominante de ciência nas pesquisas está atrelado aos p r i n c í p i o s da
i n t r o d u z i r i a , i n e v i t a v e l m e n t e , r e d u c i o n i s m o s no e s t u d o do
quantificação e m a t e m a t i z a ç ã o dos f e n ó m e n o s , da análise e d e s c r i ç ã o
m o v i m e n t o humano, e sugere e n t ã o que "o teorizar em E d u c a ç ã o
dos mesmos segundo p a r â m e t r o s estatísticos, da d e s c o n t e x t u a l i z a ç ã o
Física precisa ultrapassar o p r ó p r i o teorizar c i e n t í f i c o " (p. 1 16)
e isolamento dos f e n ó m e n o s ou fatos para sua experimentação^éT
c o n t e m p l a n d o o b i o - p s i c o - s o c i a l , o é t i c o e o e s t é t i c o , numa
neutralidade do pesquisador, entre outras características que apontam
perspectiva de globalidade, "portanto numa nova c o n s t r u ç ã o de
para uma visão de c i ê n c i a voltada para a vertente positivista (citado
nosso objeto" (p. 1 16). N a c i ê n c i a tradicional o é t i c o e o e s t é t i c o
por Bracht, 1993: l 13).
foram alijados e remetidos para o decisionismo subjetivo ou a uma
Esquece-se aí que o marxismo t a m b é m é e m p í r i c o , e pode
disciplina e s p e c í f i c a da filosofia ou para a arte. Bracht entende
eventualmente recorrer a quantificação e procedimentos estatísticos.
colocar aqui a q u e s t ã o da s e p a r a ç ã o c l á s s i c a entre saber fático e o
O discurso transpira uma permanente tensão entre as Ciências Naturais
saber é t i c o - n o r m a t i v o (mais um dualismo!). Restaria à E d u c a ç ã o
e as C i ê n c i a s Sociais/Filosofia; todavia, se as necessidade da prática
F í s i c a a s a í d a de ampliar o significado da ciência, ou fazê-la operar,
são globais, n ã o podem excluir a abordagem das c i ê n c i a s naturais.
como querem K . O . Apel e J. Habermas com um novo conceito de
Se o ético e o estético s ã o remetidos à Filosofia, isto n ã o é
r a z ã o , a r a z ã o comunicativa, que englobaria a r a z ã o t e ó r i c a , a r a z ã o
pouco. N ã o s ã o Apel e Habermas filósofos da mesma forma? Faltou
p r á t i c a e a d i m e n s ã o da subjetividade (p. 1 1 6).
à Bracht estabelecer r e l a ç õ e s mais explícitas entre a Filosofia e as
Finaliza concluindo que a p r o d u ç ã o de conhecimentos na
demandas de pesquisa em E d u c a ç ã o Física. Neste momento, quero
E d u c a ç ã o Física deve voltar-se para as necessidades da p r á t i c a adiantar que, para m i m , no campo filosófico, a fenomenologia d á
pedagógica, ou seja, "superar a fragmentação a partir das necessidades conta das d i m e n s õ e s científica, ética, estética, da teoria, prática e
da prática que são globais" (p. 1 16) subjetividade, como pleiteia Bracht.
Bracht, é ó b v i o , n ã o acredita na interdisciplinaridade, j á que Por que temos que escolher primeiro a prática p e d a g ó g i c a , e
predomina a tendência de fragmentação e n ã o existe uma problemática depois o conhecimento científico? Se Bracht reconhece que a "chave"
teórica que possa integrar as disciplinas que se ocupam cientificamente está na r e l a ç ã o entre as duas instâncias, o que interessa e n t ã o é a
do movimento humano. Julga o argumento de que a complexidade inter-relação. Ter que optar por um primeiro, é como ter que optar
do objeto exige um tratamento interdisciplinar (um argumento de entre o i n d i v í d u o e a sociedade, o sujeito e o objeto, a teoria e a
Tani) permanece numa v i s ã o empirista, j á que o movimento humano prática, minimizando a possibilidade da m e d i a ç ã o .
ou esporte n ã o exigem por si só tratamento interdisciplinar, n ó s é Aceito que é preciso haver um princípio integrador. Bracht o
que p o d e m o s p r o b l e m a t i z á - l o de m o d o a e x i g i r t r a t a m e n t o encontrou na prática p e d a g ó g i c a . É uma c o n t r i b u i ç ã o importante,
interdisciplinar, e isto está na d e p e n d ê n c i a dos interesses norteadores desde que possa abarcar todas as m a n i f e s t a ç õ e s da motricidade
do conhecimento ( p . l 16). socialmente institucionalizadas. Para tal, é n e c e s s á r i o (re)definir o
que se entende por prática em E d u c a ç ã o Física, ampliar o significado

82 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127, dez. 1996


Motus Corporis. Rio de Janeiro v 3 n 9 n Ha-, <nn<
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e alcance do e x p r e s s ã o "prática p e d a g ó g i c a " , e não reduzi-lo à escola, conhecimentos científicos das disciplinas que a auxiliam, mas "nem
como o fazem muitos representantes da matriz pedagógica. Para m i m , a definição dos valores orientadores da intervenção nem a s e l e ç ã o
o problema mais importante está aí, e n ã o ter que optar a priori por das d i s c i p l i n a s ou c o n h e c i m e n t o s a u x i l i a d o r e s s ã o d e c i s õ e s
uma c o n c e p ç ã o de ciência, pelas C i ê n c i a s Humanas ou C i ê n c i a s científicas" (p. 21). Como a E d u c a ç ã o Física busca realizar objetivos
Naturais. sociais, e n ã o produzir conhecimentos, a principal d i s c u s s ã o na
E d u c a ç ã o Física diz respeito aos objetivos sociais que ela deve
NOVAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SUPERAÇÃO DOS promover, e " n ã o podemos cientificamente decidir se a e d u c a ç ã o
física deve perseguir o objetivo da e m a n c i p a ç ã o política ou o da saúde
DUALISMOS E SUAS LIMITAÇÕES ou o da estética do corpo" (p. 25).
A Medicina possui legitimidade social porque é alto o consenso
sobre os objetivos sociais a serem promovidos. A d i v e r g ê n c i a estaria
Do Discurso A n t r o p o l ó g i c o
centrada apenas nos meios a serem utilizados. Este alto grau de
consenso faria com que os valores sociais da s a ú d e fo^serfi vistos
A perspectiva da Antropologia clássica (tanto a social como a
como demanda da sociedade e n ã o como trabalho de i m p o s i ç ã o dos
cultural) veio complementar uma lacuna na d i s c u s s ã o a c a d é m i c a da
especialistas - e aí, num processo de r e t r o - a l i m e n t a ç ã o , o p r ó p r i o
E d u c a ç ã o Física. Recente obra de Daolio (1995) procurou aplicar
este referencial à E d u c a ç ã o Física Escolar. Todavia, é em Lovisolo especialista percebe-se respondendo a uma demanda. Por isso, os
(1994) que encontramos um interlocutor mais estimulante para este m é d i c o s de hoje podem esquecer que "seus predecessores agiram
debate. Estamos de acordo com muitas de suas ideias. ativamente para definir o perfil das demandas atuais e deixam de
A primeira delas é o resgate da t r a d i ç ã o - palavra a m a l d i ç o a d a notar que eles contribuem para sua redefinição constante" (p. 26).
desde a "crise" dos anos 80, quando importava falar apenas em Quando as demandas originais perdem seus fundamentos e se tornam
m u d a n ç a : " A t r a d i ç ã o da e d u c a ç ã o física parece ser portanto a preconceitos " s ã o retrabalhadas e criticadas sob a base de demandas
f o r m u l a ç ã o de propostas ou programas de intervenção no plano das emergentes inseridas em r e d e f i n i ç õ e s , necessidades e objetivos
atividades corporais que realizem valores sociais" (Lovisolo, 1995:20- sociais" (p. 27). Excelente! Mas - e aqui, pergunto eu - e a E d u c a ç ã o
21). A E d u c a ç ã o Física n ã o é uma disciplina ou ciência como a Física? Quem define, neste momento histórico, suas demandas? N ã o
m a t e m á t i c a ou a química, embora estas e outras disciplinas contribuam poderia a p r ó p r i a comunidade da E d u c a ç ã o Física criar demandas?
no processo de f o r m a ç ã o dos profissionais da E d u c a ç ã o Física. Isto Lovisolo v ê a e d u c a ç ã o física como um campo no qual se
n ã o d i m i n u i r i a sua i m p o r t â n c i a e significado, pois a sociedade confrontam projetos e demandas variadas, algumas tradicionais ou
m o d e r n a , c o m p l e x a e p l u r a l , n ã o p o d e r i a f u n c i o n a r sem os socialmente dominantes, outras que se colocam como c o n t r á r i a s
especialistas da intervenção. Em sua prática, os "educadores f í s i c o s "
à q u e l a s . Classifica os profissionais da e d u c a ç ã o física em duas
devem p r o d u z i r um "arranjo das disciplinas num programa de
"tribos": os que aceitam a demanda socialmente dada, e por ela guiam-
atividade corporal" (p. 20), combinando conhecimentos, t é c n i c a s e
se na e l a b o r a ç ã o do programa, e os que pretendem determinar a
saberes para alcançar objetivos sociais que se expressam em programas
ligados ao treinamento, lazer, e d u c a ç ã o , etc. Estes recursos " n ã o demanda, definindo seus objetivos com o a u x í l i o da i n t e r p r e t a ç ã o
podem ser combinados cientificamente, ou por um a l g o r i t m o " (p. sócio-política - são os " c r í t i c o s " , os " r e v o l u c i o n á r i o s " .
24), pois envolvem instinto, p e r c e p ç ã o e génio - " é uma arte" (p. 24), O que aparenta ser um nova dicotomia é, todavia, matizada
que q u a l i f i c a como arte da m e d i a ç ã o . A ideia da " m e d i a ç ã o " por Lovisolo, mediante a c o n f r o n t a ç ã o entre objetivos ( i n t e n ç õ e s ) e
igualmente me agrada m u i t o . A partir daqui teremos algumas meios utilizados para r e a l i z á - l o s , pois os objetivos podem ser
objeções. inovadores e críticos, mas os meios não, e vice-versa. Como resultado
Segundo L o v i s o l o , a i n t e r v e n ç ã o pode basear-se nos t e r í a m o s quatro tipos de profissionais: a) crítico ou inovador em

84 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2. p. 73-127. dez. 1996 Motus Corporis, Rio de Joneiro. v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 1996 85
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favor do "estilo")?
r e l a ç ã o aos objetivos e meios; b) a-crítico em relação aos objetivos e A racionalidade e a cientificidade foram os c r i t é r i o s que
crítico em r e l a ç ã o aos meios; c) crítico em relação aos objetivos e a- legitimaram socialmente á r e a s profissionais como a medicina, a
crítico em r e l a ç ã o aos meios; d) a-crítico em relação a objetivos e engenharia e a economia. Tal p r e t e n s ã o colocou-se t a m b é m à
m e i o s . Destaca que os casos " b " e " c " s ã o os s o c i o l ó g i c a e E d u c a ç ã o Física. Contudo, os seus limitem situam-se na relação " n ã o
historicamente mais relevantes, pois contrariam a expectativa que racional nem calculável entre meios e objetivos" (p. 35), e n ã o na a-
temos de uma a ç ã o racional, ou seja, que os meios devem sempre ser cientificidade ou a-racionalidade dos objetivos. Os objetivos s ã o
coerentes com os objetivos propostos. Novamente, uma excelente "valores socialmente compartilhados"; entretanto, os valores " t a m b é m
p e r c e p ç ã o do que acontece na nossa área! De fato, é frequente vermos permeiam os meios na a ç ã o educacional" (p. 36). A r e l a ç ã o meios-
professores de E d u c a ç ã o Física Escolar que se colocam objetivos objetivos apresenta-se como racional, quando, na realidade, é uma
inovadores, mas utilizam estratégias de ensino bastante tradicionais, relação segundo valores. Esclarece Lovisolo: os valores presentes
justificando isto com um discurso bastante tortuoso, e isto quando nos objetivos podem ser os mesmos dos meios (casos "a" e " d " ,
percebem a c o n t r a d i ç ã o . anteriormente apresentados) ou valores diferentes permeiam objetivos
Outra análise, relacionada à anterior, é realizada com relação à e meios (casos " b " e " c " ) .
dicotomia intenção versus efeitos. Muitos pensadores concluíram que
Por isso, para ele, as d i s c u s s õ e s sobre o objeto de estudo da
i n t e n ç õ e s e efeitos podem ser paradoxais ou contraditórios. Estamos
E d u c a ç ã o Física têm-se destinado apenas " à o b t e n ç ã o daSegitimidade
de acordo.
a c a d é m i c a " , enquanto as d i s c u s s õ e s sobre os valores'e objetivos
Lovisolo considera que a a v a l i a ç ã o das intenções " n ã o exige "destinam-se à o b t e n ç ã o da legitimidade social, da possibilidade de
c r é d i t o s especiais, por ser basicamente m o r a l " , enquanto que a intervenção e de suas modalidades" (p. 143).
a v a l i a ç ã o dos efeitos "demanda especialistas", e na arte da m e d i a ç ã o , Enfim, Lovisolo p r o p õ e uma arte da m e d i a ç ã o à E d u c a ç ã o
a avaliação dos efeitos " é um processo central, vertebral para a escolha Física; m e d i a ç ã o entre diferentes demandas, entre objetivos e meios,
dos programas, de sua m u d a n ç a , e para a o b t e n ç ã o do reconhecimento entre intenções e efeitos, entre conhecimentos, t é c n i c a s e saberes. O
social sobre os mesmos" (p. 33). Como, todavia, entre os educadores profissional da E d u c a ç ã o Física se assemelharia mais ao a r t e s ã o que
físicos predomina a a v a l i a ç ã o pela intenção, isto seria um "claro sinal ao cientista.
da i d e o l o g i z a ç ã o do campo da e d u c a ç ã o física", onde a disputa entre V o u tomar à Lovisolo seu exemplo sobre E d u c a ç ã o Física
os que aceitam a demanda social e os que lhe desejam dar forma, Escolar para situar inicialmente minhas d ú v i d a s . U m professor pode
"ganha sua maior força e virulência (...) a d i s c u s s ã o torna-se n ã o defender c o m q i ó b j e t i v o o desenvolvimento psicomotor do aluno, e
civilizada" (p. 33).. Novamente, o exemplo da Medicina, na qual outro a c o n s c i e n t i z a ç ã o de sua situação de vida; ambos podem operar
diferentes m é d i c o s podem defender uma "arte da m e d i a ç ã o diferente num " c l i m a " participativo e apoiando a capacidade de crítica da
em termos dos meios a serem articulados", todavia "partilham o criança. Sua escolha dos meios s ã o semelhantes. Lovisolo justifica-
objetivo de curar o paciente" e assim, a d i s c u s s ã o se torna " t é c n i c a , se afirmando que a crítica da pedagogia moderna à tradicional é mais
menos i d e o l ó g i c a " (p. 33). A q u i , tenho d ú v i d a s se um m é d i c o uma crítica aos valores presentes no processo p e d a g ó g i c o , "ao c l i m a "
homeopata assim encara a " d i s c u s s ã o " com seus colegas alopatas... do que aos objetivos, sobre os quais h á certo consenso: a t r a n s m i s s ã o
Ele exemplifica com o boxe, contra o qual a E d u c a ç ã o Física sistemática de conhecimentos é a meta da e d u c a ç ã o formal. A crítica
levanta argumentos humanistas. Esta i n t e n ç ã o crítica pouco efeito situar-se-ia, então em buscar uma coerência entre os valores presentes
tem nos programas de treinamento deste esporte. N ã o seria m e l h o r - nos objetivos e os valores presentes nos meios (p. 37). E conclui:
pergunta L o v i s o l o - aceitar os o b j e t i v o s do boxe e i n t r o d u z i r "Digamos que desejam que as intenções estejam presentes nos meios
m o d i f i c a ç õ e s que a m é d i o e longo prazo, poderiam p r o m o v e r pelos quais se procura realizá-las. E, depois de tudo, no cotidiano,
m u d a n ç a s (por exemplo, uma d i m i n u i ç ã o do valor do nocaute, em

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antes de sair de casa procuramos saber qual é o c l i m a " (p. 37). p r ó p r i a s é uma das forças atuantes no campo (o conceito de Bordieu
Compartilho com Lovisolo a ideia de que a d i s c u s s ã o central é citada pelo próprio Lovisolo) onde se confrontam os modelos de
na E d u c a ç ã o Física deva dar-se na a r t i c u l a ç ã o entre objetivos, meios prática do esporte, das ginásticas, da d a n ç a , e da E d u c a ç ã o Física
e valores. Mas como foi possível aos pedagogos obter, como afirma, Escolar. C o m que critérios vamos nos posicionar diante dos dois
consenso sobre os objetivos da e d u c a ç ã o formal? A definição de modelos de prática do esporte que se tornam cada vez mais claros
objetivos é individual ou social? E racional ou moral? E se é moral, aos olhos de todos: esporte f o r m a l / e s p e t á c u l o e esporte s a ú d e /
dela exclui-se a racionalidade? Como buscar correlação entre objetivos participação/lazer? Ou vamos esperar que a sociedade nos diga o que
e valores presentes nos meios? Os objetivos "desenvolvimento fazer? Ou que profissionais de outras áreas assumam o que é de nossa
psicomotor" e " c o n s c i ê n c i a da situação de vida" são excludentes? O responsabi I idade?
o b j e t i v o da E d u c a ç ã o F í s i c a Escolar t a m b é m é a " t r a n s m i s s ã o O processo de m u d a n ç a s de l o n g o prazo que L o v i s o l o
sistemática de conhecimentos"? Mas como, se ela não é - como pensa vislumbra no boxe, foi estudado por Elias & Dunning (1992) no
Lovisolo - uma disciplina como as outras... Que conhecimentos seriam futebol. Foram m u d a n ç a s na estrutura e no comportamento social
estes? que tornaram o futebol o esporte " c i v i l i z a d o " da burguesia inglesa,
Embora afirme que a o r i e n t a ç ã o por valores " n ã o p r e s s u p õ e a pela a p r o p r i a ç ã o e t r a n s f o r m a ç ã o do rude, e até violento, j o g o das
e l i m i n a ç ã o do debate sobre os mesmos" (p. 143), falta a Lovisolo camadas populares. Mas hoje, com base em q u ê a l g u é m da E d u c a ç ã o
uma teoria do valor que explicite este processo. A axiologia é um Física poderia propor m u d a n ç a s no boxe?
ramo da Filosofia. Quem define os valores? Qual s ã o os valores Prefiro utilizar um exemplo menos d r a m á t i c o Abreu (1993)
implicados nas demandas sociais da E d u c a ç ã o Física/Esporte?. Como estudou o f e n ó m e n o da e v a s ã o em nadadores de l 2/a 15 anos.
optar entre diferentes valores? Valores podem ser objeto de uma Concluiu que o c a n s a ç o , d e s â n i m o e tédio, somados aos insucessos
escolha racional. Segundo Abagnano (1982:256) v a l o r é " u m a repetidos eram fatores decisivos para os nadadores abandonarem o
possibilidade de escolha, isto é, uma d i s c i p l i n a inteligente das esporte. O n ú m e r o elevado de treinos por semana, o treino duplo
escolhas, que pode conduzir a eliminar algumas delas ou a declará- (feito de madrugada) e a pouca frequência de atividades fora d " á g u a
las irracionais ou nocivas, e conduzir a privilegiar outras". eram p r o v á v e i s causas para a falta de m o t i v a ç ã o e o c a n s a ç o . De
Lovisolo n ã o se coloca estas q u e s t õ e s , porque ocupa-se do posse destes dados, recomenda estratégias que m i n i m i z e m o stress,
que é, e n ã o do que deve ou pode ser. Tal ponto de vista fica claro alternativas aos treinos de madrugada e e s p e c i a l i z a ç ã o precoce, e
quando Lovisolo afirma que cabe à " c o m p e t ê n c i a filosófica teorizar estratégias para evitar a frustração de insucessos repetidos. Seria uma
sobre as filosofias em estado prático que os cientistas u t i l i z a m " (p. conclusão precipitada dizer que falta ludicidade ao treinamento? Abreu
136) e que suas p r e o c u p a ç õ e s pessoais e s t ã o vinculadas "ao como as nos aponta uma direção contrária ao imaginário social do "treinador":
disciplinas interagem em contextos institucionais, universidades e o sujeito d u r ã o , impiedoso, competitivo, autoritário, que exige sempre
institutos de pesquisas, do que ao como deveriam interagir" (p. 137).
9 o m á x i m o do seus atletas. Abreu p r o p õ e uma v i s ã o alternativa ao
Portanto, n ã o se pode cobrar de um autor o que ele n ã o se p r o p ô s a treinamento esportivo que necessita de f u n d a m e n t a ç ã o antropológica,
responder. Correto, mas de qualquer maneira podemos concluir que s o c i o l ó g i c a , p s i c o l ó g i c a . . . Sabemos que a partir deste estudo,
faltou-lhe filosofia... m u d a n ç a s efetivas foram realizadas no treinamento de nadadores em
M i n i m i z a a d i v e r g ê n c i a em favor do consenso em torno dos um clube da cidade de Belo Horizonte. A E d u c a ç ã o Física s ó pode
fins. A constante e x e m p l i f i c a ç ã o com a M e d i c i n a n ã o atenta para a propor m u d a n ç a s a partir da pesquisa científica e da reflexão filosófica;
permanente t e n s ã o entre a Medicina h o m e o p á t i c a e alopática, entre a a l e g i t i m a ç ã o a c a d é m i c a é um passo n e c e s s á r i o para fundamentar
preventiva e curativa. Coloca a comunidade a c a d ê m i c o - p r o f i s s i o n a l modelos de prática que a E d u c a ç ã o Física venha a propor.
da E d u c a ç ã o Física numa p o s i ç ã o muito passiva, esquecendo que ela N ã o existe c o r r e s p o n d ê n c i a entre intenção e efeito, concordo

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Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em Educação Física
com Lovisolo. Recorro a Flusser (1983) que nos inspira um outro
ponto de vista, desde a mesma c o n c l u s ã o : nossas a ç õ e s geram efeitos O u t r a f u n ç ã o de uma T e o r i a da E d u c a ç ã o F í s i c a seria
n ã o esperados. Isto pode nos conduzir, ou ao ceticismo e à inércia, sistematizar e organizar os conhecimentos a serem transmitidos aos
ou ao campo da e s p e r a n ç a e da utopia, pois pela mesma lógica, nossa futuros profissionais. N ã o podemos esperar que cada graduando
a ç ã o pode levar a efeitos que estejam em acordo com nossos valores comece tudo de novo, por sua própria conta. Ou devemos fechar os
e objetivos, ou nos obrigar a r e v ê - l o s . D a í , concluirmos que a única cursos de g r a d u a ç ã o ? N ã o pude deixar de lembrar da Europa p r é -
coisa a evitar é a o m i s s ã o - enquanto comunidade a c a d ê m i c a - capitalista, quando meninos aprendiam o ofício de sapateiros na
profissional nossa o b r i g a ç ã o é apontar rumos, denunciar d i s t o r ç õ e s , oficina d.e seus mestres... Mas é claro que esta ironia é injusta à
sugerir m u d a n ç a s , antecipar efeitos. Lovisolo, pois, de qualquer maneira ele nos indica a necessidade de
A m e d i a ç ã o entre c o n h e c i m e n t o s , t é c n i c a s e saberes é repensar o atual m o d e l o de f o r m a ç ã o c u r r i c u l a r , f o r t e m e n t e
"inconsciente ou semiconsciente", é certo, n ã o seria bom se fosse infl uenciado pela c o n c e p ç ã o da E d u c a ç ã o Física como disciplina
consciente ao profissional? Ela pode ser ensinada? Ela pode ser científica. I n ú m e r o s trabalhos, produzidos na Pedagogia, c o n c l u í r a m
aprendida? Como? pelas limitações deste modelo; esta discussão j á se iniciou na Educação
De qual ciência Lovisolo fala? Ele parece referir-se à s c i ê n c i a s Física . L o v i s o l o faz um bom d i a g n ó s t i c o , mas nos deixa sem
naturais/exatas. E as c i ê n c i a s humanas? A p r ó p r i a Antropologia n ã o alternativas.
se auto-intitula "ciência"? Lovisolo t a m b é m não se ocupa em legitimar V e j o com p r e o c u p a ç ã o o desejo de L o v i s o l o em retirar
a i m p o r t â n c i a das disciplinas científicas na f o r m a ç ã o do profissional. totalmente o marxismo do campo da d i s c u s s ã o . É c o m p r e e n s í v e l ,
Porque a Antropologia deveria tomar parte na f o r m a ç ã o profissional pois na E d u c a ç ã o Física ele introduziu-se nos anos 80 de segunda
em E d u c a ç ã o Física? m ã o , a t r a v é s da Pedagogia, como um marxismo mecanicista. Mas
Ele a t r i b u i pouco v a l o r à i m p o r t â n c i a mais a m p l a dos não podemos incorrer no erro de retirar do debate todas as suas
conhecimentos científicos e filosóficos na E d u c a ç ã o Física; não apenas c o n t r i b u i ç õ e s (embora se possa q u e s t i o n á - l a s ) , pois o lugar t e ó r i c o
para a f o r m a ç ã o profissional, mas t a m b é m para a l e g i t i m a ç ã o das que o marxismo deixaria vago poderia ser rapidamente ocjjpado por
práticas, f o r m u l a ç ã o de políticas, etc. A l e g i t i m a ç ã o a c a d é m i c a da a b o r d a g e n s c a r r e g a d a s de " e m p i r i s m o t o l o , a p o i a d a s em
E d u c a ç ã o Física n ã o é, para m i m , tarefa de pouca monta, desde que levantamentos, estatísticas e num grosseiro bom senso" ( A u m o n t ,
n ã o se limite a um f i m em si mesmo. Sabemos que o c é l e b r e artigo 1995:185). Por e x e m p l o , o c o n c e i t o de i d e o l o g i a permanece
de F . M . Henry foi motivado pelo questionamento que autoridades desafiador, quer se o denomine "fantasia", "senso c o m u m " , "doxa",
u n i v e r s i t á r i a s faziam à validade a c a d é m i c a da E d u c a ç ã o Física. E ou "cultura". O filósofo Paul Ricoeur, por exemplo, ao atribuir ao
preciso c o m e ç a r por algum lugar, e com este debate a c a d é m i c o , a conceito de ideologia outras funções que n ã o apenas o de d e f o r m a ç ã o
E d u c a ç ã o Física mudou. A l g u é m teria coragem de dizer que foi para da realidade, demonstrou como é possível ser a-marxista, sem ser
pior? A abordagem científica e filosófica foi uma fonte de i n t r o d u ç ã o anti-marxista - no sentido de cruzar Marx, e ir adiante' .
de variedade no sistema da E d u c a ç ã o F í s i c a brasileira, como j á Lovisolo v ê com cuidado a q u e s t ã o da interdisciplinaridade.
apontamos (Betti, 1991). Conseguimos ocupar um e s p a ç o legitimado Situa-a em três níveis. O primeiro é entendido como a utilização por
nas Universidades, resta saber o que vamos fazer com ele daqui para uma disciplina de modelos teóricos ou conceitos elaborados em outra
frente. Concordo que, agora, podemos interpretar o processo com mais consolidada. N o segundo nível a interdisciplinaridade seria o
maior distanciamento, e propor c o r r e ç õ e s no rumo. Mas, ora, pelos d i á l o g o das d i s c i p l i n a s , uma soma de e s f o r ç o s na s o l u ç ã o de
mesmos critérios de Lovisolo, a Medicina é, igualmente, uma área problemas t e ó r i c o s , mas, principalmente, problemas p r á t i c o s . O
de i n t e r v e n ç ã o ; e n ã o passou ela por um processo de l e g i t i m a ç ã o terceiro entendimento s u p õ e uma c o n s t r u ç ã o integrativa e holística,
a c a d é m i c a e social? superadora de pontos de vistas parciais, é uma c o n c e p ç ã o carregada
do desejo de unidade e t r a n s p a r ê n c i a .

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A r g u m e n t a novamente com a d i f e r e n ç a entre i n t e r v i r e Filho, e, paulatinamente, apresentando minhas próprias considerações.


conhecer: conhecer é desvendar os mecanismo da "caixa preta"; Considera que o surgimento, definição e t r a n s f o r m a ç ã o de uma
intervir é atingir objetivos, é modificar ou inventar uma coisa ou á r e a c i e n t í f i c a s ã o determinados pelas r e l a ç õ e s entre: a) uma
processo. O interventor n ã o precisa dos conhecimentos científicos problemática que emerge das práticas sociais; b) a reflexão e as práticas
para agir. Lovisolo j u l g a um mito, uma "utopia" que a E d u c a ç ã o dela resultantes, desenvolvidas por trabalhadores especializados na
Física, como disciplina de intervenção, possa operar com mecanismos p r o d u ç ã o e s i s t e m a t i z a ç ã o do conhecimento científico. A E d u c a ç ã o
transparentes (isto seria " c i e n t i f i c i s m o " ) ; mas, ao i n v é s , t e r á Física construirá sua identidade epistemológica e metodológica através
necessariamente de fazê-lo "com os obscuros processos da interação do "enfrentamento da p r o b l e m á t i c a concreta daquelas r e l a ç õ e s do
social" (p. 145). homem com a natureza e com outros homens, que t ê m na motricidade
Isto, obviamente, é um empecilho à interdisciplinaridade no - no movimento humano consciente - seu foco central" ( l 994:50).
seu terceiro entendimento. Para Lovisolo, n ã o motivo para queixas, Dadas as c o n d i ç õ e s históricas em que se construiu a E d u c a ç ã o
pois, afinal, nem a física ou a sociologia a l c a n ç a r a m a unificação ou Física em nossa sociedade, a sua prática p e d a g ó g i c a em escolas,
i n t e g r a ç ã o teórica. Nem mesmo o fato dos cursos de f o r m a ç ã o em academias e clubes constitui-se num foco privilegiado de a t e n ç ã o ,
E d u c a ç ã o Física possuírem uma área disciplinar bastante abrangente porque nestas situações de aula apresentam-se problemas relacionados
( B i o l o g i a , P s i c o l o g i a , S o c i o l o g i a , etc.) f u n c i o n a a f a v o r da com a m o t r i c i d a d e (dificuldades de aprendizagem, r e l a ç õ e s de
interdisciplinaridade. A m e d i a ç ã o entre as disciplinas, na prática de violência, preconceitos sobre o corpo, etc), s o l u ç õ e s propostas pelos
intervenção, não promove a interdisciplinaridade porque "as matrizes profissionais de E d u c a ç ã o F í s i c a para o enfrentamento de tais
teóricas conservam sua autonomia, embora suas aplicações reforcem problemas ( s e q u ê n c i a s p e d a g ó g i c a s , regras de c o n v í v i o , etc.), e, por
seus efeitos, se o regente possui a arte suficiente para provocar o f i m , a a s s i m i l a ç ã o ou rejeição, por parte dos alunos, a essas práticas
efeito de conjunto" (p. 146). e ideias do professor. Embora admita que o movimento humano
Assim, resta à Lovisolo apostar na interdisciplinaridade, por consciente ocorra em muitos contextos, é a prática p e d a g ó g i c a que
um lado, como d i á l o g o , como usufruto "dos dizeres e fazeres dos "pode trazer tal movimento para uma situação em que é possível
colegas de outras disciplinas", e por outro, como " m e d i a ç ã o entre observá-lo e buscar a sua c o m p r e e n s ã o em suas múltiplas d i m e n s õ e s "
valores, disciplinas, técnicas, saberes e artes" (p. 147), o que significa, (1994:50) x
para ele, uma aposta na diversidade, em o p o s i ç ã o ao " p a r a í s o Alerta que, nos cursos de g r a d u a ç ã o e p ó s - g r a d u a ç ã o falta uma
t o t a l i t á r i o " da i n t e g r a ç ã o total e do h o l i s m o . Para m i m , s ó a teoria geral da e d u c a ç ã o física, "ou seja, seu próprio paradigma, que
c o n c r e t i z a ç ã o disto j á seria um grande a v a n ç o para a E d u c a ç ã o Física. poderia unificar todos os conhecimentos oriundos de outras disciplinas
num todo organizado e coerente" (1995b: 18). Culpa o positivismo
Do discurso marxista pela f r a g m e n t a ç ã o do conhecimento, na E d u c a ç ã o Física e na c i ê n c i a
Kolyniak Filho (1994, 1995a, 1995b) trouxe uma nova leitura do em g e r a l , ao seguir a mesma l ó g i c a de d i v i s ã o do t r a b a l h o
materialismo histórico ao âmbito da Educação Física, enriquecendo o característica do capitalismo. Nesta lógica, caberia à E d u c a ç ã o Física
debate com novos entendimentos para as temáticas da relação teoria- estudar a motricidade e o corpo humanos em seus aspectos biológicos,
prática, do objeto de estudo da Educação Físicae da interdisciplinaridade. passíveis de quantificação e controle.
Introduz ainda novas categorias, para mediar a relação entre a teoria E na própria realidade que Kolyniak Filho encontra fatos para
marxista e a Educação Física: o conceito de trabalho, que passa ocupar o questionar o modelo positivista que tem orientado a p r o d u ç ã o e a
primeiro plano, reduzindo a importância da luta de classes como único s o c i a l i z a ç ã o do conhecimento em e d u c a ç ã o física: pessoas com
referencial, e o papel de mediação da linguagem. aversão pela prática s i s t e m á t i c a de atividades físicas, dificuldades de
Para facilitar ao leitor, irei sintetizar as ideias de Kolyniak participação em jogos de grupo como voleibol, basquetebol, mesmo

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d e f i n i ç õ e s . Posso apenas destacar alguns dos enumerados por
em s i t u a ç õ e s informais; falta de conhecimentos que permitam às Kolyniak Filho: o homem é uma totalidade bio-psico-social, que
pessoas escolher e avaliar práticas sistemáticas de atividades motoras distingue dos animais pela sua c o n s c i ê n c i a , c o n s t r u í d a nas e pelas
c o m p a t í v e i s com suas necessidades e possibilidades; e x i s t ê n c i a de r e l a ç õ e s sociais; provisoriedade e transitoriedade do conhecimento,
preconceitos (por exemplo, que é possível perder gordura localizada que é c o n s t r u í d o nas r e l a ç õ e s concretas do homem com a realidade,
com e x e r c í c i o s localizados); c r i a n ç a s especializadas precocemente, mediada por signos; indissociabilidade entre teoria - entendida como
que abandonaram totalmente as atividades esportivas ao final da reflexo p s í q u i c o sistematizado sobre a realidade ou parte dela - e
a d o l e s c ê n c i a , dentre outras. prática, que é a " a ç ã o direta sobre a natureza ou sobre outros homens,
A culpa disto tudo - pergunto eu - é dos pesquisadores mediada por instrumentos e/ou por signos" (p. 21).
positivistas? Ora, isto é atribuir-lhes um poder que n ã o t ê m . E, claro, Muitas destas a s s u n ç õ e s n ã o s ã o exclusivas do marxismo -
estes mesmos problemas poderiam ser igualmente detectados e por exemplo, a ideia de que o homem é um todo indissociável em
pesquisados - e o s ã o , de fato - sob o modelo do que K o l y n i a k corpo e mente, de que é uma totalidade bio-psico-social. Esta é uma
denominou positivismo (pesquisas sobre o metabolismo de gordura, c o n c e p ç ã o bastante antiga na Filosofia. T a m b é m é oportuno lembrar
por exemplo). De qualquer maneira permanece válida a ideia que a que a p r ó p r i a dialética n ã o é uma i n v e n ç ã o marxista, mas sua origem
p r o b l e m á t i c a da E d u c a ç ã o Física emerge da realidade prática. remonta a filósofos p r é - s o c r á t i c o s .
U m paradigma teórico caracteriza-se pelo modo como responde O trabalho é um importante conceito que distingue a proposição
à q u e s t õ e s o n t o l ó g i c a , e p i s t e m o l ó g i c a e m e t o d o l ó g i c a . C o m o tal de K o l y n i a k Filho. Ele aparece associado à g é n e s e da c o n s c i ê n c i a
p o s i c i o n a m e n t o - pensa K o l y n i a k F i l h o - v a r i a em f u n ç ã o de humana, é entendido como
c o n v i c ç õ e s individuais, torna-se i m p o s s í v e l postular um paradigma a ç ã o exercida deliberadamente pelo homem sobre a natureza
único para a E d u c a ç ã o Física. Assim, cada pesquisador deve assumir para t r a n s f o r m á - l a , com vistas à s o b r e v i v ê n c i a , envolve sempre as
uma o p ç ã o que corresponda aos seus pressupostos, desde que faculdades motoras e psíquicas e, por isto, é a atividade global através
"possibilite a c o e r ê n c i a na f o r m u l a ç ã o de problemas de pesquisa, na da qual o homem tem-se desenvolvido como e s p é c i e (p. 24).
metodologia para busca de s o l u ç ã o desses problemas e na utilização Foi o trabalho - prossegue Kolyniak Filho - que possibilitou a
a ser feita do conhecimento assim produzido" (1995b: 19-20), De c o n s t r u ç ã o de signos e da linguagem, fundamentos do pensamento e
fato, é assim que tem funcionado, j á que se tratam de processos da c o n s c i ê n c i a . C o m o o t r a b a l h o é u m a a ç ã o m e d i a d a pela
individuais (é a minha pesquisa, a minha tese, o meu orientador...). m o t r i c i d a d e , estabelece-se uma r e l a ç ã o entre " m o t r i c i d a d e e
Este "assumir partido" é mais característico nas C i ê n c i a s Humanas e c o n s c i ê n c i a , entre corpo e mente, entre a ç ã o individual e atividade
na Filosofia, j á que pesquisadores das ciências naturais, normalmente, coletiva, como constitutivos indissociáveis da realidade humana" (p.
não se colocam estas q u e s t õ e s , na medida em que o desenvolvimento 25). Esta consideração introduz na discussão um novo conceito. Bracht
histórico da área consolidou fundamentos que demoram muito a serem (1992) conclui pela possibilidade do lazer ser elemento de m e d i a ç ã o ,
questionados. Contudo, seria interessante inquirir Kolyniak Filho a Lovisolo pela m e d i a ç ã o de conhecimentos, saberes e t é c n i c a s como
respeito dos c u r r í c u l o s de f o r m a ç ã o dos profissionais da E d u c a ç ã o uma artesanato, e K o l y n i a k p r o p õ e o trabalho c o m o conceito
F í s i c a , que s ã o processos grupais. T e r í a m o s aqui um c u r r í c u l o mediador. Pode-se, n ã o sendo marxista, discordar. Mas é preciso
m a t e r i a l i s t a d i a l é t i c o , a l i um n e o - p o s i t i v i s t a , a c o l á o u t r o admitir que, no â m b i t o do marxismo, é uma p r o p o s i ç ã o o b r i g a t ó r i a ,
f e n o m e n o l ó g i c o , e assim por diante? Quem definiria tal perfil? O uma a p l i c a ç ã o conceituai que até e n t ã o n ã o havia sido feita na teoria
Estado? O corpo docente? Aos alunos n ã o caberia nenhuma o p ç ã o ? da E d u c a ç ã o Física. A s s i m , com base em K o l y n i a k Filho, podemos
K o l y n i a k Filho, como é ó b v i o , manifesta sua preferência pelo entender o trabalho em dois níveis: como m e d i a ç ã o entre motricidade
"materialismo histórico dialético, elaborado a partir da obra de M a r x e c o n s c i ê n c i a , no p l a n o i n d i v i d u a l ; e c o m o o t r a b a l h o dos
e Engels" (1995b:20), o que i m p l i c a em alguns pressupostos e

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pesquisadores e profissionais do qual resulta o conhecimento da a possibilidade de que a intencionalidade possa estar oculta ao sujeito,
E d u c a ç ã o Física. no plano do semiconsciente ou inconsciente (recorro aqui, é claro, a
Mas, ao definir o objeto de estudo da E d u c a ç ã o Física como o F r e u d ) . Posso, i g u a l m e n t e , t e r c o n s c i ê n c i a das m i n h a s
m o v i m e n t o h u m a n o consciente, K o l y n i a k F i l h o mete-se em intencional idades, e me valer de movimentos automatizados.
embaraços. E Manuel Sérgio quem nos esclarece: a motricidade n ã o se
A d m i t e inicialmente que "todo objeto da c i ê n c i a é t e ó r i c o " confunde com a motilidade; esta n ã o exclui a capacidade de e x e c u ç ã o ,
( 1 9 9 5 b : 2 2 ) . O c i e n t i s t a n ã o estuda coisas em s i , mas coisas de movimentos que resultam da c o n t r a ç ã o de m ú s c u l o s lisos ou
representadas, e esta r e p r e s e n t a ç ã o exige a explicitação do conjunto estriados, mas "a motricidade está antes da motilidade, porque tem a
de pressupostos que a justifique. K o l y n i a k Filho explicita seus ver c o m os aspectos p s i c o l ó g i c o , o r g a n i z a t i v o , s u b j e t i v o do
pressupostos mais ou menos dentro do que se poderia esperar da movimento (...) a motilidade é a e x p r e s s ã o da motricidade" (p. I 56).
perspectiva materialista histórica: interesses da classe dominante, E para quem, como eu, é um admirador das c o n s i d e r a ç õ e s de
d i v i s ã o social do trabalho, e x p l o r a ç ã o da mais-valia, ideologia, etc. Huizinga ( l 971) e Buytendjik (1977) sobre o j o g o , n ã o faz sentido,
O objeto de estudo é definido contemplando uma certa v i s ã o por exemplo, perguntar qual é a intencionalidade do comportamento
de h o m e m : sendo humano, refere-se ao m o v i m e n t o c o n s t r u í d o lúdico. Pode-se usufruir da v i v ê n c i a do j o g o sem ter c o n s c i ê n c i a do
historicamente, na relação do homem com a natureza e com outros que é o jogo, sem ter que explicá-lo pela linguagem. Será que Kolyniak
homens; sendo consciente, é aquele m o v i m e n t o que pode "ser Filho n ã o confundiu t a m b é m c o n s c i ê n c i a com t e o r i z a ç ã o científica,
representado por signos e compreendido no quadro de um conjunto j á que para ele teoria é "reflexo psíquico sistematizado"? Quem precisa
de significados c o n s t r u í d o s socialmente" (p.23). A c o n s c i ê n c i a teorizar sobre o j o g o : o profissional da E d u c a ç ã o F/ísica ou o jogador?
humana é aí concebida como processo s e m i ó t i c o , "necessariamente N a verdade, penso que confundiu o objeto de estudo (que, concordo,
mediado por signos" (p. 23). é c o n s t r u í d o ) com a c o n s c i ê n c i a do sujeito real que pratica o
O m o v i m e n t o humano consciente compreende "todas as movimento. Porque, ao considerar a E d u c a ç ã o Física enquanto área
m a n i f e s t a ç õ e s de movimento corporal das quais o indivíduo pode de conhecimento, K o l y n i a k Filho obriga-se, por exemplo, a nela
formar uma r e p r e s e n t a ç ã o psíquica, a t r a v é s de qualquer sistema de incluir os movimentos reflexos, mas os exclui quando considera um
signos, e que podem ser submetidas ao seu controle v o l u n t á r i o " (p. sujeito concreto em movimento. Isto explica porque foi conduzido,
24). Este controle implica no estabelecimento de relações entre meios adiante, a distinguir entre E d u c a ç ã o Física como área do conhecimento
e fins, "pressupondo uma intencionalidade em todas as manifestações e como prática p e d a g ó g i c a .
motoras deliberadas, as quais atendem a necessidades individuais e O estudo do movimento humano consciente - finaliza Kolyniak
coletivas" (p. 24). Estão excluídos os movimentos reflexos, as sístoles- Filho - tem i m p o r t â n c i a fundamental porque se constitui na forma
d i á s t o l e s c a r d í a c a s e o peristaltismo em geral (já que n ã o s ã o essencial de relação do homem com a natureza e com outros homens.
conscientes), embora n ã o devam ser ignorados porque fazem parte Provavelmente, um f e n o m e n ó l o g o n ã o teria grandes o b j e ç õ e s a esta
do entendimento dos aspectos b i o l ó g i c o s da motricidade e servem c o n c l u s ã o r d e s d e que se exclua o termo "consciente" ou se o substitua
como contraponto às m a n i f e s t a ç õ e s motoras conscientes. por "intencional". O entendimento deste f e n ó m e n o humano, por sua
Creio que aqui K o l y n i a k Filho confunde c o n s c i ê n c i a com vez é pressuposto para uma i n t e r v e n ç ã o deliberada no processo
intencionalidade, e, tanto quanto entendo de Fisiologia, t a m b é m histórico das r e l a ç õ e s humanas - uma interferência na realidade. E
confundiu movimento muscular v o l u n t á r i o , com consciente, bem preciso ser marxista para concordar com esta c o n c l u s ã o ?
como ignorou a e x i s t ê n c i a de movimentos automatizados (que n ã o Mas é ao enumerar implicações de sua proposta para a pesquisa
s ã o involuntários...). N ã o h á a ç ã o humana sem intencionalidade, e para o ensino, que Kolyniak Filho evidencia sua maior c o n t r a d i ç ã o .
mesmo que esta n ã o seja consciente para m i m . Kolyniak Filho exclui Propõe abordar o movimento sempre em sua relação com a d i n â m i c a

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das interações sociais do contexto, destacando as relações de p r o d u ç ã o
e os valores veiculados pelos meios de c o m u n i c a ç ã o de massa, e parcialmente com ele.
incluir a abordagem s e m i ó t i c a da significação na c o m p r e e n s ã o das E por f i m , ao evidenciar a necessidade de construir uma
e x p r e s s õ e s individuais e coletivas do movimento. Tudo bem, é um metodologia de pesquisa que n ã o utilize isoladamente m é t o d o s das
programa de pesquisas bastante atualizado, e até inovador, mas que ciências naturais ou sociais, nem sobreponha tais m é t o d o s de forma
não chega a se constituir como um privilégio do materialismo histórico estanque, Kolyniak Filho estabelece mais um ponto de identificação
d i a l é t i c o . O problema vem na i m p l i c a ç ã o seguinte, quando p r o p õ e com as propostas que queria superar: a E d u c a ç ã o Física precisaria
que, embora a e d u c a ç ã o física tenha-se c o n s t i t u í d o historicamente operar com uma metodologia original. Gostaria de lembrar que a
como área de conhecimento a partir da situação que envolve ensino e mesma c o l o c a ç ã o é feita por Tani.
treinamento, "seu campo de pesquisa deve ultrapassar amplamente o Como c o n s e q u ê n c i a , parece-me que o conceito de movimento
contexto p e d a g ó g i c o " (p. 27). Para isto, seria n e c e s s á r i o distinguir humano consciente fica restrito ao ensino, j á que a prática p e d a g ó g i c a
"a e d u c a ç ã o física entendida como área de conhecimento (cujo objeto caracterizar-se-ia por "estabelecer um plano de ensino que tenha o
é o movimento humano consciente) da e d u c a ç ã o física entendida movimento humano consciente como ponto de partida e como ponto
como prática p e d a g ó g i c a ou componente curricular (na qual se aplica de chegada" (p. 28). As e x p e r i ê n c i a s de ensino c o m e ç a r i a m com a
o conhecimento elaborado pela c i ê n c i a da e d u c a ç ã o f í s i c a ) " . 1 2
" e x p l i c i t a ç ã o do objeto de estudo da e d u c a ç ã o física" (p.28) e ao
Novamente, a abordagem marxista, que poderia ampliar o conceito final do processo, o significado a ele a t r i b u í d o pelos alunos d e v e r á
de prática p e d a g ó g i c a , a reduz ao ensino formal. "ser muito mais rico em c o n t e ú d o s e possibilidades de utilização
Parece que K o l y n i a k Filho retorna à s p r o p o s i ç õ e s de Tani, e pessoal" (p 28). Tal processo demanda uma metodologia de ensino
da corrente norte-americana, e à Manuel S é r g i o (autores que, j u s t i ç a que integra a vivência da motricidade e a reflexão sobre elas, tomando-
se faça, s ã o citados por ele), e reinstaura a dicotomia p r o d u ç ã o versus se por base um "conjunto de conceitos científicos que fornecem
a p l i c a ç ã o de conhecimentos, contradizendo a principal c o n t r i b u i ç ã o categorias para a c o m p r e e n s ã o do movimento humano consciente,
que havia feita anteriormente - o conhecimento da E d u c a ç ã o Física em suas determinantes biológicas e psicossociais" (p. 28).
só faz sentido quando emerge de uma prática concreta. A l é m disso, Em ensaio recente ( B e t t i , 1994b) chegamos a p r o p o s i ç ã o
se ele inclui o ensino e treinamento em clubes, escolas e academias semelhante, ao estudar as possibilidades de a p l i c a ç ã o das teorias
na constituição histórica da Educação Física, que outra prática concreta s e m i ó t i c a s ao ensino da E d u c a ç ã o Física, mas sem a p r e t e n s ã o de
restaria à c i ê n c i a do movimento humano consciente? fundar uma teoria da E d u c a ç ã o Física a partir delas. A c o n s c i ê n c i a
T a m b é m a d e n o m i n a ç ã o " E d u c a ç ã o Física" é questionada, pois do movimento - entendo eu - é um f i m , é um objetivo de ordem
ela seria incompatível com a visão de homem como ser indissociável p e d a g ó g i c a a ser a l c a n ç a d o pela E d u c a ç ã o Física, e n ã o seu objeto de
em corpo e mente. Registra, entretanto, o "perigo" de adotar uma estudo. Mas a c o n t r a d i ç ã o para a qual queremos chamar a a t e n ç ã o , é
nova d e n o m i n a ç ã o para a c i ê n c i a do movimento consciente: poderia que K o l y n i a k Filho, contrariando as expectativas iniciais, situa o
ocorrer uma ruptura entre o processo h i s t ó r i c o de c o n s t i t u i ç ã o do ensino c o m o um c a m p o de a p l i c a ç ã o , e n ã o de p r o d u ç ã o do
conhecimento da e d u c a ç ã o física, produzido a partir de seu e x e r c í c i o conhecimento, mantendo o dualismo.
profissional concreto, e o processo de a m p l i a ç ã o e r e i n t e r p r e t a ç ã o Parece-me ainda que Kolyniak Filho n ã o situa com clareza
deste mesmo conhecimento. C o m o c o n s e q u ê n c i a , haveria uma suas críticas aos positivismo. Para m i m , a limitação do positivismo
possível a p r o p r i a ç ã o da "nova" área por profissionais formados em não é tanto a f r a g m e n t a ç ã o em á r e a s e s u b - á r e a s cada vez mais
outras e s p e c i a l i z a ç õ e s , fato que pode "descaracterizar o sentido dado especializadas (que atingiu tanto as C i ê n c i a s da Natureza como as
ao m o v i m e n t o h u m a n o c o n s c i e n t e " ( p . 2 8 ) . U m a r g u m e n t o C i ê n c i a s Humanas), mas na indistinção entre as metodologias das
corporativista, que n ã o deixa de surpreender, mesmo que se concorde C i ê n c i a s Naturais e C i ê n c i a s Humanas. Exige-se para estas ú l t i m a s
os mesmos critérios de cientificidade consagrados nas primeiras, n ã o

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Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2, p. 73-127, dez. 1996 99
Universidade Gama Filho Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física

considerando a possibilidade de que a objetividade das C i ê n c i a s p s i c ó l o g o s , s o c i ó l o g o s e professores de E d u c a ç ã o Física planejariam


Humanas seja de outra ordem e esteja em c o n s t r u ç ã o , em a d e q u a ç ã o os c o n t e ú d o s de suas disciplinas em conjunto, cada um interferindo
crescente aos seus objetos ( L a d r i è r e , 1982). A c r e n ç a na filosofia no planejamento dos outros, e até ministrando aulas em conjunto.
e s p o n t â n e a dos cientistas (apenas os p r ó p r i o s cientistas podem Lembro que esta ideia vai de encontro à c o n c e p ç ã o de c u r r í c u l o
questionar seus fundamentos epistemológicos), típica dos positivistas, t e m á t i c o , proposta por Lawson (1990). Entretanto, n ã o p o d e r í a m o s
é uma das principais causas disto. Contudo, não podemos deixar de p e n s á - l a para a prática da pesquisa em E d u c a ç ã o F í s i c a ?
considerar o entrave que positivistas ortodoxos, para n ã o dizer A interdisciplinaridade possível na E d u c a ç ã o Física só pode
antiquados, colocam ao a v a n ç o de uma c o n c e p ç ã o mais sofisticada emergir de uma prática de trabalho, seja no ensino, seja na pesquisa.
de c i ê n c i a em E d u c a ç ã o F í s i c a . A i n d a temos no nosso m e i o Vamos reter esta ideia, onde creio termos a v a n ç a d o em r e l a ç ã o à
p e s q u i s a d o r e s que c r ê e m na a c u m u l a ç ã o " v e r t i c a l " dos Bracht e Lovisolo.
conhecimentos, e que a c i ê n c i a é ou s e r á um dia redentora da
humanidade, mantendo intacto o ideário formulado por Augusto PARA A L É M DAS DICOTOMIAS:
Comte no século X I X . E M BUSCA D A TEORIA D A PRÁTICA
O b v i a m e n t e a E d u c a ç ã o F í s i c a n ã o tem um p a r a d i g m a
unificador, como pleiteia Kolyniak Filho, como t a m b é m n ã o os t ê m C i ê n c i a ou p r á t i c a p e d a g ó g i c a , d i s c i p l i n a a c a d é m i c a ou
a Sociologia ou a Psicologia. É discutível que até mesmo a Física o profissão? H á duas respostas possíveis: sim ou n ã o , esta ou aquela.
possua - Lovisolo tem razão. Se cabe a cada um de n ó s optar por um
Mas apenas se julgamos a pergunta relevante. E se abandonarmos a
paradigma, isto possibilitaria uma c o e r ê n c i a na maneira como eu
q u e s t ã o ? Poderemos, e n t ã o , admitir que existem dois pólos, e mais
vejo a E d u c a ç ã o Física, mas n ã o uma unidade na E d u c a ç ã o Física. E
importante que defender um deles em detrimento do outro, tratar-se-
se esta é uma d e c i s ã o i n d i v i d u a l , qualquer sistema f i l o s ó f i c o -
e p i s t e m o l ó g i c o (exceto o positivismo ortodoxo - todos concordamos) ia de propor as inter-relações possíveis entre eles, respeitando as
pode funcionar como fator de unificação - a fenomenologia, o neo- peculiaridades, as possibilidades e limites de cada um destes e s p a ç o s
positivismo, o marxismo, quiçá a psicanálise... Se admitirmos que sociais.
isto criaria três ou quatro teorias da E d u c a ç ã o Física, três ou quatro A q u i , a ideia da m e d i a ç ã o proposta por Lovisolo é fecunda.
objetos de estudo, três ou quatro c i ê n c i a s do movimento humano, T o d a v i a , para n ó s , a p r ó p r i a m e d i a ç ã o deve ser um objeto de
t e r í a m o s , da mesma forma, que admitir que existem pelo menos três investigação científica e filosófica - uma hipótese que Lovisolo rejeita.
Sociologias, três ou quatro Psicologias, duas Físicas, e assim por N ó s a encontramos em teorias s o c i o l ó g i c a s recentes e estimulantes,
diante. N ã o é essa a q u e s t ã o - e esta crítica aplica-se a Lovisolo como em Norbert Elias e Pierre Bordieu, e assim como em recentes
t a m b é m . N ã o acredito que alguma c i ê n c i a a l c a n ç a r á um dia um teorias p e d a g ó g i c a s do ensino e da a ç ã o docente. Por todo o percurso
paradigma unificador. Aliás, este não deixa de ser um ideal positivista,
do nosso debate, a p r o b l e m á t i c a r e l a ç ã o entre teoria e prática na
personificado na e s p e r a n ç a de que a linguagem m a t e m á t i c a possa
E d u c a ç ã o F í s i c a apareceu como "pano de fundo", à s vezes n ã o
um dia realizar essa unificação.
explicitada. Todos os autores que revisamos, cada qual a sua maneira,
Uma contribuição importante de Kolyniak Filho (1995a) situa- buscaram a m e d i a ç ã o entre a teoria e a prática. Chegaram p r ó x i m o ,
se na sua p o s i ç ã o com relação à interdisciplinaridade: a ideia da mas n ã o se comprometeram até as ú l t i m a s c o n s e q u ê n c i a s .
interdisciplinaridade em ato, entendida como a t u a ç ã o conjunta e
Para n ó s , a r e l a ç ã o entre teoria e prática é um ponto crucial
articulada de profissionais de diferentes áreas, e não apenas o recurso
para a E d u c a ç ã o Física. A falta de clareza nesta q u e s t ã o é que nos
a teorias de diferentes c i ê n c i a s . Kolyniak Filho a vislumbra como
recurso do ensino na g r a d u a ç ã o , no qual, por exemplo, m é d i c o s . tem levado a muitos e q u í v o c o s , e à p e r m a n ê n c i a de um pensamento

100 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 1996 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 1996 I0l
Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física
Universidade G a m a Filho
Em suma, como j á apontamos, esta c o n c e p ç ã o n ã o leva em
dualista. Bordieu (1990), que n ã o é da área, nos d á respaldo, ao conta as realidades comportamentais, culturais e políticas da práticas
considerar o esporte e a d a n ç a como terrenos nos quais se colocam de trabalho.
como fundamental o problema das r e l a ç õ e s entre teoria e prática, Estas críticas contundentes n ã o devem nos levar a uma visão
entre linguagem e corpo. H á condutas - prossegue ele - que se pessimista, e muito menos a uma n e g a ç ã o da ciência, mas produzir
produzem a q u é m da c o n s c i ê n c i a , que se compreendem apenas com uma reflexão que pode ser promissora. Qual o papel da teoria e do
o corpo, sem ter palavras para exprimi-lo; é um modo de c o m p r e e n s ã o conhecimento científico/e filosófico na formação do profissional de
particular, esquecido pelas teorias da inteligência. E d u c a ç ã o Física? Lawson sugere que a prática torne-se o foco da
Por duas vezes j á discutimos este assunto; primeiro, com pesquisa e da preparação profissional. O que deveríamos entender então
referência à f o r m a ç ã o profissional (Betti, 1992), depois, propondo a por prática? U m profissional de E d u c a ç ã o Física planeja, executa e
s e m i ó t i c a como uma elemento de m e d i a ç ã o no ensino da E d u c a ç ã o avalia programas de atividades corporais para clientelas diversas, em
diferentes organizações e com múltiplos objetivos. Mas, com base em
Física (Betti, 1994b). Em ambos, partimos de críticas à c o n c e p ç ã o
quê ele toma decisões relativas a conteúdos, estratégias, objetivos, etc?
científica da E d u c a ç ã o Física.
J á n ã o temos mais a i l u s ã o de que ele se fundamenta
exclusivamente na ciência. Em função da variabilidade do contexto,
Teorias do ensino reflexivo
os profissionais constroem sua própria v i s ã o de conhecimento útil,
que Lawson denomina conhecimento de trabalho ou conhecimento
Lawson (1990, 1993) foi pioneiro ao criticar e denunciar as
operacional. E um tipo de conhecimento tácito, que resulta do processo
l i m i t a ç õ e s da c o n c e p ç ã o científica da E d u c a ç ã o Física, que na sua
de s o c i a l i z a ç ã o no interior da profissão. U m profissional aprende
v i s ã o constitui-se numa fé positivista, uma c r e n ç a na pesquisa
com outros colegas, aprende por tentativa e erro, adapta suas a ç õ e s
científica como s o l u ç ã o para os problemas da área. Dentre outras
às demandas institucionais, à s a s p i r a ç õ e s da comunidade, etc. Neste
c o n s i d e r a ç õ e s , para ele:
processo, seleciona e adapta c o n t e ú d o s e e s t r a t é g i a s de ensino
1) N ã o h á c o m p r o v a ç ã o de que o conhecimento científico é de
aprendidas na sua f o r m a ç ã o a c a d é m i c a , e despreza outros. A frase de
fato utilizado pelos profissionais em sua prática. Será que o que se
Bowers (apud Lawson, 1990): "Profissionais sabem mais do que
ensina em aprendizagem motora, fisiologia do e x e r c í c i o , sociologia,
podem dizer", certamente encontra eco entre muitos professores de
etc, s ã o conhecimentos realmente aplicados pelos profissionais em
E d u c a ç ã o Física.
suas p r á t i c a s de trabalho?
Lawson, referindo-se a uma epistemologia de trabalho ou
2) N ã o h á garantia de que o conhecimento produzido nestas
epistemologia profissional, entende que é este conhecimento de
s u b - á r e a s de pesquisa seja generalizável para os vários c e n á r i o s onde
trabalho que precisa tornar-se o objeto central de estudo nos.currículos.
ocorre a prática profissional, pois o contexto da prática é incerto,
Contudo, n ã o se trata de uma epistemologia científica, porque ela
complexo e v a r i á v e l .
funciona segundo outras regras, é um conhecimento h e u r í s t i c o ,
3) Profissionais não pensam, agem e falam como pesquisadores;
orientado segundo uma lógica interna própria. Como ter acesso a
profissionais e pesquisadores trabalham em diversas comunidades
este conhecimento, como o r g a n i z á - l o , como transmiti-lo a futuros
e p i s t ê m i c a s ; pensam e agem de maneira diferente porque tiveram
profissionais? Lawson nos deixou sem resposta.
diferentes e x p e r i ê n c i a s de socialização, além de serem diferenciadas
Então, vamos às fontes originais. Lawson buscou inspiração
as e x i g ê n c i a s das suas carreiras profissionais e as demandas no seu
numa corrente teórica ainda pouco conhecida no Brasil, que teve seu
trabalho. A p r ó p r i a linguagem da pesquisa e do conhecimento
início com o livro "The reflective practitioner", de Donald Schõn, do
científico - formal e codificada - n ã o é a mesma linguagem da prática
Instituto de Tecnologia de Massachusetts, em 1983. N o início, a
profissional - cotidiana e informal.

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perspectiva de Schõn não era voltada especificamente para a profissão as c o n v i c ç õ e s e as formas de representar a realidade, as v a l o r a ç õ e s
docente, o que foi feito depois por outros autores, e pelo próprio Schõn. efetuadas. Com base nesta reflexão, o professor constrói uma teoria
O m o v i m e n t o denominado "ensino r e f l e x i v o " surgiu em adequada à situação peculiar do seu contexto e elabora uma estratégia
diferentes países a partir da p e r c e p ç ã o de uma crise educacional e de a ç ã o adequada, podendo-se falar numa verdadeira teoria da prática
consequente necessidade de reforma. Podemos ligar três r a z õ e s a ( P é r e z - G o m e z , 1992; S c h õ n , 1992), que incorpora e transcende o
este m o v i m e n t o : o fracasso escolar, a tentativa de se entender a conhecimento científico.
f o r m a ç ã o de professores diferentemente da racionalidade técnica, e o Segundo Shulman (1987) quase nada foi documentado sobre
objetivo de fazer voltar os rumos da e d u c a ç ã o às mãos dos professores. como o professor ensina. Pesquisas anteriores n ã o descobriram, por
Desta forma, n ã o apenas a universidade ou institutos de pesquisa exemplo, o que os professores sabem sobre o que eles sabem, ou
podem pensar o ensino, mas ... "os professores t a m b é m t ê m teorias sobre como e por que ensinam da forma como ensinam, e n ã o de
que podem contribuir para uma base codificada de conhecimentos outra. Assim, seria n e c e s s á r i a uma outra c o n c e p ç ã o de pesquisa, que
do ensino" (Zeichner, 1993:16). incluísse o saber prático do professor de maneira contextualizada. A
A teorização e as propostas de i m p l e m e n t a ç ã o variam de autor e x p e r i ê n c i a p r á t i c a dos professores, t a n t o i n i c i a n t e s q u a n t o
para autor mas, o ponto comum entre elas é a f o r m a ç ã o baseada na experientes, assume, desta maneira, uma grande i m p o r t â n c i a .
p r á t i c a da r e f l e x ã o sobre o ensino. O resultado disto seria um A crise e p i s t e m o l ó g i c a da E d u c a ç ã o Física na d é c a d a de 80
profissional que refletisse antes, durante e a p ó s a a ç ã o de ensinar. gerou, por parte dos pesquisadores e professores u n i v e r s i t á r i o s um
O conceito de r e f l e x ã o na a ç ã o (ou r e f l e x ã o na p r á t i c a ) discurso autoritário que acusa os professores de nada saberem. Temos
caracteriza-se como um conhecimento tácito que o professor mobiliza outra perspectiva: pensamos que a E d u c a ç ã o Física é dona de uma
e elabora durante a p r ó p r i a a ç ã o ; o professor ativa os seus recursos tradição na sociedade ocidental e seus profissionais sabem muito sobre
intelectuais (conceitos, teorias, c r e n ç a s , t é c n i c a s ) , diagnostica a o j o g o , a d a n ç a , o esporte, a ginástica. E é um tipo de saber-fazer
s i t u a ç ã o , elabora estratégias de i n t e r v e n ç ã o e p r e v ê o curso futuro que, em seu conjunto, n ã o foi dominado por outra área. A verbalização
dos acontecimentos. Quase nunca o conhecimento na prática precisa e a teorização deste saber-fazer é muito importante para os professores
traduzir-se em linguagem verbal ou escrita. E oportuno notar que um universitários, mas nem sempre o é para os profissionais. I m p l i c a ç õ e s
professor e x p e r i e n t e consegue fazer isto m u i t o b e m . E x i s t e desta abordagem para o c u r r í c u l o de f o r m a ç ã o profissional em
conhecimento em toda a ç ã o profissional, mesmo que fruto da E d u c a ç ã o F í s i c a s ã o sugeridas por Betti & R a n g e l - B e t t i . 13

experiência e reflexão passada, que porém corre o risco de se cristalizar Com esta considerações, acreditamos que a posição de Lovisolo
em rotinas s e m i - a u t o m á t i c a s , gerando a monotonia (para professor e fica melhor esclarecida, e melhor operacionalizada teoricamente.
alunos) e a r e p e t i ç ã o m e c â n i c a . Este tipo de conhecimento n ã o pode Contudo, o alcance desta teoria precisaria ser demonstrado em outras
ser ensinado porque é uma v i v ê n c i a global e n ã o pode ser submetido práticas de trabalho da E d u c a ç ã o Física, que n ã o o ensino formal, como
à rigidez das teorias, mas aprendido na experiência de trabalho (Pérez- o treinamento esportivo e atividades de academia e recreação. Poderia
G ó m e z , 1992; S c h õ n , 1992). então ser pensado com um pólo de integração para a pesquisa e a
Já a reflexão sobre a a ç ã o (ou reflexão sobre a prática) é uma formação profissional em E d u c a ç ã o Física.
análise efetuada a posteriori sobre as características e processos da H á outros pontos em comum entre a teoria do ensino reflexivo
sua p r ó p r i a a ç ã o , e que exige a v e r b a l i z a ç ã o . E uma a p l i c a ç ã o dos e os recentes estudos de inspiração antropológica efetivados no â m b i t o
instrumentos conceituais para compreender e reconstruir a p r ó p r i a da E d u c a ç ã o Física. U m exemplo é a utilização de etnografias e
prática. A reflexão sobre a prática considera, dentre outros fatores: as histórias de vida como t é c n i c a s de pesquisa. Ambas as abordagens
características da situação p r o b l e m á t i c a , a d e t e r m i n a ç ã o das metas, a atribuem uma d i m e n s ã o mais alargada (que n ã o se restringe à
escolha dos meios, os esquemas de pensamento, as teorias implícitas, formação científica) aos fatores e influências que determinam o modo

104 Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 73-127, dez. 1996 Motus Corporis. Rio de Joneiro, v. 3, n. 2. p. 73-127, dez. 1996 105
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Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física
de ser, pensar e agir de professores. Daolio (1995) refere-se à s
e x p e r i ê n c i a s de movimento na infância dos professores de E d u c a ç ã o por Bordieu, na qual ele se vale dos conceitos de "campo" e "habitus".
F í s i c a E s c o l a r c o m o u m a das d i m e n s õ e s r e s p o n s á v e i s pelas A E d u c a ç ã o Física dedicou pouca a t e n ç ã o a esta e x p r e s s ã o : "teoria
r e p r e s e n t a ç õ e s sociais que fundamentam seu trabalho. Santos (1993) da p r á t i c a " . E se p e n s á s s e m o s a Teoria da E d u c a ç ã o Física como se
concluiu que professores de E d u c a ç ã o Física Escolar m a n t ê m um fosse uma teoria da prática?
compromisso com sua atividade docente de natureza e n d ó g e n a , de Digo como se porque é muito difícil afirmar que possamos
c a r á t e r i n d i v i d u a l e s u b j e t i v o , que e x t r a p o l a a especificidade "aplicar" a complexa teoria s o c i o l ó g i c a de Bordieu, ou de qualquer
p e d a g ó g i c a , com um tipo de compromisso p s i c o l ó g i c o , centrado nas outro s o c i ó l o g o à E d u c a ç ã o Física. Primeiro, porque uma Teoria da
relações afetivas com os alunos. Esta r e p r e s e n t a ç ã o do compromisso, E d u c a ç ã o Física n ã o é uma teoria s o c i o l ó g i c a , ela tem que dar conta
sugere a busca de uma c o n c i l i a ç ã o dos conflitos gerados entre a de outros pontos de vista. Depois, porque qualquer dogmatismo é
demanda moral do eu e a perversidade do sistema escolar, visando à muito perigoso em nossa área, pois pode facilmente violentar a
s o b r e v i v ê n c i a e ao e q u i l í b r i o p s i c o l ó g i c o . S ã o dados que reforçam a especificidade que desejamos para a E d u c a ç ã o Física, descaracterizar
p o s i ç ã o dos t e ó r i c o s do ensino reflexivo. nossa t r a d i ç ã o histórica, e nos transformar em s o c i ó l o g o s defensores
Chamo a atenção para o fato de que, ao longo deste texto, j á da teoria " x " , ou filósofos da linha " y " . T a m b é m não tenho c o n d i ç õ e s
apontamos outras c o n v e r g ê n c i a s - e n ã o só diferenças ou o p o s i ç õ e s - de fazer uma r e v i s ã o crítica de B o r d i e u ' . 6

entre os autores revisados. S ã o frequentes as alusões, em nossa área, à Prefiro, e n t ã o , dizer que, neste momento, a leitura de Bordieu
necessidade de " t o m a r p a r t i d o " , de rotular-se " m a r x i s t a " ou inspirou-me algumas analogias, que p o d e r ã o c o n t r i b u i r para a
" f e n o m e n ó l o g o " , adepto deste ou daquele autor. Pouco se percebe o superação das dicotomias a que nos referimos. O que deve nos inspirar,
fato de que, nas teorizações da E d u c a ç ã o Física, diferentes pontos de em especial, na teoria s o c i o l ó g i c a de Bordieu é a ideia de m e d i a ç ã o -
partida tem levado à c o n c l u s õ e s semelhantes. Pode-se argumentar que m e d i a ç ã o entre a estrutura social e o i n d i v í d u o , entre a subjetividade
os "fundamentos filosóficos" s ã o diferentes, as "posturas p o l í t i c a s " e a objetividade, entre a teoria e a prática.
são diferentes, e t c , mas sendo minimamente pragmático, isto n ã o tem Inicialmente, p o d e r í a m o s ver os dois pólos que identificamos,
i m p o r t â n c i a . Para quem estudou a Teoria dos Sistemas, n ã o h á Disciplina A c a d é m i c a / Profissão, C i ê n c i a / P r á t i c a P e d a g ó g i c a , como
estranhamento: chama-se princípio da eqiiifinalidade (Von Bertallanfy, "campos", tal como Bordieu os define: "campo de forças e campo de
1975^ Koestler, 1981). Diferentes meios podem chegar ao mesmo lutas que visam transformar esse campo de f o r ç a s " ( I 9 8 3 b : 4 4 ) . Estes
fim 1 . Pode-se chamar de ecletismo, mas é apenas um ecletismo de campos s ã o "relativamente a u t ó n o m o s " (1996:159) o que vale dizer
meios, jamais de fins. Para Zeichner (1993) professores utilizam que se relacionam: "o real é relacional" (1996:16).
diferentes " t r a d i ç õ e s de p r á t i c a " ( a c a d é m i c a , e f i c i ê n c i a social, Bordieu (1996) considera essencial na sua obra, em primeiro
desenvolvimentista/construtivista e reconstrução social) de maneira não- lugar, uma filosofia da ciência que chama de relacional, "já que atribui
d o g m á t i c a , conforme o contexto escolar e a necessidade do educando. primazia às r e l a ç õ e s (...) tal filosofia só raramente é posta ê m prática
nas c i ê n c i a s sociais" porque confronta-se com a v i n c u l a ç ã o do
Teorias s o c i o l ó g i c a s : Bordieu, E l i a s e os "culturalistas" pensamento dominante a "realidades" substantivas ( i n d i v í d u o s ,
grupos, etc) mais que às relações objetivas, "que não podemos mostrar
N a E d u c a ç ã o Física brasileira a n o ç ã o de "campo c i e n t í f i c o " ou tocar e que precisamos conquistar, construir e validar por meio do
de Bordieu (1983) tem sido explorada, com maior ou menor felicidade. trabalho cientifico" (p. 9).
U m e x e m p l o p r o d u t i v o é o t r a b a l h o de Paiva ( 1 9 9 4 ) . U m a 1 5
Segundo, uma f i l o s o f i a da a ç ã o , condensada em alguns
p r o p o s i ç ã o mais ambiciosa é pensar os problemas e limitações que conceitos fundamentais - habitus, campo, capital - e que tem "como
aquParrolamos no contexto mais global da "teoria da prática" proposta ponto central a relação, de m ã o dupla, entre as estruturas objetivas
(dos campos sociais) e as estruturas incorporadas (do habitus)" (p.

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Universidade G a m a Filho Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física

10). O p õ e - s e à v i s ã o de p r á t i c a que, em nome do racionalismo, um problema, ao invés de v ê - l o como um dado evidente? Pois o
considera irracional qualquer a ç ã o ou r e p r e s e n t a ç ã o que n ã o seja nosso c o n h e c i m e n t o de trabalho ( L a w s o n ) , arte da m e d i a ç ã o
engendrada pelas r a z õ e s explicitamente dadas por um i n d i v í d u o (Lovisolo) ou reflexão na a ç ã o ( S c h õ n ) possui t a m b é m seu "outro
a u t ó n o m o e consciente de suas m o t i v a ç õ e s . Esta filosofia da a ç ã o lado": é crivada de preconceitos, corporativismos, oportunismo,
rompe com oposições socialmente muito fortes, "indivíduo/sociedade, comodismo... Os níveis de reflexão sobre a a ç ã o , e de conhecimento
individual/coletivo, consciente/inconsciente, interessado/ sobre a r e f l e x ã o - s o b r e - a - a ç ã o s ã o m u i t o baixos na E d u c a ç ã o Física.
desinteressado, objetivo/subjetivo, etc." (p. 10) Por outro lado, a ruptura de que falo (e que vejo proposta por
O conceito de habitus é utilizado por Bordieu para efetuar todos os t e ó r i c o s do ensino reflexivo) tem que levar em conta que a
esta m e d i a ç ã o . Insisto, todavia que, por si só, este conceito n ã o é prática tem uma lógica que n ã o é a da lógica e, consequentemente,
suficiente para constituir uma Teoria da E d u c a ç ã o Física, embora aplicar à s lógicas práticas a lógica lógica, é arriscar destruir, através
seja precioso numa Sociologia das Atividades Corporais ou do dos instrumentos que utilizamos para d e s c r e v ê - l a , a l ó g i c a que
Esporte, como o próprio Bordieu (1983a, 1990) o demonstrou. Porém, queremos descrever (...) os agentes sociais (seja um m é d i c o fazendo
é preciso considerar com o p r ó p r i o Bordieu, que a teoria do habitus um d i a g n ó s t i c o , ou um professor atribuindo notas em um exame)
i m p õ e - s e como uma e v i d ê n c i a particular nos casos de sociedades t ê m , no estado p r á t i c o , sistemas c l a s s i f i c a t ó r i o s extremamente
nas quais o trabalho de codificação das práticas é pouco desenvolvido complexos, jamais c o n s t i t u í d o s como tais, e que n ã o podem sê-lo
(...). Mas se aplica t a m b é m à s sociedades altamente diferenciadas. s e n ã o a custa de um trabalho enorme (Bordieu, 1996:146).
Todos os mundos sociais relativamente a u t ó n o m o s , que chamo de E n t ã o , a r e f l e x ã o sobre a a ç ã o , e o conhecimento sobre a
campos - campo artístico, campo científico, campo filosófico, etc. - r e f l e x ã o - s o b r e - a - a ç ã o devem ser centrais numa Teoria da E d u c a ç ã o
exigem d i s p o s i ç õ e s quase corporais, um saber prático das leis táticas Física. Estamos falando de uma ambiciosa tentativa de criar um outro
de funcionamento do campo, das categorias de p e r c e p ç ã o e de campo, que resulte da interação dos preexistentes (profissional e
a v a l i a ç ã o que permitem apreender os problemas importantes, etc. a c a d é m i c o , p e d a g ó g i c o e científico), e consolidar um habitus de
(1996:159). pesquisa e prática na E d u c a ç ã o Física que não é nem o do profissional,
Tenho aqui duas c o n s i d e r a ç õ e s . P o d e r í a m o s dizer que os nem o do cientista, mas de um terceiro tipo, que combina, mescla e
profissionais da E d u c a ç ã o Física d i s p õ e igualmente de um habitus relaciona os outros dois. N ã o tenho certeza se esta p r e t e n s ã o pode ser
na sua prática, que se aproxima de uma tradição (embora n ã o sejam apoiada em Bordieu, lembrando a crítica de Ortiz(1983): sobra pouco
s i n ó n i m o s ) , tal como a lemos na Antropologia cultural e social. O e s p a ç o na teoria de Bordieu para se pensar a t r a n s f o r m a ç ã o .
habitus é um corpo socializado, que incorporou as estruturas imanentes "Se existe uma verdade, é que a verdade é um lugar de lutas";
de um campo, e que estrutura tanto a p e r c e p ç ã o como a a ç ã o neste nos "campos", universos sociais relativamente a u t ó n o m o s , "os
campo (Bordieu, 1996). E quando - prossegue Bordieu - as estruturas profissionais da p r o d u ç ã o s i m b ó l i c a enfrentam-se em lutas que t ê m
incorporadas e as estruturas objetivas estão de acordo, "quando a como alvo a i m p o s i ç ã o de princípios legítimos de v i s ã o e de d i v i s ã o
percepção é construída de acordo com as estruturas do que é percebido, do mundo natural e do mundo social" (p. 83). N o "campo" do esporte,
tudo parece evidente, tudo parece dado" (p. 144). É a e x p e r i ê n c i a Bordieu (1983a) v ê a luta entre grupos sociais pela i m p o s i ç ã o da
d ó x i c a , pela qual a t r i b u í m o s ao mundo "uma crença mais profunda c o n c e p ç ã o legítima de corpo e uso legítimo do corpo. Tais c o l o c a ç õ e s
que todos as c r e n ç a s (..) já que ela n ã o se pensa como uma c r e n ç a " perrnitem-nos fazer a passagem às teorias "culturalistas" da Sociologia
(p. 144). do Esporte, que se desdobraram de uma reflexão marxista fortemente
É ó b v i o que uma Teoria da E d u c a ç ã o Física precisa estabelecer influenciada por Gramsci e seu conceito de hegemonia, o qual é
algum tipo de ruptura com este processo. Lembro novamente: por u t i l i z a d o quase c o m o s i n ó n i m o de " c u l t u r a " . A s s i m , para os
que a l g u é m questionaria a e v a s ã o no esporte infanto-juvenil como culturalistas, o esporte é um constituinte significativo das r e l a ç õ e s

108 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 19Q6 Motus Corporis, Rio de Joneiro. v. 3. n. 2. p. 73-127. dez. 1996 109
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recente p o s i ç ã o de outro conceituado s o c i ó l o g o , o francês Pierre
sociais pelas quais a pessoas produzem e atribuem sentido ao mundo; Parlebas, do qual j á citamos uma de suas primeiras obras
é uma forma cultural constantemente produzida e reproduzida em Como é que um f e n ó m e n o aparentemente t ã o claro e t ã o pouco
c o n j u n ç ã o c o m m u d a n ç a s sociais, h i s t ó r i c a s e c i r c u n s t â n c i a s clandestino como o esporte engendra tantas a p r e c i a ç õ e s opostas,
ambientais, e que compreende diferentes significados para diferentes estando umas diametralmente contrárias às outras? (...). Dentro da
grupos e classes. Isto os levou a ver o esporte: como cultura popular, e d u c a ç ã o infantil e das atividades do EPT, deve-se dar ao esporte
como uma multiplicidade de formas e significados, e como um campo todo o seu espaço, mas nada mais que seu espaço. A seu lado abundam
de luta. O esporte toma parte tanto do processo de r e p r o d u ç ã o , como muitas outras atividades: atividades livres, j o g o s , quase-jogos
de transformação da sociedade (Hargreaves, 1982; Donnely & Young, informais, práticas lúdicas de toda sorte. R e c o n h e ç a m o s que nos resta
1985). fazer uma reflexão mais exigente e mais realista que a do passado
A dificuldade em pensar em termos de t r a n s f o r m a ç ã o , e n ã o (...) o esporte (...) mergulha o praticante na e m o ç ã o de uma aventura
apenas na r e p r o d u ç ã o que o conceito de habitus nos induz fica, pelo corporal exaltante. Esta p a i x ã o não é sem perigo, mas é t a m b é m uma
menos em parte, superada. Passamos a ver a cultura corporal de oportunidade. U m a oportunidade que n ã o p o d e r á realmente ser
m o v i m e n t o como um campo de luta, em que diferentes modelos de agarrada a n ã o ser quando o movimento do EPT se recusar a se meter
prática (que refletem diferentes c o n c e p ç õ e s e significados de esporte, na estreita d e p e n d ê n c i a das instituições estritamente esportivas. O
j o g o , d a n ç a , etc) confrontam-se em busca de e s p a ç o e l e g i t i m a ç ã o EPT deve repensar o seu conteúdos e suas modalidades de intervenção,
social. A comunidade a c a d é m i c a e profissional da E d u c a ç ã o Física é concedendo o justo lugar a todas as formas de atividade física e de
uma das forças envolvidas nesta luta. Para usar as e x p r e s s õ e s de a ç ã o motora informais ou cotidianas, notadamente à q u e l a s que n ã o
Bordieu, com que "capital" vamos entrar em "campo"? N ã o temos correspondem aos critérios precisos que definem o esporte" (Parlebas,
dinheiro nem poder (no sentido administrativo). Só temos, para nos 1996).
diferenciar das outras forças, o argumento científico, a r e f l e x ã o
Foi esta e x p l i c i t a ç ã o que cobramos à Lovisolo.
filosófica e uma t r a d i ç ã o histórica que, infelizmente, nos tem sido
Vamos agora retornar ao debate com Bracht. Pretendemos
apresentada mais como motivo de vergonha que de orgulho. Segundo
corrigi-lo ampliando o seu conceito de prática, de "prática p e d a g ó g i c a "
Bordieu (1983b, 1996), o capital científico (que é s i m b ó l i c o ) n ã o se
para " p r á t i c a social das atividades corporais de m o v i m e n t o " . Esta,
constitui apenas de c o m p e t ê n c i a t é c n i c a , mas t a m b é m de honra,
c o n c e b i d a c o m o c a m p o de d i n a m i s m o s o c i a l , onde se d á a
prestígio, autoridade. Penso que Lovisolo esqueceu este ponto. Temos
confrontação e disputa de modelos de prática, e no qual atuam diversas
que "vender" à sociedade o nosso trabalho. Vejo as demandas em
forças sociais (inclusive a comunidade a c a d ê m i c o - p r o f i s s i o n a l da
nossa á r e a c o m o uma v i a de m ã o d u p l a , entre a c o m u n i d a d e
E d u c a ç ã o F í s i c a ) . U m a p r á t i c a social assim concebida é quase
a c a d ê m i c o - p r o f i s s s i o n a l e a sociedade. P o d e r í a m o s aprender muito
s i n ó n i m o do conceito de "cultura corporal de m o v i m e n t o " .
com os homens do marketing...
A prática p e d a g ó g i c a de que falam os representantes da matriz
Em outras á r e a s , diferentes projetos concorrem na busca da p e d a g ó g i c a poderia ser pensado para as outras p r á t i c a s corporais de
hegemonia; por e x e m p l o , a M e d i c i n a A l o p á t i c a e a M e d i c i n a movimento institucionalizadas fora da Escola. Porque se a E d u c a ç ã o
H o m e o p á t i c a operam com conceitos opostos, embora possa-se dizer Física n ã o é mais uma prática corporal concreta, é todavia um conceito
que ambas estejam ocupadas com o mesmo objeto - a s a ú d e ; h á uma a partir do qual podem se propor modelos de prática na academia, no
permanente tensão entre a Medicina Preventiva e a Medicina Curativa, esporte, na r e c r e a ç ã o . A reflexão filosófica, sociológica e psicológica
etc. Ocorre que a M e d i c i n a A l o p á t i c a e Curativa impuseram-se que se faz com respeito à E d u c a ç ã o Física na Escola, e a p r o p o s i ç ã o
hegemonicamente à sociedade, e mascararam as tensões. Há t a m b é m , de um projeto político-pedagógico, poderiam, igualmente, serem feitas
certamente, diferentes v i s õ e s do que seria uma Arquitetura mais com respeito à s outros e s p a ç o s de p r á t i c a social das atividades
adequada para um país como o Brasil, e assim por diante. Vejamos a

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Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 73-127, dez. 1996
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corporais de m o v i m e n t o : academias, clubes, centros esportivos Elias denominou de c o n f i g u r a ç ã o de duplo v í n c u l o - um processo de


p ú b l i c o s , etc. Podem-se pensar para eles novas c o n c e p ç õ e s , modelos, retro-alimentação negativa. Assim, o desenvolvimento das chamadas
práticas. ciências naturais, superior e mais r á p i d o ao das c i ê n c i a s sociais, ao
E incorreto supor que o ú n i c o conhecimento envolvido no acelerar o tempo da m u d a n ç a t e c n o l ó g i c a e social, aumentou as
trabalho com as academias, por exemplo, é de ordem fisiológica. A incertezas e os temores das pessoas. Temos, todos, que render nossas
e v a s ã o que estas i n s t i t u i ç õ e s apresentam n ã o é u m a q u e s t ã o homenagens a Elias: n ã o é exatamente o que se passa na E d u c a ç ã o
fisiológica, mas psicossocial. Estudo realizado em Rio Claro, cidade Física, com suas novas dicotomias? C i ê n c i a Naturais versus C i ê n c i a s
de porte m é d i o no interior do Estado de S ã o Paulo, detectou um Humanas, Academias-Esporte (campo da a p l i c a ç ã o da fisiologia,
índice de evasão próximo a 70% entre os frequentadores das academias b i o m e c â n i c a , psicologia comportamental) versus Escola (campo da
pesquisadas . As pessoas n ã o e s t ã o encontrando o que procuram;
18 sociologia, antropologia, filosofia, etc.)...
apesar da aparente m o t i v a ç ã o pela busca da estética e s a ú d e , deve Pelo menos nos console o fato de que este é um f e n ó m e n o
haver intencional idades ocultas. Em contrapartida, n ã o é verdade que geral de nossos tempos, que n ã o atinge apenas a E d u c a ç ã o Física...
os conhecimentos envolvidos na E d u c a ç ã o Física Escolar situam-se Isto demonstra que não podemos prescindir das várias ciências,
apenas na á r e a das C i ê n c i a s Humanas/Filosofia. e dentro delas, de diversas metodologias de pesquisa, cada uma
V a m o s p r o c u r a r s u p e r a r estes d u a l i s m o s a p a r t i r da oferecendo uma perspectiva original. U m gerente de Academia ou
i n t e r p r e t a ç ã o do s o c i ó l o g o a l e m ã o Norbert Elias. Para Elias (citado um técnico de futebol que diz n ã o precisar da Psicologia porque "todos
por Dunning, 1982) as sociedades modernas possuem três níveis de somos um pouco p s i c ó l o g o s " , está fantasiando sobre os mecanismos
c o n t r o l e : 1) c o n t r o l e sobre as c o n e x õ e s e x t r a - h u m a n a s de psíquicos do homem. E onde se lê Psicologia, pode-se ler Sociologia,
acontecimentos, o que chamamos genericamente de f e n ó m e n o s Filosofia, etc. N a prática profissional da e d u c a ç ã o Física, seja no
naturais; 2 ) c o n t r o l e sobre as c o n e x õ e s inter-humanas, o que clube, escola ou academia, estamos todos envolvidos e interagindo
normalmente chamamos de v í n c u l o s sociais; 3) autocontrole, que com os tês níveis a que se referiu Elias, e n ã o , como muitos s u p õ e ,
cada um dos membros de uma sociedade aprende desde a infância. O apenas no primeiro nível, vinculados à nossas conhecidas s u b - á r e a s
p r i m e i r o destes c o n t r o l e s c o r r e s p o n d e ao d e s e n v o l v i m e n t o da Fisiologia e B i o m e c â n i c a . Portanto, dizer que a E d u c a ç ã o Física
t e c n o l ó g i c o e c i e n t í f i c o ; o segundo, ao d e s e n v o l v i m e n t o da Escolar deve operar teoricamente apenas na á r e a das C i ê n c i a s
o r g a n i z a ç ã o social; o terceiro, ao processo de c i v i l i z a ç ã o . Os três
19 Humanas/Filosofia é t a m b é m uma e s p é c i e de reducionismo.
níveis s ã o interdependentes (mais uma vez, inter-relaçâo!), tanto em . A Teoria da E d u c a ç ã o Física como uma teoria da prática
seu desenvolvimento como em seu funcionamento, e como este J á dissemos que a c o n c e p ç ã o científica provocou m u d a n ç a s
desenvolvimento n ã o se d á igualmente nos três n í v e i s , um pode importantes na área, ao deslocar o foco tradicional da E d u c a ç ã o Física.
impedir ou reduzir o desenvolvimento dos outros. Como superar suas l i m i t a ç õ e s ? Fomos às c i ê n c i a s e à filosofia, mas
Nas sociedades modernas o grau de controle sobre as c o n e x õ e s se lá ficarmos seremos fisiólogos, s o c i ó l o g o s , etc. Em Betti (1994b)
naturais extra-humanas é muito maior que o das c o n e x õ e s sociais j á apontamos a necessidade de "fazer o caminho de volta", e refocalizar
inter-humanas - as c i ê n c i a s naturais desenvolveram-se mais e com a E d u c a ç ã o Física na sua d i m e n s ã o de praxis, subsidiado agora pelos
maior velocidade que as c i ê n c i a s sociais. U m a c o n s e q u ê n c i a deste conhecimentos c i e n t í f i c o s e filosóficos^ vistos agora n ã o como
f e n ó m e n o é que, quanto menos sujeita ao controle humano está uma r e s p o s t a s / s o l u ç õ e s para a prática, mas como dados que tornam os
esfera concreta de acontecimentos, tanto mais emocional e carregada problemas da prática mais claros, porque vistos sob novos â n g u l o s .
de fantasias tende a ser a ideia que temos dela, o que nos torna menos Estamos propondo que, em vez de C i ê n c i a , passemos a falar
capacitados para construir modelos das c o n e x õ e s mais adequadas ao numa "Teoria da E d u c a ç ã o Física". Estou me referindo a uma teoria
objeto e, portanto, para controlá-la. Este processo caracteriza o que científica da E d u c a ç ã o Física, que sistematiza e critica conhecimentos

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Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física
científicos e filosóficos, recebe e envia demandas à p r á t i c a e à s
preocupados com isso. A E d u c a ç ã o Física está instrumentalizada pela
C i ê n c i a s / F i l o s o f i a . A Teoria da E d u c a ç ã o Física é concebida como
sua própria t r a d i ç ã o de saber-fazer, e uma Teoria da E d u c a ç ã o Física
um campo d i n â m i c o de pesquisa e reflexão. Uma representação gráfica
poderia refletir criticamente sobre este conhecimento prático, e tornar
desta c o n c e p ç ã o é sugerida na Figura 1.
a E d u c a ç ã o Física crescentemente consciente de sua possibilidades
de i n t e r v e n ç ã o e l e g i t i m a ç ã o das práticas corporais de movimento -
eis aí o caminho "interno".
O p r i n c í p i o integrador possível neste processo a d v é m de uma
processo de v a l o r a ç ã o ; portanto, só a Filosofia pode propiciar esta
integração. Por isso, a problemática que articulamos a partir da prática
é j á impregnada de valores. Mas s ã o as e x i g ê n c i a s m e t o d o l ó g i c a s
concretas de cada pesquisa, metodologias estas limitadas pelo seu
desenvolvimento histórico, que definem as o p ç õ e s t é c n i c a s , teóricas,
e p i s t e m o l ó g i c a s , m o r f o l ó g i c a s , conforme nos colocam Bruyne
Herman & . Schoutheete (1982), e - acrescento eu - a o p ç ã o pelas
metodologias das C i ê n c i a s Naturais ou Humanas.
Segundo aqueles autores, que melhor expressam o meu ponto
Figura I: A Teoria da Educação Física como um Campo Dinâmico de Pesquisa
e de Reflexão.
de vista, a pesquisa é uma campo d i n â m i c o por onde se move o
pesquisador, de acordo com suas necessidades e l i m i t a ç õ e s , a cada
Os p r o b l e m a s / q u e s t õ e s emergem da prática, e sua a r t i c u l a ç ã o etapa do trabalho científico. Definem campo de pesquisa como "lugar
vem a constituir uma p r o b l e m á t i c a , que questiona as C i ê n c i a s e a prático da elaboração dos próprios objetos do conhecimento científico,
Filosofia. C o m o resultado da pesquisa c i e n t í f i c a e da r e f l e x ã o de sua c o n s t r u ç ã o s i s t e m á t i c a e c o n s t a t a ç ã o e m p í r i c a dos fatos que
filosófica emergem novas perspectivas e q u e s t õ e s sobre a prática, essa pesquisa deu a conhecer" (p. 28). Criticam a v i s ã o b u r o c r á t i c a
bem como i n d a g a ç õ e s sobre as p r ó p r i a s possibilidades das teorias do projeto, que p r e v ê passos m e t o d o l ó g i c o s r í g i d o s , quando a
científicas e filosóficas existentes atenderem às demandas da pesquisa "complexidade das p r o b l e m á t i c a s exige i n t e r p e n e t r a ç õ e s e voltas
em E d u c a ç ã o Física. Surgem t a m b é m indicações para a transformação constantes entre os p ó l o s e p i s t e m o l ó g i c o , t e ó r i c o , m o r f o l ó g i c o e
da prática. A d q u i r i m o s assim da p r á t i c a uma v i s ã o mais sofisticada, técnico da pesquisa" (p. 30). O campo a u t ó n o m o da prática científica
q u e s t õ e s mais complexas emergem, aparecem problemas onde tudo é e n t ã o concebido como a a r t i c u l a ç ã o destes quatro p ó l o s , que
parecia estar bem... Novos questionamentos s ã o enviados às C i ê n c i a s determinam um e s p a ç o no qual pesquisa apresenta-se "como que
e à Filosofia, a partir de uma prática revisitada. apanhada num campo de forças, submetida a determinados fluxos, a
Nesta dialética p o d e r - s e - á constituir, pouco a pouco, uma determinadas e x i g ê n c i a s internas" (p. 34).
Teoria da E d u c a ç ã o Física. O p ó l o e p i s t e m o l ó g i c o garante a o b j e t i v a ç ã o do objeto
O caminho "externo" que representamos na Figura 1 pode servir científico e a e x p l i c i t a ç ã o da p r o b l e m á t i c a , renova continuamente a
igualmente à c o m p r e e n s ã o e e x p l i c a ç ã o das p r á t i c a s sociais. U m ruptura dos objetos científicos com os do senso comum; decide sobre
s o c i ó l o g o , um p s i c ó l o g o , ou um m é d i c o podem manifestar-se com as regras de p r o d u ç ã o e explicação dos fatos, c o m p r e e n s ã o e validades
c o m p e t ê n c i a sobre, por exemplo, o esporte, e com isso legitimar as das teorias. Orbitam no pólo e p i s t e m o l ó g i c o os processos discursivos,
teorias e m é t o d o s de sua p r ó p r i a área. Mas n ã o conseguem fazer o m é t o d o s g e n é r i c o s que "impregnam com sua lógica as abordagens
"caminho de volta", e contribuir para a melhoria qualitativa das do pesquisador" (p. 35): a d i a l é t i c a , a fenomenologia, a l ó g i c a
p r á t i c a s sociais, porque n ã o e s t ã o nem instrumentalizados, nem h i p o t é t i c o - d e d u t i v a , a q u a n t i f i c a ç ã o . Estes processos n ã o s ã o se

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li
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excluem mutuamente. O p ó l o teórico guia a e l a b o r a ç ã o das hipóteses conhecimento e a prática refletida da ciência; ruptura esta que deve
e a c o n s t r u ç ã o dos conceitos; formula sistematicamente os objetos ser sempre r e c o m e ç a d a , continuada, reformulada; 4) O campo
científicos; p r o p õ e regras de interpretação dos fatos, de especificação e p i s t ê m i c o é o campo do conhecimento científico que chegou a um
e d e f i n i ç ã o de s o l u ç õ e s p r o v i s ó r i a s para as p r o b l e m á t i c a s . grau de objetividade reconhecido nos estados das teorias, da reflexão
Desempenham um "papel p a r a d i g m á t i c o i m p l í c i t o " (p. 35): s ã o os e p i s t e m o l ó g i c a , da metodologia, das t é c n i c a s de i n v e s t i g a ç ã o . O
quadros de r e f e r ê n c i a positivista, compreensivo, funcionalista e pesquisador procede a escolhas t e ó r i c a s , t é c n i c a s , e t c , no seio da
estruturalista. O pólo m o r f o l ó g i c o enuncia regras de e s t r u t u r a ç ã o do t r a d i ç ã o de sua p r ó p r i a disciplina. " O que ele n ã o escolhe - por
objeto e uma certa ordem entre seus elementos; p r o p õ e um e s p a ç o de ignorância ou n ã o - nem por isso deixa de exercer influências sobre o
c a u s a ç ã o em rede no qual se constroem os objetos científicos, como desenvolvimento de sua pesquisa, de modo i d ê n t i c o ao campo
m o d e l o s / c ó p i a s , ou como simulacros de p r o b l e m á t i c a s reais: tipo d o x o l ó g i c o " (p. 34). O campo e p i s t ê m i c o contém elementos de outras
ideal, sistema, modelos estruturais. O pólo t é c n i c o controla a coleta disciplinas que s ã o g e n e r a l i z á v e i s , e portanto, i m p o r t á v e i s , "sob
dos dados, confronta os dados com a teoria que os suscitou. Exige determinadas condições de vigilância, pelas necessidades de pesquisas
p r e c i s ã o na c o n s t a t a ç ã o , mas n ã o garante sozinho sua e x a t i d ã o . particulares" (p. 34).
Estudos de caso, e x p e r i m e n t a ç ã o , estudos comparativos, e t c , s ã o Acredito que esta c o n c e p ç ã o de pesquisa, que vai de encontro
modos de investigação que indicam escolhas práticas "pelas quais os à s perspectivas abertas com B o r d i e u e Elias, é suficiente para
pesquisadores optam por um tipo particular de encontro com os fatos superarmos as dicotomias com que temos operado neste campo:
e m p í r i c o s " (p.36). Estes pólos n ã o configuram momentos separados marxismo versus positivismo, pesquisa quantitativa versus qualitativa,
da pesquisa, mas "aspectos particulares de uma mesma realidade de etc.
p r o d u ç ã o de discursos e de práticas c i e n t í f i c o s " (p. 35) Os processos que aqui descrevi s ã o , provavelmente, típicos
O campo de pesquisa, por sua vez, inscreve-se no "ambiente em algumas outras áreas, d a í as frequentes analogias da E d u c a ç ã o
societal" mais vasto de todas as p r á t i c a s sociais. H á campos de Física com áreas profissionais e a c a d é m i c a s t ã o distintas como a
influência ou de c o e r ç ã o / f a c i l i t a ç ã o das escolhas m e t o d o l ó g i c a s do Pedagogia e a Medicina. Isto demonstra que n ã o se trata mais do que
pesquisador: 1) O campo da demanda social, pois a atividade de isso - analogias - pois elas s ã o um importante recurso da linguagem
pesquisa é permitida e/ou legitimada de um certo modo pelo sistema em geral e da linguagem científica para expressar novos conceitos.
s ó c i o - c u l t u r a l ; aparecem aí a d i v i s ã o s ó c i o - t é c n i c a do trabalho N ó s j á nos livramos da d e p e n d ê n c i a à Medicina, n ã o vamos agora
científico, a c o o p t a ç ã o , as "sociedades de discurso" que funcionam nos subjugar à Pedagogia, como alguns desejam.
tanto como fonte de controle m ú t u o , c o m o de i n t r a n s i g ê n c i a e A busca de uma melhoria qualitativa das práticas corporais de
dogmatismo; 2) O campo a x i o l ó g i c o , definido como o campo dos m o v i m e n t o poderia ser o ponto de consenso ( p r e o c u p a ç ã o de
valores sociais e individuais que condicionam a pesquisa científica, Lovisolo) entre os interessados no campo, os quais, segundo Bordieu
onde "a escolha da p r o b l e m á t i c a deve esforçar-se por ser explícita, (1996) concordam tacitamente que há algo no campo que vale a pena,
sob pena de ceder à s m ú l t i p l a s influências das ideologias" (p. 32); 3) e nele investem seus esforços. Contudo - e agora nos distanciamos
O campo d o x o l ó g i c o , que é o campo do saber n ã o sistematizado, da de Lovisolo e nos aproximamos de Bracht - os conceito de melhoria
linguagem e das e v i d ê n c i a s da prática cotidiana, "de onde a prática e qualidade s ã o conceitos valorativos. O que é melhor para um, pode
c i e n t í f i c a deve p r e c i s a m e n t e e s f o r ç a r - s e para arrancar suas não se para outro, e assim por diante E como os valores permeiam os
problemáticas específicas" (p. 33). Embora nenhuma prática científica objetivos ( L o v i s o l o tem novamente r a z ã o ) , é preciso discutir a
funcione fora do conjunto das práticas sociais, ela deve promover a r t i c u l a ç ã o entre eles.
a l g u m t i p o de r u p t u r a e p i s t e m o l ó g i c a entre, por um lado, o Gostaria de exemplificar com o caso da E d u c a ç ã o F í s i c a
conhecimento e a prática e s p o n t â n e a da vida cotidiana, e por outro, o Escolar. Hoje, n ã o se discute mais se o esporte deve tomar parte nos

Motus Corporis, Rio de Janeiro, v. 3. n. 2. p. 73-127, dez. 1996 Motus Corporis, Rio deJdneiro. v. 3, n. 2, p. 73-127, dez. 1996 117
Revista de D i v u l g a ç ã o Cientificado Mestrado e Doutorado em E d u c a ç ã o Física
Universidade G a m a Filho
entre pesquisadores e profissionais.
programas escolares. Mas, se acredito, como fruto de uma escolha
N o â m b i t o de uma Teoria da E d u c a ç ã o Física assim concebida,
racional, que a escola deve socializar os conhecimentos e as práticas,
a interdisciplinaridade só pode ser uma ideia reguladora, e n ã o um
que todos os alunos devem ter oportunidades de p a r t i c i p a ç ã o , estes
procedimento m e t o d o l ó g i c o definido a p r i o r i . Por isso, todas as
valores devem orientar minha a ç ã o . Devo minimizar a t e n d ê n c i a de
tentativas de definir aprioristicamente o que seria interdisciplinaridade
s e l e ç ã o e e x c l u s ã o do esporte, e guiar-me pelo princípio da n ã o - na E d u c a ç ã o Física falharam. Antes de se definir interdisciplinaridade,
e x c l u s ã o : a v i v ê n c i a da atividade esportiva é legítima, desde que n ã o é preciso v i v e n c i á - l a no ensino e na p r á t i c a científica.
exclua, s e n ã o inclua, o maior n ú m e r o possível de alunos ( B e t t i , Posso dar uma s u g e s t ã o a partir de um tema bastante atual e
1994a). p o l é m i c o na m e d i c i n a esportiva: os radicais livres. M é d i c o s e
Da mesma maneira, podemos indagar o que teria levado um p e s q u i s a d o r e s em f i s i o l o g i a t ê m a l a r d e a d o pelos m e i o s de
pesquisador a ver na e v a s ã o de um programa de treinamento em c o m u n i c a ç ã o que um e x e r c í c i o muito intenso aumenta a p r e s e n ç a
n a t a ç ã o um problema, como j á v i m o s , e n ã o um dado " n o r m a l " do destas s u b s t â n c i a s no sangue, favorecendo o envelhecimento das
esporte? S ã o seus valores com relação ao esporte, que envolvem, por células e a d i m i n u i ç ã o da resistência o r g â n i c a . Efeito c o n t r á r i o teria
sua vez, valores sobre o homem, a sociedade, etc. uma atividade física moderada. Esta h i p ó t e s e traz i m p l i c a ç õ e s de
A validade dos conhecimentos assim produzidos s ó p o d e r á cunho filosófico (a "justa medida" das coisas é um conceito que vem
ser avaliado pela fecundidade dos resultados de pesquisas concretas da filosofia grega e da medicina hipocrática), s o c i o l ó g i c o (questionar
(Bruyne et alii, 1982). Este julgamento, por se tratar de conhecimentos o modelo do chamado esporte de alto rendimento), e p s i c o l ó g i c o (o
que interessam prioritariamente à E d u c a ç ã o Física, n ã o pode ser conceito de rendimento ó t i m o como uma v i v ê n c i a pessoal). E, claro,
e x t e r n o , s e n ã o efetuado pela p r ó p r i a c o m u n i d a d e a c a d ê m i c o - checar a veracidade da h i p ó t e s e exige pesquisas experimentais
profissional da E d u c a ç ã o Física. A esta podem juntar-se, é claro, (positivistas?!) no campo b i o q u í m i c o e fisiológico. Estas pesquisas
pesquisadores de outras áreas, comprometidos com a E d u c a ç ã o Física, estão unificadas por uma p r o b l e m á t i c a , que nos apareceu quando u m
que teriam m u i t o a contribuir no questionamento dos fundamentos conhecimento e m p í r i c o (a r e l a ç ã o radicais livres ??? e x e r c í c i o )
e p i s t e m o l ó g i c o s das metodologias de pesquisa. A f i n a l , n ã o somos permitiu-nos questionar as nossas práticas. Mas isto porque quisemos,
filósofos, p s i c ó l o g o s , b i ó l o g o s , e t c , por isso temos que nos inspirar intencionalmente, q u e s t i o n á - l a , considerando nossos valores sobre o
nos m é t o d o s e teorias de outras á r e a s . N ã o nos cabe debater, por que é bom e o que é r u i m , o que é justo e o que é injusto, o que é
exemplo, se no â m b i t o Sociologia o melhor m é t o d o é este ou aquele, honesto e o que é desonesto.
mas usufruir deste debate, de modo a ajustar progressivamente os
m é t o d o s à nossa p r o b l e m á t i c a .
Dizer que os problemas surgem da prática significa dizer que
CONCLUSÃO
pesquisar temas como o mercado de trabalho, a r e g u l a m e n t a ç ã o da
profissão, a proliferação indiscriminada e a m á qualidade de muitos
P o d e r á haver um dia uma " c i ê n c i a do movimento humano",
cursos de g r a d u a ç ã o , é t ã o importante quanto o metabolismo celular
ou algo semelhante? Neste momento, afirmar isto é futurologia. Trata-
ou a s e m i ó t i c a da corporeidade. Exige ainda levar em conta a situação
se de uma q u e s t ã o de aposta. Cada um de n ó s investe com base em
concreta em que se faz c i ê n c i a e f i l o s o f i a no B r a s i l : s ã o nas
sua p e r c e p ç ã o da realidade, expectativas de futuro, prioridades e
Universidades, em Departamentos ou Faculdades de E d u c a ç ã o Física,
compromissos. E, como Bordieu (1996) nos lembra, n i n g u é m faz
geralmente c o n s t i t u í d a s por um corpo docente h e t e r o g é n e o em
um investimento desinteressado. Se diferentes interessados querem
f o r m a ç ã o , c o n v i c ç õ e s , valores, linhas de pesquisa, p o s i ç õ e s políticas,
fazer a r e v o l u ç ã o em um campo é porque concordam com o essencial:
etc, e que usufrui de um razoável grau de autonomia. Estamos falando,
que ele é importante. M e s m o pessoas que ocupam p o s i ç õ e s opostas
no fundo de uma nova c o n c e p ç ã o de pesquisa, que exige a p r o x i m a ç ã o

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Universidade G a m a Filho Revista de D i v u l g a ç ã o Científica do Mestrado e Doutorado em Educação Física

no campo - segue Bordieu - concordam tacitamente que vale a pena pode enxergar mais longe porque subiu nos ombros de gigantes - os
lutar a respeito das coisas que estão em j o g o . Por isso recomendo aos filósofos que o antecederam. Os autores aqui citados e criticados -
que investem nesta c i ê n c i a que se preparem para concorrer neste todos, como eu, professores de Universidades brasileiras - o foram
campo com profissionais de outras áreas a c a d é m i c a s e profissionais. porque falaram algo à m i n h a r a z ã o e sensibilidade, e n ã o por
O corpo e o movimento interessam sobremaneira aos pedagogos e a r r o g â n c i a intelectual. Poder conviver e debater com eles é um
psicólogos (e n ã o apenas aos fisioterapeutas e afins). E com que capital privilégio da História. Bordieu novamente nos lembra que um e s p a ç o
específico os a c a d é m i c o s da E d u c a ç ã o Física v ã o "entrar em campo"? de p o s s í v e i s funciona como uma e s p é c i e de sistema c o m u m de
Os campos de produção cultural propõem, aos neles envolvidos, coordenadas que obriga os autores a estarem objetivamente situados
um espaço de possíveis, que tende a orientar sua busca, definindo "o uns em r e l a ç ã o aos outros. Por isso, o leitor que teve a p a c i ê n c i a de
universo de problemas, de referências, de marcas intelectuais, de conceitos nos acompanhar até aqui apercebeu-se que a segunda parte deste texto
em "ismo" (Bordieu, 1996:53). Portanto, esta teoria da Educação Física não teria sentido sem a primeira. Mas, para muitos membros da nossa
de que falo ainda não existe. Ela é um espaço possível. Já me antecipando comunidade, citar autores nacionais n ã o é "chique", em especial
a possíveis críticas, diria que neste sentido, e só neste sentido, esta é uma quando s ã o professores de E d u c a ç ã o Física...
proposta idealista. Mas nada no nosso campo pode fazer-se sem um Em palavras carregadas com a força que só a simplicidade
largo esforço de pensamento dotado de intencionalidade. A teoria da tem, um dos muitos professores de p r i m e i r o grau para quem j á ! ,,
Educação Física é uma construção intelectual - e não há outra alternativa. ministrei cursos de e s p e c i a l i z a ç ã o escreveu em sua prova que " n ã o '
Poderíamos aqui nos valer de Kolyniak Filho: ela resultará de trabalho se constrói o novo destruindo a caminhada" . Em seu mundo de 20

da comunidade acadêmico-profissional. vaidade e s o l i d ã o , os a c a d é m i c o s ensurdeceram, e parecem ter-se


N ã o é o caso de decidir se a teoria da E d u c a ç ã o Física mais esquecido do valor do d i á l o g o e do respeito m ú t u o .
adequada seria de base marxista, neo-positivista ou f e n o m e n o l ó g i c a ,
pois, no meu entendimento, estamos falando de uma meta-teoria. Notas: -i
Mas, é claro, ao se falar dela, é preciso falar de algum lugar
e p i s t e m o l ó g i c o . Se tivesse que definir a p o s i ç ã o da qual falo, diria Professor da Universidade Estadual Paulista - Rio Claro.
que é a partir da f e n o m e n o l o g i a - h e r m e n ê u t i c a , quer dizer, inspirado
A publicação original data de 1964.
nela. E por q u ê ? Porque na h e r m e n ê u t i c a apreendi a possibilidade de
confrontar os discursos científicos da E d u c a ç ã o Física e interpretá-
Uma explanação mais detalhada das implicações dos estudos de Hall Lawson
los em busca de novos sentidos, e a necessidade da filosofia dialogar para a Educação Física pode ser encontradas em BETTI. M. (1992). Perspectivas
com as diversas c i ê n c i a s das quais a E d u c a ç ã o F í s i c a n ã o pode na formação profissional. In: Moreira. W.W. (Org.). Educação física A esportes:
prescindir; e em suas bases f e n o m e n o l ó g i c a s aprendi sobre a e s s ê n c i a perspectivas para o século XXI. Campinas: Papirus.
das coisas, a intencionalidade imanente a todas as a ç õ e s humanas, e
4
a inter-relação sujeito-objeto, homem-mundo, teoria-prática. Sem este MANOEL. E.deJ. (1995). Comportamento motor e educação física: as duas
aprendizado, estas r e f l e x õ e s n ã o teriam sido p o s s í v e i s . Por este faces deJano. Palestra proferida no V Simpósio Paulista de Educação Física. Rio
motivo, como Bordieu (1996:8), eu gostaria que este ensaio fosse Claro: UNESP (mimeo.).
lido n ã o como um simples suporte da e s p e c u l a ç ã o t e ó r i c a e da 5 .
d i s c u s s ã o abstrata, mas como uma e s p é c i e de manual de g i n á s t i c a Veja, por exemplo, o título de um projeto de dissertação de um curso de
intelectual, um guia prático que é preciso aplicar a uma prática, isto Mestrado da área: "A interferência do contexto em função da quantidade de
variáveis ". De que trataria tal trabalho?
é, a uma pesquisa prazenteira, liberta de p r o i b i ç õ e s e de d i v i s õ e s .
Certo filósofo (Pascal, se n ã o me engano), j á escreveu que só O grifo e nosso.

120 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3, n. 2. p. 73-127. dez. 1996 Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 3. n. 2, p. 73-127. dez. 1996 l 2 l
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Janeiro: Jorge Zahar. Uma aplicação desta teoria ao esporte é feita em: ELIAS.
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pesquisando suas pesquisas. (Dissertação de Mestrado). Santa Maria: UFSM. do México: Fondo de Cultura Económica.

9 . . , ^ Trata-se da Prof" Mersey Martins Fernandes, de Governador Valadares -


O grijo e nosso.
MG.
Por exemplo, em: DARIDO, S. (1995). Teoria, prática e reflexão na formação
profissional em Educação Física. Motriz. 1(2): 124-128; BETTI. M. A RANGEL-
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Física. Motriz. 2(1).
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Ver a este respeito: RICOEUR, P. (1988). Interpretação e ideologias. Rio de Mestre Jou.
Janeiro: Francisco Alves.

12 A B R E U , R.C. ( 1 9 9 3 ) . A n á l i s e do f e n ó m e n o do d r o p - o u t em
O grifo é nosso. nadadores de 12 a 1 5 anos de ambos os sexos no Estado de Minas
1 3 BETTI A RANGEL-BETTI, op. c/í. Gerais. ( D i s s e r t a ç ã o de Mestrado). Belo Horizonte: Escola de
14 . E d u c a ç ã o Física da U F M G .
Sobre um aplicação do princípio da eqiiifina/idade na Educação hísica Escolar,
consultar: BETTI, M. (1994). Valores e finalidades na educação fisica escolar: A U M O N T , J. (1995). A imagem. 2 ed. Campinas: Papirus.
a

uma concepção sistémica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. 16(1): 14-


21.
B E T T I , M . ( 1 9 9 1 ) . E d u c a ç ã o f í s i c a e sociedade. S ã o Paulo:
^ Onde o leitor pode encontrar uma excelente síntese das principais categorias Movimento.
teóricas de Bordieu.

^ Limitação agravada com a recentíssima publicação, no Brasil, de sua última B E T T I , M . ( 1 9 9 2 ) . Perspectivas na f o r m a ç ã o profissional. Iril
obra. Razões Práticas: teoria da ação, cujo original francês é de 1994, e onde M O R E I R A , W . W . ( O r g . ) . E d u c a ç ã o F í s i c a & esportes;
Bordieu revisa seus próprios trabalhos. perspectivas para o s é c u l o X X I . Campinas: Papirus.
Habitus, segundo Bordieu é o "sistema de disposições duráveis e transponíveis
que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como B E T T I , M . (1994a). Valores e finalidades na e d u c a ç ã o física escolar;
uma matriz de percepções, de apreciações e de ações - e torna possível a realização uma c o n c e p ç ã o s i s t é m i c a . Revista Brasileira de C i ê n c i a s do
de tarefas infinitamente diferenciadas " (1983b:65) "(...) é o que foi adquirido, do Esporte. 16(1): 14-22.
verbo habeo (...). E o habitus, como estrutura estruturada e estruturante, que
engaja, nas práticas e nas ideias, esquemas práticos de construção oriundos da
incorporação de estruturas sociais oriundas, elas próprias, do trabalho histórico B E T T I , M . (1994b). Sociologia da E d u c a ç ã o Física e esporte no
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E d u c a ç ã o física e esporte: ensaios e perspectivas. Rio de Janeiro:
18
SBDEF, UGF.
T rata-se de pesquisa ainda em andamento, de autoria de Osmar Moreira de
Souza Júnior, que será apresentada como monografia de conclusão do curso
Fundamentos Sócio-Cu/turais da Educação Física', na UNESP de Rio Claro. B O R D I E U , P. (1983a). Como ser esportivo. In: Bordieu, P. (Org.).
19 Q u e s t õ e s de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero.
A teoria do processo civilizador é exposta em: ELIAS, N. (1990) O processo

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