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ISSN: 2359-1552
Relato de experiência
Resumo
CAMPOS, Larissa
Barcellos; GOLTARA, As experiências metodológicas realizadas pelos situacionistas e
Giovani Bonadiman; outros movimentos artístico/literários de vanguarda do século XX,
MENDONÇA, Eneida como a deriva, baseada na psicogeografia, demonstram a
Maria S. Oficina Zooming: potencialidade da caminhada como prática de apreensão urbana.
o movimento como prática
Este artigo visa avaliar as teorias apresentadas como um conjunto
de diagnóstico e projeto no
de exercícios possível de ser utilizado no ensino e na prática do
espaço urbano. Revista
Políticas Públicas & urbanismo, principalmente na fase inicial de diagnóstico urbano,
Cidades, v.6, n.2, p.142- com efeitos sobre o projeto a ser desenvolvido em seguida. Por meio
163, ago./dez. 2018. da experiência denominada Oficina Zooming, com prática de
https://doi.org/10.23900/ deriva, e na sequente elaboração narrativas cartográficas, foi
2359-1552v6n209 possível traçar diretrizes projetuais para uma área de estudo,
incidindo na interpretação do espaço individualmente e
coletivamente a partir da sobreposição das experiências dos
Recebido: 19/01/2018 percursos urbanos. A metodologia trabalhada é capaz de ser
aplicada a estudos urbanos com foco no planejamento, auxiliando
Aceito: 15/12/2018 uma compreensão do espaço de forma engajada e mais próxima à
realidade do cotidiano das cidades.
Introdução
O estudo do urbanismo como disciplina de projeto requer preliminarmente, um
diagnóstico de leitura e de apreensão da cidade, abrangendo de um modo geral,
aspectos relacionados ao uso do solo, estrutura viária, morfologia urbana entre outros.
Mesmo reconhecendo que se trata de abordagem cientificamente balizada e que
permite o alcance de visão geral da área de estudo e projeto, percebe-se que a mesma
deixa escapar acontecimentos e situações específicas, que poderiam resultar em
diferencial para a apreensão e articulação da realidade, em suas diversas escalas
geográficas e de planejamento. Com base nesta premissa e ao mesmo tempo, sem abrir
mão, em uma etapa seguinte, dos enfoques tradicionais mencionados, este artigo
propõe instrumentalizar o olhar do urbanista para que sua abordagem inicial se afaste
de metodologias rígidas e tecnicistas, e seja capaz de realizar um diagnóstico urbano
que evidencie de forma rápida e sensível, subjetividades e situações urbanas
características do lugar, com desdobramento futuro sobre o projeto.
Neste excerto, Careri (2013) aponta a direção que se pretende ao tratar do caminhar
como forma de compreensão e intervenção no espaço. As possibilidades de
aproximação e interpretação do território por meio do caminhar podem ser observadas
em experiências e relatos que remontam à origem da civilização humana, como o faz
Careri (2013) ao apontar o nomadismo como uma das primeiras formas de intervenção
no ambiente. Entretanto, foi no século XX, que em meio aos acontecimentos ligados à
difusão do pensamento moderno, os movimentos artísticos e literários de vanguarda,
iniciaram uma fase de experimentações deambulatórias. Por meio de uma postura de
antiarte, os movimentos do Dadá, dos Surrealistas, da Internacional Letrista e por fim,
da Internacional Situacionista, buscaram extrapolar os limites impostos à produção
artística clássica, trazendo a vida cotidiana e o banal como objeto de contestação.
A cidade lúdica e espontânea experimentada com uma forma de jogo, portanto, têm a
função de libertar o indivíduo da submissão e a passividade gerados pelo espetáculo.
Deriva psicogeográfica
A deriva era, para os situacionistas, um jogo utilizado para exploração do espaço com o
qual se torna possível a tradução prática da psicogeografia e da subversão almejada pelo
A deriva atualmente se potencializa como uma prática em que a relação sensível com o
território permite uma leitura crítica do espaço percorrido, subvertendo a velocidade e
o distanciamento contemporâneos. Esse encontro por meio do movimento induz ao
conhecimento dos aspectos e problemas reais sem o intermédio de um conhecimento
Além das regras básicas da deriva, são destacadas diversas possibilidades de ação no
território percorrido com a finalidade de quebrar as barreiras físicas e sociais postas na
organização dos espaços urbanos. Uma oportunidade, conforme destaca Esteves Junior
-a e revelando assim a origem
dos seus obstáculos e suas tensões. Também é relevante procurar penetrar e violar tais
obstáculos, reagindo aos estímulos que o lugar promove, sem restrições, se entregando
de fato à psicogeografia. Deste modo, o jogo soma a distração ou negação à atenção,
promovendo uma libertação em relação aos vínculos do cotidiano ligados à
estandardização dos comportamentos e uma experimentação embasada na
espontaneidade, na surpresa e na descoberta.
Narrativas Cartográficas
A experiência da deriva psicogeográfica como dissidência aos métodos tradicionais de
apreensão da forma urbana pressupõe um modo alternativo de sistematização do
pensamento de cidade. Contudo, a compreensão da urbe, habitualmente, está pautada
em um desenho cartográfico clássico, como uma tentativa de ordenação lógica. O mapa
clássico constitui uma alternativa de tomada de poder, instituindo uma cartografia
hegemônica, que de acordo com Besse (2014) parte da tentativa de mimese do espaço.
Assim como outras formas de representação, a produção do mapa se baseia em uma
interpretação autoral, e, portanto, carrega uma série de elementos subjetivos, que são,
em geral, lidos e aceitos como realidade técnica. Em alternância às representações
clássicas do território, busca-se nesse trabalho elaborar a definição de narrativas
cartográficas, que visam uma compreensão subjetiva do espaço em concordância aos
"jogos estratégicos" abordados por Esteves Junior (2002).
A principal inspiração para a criação das narrativas cartográficas vem, então, dos
mapas psicogeográficos situacionistas, com exemplo do "Le Guide Psychogeographique
de Paris" de Debord, (1957) que representa o primeiro mapa do gênero (Erro! Fonte de
referência não encontrada.). O material produzido em decorrência da experiência do
autor com a cidade demonstra sua compreensão de uma "Paris explodida em pedaços,
uma cidade cuja unidade foi completamente perdida e na qual reconhecemos apenas
fragmentos de cidade histórica que flutuam num espaço vazio." (Careri, 2013, pg. 92).
Figura 1 -
Guy Debord, 1957. Fonte: macba.cat (acessado em 13 de abril de 2016).
A produção de tais cartografias implica na abstração da representação, de forma que o
material apresentado se aproxime ao máximo possível da experiência em campo. Esse
tipo de representação gráfica,
Mapa 1 - Cidade de Vitória-ES com destaque para limite político do bairro Enseada do
Suá. Fonte: Base cartográfica do Instituto Jones dos Santos Neves. Editados pelos
autores.
O bairro Enseada do Suá foi criado na década de 1970 a partir de um projeto do arquiteto
Jolindo Martins Filho executado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano S.A.
(COMDUSA) que consistiu num aterramento hidráulico de parte da Baía de Vitória. De
acordo com Freitas (2012) o motivo inicialmente alegado pelo arquiteto foi a melhoria
do canal de navegação para acesso ao Porto de Vitória. Posteriormente, verificou-se
tratar-se da expansão do solo urbano de modo a saciar a demanda do empresariado, o
que se confirma nas alterações do plano original realizadas imediatamente após sua
elaboração. A proposta inicial do projeto priorizava o uso residencial, contando com
O desafio lançado na oficina foi o de caminhar pela área de forma intuitiva apreendendo
o ambiente em suas particularidades. Os principais comandos dados buscavam
estimular uma experiência de errância urbana com poucos preconceitos, evitando o
óbvio e já conhecido, mesmo tratando-se de participantes influenciados pelo
pensamento acadêmico em Arquitetura e Urbanismo. Nesse sentido, buscou-se
formatar a oficina a partir da ideia de um jogo, baseado na teoria da deriva
psicogeografia e sua proposição metodológica da deriva e cartografia.
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Runtastic é um aplicativo para celulares do tipo Smartphones utilizado para atividades
esportivas. O sistema utiliza tecnologia GPS para mapear os percursos de corrida e caminhada,
além de informar dados de velocidade média, tempo, entre outros.
O movimento em foco
Antes de tudo, cabe ressaltar que o método aqui proposto é baseado em diferentes
práticas de aproximação do território já experimentadas, cuja importância tem seu
lugar no estudo da geografia urbana. Contudo, observa-se que, seja na escola, seja na
prática rotineira do urbanismo, há pouco espaço para experimentações de caráter
artístico-analítico como a deriva, os mapeamentos psicogeográficos, ou mesmo a
sensibilização do olhar. A maior contribuição do exercício aqui narrado consiste na
associação das práticas e sua proposição como metodologia para uma primeira
aproximação ao território.
O relato produzido por J. (Erro! Fonte de referência não encontrada.) demonstrou sua
resposta às sensações mesmo que a ela inexplicáveis ou incômodas, estando atenta a
dar respostas imediatas às situações às quais se submetia. Nesse sentido, reforça-se a
importância de estar atento e ao mesmo tempo desorientado durante a deriva.
Entretanto, algumas pessoas se deixam influenciar por pré-concepções às quais são
expostas, impondo ao exercício barreiras imaginárias nem sempre condizentes com a
realidade do local. O medo, embora importante para manutenção da integridade,
Por outro lado, ao se situarem como possíveis agentes da produção do espaço foram
apontadas diversas fragilidades relacionadas à experiência em campo. Uma delas se
refere à sensação de insegurança, vinculadas à presença de grandes vazios e à
desertificação causada pela monofuncionalidade dos espaços. Uma característica que
se destaca diz respeito aos contrastes sociais evidenciados na região, principalmente
pela proximidade de bairros muito elitizados e favelas. Outra grande fragilidade
percebida foi a existência de barreiras à mobilidade e à utilização dos espaços públicos,
Conclusão
O movimento do corpo e a escala humana postos como princípios na percepção do
urbano permitem um olhar participativo dos contextos, os quais se pretende
compreender e interferir. Nesse sentido, o caminhar à deriva permite ao urbanista a
inserção na realidade local, em sobreposição ao olhar distanciado comumente aplicado
pelo estudo do diagnóstico urbano, que parte de predeterminações específicas e pode
homogeneizar as realidades diversas. A vivência do espaço, proposta pela Oficina
Zooming, proporcionou ao estudo da região pretendida, a compreensão das dinâmicas
do ambiente, como por exemplo, a paisagem, as apropriações, os limites e barreiras, a
morfologia e, fundamentalmente, os aspectos sociais. Essa compreensão se deu a partir
de um exercício em que o participante se colocou como usuário e, portanto, pode julgar
o espaço e pensar em um planejamento urbano adequado às suas necessidades.
É importante ressaltar que a contestação que o método proporciona deve ser pensada
como uma primeira aproximação ao território, não excluindo prática posteriores,
importantes para decisões projetuais. Se por um lado tal abordagem é importante para
a sensibilização do indivíduo perante as etapas seguintes, por outro, é possível vinculá-
la a análises formais que envolvem o reconhecimento qualitativo e/ou quantitativo da
morfologia urbana, os equipamentos, elementos paisagísticos, fluxos, entre outros.
Referências
ÀCOCA. Página do Grupo Àcoca [blog da internet]. Viagem psicogeográfica pelos bairros de
Lisboa. Lisboa, 2015. In grupoacoca.blogspot.com.br (acessado em 18 de abril de 2016).
BESSE, J. M. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.
CARERI, F. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gili, 2013.
DEBORD, G.E. Introdução a uma crítica da geografia urbana. Les lévres nues nº6, set.
1955. In: Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. JACQUES, P. B.(org.).
Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
______. Teoria da Deriva. IS n°2, dez. 1958. In: Apologia da deriva: escritos situacionistas
sobre a cidade. JACQUES, P. B.(org.). Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.
______. O Urbanismo Unitário no fim dos anos 1950. IS n°3, dez. 1959. In: Apologia da
deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. JACQUES, P. B.(org.). Tradução Estela dos Santos
Abreu. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
Oficina Zooming: the movement as practice of analysis and design on the urban space
Abstract
The methodological experiences conducted by the situationists and other artistic/literary avant-
garde movements of the 20th century, such as the drift, based on the psychogeography,
demonstrate the potential of walking as a practice of urban apprehension. This paper aims to
evaluate the presented theories as a set of exercises able to be used in teaching and the practice
of urban planning, especially in the initial phase of urban diagnosis, with effects on the project
to be developed next. Through the experiment called Oficina Zooming, with practical drift, and
the sequent elaboration of cartographic narratives, it was possible to formulate planning
guidelines for an area of study, focusing on the interpretation of space individually and
collectively through the overlapping of the urban paths experiences. The methodology
addressed can be applied on urban studies focused on planning, assisting a comprehension of
space by an engaged way that is closer to the reality of the cities daily routine.
Resumen