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Políticas Públicas & Cidades, vol. 6(2), dezembro 2018.

ISSN: 2359-1552

Relato de experiência

Oficina Zooming: o movimento como prática de diagnóstico e


projeto no espaço urbano

Larissa Barcellos Campos1A B C D E F


Curso de Arquitetura e Urbanismo, Instituto Ensinar Brasil – Rede Doctum, Piúma, ES – Brasil. E-mail:
laribcampos@hotmail.com

Giovani Bonadiman Goltara A B C D E F


Curso de Arquitetura e Urbanismo, Instituto Ensinar Brasil – Doctum, Teófilo Otoni, MG – Brasil. E-mail:
giovani.goltara@gmail.com

Eneida Maria Souza Mendonça A F


Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES – Brasil. E-mail: eneidamendonca@gmail.com

Resumo
CAMPOS, Larissa
Barcellos; GOLTARA, As experiências metodológicas realizadas pelos situacionistas e
Giovani Bonadiman; outros movimentos artístico/literários de vanguarda do século XX,
MENDONÇA, Eneida como a deriva, baseada na psicogeografia, demonstram a
Maria S. Oficina Zooming: potencialidade da caminhada como prática de apreensão urbana.
o movimento como prática
Este artigo visa avaliar as teorias apresentadas como um conjunto
de diagnóstico e projeto no
de exercícios possível de ser utilizado no ensino e na prática do
espaço urbano. Revista
Políticas Públicas & urbanismo, principalmente na fase inicial de diagnóstico urbano,
Cidades, v.6, n.2, p.142- com efeitos sobre o projeto a ser desenvolvido em seguida. Por meio
163, ago./dez. 2018. da experiência denominada Oficina Zooming, com prática de
https://doi.org/10.23900/ deriva, e na sequente elaboração narrativas cartográficas, foi
2359-1552v6n209 possível traçar diretrizes projetuais para uma área de estudo,
incidindo na interpretação do espaço individualmente e
coletivamente a partir da sobreposição das experiências dos
Recebido: 19/01/2018 percursos urbanos. A metodologia trabalhada é capaz de ser
aplicada a estudos urbanos com foco no planejamento, auxiliando
Aceito: 15/12/2018 uma compreensão do espaço de forma engajada e mais próxima à
realidade do cotidiano das cidades.

Palavras-chave: Deriva. Percepção. Paisagem. Projeto urbano.


Experiência urbana. Movimento.

Contribuição: A. fundamentação teórico-conceitual e problematização; B. pesquisa de dados e


análise estatística; C. elaboração de figuras e tabelas; D. ilustrações; E. elaboração e redação do
texto; F. seleção das referências bibliográficas.

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Introdução
O estudo do urbanismo como disciplina de projeto requer preliminarmente, um
diagnóstico de leitura e de apreensão da cidade, abrangendo de um modo geral,
aspectos relacionados ao uso do solo, estrutura viária, morfologia urbana entre outros.
Mesmo reconhecendo que se trata de abordagem cientificamente balizada e que
permite o alcance de visão geral da área de estudo e projeto, percebe-se que a mesma
deixa escapar acontecimentos e situações específicas, que poderiam resultar em
diferencial para a apreensão e articulação da realidade, em suas diversas escalas
geográficas e de planejamento. Com base nesta premissa e ao mesmo tempo, sem abrir
mão, em uma etapa seguinte, dos enfoques tradicionais mencionados, este artigo
propõe instrumentalizar o olhar do urbanista para que sua abordagem inicial se afaste
de metodologias rígidas e tecnicistas, e seja capaz de realizar um diagnóstico urbano
que evidencie de forma rápida e sensível, subjetividades e situações urbanas
características do lugar, com desdobramento futuro sobre o projeto.

Tal modo alternativo de compreensão do espaço urbano é abordado neste trabalho a


partir das ideias provenientes da Internacional Situacionista, com foco na
psicogeografia e sua proposição metodológica da deriva. A partir da crítica ao
urbanismo levantada por Guy-Ernest Debord (2003 [1955]) entende-se que a
compreensão da constituição da vida urbana, da variabilidade de situações do cotidiano
e das singularidades da cidade, só é possível mediante a aplicação de uma metodologia
livre de pré-concepções deterministas e utilitárias. Com base nesta abordagem,
defende-se que a observação e o registro dessas situações de forma analítico-
documental não sejam suficientes para apreensão de aspectos urbanos peculiares,
sendo relevante determinado tipo de aproximação do pesquisador com a realidade
local, a fim de captar determinados aspectos relativos à mesma e ao papel dos agentes
com ela envolvidos. Tais agenciamentos nem sempre estão visíveis, e, portanto, uma
experiência sensível é capaz de fazer emergir relações sociais e políticas, atuantes na
produção do território.

De modo relacional, representar a prática se faz importante para compreender e


comunicar as experiências vividas em campo. A cartografia é um dos principais modos
de representação do território, e segundo Besse (2014), quando produzidas aos moldes
clássicos, são interpretações que carregam e criam sentidos próprios. Como dissidência
às cartografias chamadas hegemônicas, busca-se nesse estudo, a caracterização do
conceito de narrativas cartográficas, baseadas nos mapas psicogeográficos de Debord
de 1957 e dos novos coletivos interventores urbanos como, por exemplo, o Grupo Àcoca.
Tais cartografias buscam evidenciar aspectos subjetivos do espaço, fugindo da
representação mimética e formal cartesiana, revelando as cidades possíveis, sentidas e
absorvidas nas experiências erráticas.

O propósito geral deste artigo é então, avaliar as teorias apresentadas como um


conjunto de exercícios possível de ser utilizado no ensino e na prática do urbanismo,
principalmente na fase inicial de diagnóstico urbano, com efeitos sobre o projeto a ser

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desenvolvido em seguida. A experimentação da metodologia foi realizada a partir de


atividade proposta a uma turma de alunos do sexto período da graduação em
Arquitetura e Urbanismo da [nome da universidade], na disciplina de Urbanismo II. Tal
atividade, nomeada Oficina Zooming, se deu como o primeiro contato com a área de
estudos, objeto do projeto de requalificação urbana que viria em seguida. O exercício
consistiu em uma experiência de deriva, um jogo com regras e instruções básicas, e na
sequente elaboração de narrativas cartográficas para apresentação coletiva.

O argumento construído por meio da experiência realizada é de que as subjetividades,


a experiência do cotidiano e as particularidades dos processos urbanos são
indispensáveis ao planejamento urbano. Nesse sentido, é cabível ressaltar que a
proposta metodológica tratada nesse artigo contesta os modos de observação
distanciada da cidade, empregados, em muitos casos, no diagnóstico urbano. Contudo
indica-se que a experiência errática, proposta como primeiro contato com o território,
e o diagnóstico usual se configuram como opostos complementares.

Introdução ao pensamento urbano situacionista


O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço,
implica uma transformação do lugar e dos seus significados. A
presença física do homem num espaço não mapeado - e o variar das
percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo - é uma forma de
transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis,
modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente,
o espaço em si, transformando-o em lugar (CARERI, 2013, p.51).

Neste excerto, Careri (2013) aponta a direção que se pretende ao tratar do caminhar
como forma de compreensão e intervenção no espaço. As possibilidades de
aproximação e interpretação do território por meio do caminhar podem ser observadas
em experiências e relatos que remontam à origem da civilização humana, como o faz
Careri (2013) ao apontar o nomadismo como uma das primeiras formas de intervenção
no ambiente. Entretanto, foi no século XX, que em meio aos acontecimentos ligados à
difusão do pensamento moderno, os movimentos artísticos e literários de vanguarda,
iniciaram uma fase de experimentações deambulatórias. Por meio de uma postura de
antiarte, os movimentos do Dadá, dos Surrealistas, da Internacional Letrista e por fim,
da Internacional Situacionista, buscaram extrapolar os limites impostos à produção
artística clássica, trazendo a vida cotidiana e o banal como objeto de contestação.

De acordo com Careri (2013), o Dadá, movimento pioneiro estabelecido na década de


1910, buscou confrontar a postura artística estabelecida, lançando mão da exploração
da cidade como um método de romper com a rigidez formal e estética das obras de arte
limitadas aos salões e galerias. Foi por meio daquele movimento que em 1921 um grupo
de artistas se pôs em excursão urbana pelas ruas de Paris, realizando "a primeira
operação simbólica que atribuiu valor estético a um espaço vazio e não a um objeto."
(CARERI, 2013, pg. 75). Cabe ressaltar que a arte "produzida" por este coletivo não
propunha a objetificação da cidade, e sim destacar o valor da operação como

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intervenção e questionamento aos valores e interesses que posteriormente seriam


reunidos e definidos por Debord (1997 [1967]) como a "sociedade do espetáculo".

A Internacional Situacionista (IS), fundada por Guy Debord em 1957, reunindo os


principais atributos do pensamento dadaísta e dos movimentos de vanguarda
subsequentes, foi capaz de estabelecer uma crítica ainda pertinente nos dias de hoje -
acerca da cidade e da vida urbana cotidiana. Sua filosofia era baseada na construção de
situações, o que se torna possível à medida que os cidadãos passem de espectadores
passivos a participantes ativos da vida urbana. Em suas palavras:

Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção


concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação
em uma qualidade passional superior. Devemos elaborar uma
intervenção ordenada sobre os fatores complexos dos dois grandes
componentes que interagem continuamente: o cenário material da
vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram (DEBORD,
1957/2003, p.54).

Todo o pensamento urbano situacionista nasceu a partir da crítica ao planejamento


urbano modernista, que contribuiu para o pensamento de uma cidade setorizada,
racionalizada, "espetacular" e, portanto, não permissiva à espontaneidade, às
experimentações, e ao comportamento lúdico. Fundamentado na crítica ao urbanismo
moderno genérico e segmentado, o situacionismo adota o conceito de urbanismo
unitário,

(ibid. p.100), consiste na adoção do comportamento lúdico como forma de subversão


do urbanismo funcional utilitário. Deste modo, a ideia de jogo contribui para escapar
da alienação dessa sociedade dita espetacular. "Jogar [nesse caso] significa sair
deliberadamente das regras e inventar as próprias regras, libertar a atividade criativa
das constrições socioculturais, projetar ações estéticas e revolucionárias que ajam
contra o controle social." (CARERI, 2013, p.97).

A cidade lúdica e espontânea experimentada com uma forma de jogo, portanto, têm a
função de libertar o indivíduo da submissão e a passividade gerados pelo espetáculo.

situacionismo: a deriva e o mapeamento cognitivo (ESTEVES JUNIOR, 2002, p.324),


ambos sustentados por uma matriz: a psicogeografia. Este termo surge, para o grupo
situacionista, a partir de observações e experimentações em campo, caracterizando o

que atuam diretamente no comportamento afetivo dos indivíduo


2013, p.90). Como reivindicação, a psicogeografia demanda uma compreensão do meio
geográfico sem intermédios, libertando-se dos moldes e determinações da vida em
sociedade.

Deriva psicogeográfica
A deriva era, para os situacionistas, um jogo utilizado para exploração do espaço com o
qual se torna possível a tradução prática da psicogeografia e da subversão almejada pelo

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urbanismo unitário. Se afastando da ideia de reconhecimento e representação do


território, a deriva possuía a capacidade de estabelecer a ligação necessária entre o
indivíduo e a realidade cotidiana do lugar por meio do movimento, superando as
barreiras sociais e espaciais impostas pelo planejamento urbano.

As lições da deriva permitem estabelecer os primeiros levantamentos


das articulações psicogeográficas de uma cidade moderna. Além do
reconhecimento de unidades de ambiência, de seus componentes
fundamentais e de sua localização espacial, percebem-se os principais
eixos de passagem, as saídas e defesas (DEBORD, 1958/2003, p.90).

A deriva atualmente se potencializa como uma prática em que a relação sensível com o
território permite uma leitura crítica do espaço percorrido, subvertendo a velocidade e
o distanciamento contemporâneos. Esse encontro por meio do movimento induz ao
conhecimento dos aspectos e problemas reais sem o intermédio de um conhecimento

sensibilização, propõe a superação dos limites espaciais e sociais que operam no


cotidiano do espaço urbano e moldam o comportamento dos indivíduos. Ao mesmo
tempo, a atenção e o olhar crítico do indivíduo na deriva o distanciam da distração e
encantamento proveniente do equilíbrio desse cotidiano, de modo que o torna capaz de
perceber aspectos fundamentais, específicos daquela situação e de questionar a
ocupação e o planejamento da cidade.

O comportamento na deriva deve, portanto, envolver um estado de distração em


relação aos vícios, na tentativa de elaboração de um diagnóstico urbano, como
reconhecer elementos comuns a todos os espaços urbanos, e ao mesmo tempo, também
deve incluir uma atenção à essência dos acontecimentos durante a experiência, o que é
abordado por Esteves Junior (

Duas são as regras indispensáveis da deriva: a desorientação


(movimentação rápida, fugidia e sem rumos preconcebidos; utilização
consciente do ato de perder-se e de perder as referências) e a atenção
(aos valores realmente significativos e aos impulsos despertados pelo
lugar e pela própria experiência). (ESTEVES JUNIOR, 2002, p.325)

Além das regras básicas da deriva, são destacadas diversas possibilidades de ação no
território percorrido com a finalidade de quebrar as barreiras físicas e sociais postas na
organização dos espaços urbanos. Uma oportunidade, conforme destaca Esteves Junior
-a e revelando assim a origem
dos seus obstáculos e suas tensões. Também é relevante procurar penetrar e violar tais
obstáculos, reagindo aos estímulos que o lugar promove, sem restrições, se entregando
de fato à psicogeografia. Deste modo, o jogo soma a distração ou negação à atenção,
promovendo uma libertação em relação aos vínculos do cotidiano ligados à
estandardização dos comportamentos e uma experimentação embasada na
espontaneidade, na surpresa e na descoberta.

A liberdade almejada na deriva também possibilita a situação do indivíduo em uma


posição de questionador das regras da sociedade urbana, em que se torna capaz de

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a investigação e a expressão do espaço, como também a intervenção crítica neste,


restaurando o significado do uso político do a
(ESTEVES JUNIOR, 2002, p. 325). Associada à cartografia, a deriva pode assumir o
importante papel de mudar e criar os espaços, alterando, portanto, a arquitetura e o
urbanismo, conforme veremos a seguir.

Narrativas Cartográficas
A experiência da deriva psicogeográfica como dissidência aos métodos tradicionais de
apreensão da forma urbana pressupõe um modo alternativo de sistematização do
pensamento de cidade. Contudo, a compreensão da urbe, habitualmente, está pautada
em um desenho cartográfico clássico, como uma tentativa de ordenação lógica. O mapa
clássico constitui uma alternativa de tomada de poder, instituindo uma cartografia
hegemônica, que de acordo com Besse (2014) parte da tentativa de mimese do espaço.
Assim como outras formas de representação, a produção do mapa se baseia em uma
interpretação autoral, e, portanto, carrega uma série de elementos subjetivos, que são,
em geral, lidos e aceitos como realidade técnica. Em alternância às representações
clássicas do território, busca-se nesse trabalho elaborar a definição de narrativas
cartográficas, que visam uma compreensão subjetiva do espaço em concordância aos
"jogos estratégicos" abordados por Esteves Junior (2002).

O que se almeja criar nestas narrativas cartográficas são representações produzidas a


partir de elementos que não se limitam à tentativa de expressão métrica e realista do
território, ou até buscam excluí-la. Nesse sentido, Leirias (2012) ao discorrer sobre as
novas cartografias indica que "toda produção simbólica do espaço cria e transforma este
mesmo espaço. Um mapa não é uma produção da verdade, e sim uma expressão da
experiência no espaço" (LEIRIAS, 2012, p.120). Esse excerto decorre de uma discussão
epistemológica acerca dos mapas hegemônicos abordada pela autora, onde afirma que
estes tipos de representação cartográfica "têm comprometimentos políticos e
ideológicos, têm um 'segundo texto' que deve ser considerado e podem mentir"
(LEIRIAS, 2012, p.120). Seguindo essa linha de raciocínio e buscando uma
ressignificação da cartografia, pode-se inferir que:

As cartografias não só representam o território como criam um


território, todo mapa é uma reterritorialização (no sentido de
afirmação de um processo de territorialidade, de apropriação do
espaço) e tem a potencialidade de refazer-se e atualizar-se a cada
fruição do sujeito. (LEIRIAS, 2012 p.120).

A principal inspiração para a criação das narrativas cartográficas vem, então, dos
mapas psicogeográficos situacionistas, com exemplo do "Le Guide Psychogeographique
de Paris" de Debord, (1957) que representa o primeiro mapa do gênero (Erro! Fonte de
referência não encontrada.). O material produzido em decorrência da experiência do
autor com a cidade demonstra sua compreensão de uma "Paris explodida em pedaços,
uma cidade cuja unidade foi completamente perdida e na qual reconhecemos apenas
fragmentos de cidade histórica que flutuam num espaço vazio." (Careri, 2013, pg. 92).

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Figura 1 -
Guy Debord, 1957. Fonte: macba.cat (acessado em 13 de abril de 2016).
A produção de tais cartografias implica na abstração da representação, de forma que o
material apresentado se aproxime ao máximo possível da experiência em campo. Esse
tipo de representação gráfica,

[...] como forma de conhecimento é um método para investigar a


cidade para além do planejamento. Utilizado como estratégia de
criação artística, revela aspectos não mapeados pelos órgãos
responsáveis, dá visibilidade a fenômenos perceptíveis na vivência do
espaço cotidiano. (LEIRIAS, 2012 p.122).

Outra fonte de inspiração para a Oficina Zooming são os mapas psicogeográficos


produzidos pelo coletivo português ÀCOCA (Erro! Fonte de referência não
encontrada.) a partir de visitas aos bairros de Lisboa, desenvolvendo exemplos
contemporâneos de mapeamentos subjetivos. A atividade desenvolvida pelo grupo
consistiu em uma separação dos participantes em grupos, para que deambulassem
pelos bairros, e assim pudessem produzir mapas que representassem o território de
acordo com sua visão. O relato a seguir, extraído do blog do grupo, explica como tal
mapeamento foi importante para a criação de um imaginário coletivo a partir da
percepção de diferentes pessoas:

[os mapas] levaram-nos a conhecer o respectivo bairro, não da forma


como ele realmente é, mas da forma como o grupo quer que nós o
vejamos. Outros reavivaram a memória, acrescentaram outro
conhecimento e revelaram-nos novas experiências e emoções. Quase

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que sentimos que estávamos mesmo a fazer uma visita a todos os


bairros. Mas não um visita qualquer. A visita que nos mostra aquilo
que o grupo sentiu, aquilo que estes querem que nós experienciemos.
É interessante ver as diferentes representações psicogeograficas dos
outros bairros, que por sua vez nos transmitem diferentes emoções,
vistas do bairro e maneiras de nos mergulharmos nele.
(grupoacoca.blogspot.com.br, acessado em 13 de abril de 2016)

Figura 2 - Mapa psicogeográfico. Fonte: grupoacoca.blogspot.com.br (acessado em 13


de abril de 2016)
Ao aliar as teorias das novas cartografias às ideias de aproximação do território,
busca-se exercitar a capacidade de olhar para a cidade de forma crítica e sensível, e de
representar graficamente, essa percepção. O ato de mapear as sensibilidades promove,
naquele que se submete ao exercício de deriva, uma rememoração da experiência,
capaz de provocar "operações que deem visibilidade ao que é sensível (e, na maioria das
vezes, invisível), além de descrever o indescritível e transmitir o indizível" (ESTEVES
JUNIOR, 2002, pg. 326). Busca-se então, com este método, fugir dos diagnósticos
tecnicistas da urbe, na primeira aproximação do território, para que as análises futuras
não prescindam das subjetividades nele presentes.

ZOOMING: um jogo para um percurso


Como experimentação empírica das ideias aqui expostas, foi realizada pelos autores,
uma oficina com alunos do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da [nome
da universidade]. O principal objetivo da atividade foi de potencializar a capacidade do

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estudante de Urbanismo para uma apreensão sensível da cidade, auxiliando os


diagnósticos para produção do projeto de requalificação urbana proposto. O nome da
oficina surgiu a partir do termo Zoom, referente à aproximação e distanciamento de
cena no enquadramento da fotografia, e remete à intenção de transposição de escalas
no ambiente urbano.

A área de estudos compreendia o bairro Enseada do Suá na cidade de Vitória - ES (Erro!


Fonte de referência não encontrada.), bem como áreas adjacentes. Os limites do bairro
como área de estudos não ficaram restritos a aquele determinado politicamente,
incluindo, portanto, parte de bairros vizinhos, adicionados a partir de um levantamento
sensorial-histórico iniciado na própria oficina ZOOMING.

Mapa 1 - Cidade de Vitória-ES com destaque para limite político do bairro Enseada do
Suá. Fonte: Base cartográfica do Instituto Jones dos Santos Neves. Editados pelos
autores.
O bairro Enseada do Suá foi criado na década de 1970 a partir de um projeto do arquiteto
Jolindo Martins Filho executado pela Companhia de Desenvolvimento Urbano S.A.
(COMDUSA) que consistiu num aterramento hidráulico de parte da Baía de Vitória. De
acordo com Freitas (2012) o motivo inicialmente alegado pelo arquiteto foi a melhoria
do canal de navegação para acesso ao Porto de Vitória. Posteriormente, verificou-se
tratar-se da expansão do solo urbano de modo a saciar a demanda do empresariado, o
que se confirma nas alterações do plano original realizadas imediatamente após sua
elaboração. A proposta inicial do projeto priorizava o uso residencial, contando com

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áreas de comércio e serviços. Com as alterações, o parcelamento do solo e o traçado


viário propostos para a maior parte do bairro, favoráveis ao grande fluxo de veículos e
ocupação por empreendimentos de grande porte, resultaram na criação de um polo de
atividades comerciais/serviços e institucionais de importante influência, hoje,
metropolitana (ESPÍNDULA, 2014).

O desafio lançado na oficina foi o de caminhar pela área de forma intuitiva apreendendo
o ambiente em suas particularidades. Os principais comandos dados buscavam
estimular uma experiência de errância urbana com poucos preconceitos, evitando o
óbvio e já conhecido, mesmo tratando-se de participantes influenciados pelo
pensamento acadêmico em Arquitetura e Urbanismo. Nesse sentido, buscou-se
formatar a oficina a partir da ideia de um jogo, baseado na teoria da deriva
psicogeografia e sua proposição metodológica da deriva e cartografia.

Num primeiro momento foram apresentadas, aos participantes, leituras que


delineariam a estrutura conceitual da oficina proposta. Os textos foram preparados a
partir do livro "Walkscapes: o caminhar como prática estética" do arquiteto Francesco
Careri (2013). Tal leitura teve o intuito de exemplificar práticas de deambulações que
mostram novas possibilidades de apreensão do espaço urbano. Nesse sentido, foi
importante demonstrar como o caminhar se constitui num importante meio de captar
a essência do urbano através do movimento lento e a escala humana.

Em seguida, foram apresentadas as regras do jogo proposto na oficina. Por se tratar de


um exercício de deambulação, a principal exigência foi que, a partir do ponto dado
como partida e durante toda a atividade, o participante se deslocasse somente a pé. A
individualidade foi uma forma de fazer com que cada participante fizesse seu próprio
caminho, sem interferências outras, que não seu próprio instinto e sua relação com o
urbano. A possibilidade de pausa foi posta como regra para que o participante tivesse a
capacidade de perceber suas limitações físicas, e de se entregar ao deleite de sensações
e paisagens que o tocassem.

As sugestões feitas seguiram a ideia do "perder-se" como forma de reconhecimento


espacial alternativo, buscando aproveitar as casualidades e potencialidades que o
recorte de espaço e tempo oferecesse ao participante. Também foi sugerido que a
duração da oficina fosse compatível à duração da aula, que corresponde a três horas,
iniciadas no ponto definido como partida. Nesse sentido, foram selecionadas 18
referências na área de estudo, distribuídas de forma com que cada participante tivesse
a possibilidade de percorrer ambientes, a princípio, distintos e, em conjunto,
englobassem grande parte da área ou até mesmo a área por completo (Erro! Fonte de
referência não encontrada.). Como forma de obtenção de informações sobre os

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percursos e a área compreendida pelos participantes, foi solicitada a utilização de um


aplicativo2 para smartphone que mapeasse a caminhada.

Mapa 2 - Proposta de delimitação da área de estudos baseada na experiência dos


percursos dos participantes da Oficina Zooming. Fonte: Base cartográfica PMV.
Editado pelos autores.
Foi pedido que cada participante produzisse uma narrativa cartográfica. Com formato
de livre escolha, cada material deveria conter informações acerca das sensações
ativadas no espaço, dos elementos ou acontecimentos que marcassem o percurso, das
relações sociais percebidas e características físicas do espaço. O retorno da experiência
veio em forma do debate coletivo sobre as percepções individuais com apresentação

2
Runtastic é um aplicativo para celulares do tipo Smartphones utilizado para atividades
esportivas. O sistema utiliza tecnologia GPS para mapear os percursos de corrida e caminhada,
além de informar dados de velocidade média, tempo, entre outros.

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dos mapeamentos e a sequente elaboração de diretrizes projetuais que alcançassem os


cenários desejáveis.

O movimento em foco
Antes de tudo, cabe ressaltar que o método aqui proposto é baseado em diferentes
práticas de aproximação do território já experimentadas, cuja importância tem seu
lugar no estudo da geografia urbana. Contudo, observa-se que, seja na escola, seja na
prática rotineira do urbanismo, há pouco espaço para experimentações de caráter
artístico-analítico como a deriva, os mapeamentos psicogeográficos, ou mesmo a
sensibilização do olhar. A maior contribuição do exercício aqui narrado consiste na
associação das práticas e sua proposição como metodologia para uma primeira
aproximação ao território.

Toda a atividade proposta por esta metodologia consiste em exercício individual da


relação do sujeito com o território, e a consequente análise pessoal baseada em sua
experiência. Por outro lado, a espacialização das referências iniciais dos percursos e o
debate conjunto, posterior à realização da deriva, permitem uma compreensão coletiva
da área. Portanto, ao final, têm-se uma diversidade de compreensões individuais e a
síntese coletiva, que parte de acordo entre os envolvidos e suas percepções e intuições.
Esta dualidade contém a essência que se busca captar com a metodologia proposta, ou
seja, oferecer ao indivíduo que projeta ou vivencia o espaço a possibilidade de ser
compreendido e de compreender a percepção do outro. Nesse sentido, o mapeamento
dos percursos realizados é importante para a visualização de uma sobreposição, que
traduz os interesses individuais afetados pelo ambiente na locomoção.

A sistematização dos trajetos individuais (Erro! Fonte de referência não encontrada.)


resultou na elaboração de um mapa (Erro! Fonte de referência não encontrada.) que
exemplifica a forma intuitiva de escolha de caminhos, baseado principalmente nos
grandes referentes da cidade, como informado posteriormente pelos participantes,
-
especificamente Enseada do Suá, elementos como a Terceira Ponte, o Convento da
Penha, a linha d'água da entrada da baía, edifícios imponentes de referência municipal,
cumpriram o papel de atrair fluxos mesmo que de forma indireta, ou seja, pela
seguridade da visibilidade do conhecido em detrimento do "perder-se" totalmente.
Mesmo aparentando fragilidade do método, observa-se que esta situação é sempre
passível de ocorrer conforme a vivência prévia do participante em relação ao contexto
urbano em estudo, sendo importante, neste caso, atenção e adoção de estratégias que
permitam manter o propósito da deriva.

Outro aspecto importante que a deriva e o mapeamento permitem compreender é a


maneira com que a configuração urbana e suas apropriações impõem barreiras que
podem inibir o desejo de adentrar-se em algumas "bolhas". Por "bolhas", pretende se
referir a espaços de relações consolidadas onde o equilíbrio, por mais que visível e
fisicamente penetrável, repele a infiltração do sujeito externo. Essa percepção é
possibilitada pelo caráter sensitivo que a deriva propõe, libertando o explorador dos

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compromissos embutidos no pensamento formal da cidade. Com efeito, essas


restrições foram questionadas pelos participantes da oficina durante o debate, quando
se discutiu as prováveis causas e possibilidades de dissolução dessas barreiras,
compreendidas como grandes problemas do território.

Figura 3 - Exposição das cartografias produzidas pelos participantes Fonte:


Montagem produzida pelos autores.

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Mapa 3 - Mapeamento dos percursos realizados pelos participantes da Oficina


ZoomingFonte: Base cartográfica PMV. Produzidopelos autores.

No que se refere à produção individual dos participantes, observa-se representações


miméticas dos elementos espaciais como, por exemplo, excessiva valorização de
grandes marcos empresariais ou ligados à cultura predominante; escassas referências
a relações sociais de grupos minoritários; representação em escala pouco humanizada,
com visão distanciada e tentativa de compreensão generalizada do espaço, em
detrimento de aspectos particulares e subjetividades (Erro! Fonte de referência não
encontrada.). Contudo, alguns participantes demonstraram exercícios que alcançam a
desejada abstração e liberdade quanto aos moldes hegemônicos de representação e
percepção ambiental. Na Figura 6, a pessoalidade do registro faz transparecer uma
relação estreita da participante com o ambiente percorrido, que demonstra uma
suscetibilidade à influência do meio se tornando, portanto, um exemplo da libertação
possível de ser alcançada com o movimento. Embora existam exemplos positivos e

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negativos, fica claro que é importante a sensibilização e a abstração atingida com a


metodologia para o exercício do olhar crítico para o urbano, que deve estar em
constante construção e transformação.

Figura 4 - Material produzido por C. Fonte: Acervo dos autores.

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Figura 5 - Material produzido por K. Fonte: Acervo dos autores.


O exercício de deriva e o posterior relato feito a partir da memória possibilitam uma
estruturação do pensamento individual sobre a cidade pautada na percepção
ambiental. O trabalho da memória ao retomar aspectos importantes da experiência está
ligado à seletividade dos eventos mais marcantes, segundo o julgamento pessoal do
indivíduo, bem como o consciente e as suas condições ambientais de origem. Para tanto
se faz necessária uma entrega ao lugar, tornando-se suscetível às subjetividades e ao
afeto para com o ambiente. Isso se mostra na experiência da oficina com a tomada de
consciência de tal necessidade por alguns participantes, com o exemplo de J. que
resume sua experiência na seguinte frase: "[...] é muito, também, como você está para
a cidade; não como a cidade está para você". É importante destacar e existência de
barreiras que são configuradas de acordo com os limites pessoais, sejam físicos ou
socioculturais. Isto é, faz-se importante a compreensão de que a aplicação da
metodologia proposta não requer homogeneidade quanto às respostas ao exercício, e
sim a busca pela diversidade de apropriações do método.

O relato produzido por J. (Erro! Fonte de referência não encontrada.) demonstrou sua
resposta às sensações mesmo que a ela inexplicáveis ou incômodas, estando atenta a
dar respostas imediatas às situações às quais se submetia. Nesse sentido, reforça-se a
importância de estar atento e ao mesmo tempo desorientado durante a deriva.
Entretanto, algumas pessoas se deixam influenciar por pré-concepções às quais são
expostas, impondo ao exercício barreiras imaginárias nem sempre condizentes com a
realidade do local. O medo, embora importante para manutenção da integridade,

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quando dominante acaba por comprometer a atenção e a desorientação, colocando o


indivíduo em uma situação de introspecção. A participante T. (Erro! Fonte de
referência não encontrada.) em seu relato demonstra submissão ao medo, o que lhe
impulsionou a uma rápida passagem pelos locais buscando cumprir com o objetivo de
cobrir a área designada, e se encaminhar ao referencial conhecido. O resultado é uma
apreensão físico-cartográfica do espaço, muito similar a uma análise documental, que
pouco informa sobre subjetividades e situações peculiares do ambiente. Atitudes
subversivas são bem-vindas à deriva como forma de superação às influências externas
que podem cegar o indivíduo. O que se procura é negar as obviedades colocando-se em
um estado de insubmissão e transgressão alterando-se "as regras sempre que necessário
para otimização dos objetivos e dos benefícios da Deriva." (ESTEVES JUNIOR, 2002, pg.
325).

Figura 6 - Material produzido por J. Fonte: Acervo dos autores.

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Figura 7 - Material produzido por T. Fonte: Acervo dos autores.


Uma das premissas da deriva consiste na tentativa de criar situações no espaço, como
forma de perturbar o equilíbrio entre as tensões e provocar um distúrbio na ordem
dominante e, a partir disso, observar as reações do ambiente. Tais reações contribuem
significativamente para o conhecimento do comportamento local, principalmente das
relações sociais não aparentes na rotina. Ao se infiltrar em uma comunidade a ele
desconhecida, o participante G. (Erro! Fonte de referência não encontrada.) teve um
comportamento subversivo, interagindo com residentes que estranhavam sua
presença. Foi observado que a conduta local era resultado da atuação de uma
organização que comandava e vigiava os acontecimentos, até o ponto de questionarem-
no quanto às suas pretensões na região. É importante ressaltar que, enquanto o
participante G. passou por essa situação em uma comunidade de favela, a participante
K. (Erro! Fonte de referência não encontrada.) foi igualmente repelida pela ordem
dominante de um bairro de classe alta. Portanto, nota-se que o exercício dá visibilidade
a questões políticas do território que não são necessariamente institucionalizadas e que
destituem o direito à cidade.

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Figura 8 Material produzido por G. Fonte: Acervo dos autores.


Em termos gerais, a despeito da evidência dos referenciais previamente conhecidos e
de alguns escapes quanto ao método proposto, a percepção dos participantes quanto ao
ambiente urbano esteve muito relacionada ao sentir. Isso se percebe na frequência com
que as sensações foram trazidas como ferramentas de diagnóstico urbano. Após a
apresentação dos resultados da Oficina, os participantes foram questionados e
solicitados a traduzir suas sensações e observações de campo em palavras-chave que
indicassem as potencialidades e fragilidades dos espaços. Dentre as potencialidades
reconhecidas, a paisagem teve destaque, sendo traduzida em elementos referenciais
marcantes, os quais lhes interessava manter a possibilidade de visualização e acesso.
Outro ponto positivo observado pelos participantes diz respeito às apropriações no
espaço urbano, como por exemplo, na região de influência da atividade pesqueira, às
práticas de esporte nos locais destinados a essas atividades e à intensa utilização das
praias, principalmente nos finais de semana.

Por outro lado, ao se situarem como possíveis agentes da produção do espaço foram
apontadas diversas fragilidades relacionadas à experiência em campo. Uma delas se
refere à sensação de insegurança, vinculadas à presença de grandes vazios e à
desertificação causada pela monofuncionalidade dos espaços. Uma característica que
se destaca diz respeito aos contrastes sociais evidenciados na região, principalmente
pela proximidade de bairros muito elitizados e favelas. Outra grande fragilidade
percebida foi a existência de barreiras à mobilidade e à utilização dos espaços públicos,

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tais como: grandes edificações de uso privado, privatização de espaços públicos e o


pedágio para a ponte que conecta a cidade de Vitória à Vila Velha e ao sul do estado.

A sistematização dessas percepções em diretrizes projetuais é a tradução da


sensibilidade em forma de possíveis práticas estratégicas para o planejamento urbano.
Ao fazê-lo, obtém-se um resultado mais condizente com a realidade local, em oposição
às indesejáveis táticas genéricas.

Conclusão
O movimento do corpo e a escala humana postos como princípios na percepção do
urbano permitem um olhar participativo dos contextos, os quais se pretende
compreender e interferir. Nesse sentido, o caminhar à deriva permite ao urbanista a
inserção na realidade local, em sobreposição ao olhar distanciado comumente aplicado
pelo estudo do diagnóstico urbano, que parte de predeterminações específicas e pode
homogeneizar as realidades diversas. A vivência do espaço, proposta pela Oficina
Zooming, proporcionou ao estudo da região pretendida, a compreensão das dinâmicas
do ambiente, como por exemplo, a paisagem, as apropriações, os limites e barreiras, a
morfologia e, fundamentalmente, os aspectos sociais. Essa compreensão se deu a partir
de um exercício em que o participante se colocou como usuário e, portanto, pode julgar
o espaço e pensar em um planejamento urbano adequado às suas necessidades.

O questionamento situacionista em relação ao modelo urbano hegemônico na década


de 1950 ainda é pertinente na formação do pensamento urbano contemporâneo. O que
se observa na prática do urbanismo nas cidades brasileiras é uma reprodução técnica
muito influenciada por políticas econômicas que pouco se aproximam da realidade
territorial. Uma das mais importantes possibilidades de influenciar as práticas de
planejamento urbano está ligada à universidade, responsável pela produção e
reprodução desse conhecimento. Nesse sentido, a importância do pensamento
situacionista se dá na contestação do modo de produção do conhecimento que, quanto
ao urbanismo, deveria se dar mais na prática de experimentação livre do que no
reconhecimento e reprodução de valores pré-estabelecidos. De modo relacional, a
produção de narrativas cartográficas cumpre o papel de dar visibilidade a aspectos do
território que, num mapeamento clássico, não são comumente representados e,
portanto, podem ser negligenciados pelo planejamento urbano.

O método abordado é dependente de três momentos de compreensão da área de


estudos. O primeiro é relativo à experiência dos participantes e da sensibilização
individual quanto ao urbano, traduzido no movimento pela deriva. O momento
seguinte, de produção de narrativas cartográficas, complementa o primeiro, de forma
que, ao ativar a memória dos acontecimentos se obtém um panorama das
especificidades mais relevantes, de acordo com o processo cognitivo pessoal. O terceiro
momento diz respeito às considerações coletivas que podem ser feitas a partir da
sobreposição das experiências, possibilitando análise, por exemplo, da existência de
áreas mais visadas ou menos visadas na sobreposição dos percursos; potencialidades e
fragilidades da área; oportunidades e ameaças ao projeto.

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É importante ressaltar que a contestação que o método proporciona deve ser pensada
como uma primeira aproximação ao território, não excluindo prática posteriores,
importantes para decisões projetuais. Se por um lado tal abordagem é importante para
a sensibilização do indivíduo perante as etapas seguintes, por outro, é possível vinculá-
la a análises formais que envolvem o reconhecimento qualitativo e/ou quantitativo da
morfologia urbana, os equipamentos, elementos paisagísticos, fluxos, entre outros.

Embora tenha-se mostrado resultados positivos e negativos quanto a apropriação do


método pelos participantes, é válido salientar que o exercício deve ser uma construção
constante e uma consequente evolução do pensamento e da resposta à prática,
minimizando a dificuldade de abstração às vezes presente. A validação das práticas aqui
apresentadas se dá na discussão, seja sobre o próprio método ou sobre os resultados da
experiência em si, libertando-se de avaliações quantitativas.

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Lisboa. Lisboa, 2015. In grupoacoca.blogspot.com.br (acessado em 18 de abril de 2016).
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Oficina Zooming: the movement as practice of analysis and design on the urban space

Abstract

The methodological experiences conducted by the situationists and other artistic/literary avant-
garde movements of the 20th century, such as the drift, based on the psychogeography,
demonstrate the potential of walking as a practice of urban apprehension. This paper aims to
evaluate the presented theories as a set of exercises able to be used in teaching and the practice
of urban planning, especially in the initial phase of urban diagnosis, with effects on the project
to be developed next. Through the experiment called Oficina Zooming, with practical drift, and
the sequent elaboration of cartographic narratives, it was possible to formulate planning
guidelines for an area of study, focusing on the interpretation of space individually and
collectively through the overlapping of the urban paths experiences. The methodology
addressed can be applied on urban studies focused on planning, assisting a comprehension of
space by an engaged way that is closer to the reality of the cities daily routine.

Keywords: Drift. Perception. Landscape. Urban planning. Urban experience. Movement.

Oficina Zooming: el movimiento como practica de análisis y proyecto en el espacio urbano

Resumen

Las experiencias metodológicas de los movimientos de vanguardia artístico-literarios del siglo


XX, como la deriva y la psicogeografía de los situacionistas, demuestran la potencialidad de la
caminata como práctica de aprehensión urbana. Este artículo pretende evaluar dichas teorías
como un conjunto de ejercicios que podría ser utilizado en la enseñanza y en la práctica del
urbanismo, principalmente en la fase inicial de diagnóstico urbano, produciendo efectos
directos sobre el proyecto. Por medio de la experiencia denominada Oficina Zooming, que
desarrolla la deriva, junto con el ejercicio de la secuencia narrativa cartográfica, fue posible
trazar directrices proyectuales para un área de estudio. Incidiendo en la interpretación del
espacio, individual y colectivamente, a partir de la superposición de las experiencias de los
recorridos urbanos. Así la metodología trabajada es capaz de ser aplicada a estudios urbanos
enfocados en la planificación, ayudando a crear una comprensión del espacio comprometida y
más cercana a la realidad del cotidiano de las ciudades.

Palabras claves: Deriva. Percepción. Paisaje. Planeamiento Urbano. Experiencia Urbana.


Movimiento.

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