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USUÁRIOS DA INFORMAÇÃO:
relato de pesquisa
abordagem interacionista
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Paradigma social nos estudos de usuários da informação
forma, o tema “estudos de usuários” passou realização de pesquisas empíricas que geravam
a servir como instrumento de diagnóstico e apenas indicadores de taxas de usos de fontes
vinculou-se de forma significativa à temática da de informação e correlações com perfis sócio-
“avaliação de coleções”, constituindo-se portanto demográficos e ocupacionais dos usuários.
mais em estudos de “uso” do que propriamente Essa também foi a avaliação de Lima
de usuários (FIGUEIREDO, 1979). (1994), para quem o campo de estudos de
Contudo, uma “nova linha de estudos usuários desenvolveu-se a partir de duas teorias
surgiu no fim da década de 40, mais precisamente subjacentes, o Funcionalismo e o Behaviorismo,
em 1948, durante a Conferência da Royal Society que conduziram a duas grandes limitações. Em
que focalizou a maneira como os cientistas e alguns casos, o usuário era “funcionalizado”, isto
técnicos procedem para obter informação, ou é, tomado apenas como um atributo funcional
como usam a literatura nas suas respectivas em um sistema de informação; em outros, um
áreas” (FIGUEIREDO, 1994, p. 26). Na avaliação ser passivo que apenas respondia a estímulos
de alguns autores, trata-se justamente do externos a ele. Em sua conclusão, o autor
momento em que os estudos deixam de ser de colocava a necessidade de se ter “alternativas
usuários de bibliotecas e passam a ser de usuários metodológicas” para o campo dos estudos de
da informação (CHOO, 2003; RABELLO, 1980). usuários da informação.
Conforme Figueiredo (1994), os estudos Apenas dois anos depois deste apelo,
daí em diante se desenvolveram em três fases: Ferreira (1996) introduzia, no Brasil, uma
num primeiro período (de 1948 a 1965), foram nova perspectiva de estudos de usuários da
estudados cientistas das ciências naturais e informação. Tratava-se do chamado “paradigma
engenheiros; num segundo período (de 1965 a alternativo”, denominação criada por Dervin
1970), tecnólogos e educadores; e num terceiro e Nilan (1986) para agrupar os trabalhos
período (ao longo da década de 1970), cientistas desenvolvidos por diferentes pesquisadores
sociais e dirigentes da administração pública. como Belkin, Ellis, Kuhlthau, Wilson e muitos
Apesar de algumas diferenças, as três fases outros, além da própria Dervin, que apresentava
possuíram em comum o uso de questionários uma nova proposta de estudo oposta ao chamado
para a coleta de dados e métodos estatísticos para “paradigma tradicional” em vigor até então.
a tabulação de resultados, buscando correlacionar Apesar de suas várias diferenças, estes
dados de perfil com aspectos do comportamento autores compartilhavam de um mesmo modelo
informacional (fontes de informação utilizadas, de comportamento informacional, que pode ser
tipos de necessidade de informação, tipos de uso assim resumido: um usuário, diante da ausência
da informação, entre outros). Na avaliação da de determinado conhecimento para prosseguir
autora, os resultados encontrados foram bastante com sua linha de ação (lacuna informacional ou
contraditórios, embora algumas generalizações “estado anômalo de conhecimento”, na expressão
tenham sido formuladas, como o “princípio do de Belkin), se vê compelido a buscar informação
menor esforço”, segundo o qual os usuários em alguma fonte ou sistema. Várias pesquisas
tendem a usar a informação mais fácil de ser buscaram então estabelecer os diferentes passos
obtida (mais acessível) em detrimento daquela de deste processo, ou as diferentes formas de se
maior qualidade ou confiabilidade. perceber a lacuna informacional, ou as relações
Como indica Rabello, o campo de estudos entre tipos de percepção de lacuna informacional
de usuários desenvolveu-se, da década de 1940 e as estratégias adotadas para a busca de
ao final da década de 1970, praticamente “ao informação. Tais estudos também ampliaram o
acaso” (1980, p. 93), isto é, apenas com aplicações universo empírico dos estudos de usuários, até
de questionários sem uma efetiva preocupação então dominado por estudos sobre cientistas e
teórica, uma vez que, no campo, “colocou-se o engenheiros, englobando também estudos de
método sempre antes do problema” (1980, p. comportamento informacional em ambientes
62). A autora aponta que importantes autores educacionais, empresariais e de saúde.
do campo, como Brittain, Paisley, Menzel e A informação nessa perspectiva deixa
Toterdall atentavam, já na década de 1960, para de ser entendida enquanto documento ou item
a importância dos estudos buscarem uma maior informacional usado/acessado pelos usuários
fundamentação teórica para além da constante e passa a ser definida em termos de sua relação
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isso não significa nem que ele seja totalmente uma “abordagem interacionista”, que é uma
determinado pelo coletivo, nem isolado deste: aproximação que está sendo feita apenas neste
ele é ao mesmo tempo construtor desse coletivo texto).
(o coletivo é construído pelos sujeitos concretos É curioso perceber que as cinco dissertações
que pertencem a ele) e também construído por escolhidas possuem objetos empíricos bastante
ele. E, por fim, acessar e usar informação é tanto incomuns no campo da CI – o que, a nosso ver,
uma ação cognitiva quanto, também, uma ação não representa uma coincidência. Antes, esses
emocional, cultural, contextual – o usuário não é novos objetos empíricos representam novos
apenas uma “mente cognitiva”, mas o é também. desafios de compreensão da realidade, que
O conceito de interação parece assim ser colocam em evidência os limites explicativos dos
capaz de superar algumas dicotomias que têm, modelos teóricos existentes e apontam para a
historicamente, marcado o campo: sujeito ativo/ necessidade de evoluções das teorias.
sujeito passivo, significado na mensagem/na É importante ressaltar que, neste texto,
mente do usuário, usuário cognitivo/emocional não se tem a pretensão de apresentar um
e cultural. Uma perspectiva interacionista volta- resumo das dissertações, embora elas sejam
se para a percepção da dimensão reciprocamente minimamente apresentadas. Trata-se, aqui, de
referenciada dos fenômenos e dos elementos que uma leitura bem particular, destacando apenas
o compõem. Estudar os usuários da informação alguns aspectos dos resultados encontrados e
e seu comportamento informacional é, ao mesmo confrontando-os com pressupostos da nossa
tempo, ver o usuário é determinado pelo social proposta de abordagem interacionista. Alguns
mas também como não é totalmente alheio a ele; dos autores, teorias e conceitos utilizados para
ver que o significado da informação está lá no se problematizar, neste artigo, aspectos das
documento mas também é recriado pelo usuário; dissertações não estão nas próprias dissertações.
e assim sucessivamente. Pelo contrário, o movimento deste texto foi
Resolver tais questões no plano teórico, justamente o de inserir alguns autores clássicos
contudo, ainda é insuficiente. Afinal, é preciso que das ciências humanas e sociais que desenvolvem
uma discussão teórica, novas problematizações temas relacionados com aqueles problematizados
e conceitos, possam ser efetivamente usados pela abordagem social da CI, de modo a lançar
e aplicados nas pesquisas concretas e possam luz sobre as potencialidades explicativas
realmente contribuir para uma melhor desta abordagem para o campo dos estudos
compreensão dos fenômenos estudados. Nesse de usuários da informação na direção de uma
sentido é que, para evidenciar com mais clareza nova abordagem dos estudos de usuários – a
o que significa fazer uma pesquisa de usuários abordagem interacionista.
numa abordagem interacionista, optou-se, aqui, Os cinco estudos apresentados a seguir
por analisar pesquisas concretas realizadas com foram desenvolvidos como pesquisas de
usuários da informação. mestrado e defendidos entre 2008 e 2010. São
estudos sobre comportamento informacional
5 CINCO ESTUDOS DE USUÁRIOS de prostitutas, fãs de histórias em quadrinhos,
bailarinos, presidiários e ouvintes de rádio.
NO PARADIGMA SOCIAL
Para encaminhar a discussão sobre os 5.1. O estudo das profissionais do sexo
avanços obtidos no campo de estudos de usuários
e sua relação com os paradigmas identificados Todos os fenômenos humanos e sociais são
por Capurro, isto é, para evidenciar como já conhecidos, interpretados, pelos sujeitos que os
se poderia dar, na prática, uma “abordagem experenciam, pelo senso comum, e naturalizados
interacionista” de estudos de usuários, optou-se pela força do hábito. Um dos maiores desafios
por apresentar alguns resultados de pesquisas do pesquisador da área de ciências humanas
empíricas efetivamente realizadas e recentemente é, justamente, libertar-se das categorias de
concluídas, todas elas voltadas, de alguma pensamento já instituídas no momento de
forma, para o movimento de conciliar os estudos analisar algo.
de usuários com o paradigma social da CI A primeira pesquisa a ser analisada neste
(ainda que nenhuma delas tenha se referido a artigo diz respeito justamente a esta questão.
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Trata-se da pesquisa de Ronaldo Silva (2008) campo, contudo, foi revelador em termos de
sobre as práticas informacionais das profissionais subverter as expectativas iniciais da pesquisa
do sexo da Zona Boêmia de Belo Horizonte. e da ordem de importância dos diferentes tipos
Tratou-se de uma pesquisa que, a partir de de informação com as quais as profissionais do
observação do ambiente e da realização de 13 sexo se relacionavam. Foram estabelecidos, após
entrevistas com prostitutas que trabalhavam o trabalho de campo, quatro eixos de análise:
em hotéis localizados na rua Guaicurus, buscou informação sobre questões trabalhistas, sobre
analisar as fontes de informação utilizadas legislação penal, sobre saúde e sobre o cotidiano.
por elas, os critérios para suas escolhas e os Em relação à informação sobre trabalho,
diferentes usos efetivados. Para a realização percebeu-se um grande desinteresse das
da pesquisa, além do referencial teórico profissionais entrevistadas, ou seja, não há por
calcado nas ideias de McGarry sobre o contexto parte delas uma necessidade de informações
dinâmico da informação, foram utilizados sobre esse assunto. Tal resultado contradiz
conceitos da Antropologia da Informação, do tanto os discursos oficiais do poder público
Interacionismo Simbólico e da Etnometodologia, quanto aquele das associações profissionais das
além de extensa revisão de literatura sobre a prostitutas. No âmbito desses dois discursos, é
temática da prostituição e os diversos aspectos freqüente a defesa da legalização da profissão,
(morais, políticos e de saúde, entre outros) a ela pois isso significaria uma série de vantagens:
relacionados. possibilidade de férias, décimo-terceiro salário,
A primeira questão relativa a essa pesquisa fundo de garantia, previdência social. Além
é a da própria legitimidade da escolha do objeto disso, ajudaria a melhorar as condições em que
empírico. O estigma que cerca as praticantes o trabalho é exercido (higiene, espaço físico)
desta atividade – a prostituição – muitas vezes e, principalmente, poderia minimizar riscos
prolonga-se do ambiente social para o ambiente freqüentes como a violência física a que são
científico, deslegitimando a validade de estudos normalmente submetidas as profissionais do
que as tenham como objeto empírico – como sexo. Olhando assim, desse modo, a questão,
relatado por Araújo (2008). Pois a escolha deste pode parecer inaceitável o comportamento das
objeto de estudo teve exatamente a intenção prostitutas. Contudo, é preciso situar a postura
provocadora de questionar o campo da CI, delas no quadro de sua experiência cotidiana,
tradicionalmente voltado apenas para contextos pois é no contexto concreto que as ações ganham
institucionalizados de produção e uso da sentido.
informação (o ambiente de ciência e tecnologia Na verdade, as profissionais do sexo
ou o ambiente empresarial). têm um grande receio de serem percebidas
É importante destacar esse fato, pois, como socialmente como tais, e de sofrerem os efeitos
mostra um importante estudo de Becker (1977) do estigma que cerca a profissão. Nesse sentido,
sobre o desvio social (sobre os estigmatizados legalizar-se profissionalmente seria uma ameaça
socialmente), o desvio não é uma qualidade a seus projetos de vida. Além disso, a prostituição
do ato cometido por uma pessoa, mas é criado é sempre vista como uma experiência temporária,
socialmente, é uma conseqüência da aplicação, uma atividade transitória, o que também diminui
pelos outros, de determinadas normas a um a importância de sua legalização. Uma outra
sujeito tido como transgressor. Ao buscar estudar razão diz respeito aos ganhos concretos: a
as prostitutas, não só a atividade de rotulação avaliação comum é que se ganha mais no regime
por parte da sociedade é identificada, mas informal, sem a necessidade de pagar impostos,
também essa mesma atividade por parte do meio do que se houvesse legalização.
científico que se julga desinteressado, neutro e Assim, o que a princípio poderia ser uma
acima das questões de julgamento moral. lacuna informacional (ausência de conhecimento
O trabalho de Silva voltava-se, no início, sobre algo) e um “defeito” de não identificação
apenas para o estudo da informação em saúde, ou compreensão dessa lacuna é, na verdade, uma
especificamente a questão da disseminação elaboração muito singular dessas profissionais,
de informações sobre as doenças sexualmente que passa por desconstruir o discurso “oficial”
transmissíveis (DSTs), e sua importância na e não perceber as questões trabalhistas como
prática dessas profissionais. O trabalho de uma lacuna. Mais importante ainda: não se trata
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da repetição de um discurso produzido num riscos, mas optam por correr esses riscos. Ou seja,
“outro lugar”. Essa visão é construída por meio as informações recebidas são interpretadas, são
de uma série de interações estabelecidas entre reelaboradas, para a construção de uma linha
elas e outras pessoas, como advogados, clientes, de ação coerente com determinadas concepções
pessoas da própria família e fontes formais de e objetivos. Isso mostra como os indivíduos,
informação. E no contexto e no cruzamento das por um lado, são modelados pelos grupos aos
diferentes informações recebidas e coletadas há quais pertencem, mas também buscam guardar
uma reelaboração que passa a não considerar, certa distância, ganhar um espaço entre aquilo
pois, as questões trabalhistas como uma lacuna, que são verdadeiramente e aquilo que os outros
como uma necessidade de informação a ser gostariam que eles fossem, tal como ensinou
satisfeita. Goffman (1999) em seu clássico estudo sobre a
Assim também as questões legais, tidas realidade dos manicômios.
num primeiro olhar como possivelmente O último eixo analisado na pesquisa
prioritárias dadas as questões criminais que diz respeito às questões cotidianas. E aqui
cercam a prática (prostituir-se no Brasil não é evidencia-se claramente o caráter dinâmico da
crime, mas explorar as prostituição sim) também informação. Sendo um universo que sofre uma
não é tida como relevante, principalmente grande condenação moral, trata-se de um campo
porque, no universo da “prática” profissional, pautado por uma série de discursos implícitos.
existem já arranjos e interpretações levadas a Os anúncios de serviços, por exemplo, não
cabo por todos os atores envolvidos (policiais, são explícitos quanto ao teor da atividade de
clientes, donos de hotéis e as próprias prostitutas) prostituição, mas são assim compreendidos pelas
que torna desnecessário, do ponto de vista profissionais do sexo, graças a um conjunto de
delas, investimento de trabalho na busca por conhecimentos socialmente partilhados, embora
informações sobre esse assunto. implícitos. O mesmo ocorre em relação às normas
Outro eixo analítico do trabalho de atuação dentro dos hotéis. O hotel não é,
constituiu-se das questões sobre saúde. E “oficialmente”, responsável pelas atividades
curiosamente, embora se pense que há uma das prostitutas, ele apenas cobra uma diária
grande necessidade de informação sobre doenças pelo quarto. Contudo, há uma série de questões
sexualmente transmissíveis, essa não foi a que específicas (preço mínimo a ser cobrado, uso de
mais se destacou. As profissionais entrevistadas drogas no quarto, normas de segurança) que
disseram e demonstraram conhecer muito sobre são transmitidas às profissionais pelas outras
o assunto, sobre os métodos preventivos e os profissionais.
comportamentos adequados do ponto de vista Entre elas, forma-se também uma rede
médico. Dois comportamentos se destacaram, informal de informações sobre os mais variados
contudo. Um deles, o fato de muitas profissionais assuntos. Mas uma forma muito útil no trabalho
usarem o preservativo nas relações sexuais de cotidiano é a troca de informações sobre clientes,
trabalho, mas não o usarem nas relações afetivas, sobretudo clientes agressivos ou que fazem
com maridos e namorados. Tal ação é entendida propostas de sexo sem proteção. Normalmente
como uma forma de distinguir os tipos de tais clientes são “denunciados” por gritos pelos
relação nas quais elas se vêem envolvidas. Outro corredores que funcionam como alerta às demais
é o caso de prostitutas que, sabendo dos riscos, profissionais do hotel, o que funciona também
praticam relações sexuais sem proteção em casos como inibidor para as ações de clientes tidas
excepcionais, em que algum cliente assim solicita, como inadequadas.
mediante um grande acréscimo no valor do
programa.
5.2 Os super-heróis das histórias em
Ambos os casos, de prostitutas que não
se protegem nas relações sexuais, poderiam ser quadrinhos
identificados como comportamentos “errados” O segundo estudo a ser analisado é a
e, nesta perspectiva, pensaria-se que falta pesquisa de Rubem Ramos (2008) sobre leitores
informação, falta transmissão de informação. de histórias em quadrinhos de super-heróis. Por
Não é o caso. Elas possuem a informação sobre meio da realização de entrevistas com 20 fãs de
as doenças e as formas de prevenção, sabem dos super-heróis das editoras Marvel e DC Comics
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Hoggart (1977), em seu clássico estudo A segunda questão tem a ver com a
sobre a “cultura do pobre”, identificou muito dinâmica de sentido (a “cadeia semiósica”),
bem a maneira como a cultura burguesa via a na qual os usuários atuam não só na condição
cultura das classes operárias, julgando-a pródiga de leitores dos vídeos, mas também como
e imprevidente, ao gastar muito dinheiro para produtores de novos vídeos a partir de
uma festa, endividar-se para comprar um carro ou algumas interpretações bem singulares. Um
permitir que as filhas usassem roupas provocantes. vídeo, possuidor de determinados elementos
O autor identificou, em seu trabalho, a presença, sim, e significados, motivava a construção de um
destes comportamentos. Mas o que ele contradiz na novo vídeo a partir de algum elemento de
pesquisa é a interpretação destes comportamentos sentido, que por sua vez motivava um novo, e
por parte da classe burguesa, que os analisava de assim sucessivamente foi se construindo uma
fora, de um outro sistema de valor, assumindo uma verdadeira cadeia de signos e de significação.
postura muito pouco científica que é o etnocentrismo Essas duas questões evidenciam com
de classe, isto é, julgar os valores de uma outra muita clareza como a informação não é um
cultura com base em valores da sua própria cultura. pacote pronto, fechado em si mesmo, que possa
ser transportado sem modificações de um ponto
a outro (tal como postula o paradigma físico). A
5.3 Bailarinos e suas vídeo-cartas
categoria de “semiose” usada por Andrade a partir
A pesquisa de Graziela Andrade (2008) teve da Semiótica de Peirce (2000) serviu exatamente
como objeto o corpo como suporte de informação, a esse propósito: mostrar como os significados
articulando referenciais teóricos sobre arte e sobre mudam, vão se transformando. Isso se dá com
tecnologia, além de conceitos da Semiótica de mais nitidez no fenômeno estudado, primeiro
Peirce para entender a informação enquanto signo. pelo caráter aberto da significação (os significados
O objeto empírico foi o processo de produção do de uma dança são mais abstratos, polissêmicos,
espetáculo de dança “Imagens deslocadas” do do que os de um texto escrito ou do que de uma
grupo Movasse. Esse processo de produção deu-se informação em linguagem verbal); segundo, pela
da seguinte forma: cada um dos quatro bailarinos obrigação dos bailarinos em, ao assistir a um
do grupo fazia, isoladamente, pequenos vídeos vídeo, produzir uma nova coreografia a partir
(as “vídeo-cartas”) registrando seus movimentos de algo que perceberam ou identificaram nos
improvisados, em diferentes ambientes. Estes vídeos ao quais acabavam de assistir. Usando o
pequenos vídeos eram postados num website de dispositivo da “crítica genética”, que busca ver a
forma que um bailarino assistia a um vídeo e, a gênese de uma obra de arte, a autora encontrou
seguir, produzia o seu, e assim sucessivamente, essa gênese justamente no fluxo informacional,
até um total de 32 vídeos. Além de analisar os nos vários repasses, apropriações e interpretações
vídeos, a pesquisadora entrevistou os bailarinos de informações inscritas em corpos que tomaram
e acompanhou, ainda, a construção coletiva do lugar nas ações do grupo Movasse.
espetáculo, em que os 32 vídeos foram analisados, Assim é que, entre os vários resultados
organizados e traduzidos numa montagem que encontrados, destacam-se aqueles ligados à
contou ainda com a participação de figurinista, polissemia. Em um caso curioso, uma das vídeo-cartas
iluminador, sonoplasta e cenografista. O espetáculo sugeriu, a dois diferentes bailarinos, separadamente,
estreou em 2007, e também foi analisado. a ideia de água, embora nada objetivamente
A primeira questão importante para relacionado com água compusesse a cena filmada.
os estudos de usuários nesta pesquisa diz Em outro momento, todos os bailarinos perceberam
respeito ao conceito mesmo de informação. Os a ideia de “estar espremido”, isto é, apertados
movimentos corporais, os gestos, é que são a fisicamente em um ambiente delimitado, em uma
“escrita”, o “conteúdo” da informação. Mais do das vídeo-cartas, mas cada um traduziu de uma
que tratar-se de informação não verbal, a dança maneira diferente, em um ambiente diferente, essa
implica ainda em se ter o próprio corpo como o sensação. Não se trata de coincidências, pois existe, ali
suporte da informação. No caso, são movimentos na evidência material, certos traços que limitam, ainda
criados espontaneamente, improvisados, na que amplamente, o sentido.
confluência dos fluxos informacionais, e não pré- Em outro caso, um dos bailarinos postou
determinados. um vídeo em que dançava no alto de uma
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Abstract In this article we bring the discussion of Rafael Capurro on the “social paradigm” of Information
Science with recent advances in information users studies. As a result of this dialogue, we propose
the development of an “interactionist approach” to the field. The feasibility of such a proposal
is discussed and evaluated based on the examination of search results from five master thesis
discussed with categories and concepts of authors linked to interactionist and socio-cultural
approaches in Information Science and in the humanities and social sciences.
Keywords: Information users studies; Social paradigm; Information Science; Interactionist approach.
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