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EPISTEMES ENTRE DESCOBERTOS E DESCOBRIDORES: DIÁLOGOS SOBRE A

PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL NA GEOGRAFIA

Ricardo Devides Oliveira


Doutorando em Geografia IG/DEGEO UNICAMP
Professor de Geografia da Puc Campinas
rdevides@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O presente artigo é fruto das reflexões vivenciadas a partir de experiência docente e


viagens de campo, realizadas durante um ano e seis meses em Timor Leste, no âmbito
dos trabalhos da cooperação internacional PQLP - CAPES, no Programa de Qualificação
Docente em Língua Portuguesa, área Geografia. Neste período, pude perceber que a
problemática do conhecimento científico em países localizados no sul epistêmico
caracteriza uma condição de colonialidade do saber/poder, onde a geopolítica tem um
papel fundamental. Estes questionamentos impulsionaram a busca por uma maior
compreensão da perspectiva pós-colonial, e de que maneira a mesma pode dialogar com
a Geografia. Neste esforço, algumas considerações estão sendo colocados em destaque,
tais quais: o etnoconhecimento e as imaginações geográficas, a importância da geopolítica
na modernidade, a institucionalização da geografia em nações pós-coloniais, entre outros.

GEOGRAFIA E IMPERIALISMO

A arquitetura imperialista da modernidade, base do pensamento científico


moderno, iniciada nas Grandes Navegações, impôs, a partir do século XVI, uma nova
maneira de classificar os povos de todo o mundo. Os mapas foram desenhados e os povos
descritos, estabelecendo-se relações de poder e superioridade entre conquistadores e
conquistados. O pensamento europeu legitimou a busca pelo “outro do ocidente”, onde o
descoberto assumiu três formas principais: o Oriente, o Selvagem e a Natureza
(SANTOS, 2010). O Oriente, mundo antigo, a alteridade por onde o ocidente não existe
sem esse contraste. Já o selvagem, lugar da inferioridade, constituiu o mundo novo, a
América e também a África. E por fim a natureza, irracional, ameaça e também recurso.
As descobertas imperiais, produtoras de inferioridade, recorreram ao longo da
modernidade às inúmeras estratégias de inferiorização dos povos, pela imposição política,
econômica, cultural e epistemológica (SANTOS, 2010). As descobertas se constituíram
numa relação de poder e saber, dada a capacidade de o descobridor declarar o “outro”
como descoberto, condição epistemologicamente pré-construída.

“A descoberta imperial é constituída por duas dimensões: uma,


empírica, o ato de descobrir, e outra, conceitual, a ideia do que se
descobre. Ao contrário do que possa parecer, a dimensão conceitual
precede a empírica: a ideia que se tem do que se descobre comanda o
ato da descoberta e o que se lhe segue. O que há de específico na
dimensão conceptual da descoberta imperial é a ideia da inferioridade
do outro, que se transforma num alvo de violência física e epistêmica”
(SANTOS, 2010, 182)

Foi preciso imaginar um mundo a ser descoberto. Os primeiros mapas e projeções


cartográficas tiveram um papel essencial nas conquistas imperiais. A projeção de
Mercator, por exemplo, apropriou se do mundo colocando a face da Europa no centro.
Tal mapa não deixa de ser a forma como a própria Europa projetou-se diante do mundo:
como soberana. Seus valores foram reproduzidos como se fossem globais (RIBEIRO,
2008). A imagem, materializada em uma projeção, é uma forma de ver e pensar algo, de
legitimar uma determinada visão de mundo. Se virarmos o mapa mundi convencional ao
contrário, ou então fazer uma projeção com outro continente no centro, temos então uma
outra imaginação de mundo. Podemos afirmar, neste sentido, que o imaginário, enquanto
imaginação geográfica, foi colonizado (QUINJANO, 2005). Os mapas atuais,
importantes representações do mundo, mantém essencialmente a mesma visão europeia
de cinco séculos atrás, onde o que era Projeção tornou-se uma verdade absoluta,
representando o triunfo político do espaço cartesiano-newtoniano e da razão instrumental
e homogeneizadora (RIBEIRO, 2013).

A Geografia teve uma posição estratégica nas descobertas imperiais e na colonização


do mundo, e não foi apenas pelos mapas. A própria consolidação e institucionalização da
Geografia na Europa se deu ao longo do século XIX, no ápice do imperialismo europeu.
Além disso, sociedades geográficas foram responsáveis por dominar o mundo além da
Europa, e muito do conhecimento geográfico no período foi utilizado politicamente pelos
Estados-nações em expansão, no próprio contexto de disputas dentro da Europa e também
fora dela (OLIVEIRA, 2012). No entanto, não podemos afirmar que houveram geógrafos
imperialistas. Não que possa afirmar o contrário, mas há geógrafos e geógrafos, e alguns
deixaram muito claras suas visões políticas, enquanto outros simplesmente se
preocuparam em desenvolver a ciência geográfica.

Essa “Geografia dos Estados Nacionais”, parafraseando Yves Lacoste, inscrita na


modernidade, materializa o colonialismo em diversos espaços. Assim, é uma
modernidade que constrói espacialidades a partir do discurso colonial, com suas
respectivas políticas espaciais e de representação de mundo. Portanto, configura-se como
um sistema moderno-colonial, onde as espacialidades – com seus claros contornos
geopolíticos e econômicos - é tão ou mais importante que a própria noção de
temporalidade, amplamente difundida como análoga à modernidade.

O movimento de contestação dessa modernidade-colonial surge na medida em que o


seu discurso de sucesso revela suas contradições, já que é finalmente percebido que a
concepção de uma racionalidade universal – as virtudes da razão – não mais conduz a
felicidade. A evolução técnica tornou as guerras mais brutais e sangrentas, o
desenvolvimento tecnológico e a manutenção do modo de vida americano trouxeram
prejuízos irreparáveis ao meio ambiente, a desigualdade social aumentou, os
epistemicídios culturais nunca estiveram tão presentes (CLAVAL, 2014). A questão é
que o discurso da modernidade – tempo - sempre buscou esconder a importância da
espacialidade, excluindo a essência da localização geográfica, e o mundo nunca foi tão
geopolítico como o é nos dias atuais.
O PÓS-COLONIALISMO NA GEOGRAFIA

No universo geográfico, a perspectiva pós-colonial ainda se encontra em processo de


amadurecimento, já que o diálogo é relativamente recente. Também há uma variedade de
abordagens, metodologias e disciplinas envolvidas com a referida temática, o que
dificulta a caraterização dessa nova “movimentação científica”. Marcada pela pluralidade
de perspectivas e pelo diálogo interdisciplinar, o pós-colonialismo chega à Geografia de
diversas formas. Para Felix Driver, a Geografia histórica e a Geografia cultural, assim
como a Geopolítica crítica, foram os espaços mais influenciados pelo impacto do pós-
colonialismo. Em geral, os diálogos estão permitindo uma reescrita da história da
Geografia sob o olhar do colonizado, incorporando em seus estudos tanto o marxismo
quanto os elementos culturais e identitários.

O surgimento da crítica pós-moderna, a partir dos anos 70, mas sendo mais
amplamente aceita nos 1980, se traduziu numa atitude mais crítica em relação à ciência
(CLAVAL, 2014). Na Geografia, a obra de Fredric Jameson, em particular o artigo de
1984, “Postmodernism: the cultural logic of Late Capitalism”, teve um impacto
considerável, porque destacou que uma das características da evolução contemporânea é
dar ao espaço um lugar que a modernidade lhe negava (CLAVAL apud JAMESON,
1984). São debates que envolvem, em sentidos diferentes, Henry Lefebvre, Anthony
Giddens, Edward Soja, Felix Driver e também David Harvey.

Novas abordagens de mundo surgem no bojo do movimento pós-modernista,


demarcadas por viradas linguísticas e rupturas conceituais. E nada demonstra melhor a
amplitude das transformações provocadas pelo pós-modernismo na Geografia do que o
desenvolvimento da corrente pós-colonial e as discussões que ela suscita (CLAVAL,
2014). No que se refere ao aparecimento das problemáticas pós-coloniais na Geografia, é
possível afirmar que advém, principalmente, das transformações provocadas pelo pós-
modernismo, junto ao Orientalismo de Edward Said (1978). Os estudos pós-coloniais vão
buscar analisar o processo de dominação dos países ocidentais na construção dos impérios
coloniais e, assim como o Orientalismo, a Geografia, por ter sido uma ciência
imperialista, que “serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra”, também será visada
pelos estudos pós-coloniais (CLAVAL, 2014).

Enquanto os primeiros trabalhos pós-coloniais aplicavam uma abordagem mais


geopolítica, utilizando-se de Foucault, Said e Franz Fanon, as investigações atuais vão
dar maior destaque as questões linguísticas e identitárias, já que a colonização conduziu
à oposição das identidades das populações dominadas e a dos colonizadores (BHABHA,
1998), uma situação tanto ambivalente quanto assimétrica. Pensadores como Homi K.
Bhabha, Gayatri Chackavorty Spivak, Anibal Quinjano, Walter Mignolo, Boaventura de
Sousa Santos e David Sibley são alguns exemplos da pluralidade teórica e de abordagens
que envolvem os estudos pós-coloniais.

Anibal Quinjano (ANO) vai acrescentar ao debate do pós-colonialismo a perspectiva


de uma colonialidade do saber/poder. Podemos compreender a colonialidade como a
continuidade de situações e contextos coloniais na atualidade, parte integrante do
denominado sistema-mundo-colonial-moderno (PORTO-GONÇALVES;
HAESBAERT, 2005), termo que tem origem nos trabalhos de Walter Mignolo
(MIGNOLO, 2001) que buscou confrontar a concepção linear de modernidade com a
expressão mundo colonial/moderno, buscando abarcar todo o planeta (...) na medida em
que contempla, em simultâneo, o aparecimento e expansão do circuito comercial
atlântico, a sua transformação com a Revolução industrial, e a sua expansão para as
Américas, Ásia e África” (MIGNOLO, 2001, 452).

Cabe aqui uma importante afirmação: A colonialidade do poder pressupõe uma


espacialidade, já que as relações de poder levam em conta a localização geopolítica dos
povos. Já a colonialidade do saber trabalha a dimensão epistemológica da conquista, que
sustenta de forma dinâmica a visão de mundo eurocêntrica necessária a colonialidade do
poder. É a construção epistêmica que separa os descobertos dos descobridores, os centros
das periferias do mundo. E a relação entre poder e conhecimento conduz a uma
determinada concepção de ser (MALDONADO-TORRES, 2010). Ao demonstrar o
problema a partir de um diálogo entre ser e linguagem, Mignolo (2001) identifica que as
línguas são o lugar onde se inscreve o conhecimento, pois são algo que os seres humanos
são (MIGNOLO, 2001). O pensador também apresenta um elemento geográfico, ao ligar
ser e lugar, demonstrando assim que ser significa presença, e presença significa
identificar-se a algum lugar, a uma memória do lugar, a um conteúdo geográfico imerso
no cotidiano (DANTAS, 2014; DARDEL, 2011)

Captar a dimensão do pós-colonialismo na Geografia não é tarefa das mais fáceis,


mas é importante salientar que esse processo reflete a vitalidade da geografia
contemporânea, na sua abertura as correntes pós-estruturalistas e aos estudos
transdisciplinares. O diálogo com o pós-colonialismo estimula um interesse crescente
pela genealogia imperial da Geografia, as espacialidades do imperialismo e a estrutura
geopolítica nos nacionalismos pós-coloniais. A colonialidade do saber/poder também
permite o desenvolvimento de uma perspectiva diferente na investigação sobre a
produção e reprodução do conhecimento, orientando propostas alternativas de geografias
da diferença, de etnoconhecimento e de outras imaginações geográficas de mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adentrar no universo das geografias pós-coloniais significa revisitar as narrativas


geográficas tradicionais, sua genealogia imperial, assim como o perceber das orientações
epistemológicas e geopolíticas por trás da utilização desse conhecimento. Por outro viés,
busca compreender a produção de conhecimento geográfico a partir do
etnoconhecimento, ou seja, dos saberes considerados não-científicos. Fronteiras, espaços
alternativos, identidades culturais, imaginações e cosmovisões de mundo são alguns
exemplos de cognições que precisam ser ampliadas.

Ir além não significa desconsiderar, ao contrário, significa justamente considerar que


a ciência geográfica tem uma história que muitas vezes não foi neutra, que foi utilizada
para fazer a guerra, para impor uma determinada visão de mundo – uma epistemologia –
para dominar o território, determinar a organização espacial, construir muros e controlar
minorias. Como, então, compreender as problemáticas atuais que envolvem a Geografia?
Começando por ir além dos debates e amarras inerentes a própria disciplina. Depois,
levando em consideração que o cenário científico se alterou profundamente, que é preciso
praticar definitivamente uma posição interdisciplinar, pois não é mais possível ignorar o
que acontece nos outros domínios científicos, já que a crítica a modernidade alterou
substancialmente todos os campos de saberes.

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