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FORD, o homem que inventou a era moderna

Autor de nova biografia de Henry Ford mostra como o empresário transformou a produção industrial e o
regime capitalista
Lucia Guimarães - O Estado de S.Paulo

NOVA YORK - Num ano próximo a 1940, um adolescente conversava com Henry Ford
sobre livros didáticos que considerava antiquados. Ford defendia os livros. O jovem
John Dahlinger, de fato, filho ilegítimo de Henry Ford com sua amante, protestou:
"Mas, senhor, vivemos novos tempos. Esta é a idade moderna e...". Ford cortou o
interlocutor: "Rapaz, eu inventei a idade moderna".

A frase confirma a arrogância do pai da produção industrial do século 20, mas é um


epíteto merecido, diz o autor da nova biografia de Henry Ford, o historiador Richard
Snow. Em Henry Ford, O Homem que Inventou o Consumo (Ed. Saraiva, 416 páginas,
R$ 44,90), nas livrarias brasileiras no dia 15, Snow não desenterra esqueletos ou revela
fatos inéditos. Mas, numa narrativa com verve literária, que vai cativar leitores
desinteressados nos meandros da combustão interna do histórico automóvel Modelo T,
o automóvel que "todos podiam comprar" e que inaugurou a produção em massa
responsável pela prosperidade americana no último século, Snow nos lembra da
importância do homem que, segundo ele, teve a vida partida ao meio. Foi cativante,
generoso e brilhante na primeira metade de seus 84 anos. Tirano, antissemita e
megalomaníaco na metade seguinte.

O homem que dobrou o salário de todos os seus empregados, em 1913, acreditava que
os judeus tinham inventado o jazz para dominar os Estados Unidos. O capitalista mais
bem-sucedido do mundo há cem anos, detestava finanças e achava que acionistas não
deviam receber dividendos. O empresário que inventou a produção industrial em massa,
antes conhecida como "Fordismo", passou mais de uma década resistindo à inovação de
sua galinha dos ovos de ouro: o Ford Modelo T, o automóvel que mudou a paisagem
urbana e a economia mundial, apelidado no Brasil de Ford Bigode.

O menino da fazenda que detestava os animais gastou milhões pra montar um museu
dedicado à vida rural. As contradições de Ford continuam a desafiar a compreensão do
homem que em 1915 alugou um navio, encheu de escritores e jornalistas, e partiu para a
Europa sob a manchete do New York Times: "Grande Guerra Vai Terminar no Natal.
Ford vai Deter a Guerra". Ford não impediu o conflito. Mas continua inquietando os que
se debruçam sobre sua biografia extraordinária. Em 1929, o popular ator e humorista
Will Rogers disse a Henry Ford, sem o menor tom de brincadeira: "Vai demorar cem
anos para sabermos se você nos ajudou ou nos prejudicou. Mas o certo é que você não
nos deixou onde nos encontrou".

O Estado conversou com o biógrafo Richard Snow em seu apartamento em Manhattan.

Qual a maior contribuição de Henry Ford?


Ford não era um inventor. Ele teve uma visão sobre o modo de produção que mudou o
mundo. Em vez de ter um operário cumprindo 37 tarefas, decidiu que 37 operários
deveriam cumprir 37 tarefas e a linha de montagem deveria passar por eles. Podemos
atribuir a produção em massa a Henry Ford. Sabe que até o termo foi cunhado por ele
num artigo para a Enciclopédia Britânica? Antes, os americanos se referiam a esse
modo de produção como 'Fordismo'. Quando outras indústrias começaram a imitar o
Fordismo, teve início a prosperidade americana que se estendeu por boa parte do século
20 e nos ajudou a sair vitoriosos na 2.ª Guerra.

O primeiro veículo experimental criado por Henry Ford, em 1896, foi o


Quadriciclo, parente da bicicleta e não da carruagem.

Muitos pensam que o carro substituiu o veículo de tração animal. Mas o importante
passo intermediário foi fruto da explosão da bicicleta no fim da década de 1880. A
demanda por bicicletas era tal, no final do século 19, que exigia uma fabricação mais
refinada. As peças de metal tinham de ser cortadas com mais precisão e os fabricantes
acabaram aprendendo técnicas que não eram necessárias para as carruagens. A bicicleta
permitiu a transição decisiva da tração animal para o automóvel.

O sucesso do Modelo T é atribuído a uma decisão incomum numa era em que


empresários viam o automóvel como um artigo de luxo.

Quando Ford abriu sua primeira fábrica, em 1903, seus sócios imediatamente queriam
aumentar o preço do Modelo T. Ele foi categórico: 'Vamos cortar preços' e virou uma
noção do capitalismo ao avesso. Naquela época, o preço médio de um carro de
qualidade era US$ 7 mil. Uma casa no subúrbio custava US$ 2 mil. Ford dizia que, cada
vez que cortava US$ 0,50 do preço do Modelo T, atraía mais 50 mil compradores. Ele
acreditava que sua máquina tinha de ser simples e barata. No final da produção, em
1927, um Modelo T custava US$ 295 e a Ford tinha vendido 15 milhões de unidades.

Quando o Modelo T começou a fazer sucesso, Ford tomou outra decisão que
enfureceu os industriais.

Ford tinha 50 mil empregados. Eles ganhavam US$ 2,50 por dia, um bom salário então,
numa linha de montagem. De repente, ele dobrou os salários para US$ 5,00. O Wall
Street Journal o acusou de tentar destruir o capitalismo com filantropia. Ford sabia o
que estava fazendo. Transformou seus empregados em compradores de automóveis.
Outras indústrias se sentiram compelidas a aumentar salários e Ford inaugurou um ciclo
de produção e consumo que trouxe enorme prosperidade ao país.

Como o passado de Ford, crescendo numa fazenda, pesou sobre o futuro inovador
da América urbana?

Ford não suportava a rotina rural. Desde menino, ele pensava que o músculo animal era
ineficiente e que a energia humana devia ser substituída pela energia mecânica. Aos 13
anos, ele já consertava relógios na área rural de Michigan, onde morava. Ele não
gostava dos animais da fazenda, tomou horror a vacas e declarava, sério: 'A vaca tem de
acabar!'. Sua intimidade com máquinas era única. Colocavam 12 carburadores idênticos
na sua frente e ele acertava o que funcionava mal. A ironia é que, no fim da vida, ele
celebrou num museu a vida rural americana que tinha conseguido destruir mais do que
qualquer outro. O museu Greenfield Village, em Michigan, é um primor. Começou com
a fazenda de sua infância, mas é também um documento sobre a transição dos Estados
Unidos para a modernidade. Ford comprou e instalou lá o laboratório de Thomas Edison
e a oficina dos irmãos Wright, pioneiros da aviação.

O sr. acha que Henry Ford compreendeu o impacto que causava na vida dos
americanos com o Modelo T?

Não acredito que ele pudesse entender inicialmente as consequências de sua inovação.
Em poucos anos, foi rompido o isolamento da vida rural. O carro de produção em massa
causou uma transformação profunda na forma como as pessoas se comunicavam. De
repente, era possível visitar alguém a 60 quilômetros de distância e não apenas para
conduzir negócios. Ford revolucionou o lazer. O carro mudou a noção de privacidade:
John Steinbeck gostava de dizer que metade dos bebês americanos nos anos 20 tinham
sido concebidos num Modelo T. Não era preciso mais manter várias gerações de uma
família sob o mesmo teto. Criaram-se as condições para o estilo de vida suburbano.
Tudo o que assumimos como natural na vida moderna do século 21 cresceu da
viabilidade da produção do motor de combustão interna há 100 anos.

O sr. acredita que o Ford visionário esbarrou no Ford que não era um pensador
profundo?

Sim. Ele teve uma visão e mudou o mundo com seu sistema de produção. Mas o
sucesso estrondoso lhe deu a ilusão de que podia fazer tudo. O que levou a várias ideias
desastrosas. Um exemplo clássico foi a Fordlândia.

Por que Ford errou tanto na aventura amazônica?

Quanto mais rico e mais bem-sucedido, menos tolerante ele ficava a limitações. Queria
controlar todas as etapas de produção, ser dono das minas, das fábricas de vidro. E
queria se livrar da dependência da borracha que os britânicos produziam na Ásia.
Quando fechou o acordo para a Fordlândia com o governo brasileiro no final da década
de 20, Ford já estava cercado de uma claque de assessores obedientes que diziam o que
ele queria ouvir. Despachou engenheiros para plantar seringueiras! Com sua mania de
pregar e pontificar, queria decidir como os empregados deviam trabalhar e viver. A
Fordlândia acabou vendida em 1946 com prejuízo pelo neto dele, Henry Ford II, por
US$ 20 milhões, mais ou menos US$ 200 milhões hoje.

Entre as decisões desastrosas, o sr. cita também a maneira como ele descartou
colaboradores fundamentais.

Era um padrão estranho e profundamente destrutivo. James Couzens, o homem que


ajudou Ford a montar seu império financeiro, foi uma grande perda inicial. Outra perda,
com consequências trágicas para a companhia, foi a do imigrante dinamarquês William
Knudsen, arquiteto da expansão da Ford na Europa. Quando diziam, é hora de inovar o
Modelo T, o consumidor quer um carro mais confortável, um objeto de desejo, Knudsen
ofereceu soluções para mudar a produção. Foi logo despachado, em 1921. No ano
seguinte, Alfred Sloan, vice-presidente da General Motors, o contratou. O resultado foi
o Chevrolet. Knudsen ajudou a GM a usurpar a liderança da Ford. Acho que Ford se
livrava das pessoas como se quisesse eliminar testemunhas. Ele não se conformava com
a ideia de que teria de mudar e manteve o Modelo T em produção até 1927, por muito
mais tempo do que era sensato. Mesmo a introdução, do Ford Modelo A, com seu
design elegante e inovações mecânicas, não podia repetir a façanha. O Modelo T já
tinha mudado o mundo e o Chevrolet agora disputava a preferência dos consumidores.

Por que o sr. encerra a biografia em 1927, quando termina a produção do Modelo
T?

Henry Ford era uma figura bastante incomum. Não consigo pensar num outro grande
homem - penso que ele pode ser descrito como tal - cuja vida foi tão claramente partida
ao meio. Na primeira metade, ele foi genuinamente produtivo, generoso e afável. Tinha
um talento mágico para atrair gente talentosa. Mas, na segunda metade de vida, ele foi
horrível. Ele parece ter mudado no curso de dois anos e não conheço ninguém de sua
estatura que tenha mudado dessa forma. Mais do que qualquer outra decepção da vida
pessoal, acho que a ideia de abandonar o Modelo T o deixou louco. O Modelo T era
feio, confiável, simples e, para Ford, era perfeito, um objeto de virtude. Quanto mais ele
ouviu dos próximos que era hora de mudar mais ressentido foi ficando.

Ele conseguiu se reabilitar do antissemitismo militante?

Acho que o antissemitismo o manchou para sempre. Ele comprou um jornal local de
Michigan, o Dearborn Independent, que publicou uma série de 96 artigos sob o título "O
Judeu Internacional". Ford era obcecado pela ideia de que os judeus queriam começar
guerras para promover comércio e controlavam as finanças. Foi uma desgraça. O jornal
acabou fechando em 1927, sob uma barragem de processos de difamação. Ford se
desculpou alegando que não lia o que estava sendo publicado.

A quem o sr. compara Henry Ford entre empresários do século 21?

Em sua pomposa biografia de 1922, Minha Vida e Obra, Ford faz um comentário de
passagem que é esclarecedor. Conta que quando estava construindo o quadriciclo
experimental, não havia demanda alguma pelo automóvel. 'Claro que nunca há a
demanda para um produto que não existe', dizia. Mais uma vez, virava noções ao
avesso. Neste caso, a de que a necessidade é a mãe da invenção. Ele introduziu a
invenção que criou a necessidade. E acho que nós não tínhamos necessidade alguma de
um iPhone ou iPad, não? Ele pode ser assim comparado a Steve Jobs.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-homem-que-inventou-a-era-
moderna,1165168,0.htm

Henry Ford
Henry Ford
30/7/1863, Greenfield Township (EUA) – 7/4/1947, Fair Lane (EUA).

De ascendência irlandesa, demonstrou desde cedo um considerável interesse por


carros e mecânica. Passava uma grande porção de seus dias numa oficina organizada
por sua própria iniciativa. Frequentou a escola apenas até os 15 anos, quando foi
contratado pela oficina de James F. Flower e Irmãos, localizada em Detroit. Nessa
função, aprendia a ser maquinista. Trabalharia também, mais tarde, na fábrica da Detroit
Dry Dock Company. Em seu tempo livre, dedicava-se ao conserto de relógios, atividade
que lhe proporcionava um profundo prazer.

Em 1882, retornou para à terra natal e, depois, passou a trabalhar como


mecânico, consertando máquinas a vapor no sul de Michigan. Foi contratado como
técnico pela Edison Illuminating Company of Detroit em 1891, tendo sido promovido a
engenheiro chefe desta companhia em novembro de 1893. Em abril de 1888, casou-se
com Clara J. Bryant, com quem teve um filho, Edsel Bryant Ford, nascido cinco anos
depois. Em 1893, Ford construiu seu primeiro modelo de motor a gasolina. Três anos
depois, concluiu seu primeiro modelo de automóvel, montado a partir de seu motor a
gasolina, uma carroçaria e rodas de bicicleta.

Em agosto de 1889, criou sua própria sociedade, a Detroit Automobile


Company, após deixar o cargo de engenheiro chefe na Edison Illuminating Company.
Mais tarde, Ford passou a montar carros de corrida que, além de baterem recordes,
atraíram a atenção de investidores para a sua sociedade, permitindo que o jovem
engenheiro lançasse, em 1903, a Ford Motor Company. O primeiro carro produzido pela
empresa foi vendido no dia 23 de julho de 1903. Em 1906, Ford se tornou presidente e
proprietário da empresa. Em 1908, surgiu seu célebre modelo T e, em 1913, as
revolucionárias técnicas de montagem fordista permitiram que o carro atingisse um
custo de apenas 500 dólares.

Em 1919, o mecânico e seu filho adquiriram as ações minoritárias da empresa,


chegando a ser, desta forma, únicos proprietários. O empresário tinha uma filosofia
industrial simples, que consistia em padronizar os produtos, em proporcionar uma maior
eficiência produtiva e em baratear os custos do produto por meio de uma extrema
especialização do trabalho em linhas de montagem, nas quais cada operário repetia a
mesma função várias e várias vezes. Ele era bastante paternalista em relação a seus
trabalhadores, e nos primeiros anos da empresa chegou a fornecer salários bem mais
altos que a média da época. No entanto, conduzia políticas repressivas visando impedir
a organização sindical e só reconheceu um sindicato muito tardiamente.

Ford não confiava nos banqueiros ou em Wall Street, e raramente tomava


emprestado dinheiro, financiando-se a partir dos próprios lucros sempre que possível.
Tinha grande visão, embora tenha rejeitado alguns conselhos de sua equipe, como o de
ampliar a variedade de cores do modelo T e o de trocar seu freio mecânico pelo
hidráulico. Em 1927, contudo, lançou seu Modelo A, que trouxe várias novidades para o
mercado automobilístico. Durante a primeira e a segunda guerra mundial, a Ford foi
uma grande produtora de material bélico e o empresário subsidiou um jornal
especializado em artigos antissemitas, o que lhe rendeu muitas críticas.

Em 1945, abandonou a presidência da empresa, entregando-a a seu neto, Henry


Ford II. Um ano depois, foi homenageado no Jubileu de Ouro do automóvel e recebeu
um prêmio da American Petroleum Institute. Ford foi membro da Sociedade de
Engenheiros Automobilísticos, presidente de um distrito escolar em Dearborn e
integrante da Câmara de Comércio de Detroit. Publicou, com a colaboração de Samuel
Growther, “Minha vida minha obra” (1922), “Hoje e Amanhã” (1926) e “Caminhando
para Adiante” (1930), obras em que apresenta a trajetória da Ford e discorre acerca de
suas concepções políticas, sociais e empresariais. Ainda na década de 30, recebeu
homenagens da Universidade de Michigan e da Universidade de Colgate.
PÁGINAS SELECIONADAS PELO EDITOR

13/10/1929

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