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Enfim, a Alemanha está diante de uma crise sem precedente em sua história
pós-1945. Os partidos que foram a base de apoio da República Federal a partir
do milagre econômico e desde a reunificação que se seguiram após o
desaparecimento do Muro de Berlim estão em queda livre. O SPD socialista não
é mais que sua própria sombra. A CDU, verdadeiro pilar do país, passa por
derrotas problemáticas e perde nos seus redutos em todos os Länder da antiga
RDA. Esse rebaixamento ou declínio não é exceção na Europa: os democratas-
cristãos italianos desapareceram da cena há muito tempo já; o PPE espanhol
está em liquefação, o que permite hoje a uma falsa esquerda, apesar das
etiquetas, de mal governar o país em crise e face à pandemia; os dois partidos
democratas-cristãos belgas estão igualmente em via de desaparecer. Esses
enfraquecimentos democratas-cristãos e socialistas desafiam: uma outra
normalidade política está em via de constituição, mas ainda não se sabe quais
contornos ela assumirá.
Mas Attali é um velho guru, da idade daqueles que ele deseja que morram para
que os governos hiperliberais não paguem aposentadorias. No entanto, o novo
guru mundial se chama Yuval Noah Harari, célebre por dois best-sellers que
encontramos em todos os idiomas, em todas as livrarias do mundo, mormente
nas grandes estações e aeroportos, onde há aqueles que se nomadizam em
grande ou pequena escala. Em 20 de março de 2020, esse Harari publicou um
longo artigo no Financial Times (https://amp.ft.com/), no qual apresentou o
programa de mundialização em curso de maneira prazerosa e atraente, como
de praxe: não podemos censurar Atalli nem a Harari de terem um estilo
maçante, incapaz de prender a atenção de seus leitores. Harari considera que,
com o coronavírus, há uma urgência (emergência) e toda urgência é “um
processo histórico acelerado”. Em seguida, cito: “As decisões em tempos
normais, que podem exigir anos de deliberação, são tomadas em algumas
horas (…). Tecnologias ainda não inteiramente desenvolvidas e mesmo
perigosas são implementadas, porque os riscos são muito mais elevados se não
se faz nada (…). Países inteiros servem de cobaias em grande escala para
experimentações sociais.” Harari evoca, ato contínuo, um mundo em que
haverá apenas teletrabalho e principalmente ensino a distância: o confinamento
que vivemos parece então uma etapa preparatória para esse futuro de total
reclusão, concebido nas altas esferas dominantes. Harari concebe também o
monitoramento geral da humanidade, acompanhado de punições para os
teimosos. Ele é até um pouco lírico dizendo que hoje os governos são mais
fortes que a KGB soviética pois as autoridades dispõem agora de “sensores
onipresentes e algoritmos poderosos”.
Quer dizer, Harari opta por uma humanidade radicalmente diferente daquela
que Claude Lévi-Strauss tinha preconizado em seus tempos: ele queria tantos
tipos humanos quanto ainda existiam no planeta quando se dedicava a suas
pesquisas em etnologia, queria promover um “espírito etnopluralista” para que
o homem tivesse à sua disposição muitos modelos possíveis para imitar ou
assimilar em caso de bloqueio ou de colapso do modelo ao qual pertencia, no
qual diversas gerações de seus ancestrais tinham vivido. A humanidade devia
ser plural para esse etnopluralismo lévi-straussiano. Para Attali e Harari, isso
não parece ser o caso. Eu tenho, não escondo, a nostalgia do projeto de Lévi-
Strauss.
Na sequência desse sacrilégio, pois isso deve ser classificado desse jeito, o ciclo
de férias estivais será muito provavelmente afetado, uma vez que é uma
tradição secular, também pontuada de celebrações. O povo de nosso
subcontinente será profundamente perturbado, desestabilizado
psicologicamente, com efeitos somáticos. Esse é o risco mais assustador num
futuro próximo, visto que, desencadeado o sacrilégio de quebrar nossa liturgia
milenar, haverá o risco de reincidência. Mas mesmo a ruptura do ciclo ritual
litúrgico, herdado de Roma, durante um ano somente, é vaticínio de
catástrofes: nunca ousamos isso.