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MOTTA, Leda Tenório da (org). Céu acima: para um tombeau de Haroldo de Campos.
São Paulo: Perspectiva, 2005. ISBN: 85-273-0740-5

Se Céu acima não é o ponto de partida para a formação de uma fortuna crítica
sobre a obra poética de Haroldo de Campos – capítulo grandioso porém obscuro de
nossa literatura -, exibe uma original abordagem, cuja informalidade permite ao leitor
desbravar mais uma face do literato morto em 2003. Além de sua consagrada atuação
como escritor, acadêmico, crítico, tradutor e editor, o que se revela na obra é a pessoa
de Haroldo de Campos.
Contando com fotos inéditas do acervo pessoal da viúva do poeta, Carmem
Campos, um CD anexo com a gravação de uma entrevista e um valioso índice de obras
haroldianas, o livro em questão surpreende ao primeiro contato por seu projeto gráfico
ousado (assinado por Sérgio Kon) e pela encadernação em tamanho diferenciado
(simulando um álbum), o que reforça o caráter pessoal da obra. Outra grata novidade é
uma coletânea de poemas inéditos em homenagem a Haroldo, escritos por diversos
autores, como Augusto de Campos e André Vallias.
Já os ensaios dividem-se em quatro partes, cada uma abrangendo determinado
aspecto da personalidade multipolar de Haroldo de Campos. A primeira, Crítica e
criação, intercala relatos memorialistas (Augusto de Campos, por exemplo, escreve
comovente passagem de seus últimos momentos com o irmão) com textos críticos,
como “Viajando pelas Galáxias: Guia e Notas de Orientação”, de Kenneth David
Jackson, pesquisador americano que estabelece profícua relação entre “Ulisses”, de
James de Joyce, e “Galáxias”, de Haroldo de Campos. Ambas obras, além de
explorarem o monólogo subconsciente de um narrador, habitam o limite entre poesia e
prosa, hibridismo aniquilador de gênero, transgressão em estado bruto. Além disso, o
ensaísta desenha um grande esquema de referências do “mar geográfico-linguístico-
mítico” (p. 40) que é “Galáxias”. Ao todo, cinqüenta alusões são arroladas, matéria-
prima valorosa para estudos futuros.
Também o ensaio de Wladimir Krysinski, “Pensamentos fragmentários sobre
Haroldo de Campos”, merece destaque. Nele, o acadêmico elege “Galáxias” como a
obra em que Haroldo melhor expressa seu “classicismo atemporal”, ou sua dialética
mentalidade moderna com estreita ligação com obras clássicas. O “metapoema” reflete
sobre si mesmo e sobre toda a poesia, estrutura cuja “mobilidade meditativa e lúdica”
(p. 79) exige que o leitor reconsidere no “jogo” da leitura todo o seu conceito de poesia.
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Porém, o melhor texto da primeira seção é “Nostalgia de uma reflexão sobre


Literatura e Música”, de Andréa Lombardi. A pesquisadora propõe uma originalíssima
leitura musical da obra haroldiana, apontando o sentimento de nostalgia como a mola
propulsora do constante retorno aos clássicos por Haroldo, seja via paródia, intertexto
ou tradução. Em virtude disso, opera como um intérprete no momento de selecionar
elementos que lhe convenham na execução partitural. Sua poesia é, assim, um mosaico
de “notas poéticas”, concatenação de citações que dialeticamente respeitam e
reverenciam a tradição.
Já em Crítica e tradição literária, dentre alguns textos sem nenhuma adição
crítica permanente (como um inconclusivo mapeamento de relações intertextuais no
poema “A Máquina do Mundo Repensada”, assinado pelo acadêmico Alcir Pécora),
destacam-se dois artigos instigantes: no primeiro, “Encontro em Austin”, Benedito
Nunes analisa um poema feito por Haroldo em sua homenagem. São contrapostas,
então, as visões do poeta concretista e do filósofo alemão Heidegger. Para este, a
linguagem funda o ser, e à poesia cabe desvencilhar o pensamento das limitações
impostas pelo esquema lógico-sintático. Tal desestruturação gera o contato com
instâncias primitivas da consciência. No referido poema, entretanto, Haroldo critica esta
visão, afirmando que faltou a Heidegger olhar a um ideograma enquanto falasse
determinada palavra japonesa: para Benedito Nunes, isso confirma a posição do
pensador brasileiro de defender a exploração da fisicalidade da palavra na produção
artística: uma poética de significantes.
A outra análise que merece atenção na segunda seção é “A estética científica
revisitada”, de Roland de Azeredo Campos, um físico que ressalta a importância de
Haroldo de Campos como editor na introdução de teorias inexploradas até então, em
especial os conceitos estéticos de Max Bense. A partir deles, então, sustenta que a arte
contemporânea é a arte do “caos estético”, de uma aparente desordem que permite uma
abordagem combinatória e/ou permutatória, de infinitas possibilidades através do
computador.
Da terceira seção, Crítica e tradução, o artigo que foge ao óbvio é “Tradução e
des-tradução na Bíblia de Haroldo de Campos”, em que Enrique Mandelbaum analisa as
traduções haroldianas de trechos da Bíblia. Nelas, visa-se a descontextualizar a
mensagem religiosa, descolando o sentido cristão “impregnado” há 2000 anos, para que
se atinja o “signo bíblico”, ou a Bíblia enquanto Literatura.
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Finalmente, em Crítica e Artes, outro texto associa a obra poética de Haroldo à


música. O compositor Lívio Tragtenberg apresenta, em “O multi-conversor”, a tese de
que o poeta concretista fundiu as funções sonora e simbólica da linguagem, em que
ritmo e signo desenham, concomitantemente, uma constelação de significados. Sustenta
ainda que Haroldo sorveu tal habilidade de seu irmão Augusto (cujas ligações com a
música sempre foram mais evidentes), e que cabe, à crítica literária brasileira,
aprofundar tais riquíssimas interpenetrações entre música e literatura na obra do poeta
homenageado.
Portanto, “Céu acima” é uma extensa coletânea de artigos que, se não encanta
pela profundidade acadêmica ou pela originalidade conteudística, propõe pontos de
incitação a serem desenvolvidos no futuro, em busca de uma maior compreensão da
múltipla produção de Haroldo de Campos, uma das figuras mais emblemáticas do
contexto artístico-intelectual brasileiro do século XX.

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