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Curso Lacan

Aula 11

Na aula de hoje começaremos o módulo dedicado à leitura de “A instância da letra no


inconsciente ou a razão desde Freud”. Trata-se de um dos textos mais importantes de
Lacan devido ao seu caráter programático. Resultado de uma conferência pronunciada
em 1957, o texto é paradigmático em relação à maneira que Lacan aproximou-se do
estruturalismo a fim de procurar reconstruir o conceito psicanalítico central, a saber, o
inconsciente. Vimos como, até agora, Lacan não precisou apelar à noção de
inconsciente a fim de constituir sua clínica. Ele parece, como o próprio diz, mais
interessado em uma psicanálise do Eu (com suas resistências, defesas e seus processos
de identificação imaginária) do que exatamente em uma psicanálise do inconsciente. Na
verdade, é só tardiamente, por volta de meados dos anos 50, que Lacan irá incorporar à
sua clínica à noção de inconsciente. Mas, neste caso, tratar-se-á de um “inconsciente
estrutural”. Um inconsciente que parte da maneira com que a letra, ou seja, o
significante (que, ao menos neste contexto, lhe é simétrico) instaura uma instância com
suas regras próprias que interfere no modo de orientação do pensamento consciente. Um
inconsciente que implica modificações estruturais na noção moderna de razão; não
porque ele teria parte com o irracional, porque ele mostraria como forças irracionais
agem na antecâmara da consciência; mas porque ele produz modificações maiores neste
conceito que serve de fundamento para a razão moderna, a saber, sujeito. Por isto, o
texto tem dois momentos bastante visíveis. Primeiro, trata-se de discutir o impacto do
pensamento estruturalista na reconfiguração do conceito psicanalítico de inconsciente.
Segundo, trata-se de mostrar como o conceito de inconsciente traz uma profunda
modificação no fundamento da razão moderna, ou seja, no conceito de sujeito. Para
tanto, vários empréstimos à filosofia serão feitos aqui, em especial a Heidegger e à
Descartes.

Notas sobre o estruturalismo

Lacan começa seu texto lembrando das condições de sua escrita. Trata-se de
uma conferência para o grupo de filosofia da Federação dos Estudantes de Letras. Que a
fala de um psicanalista seja endereçada a tal público é algo que não deixa de remeter a
uma questão maior referente a formação de analistas desde Freud. Em um texto
intitulado A questão da análise leiga, Freud lembrava que um psicanalista precisava ter
formação dupla. Por um lado, conhecimentos sobre a “psicologia profunda”, assim
como sobre biologia (como introdução às reflexões sobre a vida sexual) e sobre o
quadro de doenças da psiquiatria. Por outro, aquilo que a atividade de formação de
médicos não ensina, ou seja: história da cultura, mitologia, psicologia das religiões e
ciências da literatura. Dirá Freud: “Sem uma boa orientação nestes domínios, o
psicanalista é incapaz de compreender uma grande parte de seu material” 1. O que estas
áreas distintas têm em comum, dirá Lacan, é a análise da produção simbólica que dá
forma à vida social. Esta dimensão da produção simbólica e sua interferência nas ditas
afecções mentais dos sujeitos é, de uma maneira peculiar, o objeto da análise do texto
lacaniano.
Trata-se de uma “maneira peculiar” porque Lacan aborda tal produção simbólica
a partir de uma perspectiva estrutural. Ele quer partir da estrutura geral que organizaria
a multiplicidade das produções simbólicas nos campos da literatura, dos mitos, das
formações religiosas e, por fim, da cultura. Ou seja, ele quer reduzir todos estes sistemas
1
FREUD, GW XIV, p. 281
a uma só estrutura geral que, a partir de agora, será o elemento definidor e organizador
de toda realidade social possível. Esta estrutura geral que funciona como elemento
definidor e organizador de toda realidade social possível não é outra coisa que a
linguagem.
Colocações desta natureza são incompreensíveis se não compreendermos melhor
de onde elas vieram. Isto nos obriga a uma longa digressão a respeito do estruturalismo.
Digressão ainda mais importante se levarmos em conta que raros foram os momentos
históricos que viram configurar uma experiência intelectual como aquela que se colocou
sob a égide do estruturalismo. Experiência que realizou, à sua maneira, um verdadeiro
“programa crítico interdisciplinar” nascido da articulação cerrada entre antropologia,
psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão filosófica. Programa que, de uma
certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes como Claude Lévi-Strauss, Jacques
Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel Foucault, Roman Jakobson, entre
outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos,
significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o
parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas, campo no
qual a psicanálise lacaniana se insere. Tal redefinição partiu da defesa da lingüística
como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das ciências
humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte afirmação de
Lévi-Strauss : “No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a
lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como
as outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida,
que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um
método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise”2. Tom este
que não está ausente do texto de Lacan, quando ele fala da “posição piloto” que a
lingüística ocuparia na nova “revolução do conhecimento”3 que devíamos esperar.
Este primado da lingüística implicava um duplo efeito. Primeiro, como vemos na
afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística
estrutural inspirada por Saussure, e implementada por nomes como Jakobson (sem
esquecermos de todo o Círculo lingüístico de Praga: Troubetzkoy, Vachek entre outros),
Greimas e Hjelmslev havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto,
o fato lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema diferencial-
opositivo de unidades elementares (fonemas). Não se tratava de uma matematização no
sentido próprio àquela implementada no campo das ciências físicas, ou seja, redução
dos objetos a uma unidade comum de medida que permite a implementação de
processos de quantificação e comparação. Tratava-se de uma formalização estrutural,
ou seja, sistematização de “elementos que se especificam reciprocamente em relações”4
e que não têm nenhuma realidade intrínseca para além deste campo de relações.
Lembremos, por exemplo, da relação estabelecida por Saussure entre a linguagem e o
jogo de xadrez. Tratava-se de demonstrar como o valor de cada elemento era
determinado através do estabelecimento de um conjunto de regras e de sistemas de
permutação : “O valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do

2
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, p. 45. Ou ainda, como nos diz Granger : “A tentativa de
transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente definido por suas correlações a
outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo pela lingüística estrutural e
apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do conhecimento científico”
(GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
3
LACAN, Ecrits, p. 496
4
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
mesmo modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos” 5.
Fato que levava Saussure a afirmar, de maneira canônica, que, na ciência da linguagem:
“os objetos que ela tem diante de si são desprovidos de realidade em si, ou a parte dos
outros objetos a considerar. Eles não tem absolutamente nenhum substratum de
existência fora de suas diferenças ou das diferenças de toda forma que o espírito
encontra um meio de atribuir à diferença fundamental”6.
Lacan comentará sua leitura de Saussure ao apresentar aquilo que ele chama de
algoritmo fundador da disciplina lingüística, a saber, S/s. O elemento mais importante
neste algoritmo é a barra que separa significante (o suporte material da língua) e o
significado. Pois trata-se de mostrar como estamos diante de duas “ordens distintas e
separadas inicialmente por uma barreira resistente à significação”. No entanto, é ao
assumir esta distinção que poderemos compreender qual função do significante na
“gênese do significado”, como ele “entra de fato no significado”. Ou seja, a afirmação
de que significante e significado são ordens distintas visa, na verdade, esvaziar um dos
pólos (o do significado) a fim de mostrar como é o significante, seu sistema de relações,
que gera significado. Como dirão alguns comentadores: “trata-se de fazer o significante
sofrer um deslocamento tal que não se possa mais, doravante, tomá-lo como um
elemento do signo, mas que seja preciso, debaixo do antigo nome, visar ou encarar um
conceito (ao menos) paradoxal: aquele de um significante sem significado”7.
Vale a pena nos determos neste ponto comumente chamado de “problema da
arbitrariedade do signo”. Sua importância para Lacan é, acima de tudo, clínica, já que se
trata de compreender como opera a linguagem em sua relação à referência. Questão
maior para uma clínica, como a psicanalítica, que trabalha principalmente através de
simbolizações e redescrições. No entanto, gostaria de fazer isto apenas na próxima aula.

Inconsciente estrutural

Na aula de hoje, gostaria de discutir melhor a noção de estrutura e seu uso na


psicanálise. Lacan insiste que a estrutura não é dada de maneira imanente no campo
fenomenal. Ao contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus
atores, que agem de maneira inconsciente. Ao falar, os sujeitos não têm consciência da
estrutura fonemática que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao
operar escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de
parentesco que determinam tais escolhas. Este caráter inconsciente da estrutura será um
dado fundamental para a objetividade do pensamento estruturalista, assim como para o
seu anti-humanismo. Para um pensamento estruturalista estrito os sujeitos não falam,
eles são falados pela linguagem. De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss:
“Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se
pensam nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais
longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se
pensam entre si”8.
Mas se o primeiro efeito do primado da lingüística era esta reconfiguração da
racionalidade das ciências humanas através do programa de formalização estrutural, o
segundo efeito estava na compreensão de que o verdadeiro objeto das ciências humanas
não era o homem, mas as estruturas que o determinam. Michel Foucault compreendeu
isto claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão

5
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
6
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
7
NANCY, Jean-Luc et LACOUE-LABARTHE, Pierre; O título da letra; pag. 47
8
LÉVI-STRAUSS,O cru e o cozido, p. 31
do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente,
as normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de
suas formas e de suas condutas”9. Na verdade, ao insistir na dimensão de exterioridade
das regras sociais em relação à consciência, os estruturalistas seguiam, à sua maneira
uma trilha aberta por Durkheim. Lembremos do que Durkheim diz a respeito do fato
social: “Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo, de cidadão, quando me
desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e
de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos
que me são próprios, sentido-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser
objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação (...) estamos,
pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais: consistem
em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder
de coerção em virtude do qual se lhe impõem” 10. Ou seja, trata-se de compreender que
não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos que realmente interessa, mas a
determinação desta estrutura prévia que coage os sujeitos, a partir do exterior, a agir de
certa forma e a assumir certos lugares na vida social. Estrutura que totaliza e unifica a
multiplicidade de fatos dispersos na vida social.
No caso de Lévi-Strauss, esta estrutura social não era composta exatamente por
um conjunto positivo de regras, mas por relações diferenciais e opositivas que
determinam possibilidades de combinatória e interditos de transposição, tal como as
relações que organizariam os fonemas. Ou seja, esta estrutura era a própria linguagem
enquanto sistema geral de regras de ordenamento. A recompreensão do objeto das
ciências humanas implicava, assim, uma teoria da sociedade que transformava a
linguagem no fato social central, já que todos os fatos sociais: trocas matrimoniais,
processos de determinação de valor de mercadorias, articulação do ordenamento
jurídico, seriam todos estruturados como uma linguagem. Isto nos explica a razão pela
qual Lacan insiste que toda experiência comunitária, todo drama histórico (lembremos
como a noção de drama desempenhava um papel importante na psicologia concreta de
Politzer), estava subordinado às estruturas elementares ordenadas pela linguagem como
sistema de regras. Daí a necessidade lacaniana de lembrar que a distinção entre natureza
e cultura deveria ser compreendida através de uma dupla operação onde a cultura era
reduzida ao campo simbólico da linguagem e onde aparecia a sociedade a fim de
permitir a distinção entre sociedades com linguagem (as sociedades humanas) e
sociedades desprovidas de linguagem (as sociedades naturais).
Desta forma, as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX
reconstruíram seu objeto e seu campo ao usar a análise da linguagem como método e
parâmetro. Podemos ver claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de
Lévi-Strauss : “No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no
estudo de outros problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante
à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de
significação; como eles só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem
em sistemas; os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas fonológicos´, são
elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em
regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de
parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de
parentes etc. faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do
jogo de leis gerais, mas ocultas”11.

9
FOUCAULT, Lês mots et lês choses, p. 376
10
DURKHEIM, O que é fato social?, p. 48
11
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, p. 48
Um terceiro elemento deve ser acrescentado à compreensão do caráter prévio da
estrutura lingüística. Ele está bem sintetizado por Merleau-Ponty: “A função simbólica
antecede o dado”12. Ou seja, ela não se conforma aos dados naturais, ao contrário, ela
estabelece previamente o campo possível de experiências no interior do qual a própria
noção de “dado” se disponibilizará. Daí porque Lévi-Strauss poderá afirmar: “os
símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” 13. Ou ainda, como lembrará
Lacan: “A função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo o que é
humano tem de ordenar-se”14.
Mas notemos aqui um problema central. Se aceitarmos que as condutas do
sujeitos, mesmo as condutas que determinam as relações a si, são determinadas por
estruturas preexistentes e responsáveis pela configuração do campo de experiências
possíveis, então a particularidade das histórias individuais perde seu espaço.
E, de fato, Lévi-Strauss chegará a uma conseqüência maior para o estruturalismo
que nos leva diretamente à definição da noção de inconsciente. Trata-se de sublinhar o
caráter inconsciente da estrutura, pois: “ De um lado, com efeito, as leis da atividade
inconsciente estão sempre fora da apreensão subjetiva (podemos tomar consciência
delas, mas como objeto); e de outro, no entanto, são elas que determinam as
modalidades dessa apreensão”15. Mas este inconsciente das estruturas que determinam
previamente a conduta dos sujeitos implica em uma modificação brutal na visão
“tradicional” de inconsciente. Lévi-Strauss é consciente a respeito de tal mudança: “O
inconsciente deixa de ser o inefável refúgio das particularidades individuais, o
depositário de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível. Ele
se reduz a um termo pelo qual nós designamos uma função: a função simbólica,
especificamente humana, sem dúvida, mas que, em todos os homens se exerce segundo
as mesmas leis; que se reduz, de fato, ao conjunto dessas leis” 16. Como lembra
astutamente Lévi-Strauss, o vocabulário através do qual cada um escreve sua história
pessoal, vocabulário cujos elementos semânticos são prenhes de significações
individuais: “só adquire significação, para nós próprios e para os outros, na medida em
que o inconsciente o organiza segundo suas leis e faz dele, assim, um discurso”17.
É isto que Lacan tem em mente ao insistir que o inconsciente freudiano não era o
refúgio do inefável, de pulsões não socializadas e de conteúdos mentais privilegiados.
Ao contrário, ao reconstruir o inconsciente através da estrutura de transposição,
deslocamento, condensação e a figuração presente na Interpretação dos sonhos, Lacan
encontrava a chave que enfim aproximava Freud de uma noção não-psicológica de
inconsciente.
Vejamos isto com mais calma. No que diz respeito à interpretação dos sonhos (a
famosa "via régia para o inconsciente", segundo Freud), acredita-se normalmente que a
interpretação analítica consiste na transcrição (Übertragung) do pretenso pensamento
latente inconsciente ao texto manifesto do sonho. Se assim fosse, a psicanálise não
passaria realmente de uma estratégia hermenêutica de reintegração do sentido à esfera
da comunicação pública. Nesta leitura, esquece-se de tirar as conseqüências da
afirmação de Freud: quase todos os pensamentos latentes do sonho “não diferem em
nada dos produtos de nossa atividade consciente habitual (bewussten Seelentätgkeit) (...)

12
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
13
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
14
LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
15
LÉVI-STRAUSS, ibidem, p. 28
16
Idem, Antropologia estrutural, p. 234
17
idem, p. 235
eles merecem o nome de pensamentos pré-conscientes e podem efetivamente terem
sidos conscientes em qualquer momentos de nossa vida desperta "18.
Este é um dado fundamental pois, se quase todas os pensamentos latentes são
pedaços de um pensamento pré-consciente é porque o verdadeiro elemento inconsciente
no sonho encontra-se no processo de trabalho do sonho; quer dizer, na pura forma de
articulação significante que produz o conteúdo manifesto e obedece ao ritmo do
automatismo de repetição. O que há de inconsciente no pensamento não é exatamente o
pensamento latente mas a pura forma do pensamento. É Freud quem nos coloca nesta
via. Ao afirmar que os pensamentos latentes do sonho não diferem em nada dos
produtos da nossa atividade consciente habitual, ele lembra que: "ao entrar em conexão
(Verbindung) com as tendências inconscientes (...) eles são submetidos à leis que
governam a atividade inconsciente"19. É a aplicação de tais leis, o trabalho de
combinatória, distorção e recomposição dos conteúdos latentes ou, ainda, o trabalho do
desejo que aparece como o processo determinante da natureza inconsciente.
A este respeito, Lacan lembra dos sistemas de articulação descritos por Freud no
processo primário. Entstellung (transposição/desfiguração), Verdichtung (condensação –
ou se quisermos, sobredeterminação), Verschiebung (deslocamento) e Rucksicht auf
Darstellbarkeit (consideração com a figuração) são descritos como se fossem processos
próprios a toda e qualquer estrutura lingüística. É pensando neles que Lacan pode falar
de uma instância da letra no inconsciente e afirmar: “Desde a origem, desconheceu-se o
papel constituinte do significante no estatuto que Freud logo fixou ao inconsciente e
segundo modalidades formais as mais precisas”20.
Condensação e deslocamento permitem aproximações mais fáceis já que se
referem a processos que ocorrem no eixo sincrônico e diacrônico da linguagem. De fato,
seguindo uma chave tipicamente estruturalista, Lacan reduz toda a dinâmica da
linguagem a dois únicos processos de articulação entre elementos lingüísticos. Neste
ponto, Lacan segue principalmente Jakobson, no texto Dois aspectos da linguagem e
dois tipos de afasia21.
Neste texto clássico, Jakobson insiste que todo signo linguístico implica dois
modos de arranjo. Um é a combinação entre termos de valores distintos que se articulam
na criação de um contexto de significação. Outro é a seleção entre termos de valores
similares que, por isto, podem ser substituídos um pelo outro. Tais operações,
combinação e seleção, recobrem os dois eixos da linguagem, tal como eles forma
pensados por Saussure, a saber, o eixo diacrônico e o eixo sincrônico. Jakobson usa
esses dois aspectos da linguagem para dar conta de duas estruturas distintas de afasia: a
afasia de similaridade e a afasia de contigüidade.
Combinação e seleção, por sua vez, dão corpo as duas figuras lingüísticas
fundamentais: a metonímia e a metáfora. Por um lado, a combinação significa que
elementos lingüísticos de valores distintos serão combinados entre si formando uma
relação de contigüidade própria à figura de estilo da metonímia. Tal contigüidade entre
elementos lingüísticos nos mostra que a significação irá sempre se deslocar entre termos
contíguos. É isto que está formalizado na fórmula f(S...S’)S = S(...)s. Se digo, por
exemplo: “Um par de olhos me seguia por toda a casa”, está claro que a constituição do
sentido exige um deslocamento em direção a um termo linguístico que aqui é contíguo
ao termo “um par de olhos” como, por exemplo, “pessoa”. Notemos ainda que estas
relações de contigüidade podem ser espaciais, temporais ou obedecerem à estrutura

18
FREUD, Einige Bernerkungen über den Begriff des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1999, p. 438
19
FREUD, idem, p. 438
20
LACAN, Ecrits, p. 512
21
JAKOBSON, Roman; Linguística e comunicação, pp. 34-63
parte/todo. Em todos os casos, temos operações de produção de significação através da
atualização de referências presentes no interior do contexto da fala.
Usando a idéia de distúrbios na capacidade do sujeito em construir relações de
contigüidade própria à metonímia, Jakobson procura dar conta daquilo que ele chama de
afasia de contigüidade. Trata-se de uma afasia marcada pela deficiência quanto à
capacidade de criação de contexto a partir de operações de contigüidade. Como
resultado: “a extensão e a variedade das frases diminuem. As regras sintáticas, que
organizam as palavras em unidades mais altas, perdem-se; esta perda, chamada de
agramatismo, tem por resultado fazer a frase degenerar num simples “monte de
palavras”22.
Se a combinação fornece a base de compreensão da figura de estilo da
metonímia, o mesmo vale para a metáfora e a operação de seleção. A seleção indica que
elementos lingüísticos de valores semelhantes são selecionados, sendo que apenas um
estará presente na mensagem. Os demais estão unidos ao primeiro in absentia, como
membros de uma série mnemônica virtual. Desta forma, a condensação cria uma relação
de similaridade própria da figura retórica da metáfora. É isto que está expresso na
fórmula f(S’/S)S = S(+)s. Notemos que não se trata mais de articular lingüisticamente
contigüidades espaciais, temporais ou parte/todo. Os termos são similares em suas
funções. Se digo: “O amor é uma pedrinha rindo ao sol”, não há nenhuma relação de
continuidade entre o amor e as pequenas pedras que riem ao sol, a não o fato de que elas
se substituem em uma construção metafórica como termos com valores funcionais
idênticos que se condensam.
Jakobson, por sua vez, irá mostrar como há uma afasia fundada na incapacidade
do sujeito em articular lingüisticamente relações de similitude. Trata-se dos afásicos de
similaridade. Nestes casos, o sujeito não consegue enunciar proposições de identidade.
Assim, por exemplo: “instado a responder o que era um solteiro, o doente não
respondeu e ficou aparentemente angustiado. Uma resposta como “solteiro é um homem
não-casado” ou “um homem não casado é solteiro” teria constituído uma predicação
equacional e assim uma projeção de um grupo de substituição, do código lexical da
língua portuguesa no contexto da mensagem em questão”23. Ou ainda “Quando se
apresentou a um paciente de Lotmar o desenho de uma bússola, ele respondeu: “Sim, é
um ... sei do que se trata mas não consigo lembrar-me da expressão técnica ... Sim ...
direção ... para indicar direção ... uma agulha imantada indica o Norte”24.
Lacan verá nestes dois processos lingüísticos a chave para a explicação de
diversos processos analíticos. Primeiro, condensação metafórica e deslocamento
metonímico serão elevados à condição de processos centrais para a interpretação da
dinâmica das formações do inconsciente. A frase “o inconsciente é estruturado como
uma linguagem” só foi possível porque Lacan encontrou, nos mecanismos de trabalho
dos sonhos, operações similares à combinação diacrônica e à seleção sincrônica.
Segundo, o uso desses tropos retóricos para falar do inconsciente demonstra como
Lacan procura interpretar a escritura dos sonhos a partir de uma análise estilístico-
formal. Quer dizer, a interpretação psicanalítica deve tender a uma análise estilística do
inconsciente25 que, no lugar de apreender o sentido dos significantes primordiais aos
22
idem, p. 51
23
idem, p. 44
24
idem, p. 45
25
É uma análise estilística do inconsciente que encontramos, por exemplo, no imperativo psicanalítico de
análise da transferência. Pois analisar a transferência é interpretar a forma sob a qual a narrativa do
paciente é entregue (o que Freud tinha percebido claramente em um texto como Rememoração, repetição
e perlaboração). Aqui, podemos sentir toda a pertinência da afirmação lacaniana: "o estilo é o homem
para quem se endereça". Ë na dimensão do estilo, da forma que toma a narrativa, que podemos ter acesso
quais a pulsão se fixou, privilegie a análise das modalidades de passagem de um
significante a outro. Quer dizer, menos as escavações arqueológicas do texto consciente
e mais o trabalho do desejo que se manifesta na pura articulação significante. Pois,
como dizia Lacan, a partir dos anos 60: "não é o efeito de sentido que opera na
interpretação, mas a articulação, no sintoma, de significantes (sem sentido algum) que
estão aprisionados nele"26. Assim, não se trata mais de dar à psicanálise a tarefa de
reconstituir o sentido da história do sujeito através da narrativa integral do Todo de sua
história - até porque, o momento histórico de tal narrativa não é mais o nosso. Na
verdade, trata-se de individualizar a articulação significante que compõe o sintoma e
fazer com que o sujeito se reconheça em tal modo de articulação. Levá-lo a vivenciar,
como estilo, aquilo que ele sofre como sintoma. Veremos mais à frente o que isto pode
significar.

a este Outro, sujeito suposto saber encarnado no analista, ao qual o sujeito é mais ligado que à si mesmo
26
LACAN, Ecrits, p. 842

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