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Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol.

V) 1

Curso Online de Filosofia


OLAVO DE CARVALHO

Resumos de Aulas

Vol. V

Elaborado por Mário Chainho

Índice Pag.
Aula 21 – 29/08/2009 2
Aula 22 – 05/09/2009 9
Aula 23 – 12/09/2009 18
Aula 24 – 19/09/2009 25
Aula 25 – 26/09/2009 36

Notas:
1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes
devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias,
para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas.
2) Os resumos foram escritos em português de Portugal.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 2

Aula 21 – 29/08/2009

Sinopse: A ânsia de obter uma rápida erudição conduz a uma análise crítica
prematura que não tomar posse da mensagem real contida nos textos. A consciência
autobiográfica depende da unificação que a imaginação faz das partes reunidas na
memória, mas não devemos nos apegar a uma auto-imagem que nos encerra sobre
nós mesmos e assim nos tornar vulneráveis às manipulações exteriores. A imaginação
possui diversas funções, começando logo por completar a percepção sensível em
consonância com as propriedades dos objectos de modo a vê-los tal como eles são. É
também a imaginação que nos dá o senso da unidade do real, porque a percepção
apenas fornece dados fragmentados e em sucessão temporal. A imaginação tem ainda
uma função na capacidade de antecipação que temos em relação a tudo, até em
relação a nós mesmos, já que não nos vemos como um corpo estático mas como um
conjunto de potencialidades. A doença materialista consiste em conceber, por
abstracção do mundo real, um mundo de meras presenças físicas e depois achar que
as potencialidades do mundo real são mera projecção da mente humana. Para
combater esta doença temos de ter a capacidade de ficarmos sozinhos mas também
desenvolver uma transparência para com nós mesmos.

O problema da erudição rápida


Quando se tenta obter erudição muito rapidamente, e essa avidez de conhecimento é
normal no começo de uma vida de estudos, há a tendência em saltar por cima de uma
fase de absorção imaginativa e começar logo a fazer análise crítica. Dessa forma,
rapidamente se desliza para fora do assunto que o texto realmente aborda e a análise
debruçar-se-á sobre um texto inventado. Isto configura a doença do ensino
universitário moderno. Antes de termos um olhar crítico e distanciado sobre o texto
temos que garantir a posse da mensagem ali presente. O verdadeiro esforço da vida
intelectual é um esforço de auto-domínio, onde tentamos controlar a nossa mente
emissiva de forma a nos abrirmos para o que o outro, a percepção e a realidade estão
dizendo. É uma absorção passiva apenas no sentido em que, num primeiro momento,
vamos refrear a nossa mente construtiva de elaborar raciocínios. Estes podem-nos
parecer muito evoluídos, mas o mecanismo do raciocínio silogístico é algo
mecanizável e até um animal consegue efectuar, e um computador fará muito melhor
que nós.
O que caracteriza a inteligência humana é a substantividade e organização na memória
do material sobre o qual se raciocina. Para evoluirmos nesse sentido vamos abdicar,
numa primeira fase, de obter uma grande erudição, que é algo que virá muito rápido
quando tivermos os instrumentos mentais necessários e a atitude correcta. Vamos
ganhar hábitos de estudo apropriados. Todos os dias teremos de estudar um pouco,
sabendo que não podem render mais de três horas de estudo efectivo por dia, embora
possamos fazer outras actividades de ordem intelectual. Só vamos pegar num livro se
tivermos a intenção de guardá-lo na memória, não num esforço normal de
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memorização mas fazendo um teatro mental a partir do material ali contido. Será o
dramatismo da situação que fará com que recordemos aquilo sem esforço.

Consciência autobiográfica
A existência de uma consciência autobiográfica depende não apenas da memória mas
da imaginação pois é ela que unificará as partes para compor uma personagem. Mas
nunca nos devemos apegar à nossa auto-imagem e tentar mantê-la intacta, porque
vamos esquecer quem somos e em lugar de falarmos de nós mesmos falaremos de uma
personagem imaginária, que não admite receber influências de fora e considera-se
autora de tudo. Mas é neste estado que nos tornamos mais influenciáveis a partir de
fora, porque a nossa vida altera-se e mudamos de opiniões sem nem nos apercebermos
de uma coisa ou de outra. Para obtermos autodomínio temos de conhecer os nossos
pontos vulneráveis, saber onde somos facilmente enganados e manipulados, e para isso
temos de abandonar a defesa orgulhosa na nossa auto-imagem e nos abrirmos para as
influências subtis que recebemos, sobretudo dos meios de comunicações de massas,
que não têm apenas um conteúdo positivo, no sentido de serem imagens ou ideias que
se impuseram a nós, mas trabalham de forma mais decisiva na supressão de dados. O
que jamais entra em consideração condiciona de forma preponderante o nosso
pensamento. Ninguém está imune aos símbolos, palavras, termos e ideias que circulam
sem parar por todo o lugar e que providenciam o repertório dos nossos pensamentos.
Aquilo que não nos foi ensinado pelos nossos pais teve proveniência do meio familiar
mais alargado e do dos amigos, ou então dos meios de comunicação de massa e só em
última instância da alta cultura. Temos de nos lembrar que não fomos nós que
inventamos as palavras que usamos e até para expressar aquilo que nos é mais íntimo
usamos palavras que vieram de fora. Nunca estamos isolados do meio cultural e sem o
constante fluxo de símbolos e palavras que este fornece nem poderíamos usar a
palavra “eu” em consciência. Então, ao invés do nosso “eu”, da nossa identidade e da
nossa personalidade serem coisas isoladas no nosso interior, elas fazem parte do meio
cultural. Toda a nossa personalidade e a nossa individualidade não são ilusões; têm
uma forma mais ou menos descritível e reconhecível por outras pessoas. Mas podemos
ter muitas ilusões a seu respeito e ficarmos apegados à nossa auto-imagem.

As funções da imaginação
A imaginação é fundamental para a filosofia porque sem ela não conseguimos nos
estabelecer no real. Uma visão puramente materialista em última instância levará o
indivíduo a duvidar da sua própria existência, como alertou Giordano Bruno.
A imaginação completa a percepção sensível mas não inventa propriamente o
conteúdo em falta, como se supunha no Idealismo. Pensemos na tridimensionalidade
dos objectos. Apenas podemos ver um objecto por um lado, mas o nosso olhar
instintivamente sabe que há algo mais porque temos visão tridimensional e daqui surge
uma expectativa imediata de tridimensionalidade. A imaginação completa esta imagem
e nós vemos os objectos como eles são, com tridimensionalidade e densidade. A
imaginação não completa a percepção de acordo com a sua inventividade, muito
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menos de acordo com a estrutura do pensamento, mas sim em consonância com as


propriedades reais que permitem a existência e presença dos corpos. Dá-se então um
ajuste entre as propriedades dos objectos, as capacidades do olho e a função da
imaginação. Na realidade, é o bidimensional que só pode ser concebido por abstracção
mental, pois mesmo algo desenhado numa folha de papel só pode ser visto porque é
tridimensional ou então não existiria. O bidimensional é uma propriedade que pode ser
concebida isoladamente mas não pode existir como tal.
Também o senso de unidade do real nos é dado pela imaginação. A percepção dá-nos
apenas uma sucessão temporal de elementos mas nós sabemos que eles existem
simultaneamente. É o aporte imaginário que mais uma vez completa os dados dos
sentidos para conferir um senso de realidade. Contudo, a ideia corrente afirma que a
realidade é constituída de estimulações sensíveis e tudo o resto é criação humana
subjectiva. Mas todos os estímulos que recebemos ao longo de uma vida não compõem
um mundo. Esses estímulos acontecem no nosso corpo, tal como acontecem para uma
ameba, e se nos atermos a eles ficamos apenas com um mundo inteiramente
subjectivo. Trata-se do domínio da estimulidade, como dirá Xavier Zubiri, onde não
existe o conhecimento da existência do mundo mas apenas das sensações corporais,
pois mesmo os estímulos vindos de fora são sentidos como alterações corporais.
A percepção sensível no ser humano não existe isolada, de forma atomística. Podemos
apenas conceber percepções sensíveis isoladas por abstracção, já que estas só existem
efectivamente numa percepção total constituída em grande parte pela imaginação. Ao
invés de nos retirar do real, a imaginação existe precisamente para nos instalar nele
usando para isso elementos vindos tanto da percepção sensível como da memória,
realizando com eles uma estrutura imediata. O mundo real vai ser a totalidade do
percebido, do imaginado e do antecipado, sempre de acordo com as propriedades dos
objectos reais. É porque temos imaginação que não ficamos presos à subjectividade
das sensações próprias e podemos saber que vivemos num mundo real, de objectos que
têm propriedades, presença e se articulam entre si formando a unidade da presença do
ser.
A imaginação tem ainda uma função importantíssima ao nos ajudar a captar um
conjunto de potências presentes em tudo o que vemos e mesmo em relação ao nosso
próprio corpo, que também só é percebido como potência e não como simples
presença tridimensional. Quando vemos um cachorro sabemos logo que ele poderá
ladrar, morder, abanar o rabo mas de certo não sairá voando ou nos cumprimentará em
alemão. Captamos um conjunto enorme de possibilidades de acção que podem ser
realizadas no instante seguinte e é esse conjunto que faz dele um cachorro e não a sua
forma externa. Apenas com esta capacidade de antecipação podemos distinguir um
cachorro real de um empalhado. Não se trata de uma expectativa existente apenas na
nossa mente pois ela tem de corresponder a potencialidades que estão no próprio
cachorro ou não se daria o reconhecimento. Não é uma antecipação criativa mas uma
percepção, portanto. Daí decorre que aquilo que chamamos de realidade jamais poderá
resumir-se à presença estática dos corpos mas é antes um sistema imenso de
dinamismos e possibilidades latentes que se podem efectivar no instante seguinte. Sem
a percepção destas potências estaríamos totalmente fora da realidade. A imaginação é
o que nos permite captar este conjunto das potencialidades, nunca inteiro, através do
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ajuste da consciência à estrutura da realidade. O nosso recurso mais poderoso para


conhecer a realidade é a imaginação, que trabalha sempre solidária com a percepção e
cria em cima uma teia de relações que nos dão uma capacidade de antecipação. Sem
isso não conseguiríamos falar ou agir. O processo imaginativo funciona aí de forma
proporcionada à realidade e em geral não falha desde que não tentemos controlá-lo
com a nossa vontade.
Numa primeira fase não devemos fazer um trabalho analítico de averiguar se o que se
passa na imaginação é verdade ou mentira. Isto envolve interpretação e decomposição
em camadas de significado, e em cada uma delas a imaginação, tal como a poesia, diz
umas coisas verdadeiras e outras falsas. A verdade de um poema está nele transmitir
uma experiência efectiva do poeta que pode ser reconhecida por nós. Antes disso
importa dar realce à sinceridade e transparência que o conteúdo imaginativo tem para
nós e perceber como funciona a imaginação em conjunção com a percepção.
A educação é hoje em dia largamente um processo de desimaginação, destruindo não
apenas a inteligência mas também a alma humana. Certas coisas deixam de ser
imaginadas para não “parecer mal” e então fazemos de conta que não vemos. As
próprias normas de polidez são utilizadas para limitar a imaginação. Neste ponto a
linguagem é um elemento crítico, indispensável para a nossa expressão pessoal e para
conquistarmos a nossa identidade e autenticidade. Ela é também o nosso ponto de
contacto com o mundo, onde partilhamos a língua com toda a gente, pelo que para
cumprir com eficácia a sua função tem de estar num permanente fluxo entre o nosso
interior e o exterior. Esse fluxo fica perturbado se existir uma pressão para não
dizermos certas coisas ou para não as dizermos de certa maneira, e nunca como hoje
existiu uma pressão tão controladora sobre a linguagem. O resultado é deixar de
perceber aquilo que não conseguimos dizer.

A doença materialista
Nós não conseguimos perceber seja o que for a partir de meras presenças físicas. Mas
o próprio mundo físico de que tanto se fala, se fosse só mera presença material
destituída do seu potencial, não poderia existir de forma alguma. Esse é um mundo que
apenas pode existir como conceito, um produto mental fruto da abstracção. Como
conseguimos fazer esta operação racionalmente, retroactivamente achamos que numa
percepção real os elementos de sensação, antecipação e imaginação se encontram
separados. Esta é a doença materialista, uma doença do intelecto, uma falta de
inteligência que não percebe que os vários elementos que compõem uma percepção
podem ser distinguíveis mas nunca separáveis, e o mesmo decorre para o “mundo
material”. Será inconcebível para um materialista reconhecer que efectivamente
vivemos num mundo “imaginário”, pois é só pela imaginação que conseguimos
reconhecer o enorme conjunto de tensões, possibilidades e dinamismos presentes na
realidade. A primeira etapa do curso destina-se a fugir disto e a tomar posse da
capacidade de perceber o mundo como coisa real, presente, viva e actuante, e que além
dos dados actuais contém um conjunto de dinamismos, tensões e potências que
marcam a nossa verdadeira presença.
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Se queremos conhecimento real, este vai ter de ser obtido a partir da percepção real e
não de hipóteses artificiosas, onde se faz uma selecção abstractiva de certas
propriedades dentre inúmeras que percebemos. Mesmo a experiência científica vai ter
que ser inserida dentro do campo da experiência real para ter algum significado. Nunca
podemos superar a percepção real, porque afinal teríamos de o fazer isso num mundo
real, retornando à percepção real, e não num mundo hipotético.
O mundo real era o que Husserl timidamente chamava o mundo da vida, mas este é na
verdade o único mundo que existe, e a experiência científica só existe como uma parte
do mundo da vida que decidimos olhar separadamente, sendo uma distinção mental e
são uma separação de facto. As ciências vão retirar o seu valor a uma ontologia e a
uma epistemologia baseadas num exame desse mundo real. Esse senso de orientação e
de valores é dado pela filosofia e é fundamental para algo poder se tornar
conhecimento mas que Jean Piaget, no livro Sabedoria e Ilusões da Filosofia, acabou
por desvalorizar como se fosse mero enfeite.
O conhecimento da realidade, ao invés de ser algo reservado para uns poucos eleitos, é
o que há de mais próprio ao ser humano. A essência das coisas não é algo que se acha
após um longo exame crítico. Pelo contrário, só podemos fazer um exame crítico de
algo sobre o qual já conhecemos a essência ou nem sequer conseguiríamos seleccionar
os aspectos que vamos analisar. A essência é na verdade a primeira coisa que
conhecemos.
Quem se deixa influenciar por ideias materialistas e dá primazia à análise crítica, a
primeira coisa que lhe acontece é um corte com a percepção do mundo real, seguindo
o processo cognitivo por um caminho independente. A pessoa perde a capacidade de
examinar a experiência real e acha que tudo são aparências e que não é possível ter
mais do que opiniões. Este é um processo incentivado pelo sistema escolar, que faz o
indivíduo perder confiança na sua inteligência. Daqui emerge o relativismo e a
proclamação de que não existem verdades absolutas, sendo tudo relativo. Mas as
opiniões dos relativistas são sagradas para este e ficam furiosos se as questionamos.
Este é o raciocínio dominante hoje em dia em todas as discussões públicas, a abolição
da possibilidade de conhecimento objectivo e a instauração de autoridades absolutas
ditadas pelo professor ou pelo grupo. É este o resultado do Iluminismo que,
proclamando a primazia da razão, acabou por instaurar a mais dogmática e
inquestionável das autoridades, que sacralizou a opinião dominante tornando-a opaca a
qualquer exame racional e questioná-la é tomado como sintoma de doença mental.
Esta é uma destruição da inteligência humana que pode ser irreversível e que configura
uma crise de dimensões antropológicas.
A descoberta colectiva é impossível; é sempre uma descoberta individual de alguém
que percebeu algo que os outros não percebiam. Esta capacidade de diferenciação está
sendo negada porque há uma terrível pressão sobre quem quer que se atreva a
contestar a opinião dominante, o que leva as pessoas a temerem a loucura se pensarem
de forma diferente. A mídia tem o terrível poder de associar um nome a uma coisa
ridícula, onde a repetição é constante mas a discussão é mínima. Numa época em que
tudo é feito em segredo, em que o segredo é oficial e tentar furá-lo chega a ser
considerado crime em algumas sociedades democráticas ocidentais, o rótulo “teoria da
conspiração” adquiriu uma conotação ridícula. Especular sobre os factos escondidos é
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essencial para compreender alguma coisa, mas ao fazê-lo somos logo tomados como
loucos que acreditam em “teorias da conspiração”.
Vivemos hoje no império da opinião, sem as mínimas condições para compreender e
investigar as coisas e rapidamente as pessoas vão mesmo desistir de vez de tentar saber
o que está acontecendo. Então, as pessoas irão substituir a atitude de submissão aos
mistérios de Deus pela submissão aos ditames de instituições como a Reserva Federal
Americana. Esta abdicação geral de capacidades e de direitos fundamentais configura
uma crise antropológica. Elites globalistas tentam controlar o mundo mas fazem-no
mentindo uns aos outros, pelo que é uma política oculta até de si mesma.

O antídoto para a doença


A formação que se pretende dar no COF é a que fará de nós uns pequenos pontos de
luz que servirão para orientar os outros na escuridão, algo que até os próprios
fabricadores de obscuridade necessitam. Não é por orgulho, mas não podemos nos
deixar guiar por mais ninguém porque o número de pessoas sinceras é mínimo, e
mesmo escutando pessoas sinceras temos de verificar se o que dizem bate com a nossa
experiência.
O modelo da nossa civilização é o Cristo sozinho na cruz, achando que até Deus pai o
tinha abandonado. Sem esta capacidade de ficar absolutamente sozinho até deixamos
de ver o amparo que realmente nunca se extingue, não é possível desenvolver a
coragem intelectual, que é algo mais importante que o volume de conhecimentos
obtido. A erudição é uma coisa fácil e rápida de obter se permanecermos próximos da
fonte de onde tudo brota, que é aquilo que está vivo e é real em nós. Isso vai nos
obrigar a largar muitas auto-imagens, sabendo que o centro da nossa consciência tem
algo que não é para ser conhecido mas para ser realizado. Cada um de nós tem o dever
de fazer florescer a sua inteligência sem medo de descobrir a verdade. Não nos é dada
aqui uma verdade pronta mas apenas algumas dicas sobre como alcançá-la. Não vamos
ter medo de errar, porque isso já é um medo da verdade, alertava Hegel. À nossa volta
há pessoas loucas que se encerraram na mentira e querem impedir todos os outros de
descobrir a verdade, acusando-os de loucura.
Temos de nos preocupar com o nosso nível moral porque só podemos apresentar
algum trabalho de valia ao público se já tivermos esclarecido as nossas relações com
as pessoas em redor. Temos de procurar a transparência para com nós mesmos, algo
que nunca dá para obter integralmente. Temos de nos conformar a uma consciência
cíclica, com altos e baixos, mas nunca nos podemos conformar com um estado de
mentira confortável. Todas as verdades exteriores que descobrirmos serão falsas
enquanto não aceitarmos a verdade sobre nós mesmos. Perceberemos, então, que
nunca teremos uma perfeição quantitativa total e que Deus apenas espera de nós um
equilíbrio entre vícios e virtudes, onde o que importa é o conjunto. Os vícios são feitos
da mesma matéria das virtudes, dizia Santo Agostinho, o que quer dizer que ao invés
de tentarmos obter uma perfeição quantitativa, a partir de uma lista de pecados, temos
antes de usar os pecados para melhorar o conjunto, meditando sobre as situações. O
pecado não nos deve dar remorso mas sim um pouco de alegria porque, depois de
confessado, Deus nos perdoará, o que quer dizer que nos completará mais um pouco os
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dons que nos deu incompletos. Sem esta transferência de controlo para Deus nunca
teremos auto-controlo.
As atitudes fundamentais que temos em relação à vida irão converter-se depois
naturalmente em técnicas filosóficas, que não são mais do que artifícios para nos
mantermos próximos da nossa consciência e não deixarmos que os conceitos se
“coisifiquem”. O estado de confissão permanente é condição indispensável para o
exercício da técnica filosófica.
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Aula 22 – 05/09/2009

Sinopse: A actividade pública dos alunos do COF só deve começar daqui a 5 ou 6


anos, quando já existir uma opinião diferenciada pelo peso da obra intelectual
realizada ou em realização, pois só assim é possível produzir algo que se sobreponha
ao material em circulação dos indigentes que destruíram a cultura superior.
Precisamos conhecer alguns elementos fundamentais do ambiente histórico e cultural
onde nos inserimos, sendo abordados nesta aula factores que pesam sobre o ambiente
mundial. Esses factores chegam a ser atemorizantes, mas não se pretende constranger
ninguém mas sim mapear o terreno para poder traçar estratégias de acção. A
situação actual é definida pela existência de uma elite mundial internacional que
trabalha para a construção de um governo mundial, onde a grandes banqueiros se
juntam intelectuais, escritores, historiadores, cientistas, etc., que concebem planos de
uma complexidade e nível intelectual tais que os tornam inapreensíveis para o
cidadão comum. O movimento globalista engloba o movimento marxista e para
propor algo mais defensável é preciso enxergar pelo menos o mesmo que os grandes
historiadores partidários deste movimento, como Carrol Quigley e Arnold Toynbee,
enxergaram. O movimento globalista começou com o reconhecimento de um processo
de integração mundial em curso, que depois passou a ser um processo voluntário e
planeado. Os dirigentes do movimento globalista não agem para obter dinheiro mas
poder. Uma análise séria ao fenómeno do poder tem de partir da premissa da
existência de diferença de poder entre os indivíduos da espécie humana, que não é
algo acidental mas estrutural, causando uma concomitante diferenciação no horizonte
de consciência temporal dos indivíduos. A ideologia científica moderna desempenha
um papel substancial nos esforços da nova ordem mundial, prometendo a realização
das promessas bíblicas por vias inversas, onde se preconiza a espiritualização da
matéria através da acção da ciência. A ciência assume-se como a autoridade suprema
sobre todos os domínios humanos, mas ela possui uma linguagem que só pode ser
entendida completamente pelos próprios cientistas, pelo que o maior controlo do
homem sobre a natureza conduz a um maior controlo de que quem domina a
linguagem científica sobre quem não a domina. A ciência moderna pretende controlar
o futuro e ordenar a natureza, mas a actividade intelectual proficiente repousa no
senso de ordem que a própria natureza possui, misturada com um certo nível de caos,
que são englobados pela ordem eterna revelada pelos milagres.

A situação mundial actual


A situação mundial actual é definida pela existência de uma elite mundial
internacional, muito rica e poderosa, que integrou as suas actividades e trabalha em
prol de um plano unificado de governo mundial. Já no século XII ou XIII os
banqueiros internacionais associavam-se para pressionar os governos e levá-los ao
endividamento, controlando-os assim. A novidade neste elemento é a proporção e
extensão tomada, não havendo nação que escape a este processo, e também a inclusão,
a partir de meados do século XIX, de intelectuais, escritores e cientistas a trabalhar
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para este projecto. Esta elite financeira está por trás de quase todos os projectos
políticos de alcance mundial ocorridos no século XX, ainda que nenhum deles traduza
os objectivos e planos desta elite exactamente. Não se trata isto de uma mão oculta ou
de um poder secreto, estando tudo muito bem documentado. O processo torna-se
inapreensível para o cidadão comum devido à complexidade dos planos e ao altíssimo
nível intelectual das discussões envolvidas.
Quase toda a bibliografia produzida a este respeito veio de pessoas que estão dentro
deste esquema de nova ordem mundial (Carrol Quigley, Arnold Toynbee, H. G. Wells,
Aldous Huxley, etc.) ou então de pessoal militante que se escandaliza com a situação e
faz denúncias. Alguns desses movimentos de denúncia são criação da própria elite,
como os protestos marxista contra a globalização, ou então são movimentos anteriores
que reagem apenas de acordo com a sua orientação, não tendo a amplitude de visão
necessária para compreender o processo. Para obter esta compreensão precisamos de
formação intelectual que nos permita compreender o processo desde fora, sem estar
comprometido com o movimento nem ter necessariamente uma atitude militante
contra, adquirindo assim a escala certa e a perspectiva adequada. A mídia esquerdista
vê o processo apenas numa escala micro e não percebe quando, em outra escala macro,
o acontecimento micro é absorvido e desmentido, como acontece com os protestos de
Joseph Bové contra a multinacional Monsanto, que é, por sua vez, um dos pilares da
nova ordem mundial patrocinada pela ONU.
O intelectual sério tem, pelo contrário, de avaliar a situação face a uma escala de
valores mais permanentes, saber o significado dos acontecimentos dentro da História
humana até onde a podemos enxergar, não sendo necessário para isso conceber uma
unidade integral da História.
Não podemos conceber o movimento globalista à luz do movimento socialista, porque
se dá precisamente o inverso; é o movimento socialista que faz parte do movimento
globalista, foi por ele criado e desempenha ali uma função. Precisamos, então, de uma
perspectiva mais ampla e, pelo menos, enxergar o mesmo que os grandes historiadores
do movimento globalista enxergaram, em especial Carrol Quigley e Arnold Toynbee.
Sem estudar as obras deles e perceber os princípios de interpretação e avaliação que
eles usam, não podemos ambicionar a produzir algo que seja mais defensável que as
suas propostas.

A génese da globalização
No livro Main Springs of Civilization, Ellsworth Huntington realça algumas constantes
da História, e ele menciona o crescimento das populações e o maior contacto entre
culturas, o que provocou um processo de integração em que as culturas menores são
absorvidas pelas maiores. Mas tão logo este processo tornou-se consciente, ele tornou-
se voluntário e planeado nas mãos de uma elite altamente qualificada e com meios
para isso. O movimento de globalização é, então, a tentativa de conduzir por meios
deliberados o processo de integração que já vinha ocorrendo, tendo por base a crença
de que a História dirige-se no sentido de uma maior controlo da natureza pelo homem
e também no sentido da maior concentração de poder. É inevitável que todas as
correntes dentro do movimento de globalização tenham alguma visão de futuro
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associada, onde está sempre presente o maior controlo sobre a natureza. Mas sobre isto
existe a crença de que este controlo pode, por sua vez, ser controlado e daí emergiu a
ideia do controlo total do processo histórico.
Todos os movimentos políticos em actuação não possuem os meios para lidar com um
fenómenos como a globalização, que necessita de uma escala mais global. Cada
movimento só vê aquela parte que corresponde à sua escala de prioridades. Os
marxistas analisam a globalização à luz de um processo de crescimento capitalista que
se opõe aos movimentos populares e aos direitos humanos. Eles mesmos não têm a
visão suficientemente ampla para perceber o papel que desempenham na globalização.
Por outro lado, a postura dos liberais clássicos em relação à globalização é ambígua.
Se a ideia de um planeamento central lhes causa natural repulsa, eles acabam por ser
favoráveis ao livre mercado internacional, porque só o analisam em termos
económicos e não como o fenómeno geral que ele é, tendo outras vertentes jurídicas e
geopolíticas, por exemplo. Dessa forma, acabam por favorecer uma transferência de
soberania dos governos nacionais para organismos internacionais e, assim, a criação de
um grande Leviatã inerente à existência de um comércio internacional.

A natureza do poder
Não podemos ver um fenómeno como a globalização como sendo motivado pelo
objectivo de obter ganhar dinheiro porque as pessoas envolvidas já têm todo o dinheiro
que querem e, ainda mais relevante, controlam o poder do dinheiro. Trata-se de uma
questão de poder, de uma vontade que se sobrepõe às outras. Mas não podemos
analisar o fenómeno do poder sem estabelecer uma premissa que tem sido ignorada
por toda a ciência política contemporânea ou tida como uma anormalidade. Essa
premissa afirma que a diferença de poder entre os seres humanos é uma das
características mais constantes e estruturais da presença humana no cosmos. Em
nenhuma outra espécie animal a diferença de poder entre indivíduos varia tanto como
no ser humano, que pode chegar à diferença entre o tudo e o nada. Além disso, a
diferença de poder entre indivíduos tem vindo a aumentar ao longo da História, como
relatou Bertrand de Jouvenel no livro Du Pouvoir. No século XX, Mao ou Stalin
podiam decidir a vida de milhões de pessoas com um golpe de caneta sem haver ali
qualquer discussão ou oposição. Mesmos os empreendimentos criados para diminuir o
poder dos governos sobre os cidadãos acabaram por aumentar a diferença de poder
porque sempre alimentaram o crescimento do Estado.
A diferenciação de poder acarreta inevitavelmente uma diferenciação do horizonte de
consciência temporal. Quem tem o poder possui uma capacidade de previsão muito
superior aos outros, que frequentemente ignoram totalmente o que está sendo planeado
para eles. A diferenciação do horizonte temporal também foi algo que aumentou ao
longo dos tempos, em especial a partir do século XIX. No limite temos o marxismo
que já tem uma ideia de um destino final a ser alcançado inevitavelmente, e então eles
sentem-se no direito de convocar todas as pessoas a trabalhar para esse fim, onde se
prevê a total colectivização dos meios de produção e a abolição do Estado porque este
se torna desnecessário porque tudo é Estado.
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A ciência moderna como paradigma da salvação


A ideia do controlo da natureza pelo “homem” e do controlo das condições que
determinam a vida humana apareceu imbricada na concepção da ciência moderna,
ainda antes dos movimentos ideológicos modernos. Quando a ciência prometia o
controlo do ambiente físico, na prática isso implicava o aumento do poder de uns
homens sobre outros. Da década de 30 do século XX as utopias científicas e marxista
fundem-se e entram num processo de identificação, que é exemplificado nas palavras
J. D. Bernal:

Na prática da ciência já temos o protótipo para toda a acção humana. Os


métodos pelos quais esta tarefa é realizada, por mais imperfeita que seja
a sua realização, são os métodos pelos quais a humanidade mais
provavelmente assegurará o seu próprio futuro. No seu esforço a ciência
é comunismo.

No mesmo sentido, C. H. Waddington avançou:

A ciência por si mesma é capaz de fornecer à humanidade um modo de


vida que é, em primeiro lugar, auto-consistente e harmonioso e, em
segundo lugar, livre para o exercício daquela razão objectiva da qual
depende o nosso progresso material. Até onde posso entender, a atitude
científica da mente é a única que no presente é adequada a esses dois
objectivos.

O que ele quer dizer é que a ciência não deve apenas estender-se apenas a todos os
domínios da acção humana como é a única forma de fazer a articulações das acções
humanas com vista a obter um modo de vida que seja harmonioso, auto-consciente e
racional. Daqui foi um passo para se considerar que a ciência deve arbitrar as
discussões públicas, como veio a ocorrer no século XX. A base da responsabilidade
intelectual passou a ser personificada pela mentalidade científica e quando se
concebem outras atitudes baseadas na religião, na estética, na tradição, nas
preferências pessoais, etc., sempre estas ficam submetidas à aprovação da ciência,
porque se considera que a ciência tem o controlo racional do processo cognitivo ao
passo que os outros controlos são “irracionais”. A ciência transforma-se não só no
grande árbitro das discussões públicas e assim é a provedora dos valores morais,
culturais, religiosos, etc.
À medida que a ciência se especializa, o seu conteúdo deixa de ser comunicável em
termos de linguagem geral, como acontece na física, onde muita coisa só se expressa
matematicamente. Então, a elite científica possui um conhecimento incomunicável
para a restante humanidade e é em nome desse conhecimento que pretende arbitrar as
discussões públicas. Acaba por ser uma autoridade que não é de ordem racional já que
pretende presidir a todas questões culturais, às finalidades da vida e a uma selecção de
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 13

valores mas que não se consegue pronunciar nos termos destes valores gerais. Richard
Dawkins, Stephen J. Gould, Stephen Hawkins, o que fazem é traduzir para a
linguagem geral da cultura superior as ideias e conceitos da ciência teoricamente
intraduzíveis. Ao longo do século XX tornou-se uma constante a tentativa de legislar
em nome do incomunicável mas como se este fosse comunicável.
A elite financeira e a elite científica são forçadas a trabalhar juntas, porque a primeira
necessita da inspiração e planos delineados pela primeira, e a segunda das verbas da
primeira, que não são apenas estatais mas surgem também de fundações privadas.
Sobre o cidadão comum pesa, então, “todo o dinheiro do mundo” somado a “toda a
ciência do mundo”. Quando a estes se junta um movimento ideológico como o
marxismo obtemos as seguintes fantasias de John D. Barrow e Frank J. Tipler:

Toda a evolução do universo está feita para chegar a um ponto ómega.


[Como diz Teilhard de Chardin, numa linha do modernismo católico.] No
instante em que o ponto ómega for atingido, a vida terá conquistado o
controlo sobre toda a matéria e sobre todas as forças, não apenas num
universo singular mas em todos os universos cuja existência seja
logicamente possível. A vida [o ser humano] terá se expandido em todas
as regiões espaciais de todos os universos que possam logicamente
existir.

J. D. Bernal foi uma das fontes principais deste projecto, e em 1929 escreveu:

Uma vez aclimatado à vida no espaço, é improvável que o homem pare


até que ele tenha alcançado e colonizado a maior parte do universo
sideral. E é mesmo improvável que isso seja o fim. O homem, em última
análise, não ficará contente de ser um parasita das estrelas mas vai
invadi-las e organizá-las para os seus próprios propósitos. Não se deve
permitir que as estrelas continuem a viver à sua maneira antiga mas elas
têm de ser transformadas em eficientes produtores de energia. Pela
organização inteligente, a vida do universo poderia provavelmente ser
prolongada muitos milhões de vezes em relação àquilo que ela seria sem
organização.

Isto não é dito por um escritor de ficção científica mas por um cientista e milhares de
outros pensam como ele e propõem-se a enfrentar a segunda lei da termodinâmica que
diz que a produção de energia declina com a igualização das coisas.
Freeman Dyson, que considerava Bernal um pioneiro, conjectura no mesmo sentido:

Supondo-se que nós descubramos que o universo seja naturalmente


fechado e condenado ao colapso, é concebível que, por intervenção
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 14

inteligente, convertendo a matéria em radiação e fazendo a energia fluir


de maneira propositada em escala cósmica, possamos quebrar o universo
fechado e mudar a topologia do espaço-tempo?

John D. Barrow e Frank J. Tipler partem do princípio que a finalidade da vida humana
é impedir que o universo termine:

Se a vida inteligente estivesse já em operação em escala cósmica, antes


que os buracos negros se aproximassem do seu estado explosivo, esses
seres poderiam intervir para impedir que os buracos negros explodissem.

De forma ainda mais delirante por Paul Davies:

Nós somos convocados a examinar como a vida inteligente pode ser apta
a guiar o desenvolvimento físico do universo para os nossos próprios
propósitos e possamos conseguir obter sucesso e moldar o universo.
Podemos mesmo ser aptos a manipular as dimensões do espaço criando
bizarros universos artificiais com propriedades inimagináveis e então
seremos realmente senhores do universo.

Mary Midgley, que escreveu o livro Science as Salvation (*) de onde são retiradas as
citações apresentadas nesta aula, comenta:

(*) O livro pode ser lido em:


http://www.giffordlectures.org/Browse.asp?PubID=TPSASV&Cover=TRUE

Esta perspectiva tem naturalmente o seu preço. Para isso as pessoas


precisam de transferir a sua consciência desde corpos orgânicos para
máquinas. E então para matérias cada vez mais subtilizadas como poeira
estelar e talvez luz. De qualquer maneira, como explica Barrow: “Nessa
era os nossos corpos já terão sido deixados para trás há muito tempo.”

Não se coloca isto como hipótese de ficção científica mas como a decorrência lógica
do tipo de humanidade existente hoje. Freeman Dyson esclarece melhor o futuro que
se pretende para a humanidade:

É concebível que em 10 elevado a 10 anos, a vida poderia se desenvolver


Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 15

para longe da carne e do sangue e tornar-se incorporada num bloco de


nuvens inter-estelares [teoria também aceite por Fred Hoyle] ou num
computador senciente.

John B. Haldane:

Se é verdade, como ensinam as grandes religiões, que o indivíduo só


pode alcançar uma vida boa conformando-se a um plano maior que ele
próprio, é nosso dever perceber a magnitude desse plano, seja ele de
Deus ou do homem. Ou a mente humana provará que o seu destino é a
eternidade e a infinitude, ou chegará um tempo em que o homem e todas
as suas obras perecerão eternamente.

Enquanto o cristianismo fala de um sentido para a vida humana no presente, mesmo


que essa vida dure apenas alguns minutos pois a nossa vida tem um sentido eterno
porque nós não podemos viver fora da eternidade e a aquilo que aconteceu não pode ir
para o “nada”, Haldane faz depender esse sentido daquilo que a humanidade vier a
fazer no futuro, e um sentido apenas válido para quem viver esses tempos, onde os
homens serão anjos e deuses ao passo que agora somos todos bichinhos. Esta piada
macabra é vendida como um esquema de sentido da vida. Haldane concebe a
eternidade como algo temporal e a ser criado no futuro. Apesar de conceder
importância a um plano maior, para ele tanto faz ser um plano de Deus ou do homem,
o que nos coloca na mão de outro sujeito que também não é eterno. Ciência e
comunismo equivalem-se neste ponto, já que Trotsky e Marx também achavam que no
mundo comunista o varredor de rua seria, consoante a hora do dia, um Aristóteles, um
Miguel Ângelo ou um Napoleão.
Esta ideia de que o universo existe para espiritualizar a humanidade, que o destino
desta é alcançar uma super-humanidade ou trans-humanidade através da libertação da
forma física passando a existência para uma poeira inter-estelar inteligente ou para um
computador senciente, está na mente de muitas pessoas que trabalham para formar um
governo mundial. Eles são materialistas mas pretendem transcender a matéria,
procurando assim cumprir as promessas bíblicas por vias inversas. Querem fabricar a
imortalidade e essa ideia inspira pesquisas de valor incalculável. Contudo, se o poder
intelectual não é pessoal e necessita de verbas para se materializar, a longo prazo vai
ser ele que formar a cabeça dos banqueiros.
A nossa vida intelectual vai iniciar-se neste ambiente onde reina a cultura da
modernidade científica que tenta estabelecer um novo clero que deve legislar sobre a
humanidade baseado num conhecimento intransmissível. Não se tratam de ideias
típicas de escritores de ficção científica, que utilizam imagens do futuro em geral
como metáforas de algo presente e não como previsões. Estas ideias, da ciência como
salvação, são pensadas por cientistas que se julgam profetas e orientam-se a partir
disso. Eles pensam controlar o futuro, mas esquecem a duração da vida humana e que
não estarão mais presentes, pelo que o auge do controlo significará um perfeito
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 16

descontrolo. E quando se fala que o ser humano controlará a natureza, cabe perguntar
quem exactamente fará isso. Uma vez que o conhecimento científico não pode ser
transposto para linguagem corrente, necessariamente serão aqueles com o domínio da
linguagem científica a ter o poder sobre os restantes. O controlo do homem sobre a
natureza é muito precário, mas o controlo de uns homens sobre outros é muito eficaz e
só aumentará com o anseio de controlar a natureza. Acresce ainda que a tentativa de
controlar o futuro, além de ser irresponsável por vir a exercer-se quando os
responsáveis pelo seu lançamento não estarão mais presentes, tem sobretudo uma
natureza de interferência com um efeito caótico e não ordenador.

A postura do intelectual
O nosso posicionamento na actual situação terá de ser considerado não apenas na sua
vertente intelectual mas também na vertente social. Todo o aparato universitário está
encaixado nesta nova ordem mundial, e é ela que determina as verbas e o prestígio
intelectual, mas não tem um poder absoluto e existem rombos imensos. Não podemos
ter a ilusão de podermos usar o aparato universitário com finalidades distintas daquelas
pelas quais este se orienta hoje. Devemos antes procurar uma vida intelectual
independente, criando novas formas de subsistência e desenvolvendo até os próprios
meios de divulgação. Isso implica uma grande coragem moral e física, e se nos
deixarmos impressionar pelo aparato universitário e mediático ficaremos burros na
mesma hora.
Em termos intelectuais, não vamos ceder a estas ilusões de ordem, com origem
científica e ideológica, mas nos conscientizar para a ordem real que existe no universo,
que coexiste com um certo nível de caos. Essa ordem não depende do ser humano, e
nem precisamos de a conhecer, basta saber que ela existe. Sabemos isso a partir da
experiência da presença do ser, e que é essa ordem que ordena a nossa mente e não é a
mente que ordena os dados do mundo exterior. A fidelidade a esta ordem vai revelar-
nos parcelas do ser na medida das nossas necessidades. É reconfortante a ordem do
real não depender de nós, e o nosso reconforto deve antes residir no senso da
eternidade do ser, pois o universo será rasgado como uma folha de papel sem que isso
altere a ordem do ser. A alternativa, conceber a nossa mente como ordenadora de um
universo caótico, é insana. Se nós fazemos parte desse universo caótico, como pode
essa parte ordenar o todo?
A relação do ser humano com a ordem universal só é verdadeira se for permeada de
confiança, paciência e modéstia. Contudo, há uma ambição psicótica e irrealizável de
obter o conhecimento total do universo, como acontece com Stephen Hawking, ou de
obter a resposta às questões sobre a finalidade da existência através da biologia, na
visão de Richard Dawkins. Eles desconhecem que a ignorância de partes da realidade
faz parte da estrutura da realidade. Quando estas pessoas não conseguem acompanhar
um raciocínio de S. Tomás de Aquino mas têm a pretensão de obter uma descrição
completa do universo ou saber qual é a finalidade da vida, elas revelam um nível de
barbarismo que não era aceite em outras épocas. A absolutização do espaço-tempo que
pretende realizar a comunidade científica é desmentida pela existência dos milagres. O
milagre mostra que a ordem do universo é apenas um aspecto da ordem do ser, que é a
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 17

própria eternidade. O milagre não é uma violação de leis naturais, que na realidade são
apenas generalizações parciais e temporárias feitas por cientistas, mas antes a presença
de leis eternas supra-universais.
A ideia da descrição completa do universo parte do esquecimento de que só o que
terminou ficou fechado, completo, já que apenas o infinito pode ser perfeito sem ter
fim, mas o finito não. Por isso, o diálogo com o real é incompleto, não só porque a
nossa mente é limitada mas porque a ordem do real é incompleta. Platão e Aristóteles
já sabiam que a ordem da realidade não é plana, tem vários níveis, e aquilo que parece
organizado numa escala será caótico noutra. A imperfeição da ordem real existente só
pode traduzir-se num conhecimento inadequado, pelo que a compreensão dessa ordem
tem ser feita através de analogias e recorrendo a figuras de linguagem, a que a própria
ciência não deixa de recorrer, por exemplo, quando fala em matéria, algo utilizado
como metáfora e que nunca ninguém conseguiu definir concretamente. Uma lei física
não é mais expressiva do que um verso de Camões, o cientista apenas se ilude de que
tudo o que diz ser literal e mais próximo da realidade porque não percebe que as
medições e os procedimentos matemáticos continuam a ter por base ainda uma figura
de linguagem. A passagem entre os vários discursos é fluida e problemática e não há
uma linguagem que se encaixe perfeitamente num dos quatro discursos. É inexacto
falar em “ciências” exactas porque elas só podem ser exactas nas suas medições,
incluindo a estimativa dos erros, mas não nos seus conceitos.
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Aula 23 – 12/09/2009

Sinopse: Esta aula é baseada em algumas passagens do livro L’imposture, de George


Bernanos, enviadas por Luciana Amato. Bernanos fala de um homem lírico, cujo
expoente máximo é Victor Hugo, que é incapaz de perceber a presença do ser e vê a
natureza apenas como eco das suas paixões. Também Karl Marx via a natureza como
cenário da acção humana e fornecedora de matéria-prima para a indústria e, apesar
de colocar a História como centro de tudo, considerava-se um materialista objectivo.
Noutra passagem, Bernanos fala da fragilidade da auto-imagem, algo criado para
responder a necessidades sociais e que apaga com frequência a noção intuitiva que as
pessoas têm de si mesmas. O conhecimento do coração, aquele que provém da nossa
parte mais substancial, fica assim abafado. O homem passa a viver abaixo do
potencial da sua espécie e torna-se incapaz de viver a tensão entre a sua pequenez
física e a sua capacidade de experimentar a presença do ser. Todo o conhecimento
provém, em primeira mão, dessa experiência, mas como podemos fazer apreensões a
partir de registos e o conhecimento se consolida em nós através do pensamento e da
imaginação, podemos nos iludir que o universo é composto de objectos de pensamento
e imaginação, e entramos assim no delírio de omnipotência. O verdadeiro
conhecimento é, pelo contrário, uma abertura para o desconhecido e para o
incontrolável que existe na coisa conhecida, pois só assim as coisas podem ter uma
existência real não restringida ao nosso pensamento. A abertura que temos para as
várias dimensões do ser deve-se em larga medida a experiências do ser que outras
pessoas tiveram e nos alertaram para elas. Isto faz parte da nossa experiência do ser
e não pode ser concebido dentro de um universo puramente físico, que não é o
universo real onde vivemos mas uma abstracção. A imensidão do cosmos provoca
espanto, que é o princípio do conhecimento, como dizia Aristóteles, mas se tentamos
resolver a tensão fundamental da nossa existência acabamos na ignorância. A
teologia católica foi a primeira ciência que apareceu e deu origem à ciência moderna,
mas nenhuma das outras ciências conseguiu alcançar o mesmo grau de organização,
solidez e coerência que esta.

Bernanos e a sua visão da civilização moderna


No livro L’imposture, de Georges Bernanos, existe um parágrafo praticamente
intraduzível:

Cada rua, atravessada no tumulto e no deslumbramento, tão logo


deixada vos segue na sombra com uma queixa horrível, pouco a pouco
ensurdecida até ao limite de um outro tumulto e de um outro
deslumbramento que logo junta a outra a sua voz dilacerante. E ainda,
não é essa palavra «voz» que eu deveria escrever, pois somente a
floresta, a colina, o fogo e a água têm vozes, falam uma linguagem. [As
ruas não têm voz, somente a floresta, a colina, o fogo e a água.] Nós
perdemos o segredo desta linguagem se bem que a lembrança de um
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 19

acordo augusto, da aliança inefável entre a inteligência e as coisas não


possa ser totalmente esquecida nem pelo mais vil dos homens. A voz que
nós já não compreendemos ainda é amiga, fraterna, apaziguadora,
serena. O homem lírico, no grau mais baixo da espécie [a criatura
moderna que está no grau mais baixo da espécie], que o mundo moderno
honrou como um deus, acreditaria risivelmente tê-la restituído [ter
reconquistado esta linguagem das florestas], não tendo libertado a
natureza dos silvanos, das dríades e das ninfas fora de moda se não para
soltar aí o seu rebanho inteiro fora das suas mornas sensualidades. O
mais forte dentre eles [referência a Victor Hugo], já estrangulado pela
velhice, preencheria as ruas e as florestas com a sua infatigável
lubricidade. Atrás dele, a massa dos discípulos acorreu, como quem
come, à solidão sagrada, no sonho abjecto de associá-lo às suas
digestões, à sua melancolia, à sua decepção carnal. O contágio pouco a
pouco estendeu-se até aos antípodas. A ilha deserta recebeu as
confidências deles [dos homens líricos], testemunhou os seus amores,
retiniu com os seus grotescos soluços ante a velhice e a morte. Nenhuma
pradaria [há], resplendente de luz e de orvalho no candor da aurora,
onde você não encontre os traços deles como papéis sórdidos grudados
nos postes numa segunda-feira de manhã.
Todavia, se está no homem impor a sua presença e os signos da sua
baixeza à natureza, nem por isso ele se apodera do ritmo interior dela, da
sua profunda ruminação. Ele encobre a voz dela mas a interroga em vão
(…)

O original pode ser lido no seguinte endereço, página 22:


http://www.4shared.com/file/118844032/6f497bbf/Bernanos_Imposture.html
Este parágrafo resume toda uma História da civilização moderna, personificada pelo
homem lírico, que é aquele poeta romântico que, incapaz de perceber a natureza como
presença do ser, vê nela apenas um eco para as suas paixões. Victor Hugo é o expoente
máximo desta corrente que vê o mundo inteiro como um megafone para as suas
tristezas carnais, por mais banais e idiotas que estas sejam. É como se o mundo
material tivesse sido suprimido, sobrevivendo apenas como cenário para as paixões
humanas.
Na época de Victor Hugo, Karl Marx tinha uma visão da natureza que a fazia apenas
como matéria-prima da acção humana, tanto histórica como para ser usada na
indústria. Este é o paroxismo do subjectivismo moderno, em que o sujeito se diz
materialista e objectivo, mas depois encara-se a si mesmo como se fosse Deus e acha
que a natureza é uma função da acção humana, quando o ser humano tem uma
influência no universo quase nula. O culminar disto é o princípio antrópico que diz que
o universo foi construído tendo o homem como fim, porque nós só somos como somos
devido ao universo ter a estrutura que tem. Esta é uma conclusão que coincide com o
que diz a Bíblia, mas como agora se exclui Deus, então o homem não é apenas o fim
da criação mas também o seu princípio, como se o universo tivesse apenas uma
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 20

existência potencial até o advento do homem, que depois cria o universo


retroactivamente. Aqui temos o princípio da inversão moderna, inclusive a inversão
revolucionária, a mesma loucura de Victor Hugo em colocar as próprias paixões como
centro da realidade e tudo o resto é um cenário que serve esse propósito.
O homem moderno fica aterrorizado quando percebe a sua pequenez dentro do
conjunto do universo, algo que toda a humanidade anterior encarava com normalidade,
porque perdeu a consciência da presença do ser e já não tem Deus como mediador
entre si, um infinitésimo, e o universo ilimitado, apesar de não infinito. Com o pavor
que isso provoca, tentamos suprimir a presença do universo, tomando-o apenas como
fornecedor de matéria-prima e cenário histórico, donde a História passa a ser o centro
de todas as coisas, mesmo que a sua unidade exista apenas na cabeça do historiador ou
então face a Deus.

A fragilidade da auto-imagem
Do mesmo livro de Bernanos citado acima, encontramos na página 14:

– Meu amigo – disse o abade de Cénabre de repente –, como você se vê?


– Como me vejo? – Suspirou o senhor Pernichon. – Eu não compreendo
verdadeiramente. Eu não sei muito bem.
– Escute – voltou o abade com doçura –, esta questão pode surpreendê-lo
tal a sua simplicidade. Cada um tem um julgamento sobre a sua própria
pessoa, mas nisso entra pouca sinceridade quer você queira ou não. É
uma imagem retocada cem vezes, um compromisso. Pois observar é uma
operação dupla ou tripla do espírito, ao passo que ver é um acto simples.
O que lhe peço é que abra os olhos com ingenuidade e que você se
apreenda com o olhar entre homens, que você se surpreenda tal como
você é no próprio curso de realização da vida.

A maior parte das pessoas não tem uma noção intuitiva de si mesmas, têm apenas
opiniões ou uma auto-imagem que pensam que a sociedade valoriza. Então a
comunicação passa a ser entre imagens e não entre pessoas. Não é possível apreender
um ser humano na sua totalidade com o pensamento. Dessa forma só obtemos um
esquema muito incompleto, mas ainda assim nós conhecemos pessoas. Quanto mais a
pessoa se conhece a si mesma, menos ela pensa em si, encarando-se como uma tensão
que vai em direcção a alguma coisa, e isso advém da experiência da presença do ser e
de se estar diante do ser.
Existe um grande descompasso entre aquilo que somos e aquilo que pensamos que
somos, essencialmente por três razões. A primeira razão é inerente às próprias
limitações do nosso pensamento. O pensamento que temos sobre nós, se quer ser algo
mais do que o autoconhecimento mudo inerente à própria existência, vai ter de recorrer
a elementos externos, o que inclui imagens do já vimos, que usamos depois como
analogias em relação a nós. Usamos também elementos da linguagem. A partir daqui
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 21

obtemos um dicionário imaginário com o qual construímos uma imagem nossa que
visa não traduzir aquilo que somos e que apreendemos de forma muda mas antes
aquilo que os outros pensam sobre nós, não deixando de ter em vista aquilo que
pensamos sobre os outros. Dada a complexidade da operação, ela não pode deixar de
ser imperfeita.
A segunda razão prende-se também com as limitações do pensamento, agora do ponto
de vista da sua descontinuidade e evanescência. O pensamento tem uma natureza
fragmentária pouco adaptada a captar a nossa existência que se desenrola em
permanência, sem interrupções, conforme uma estrutura análoga a um algoritmo que já
comporta todas as nossas possíveis alterações futuras. Uma terceira razão diz respeito
ao carácter social de aprendizagem da linguagem. Pesa em nós uma necessidade de
adaptação social e facilmente cedemos às exigências daqui inerentes, canalizando a
linguagem para este fim e não para expressar o nosso ser efectivo. A convivência
social exige que tenhamos uma auto-imagem, que é composta de uma mescla de
elementos vindos de várias proveniências e que frequentemente compõem um
conjunto falso.
O conhecimento que possui a nossa parte substantiva, o que na simbologia antiga era
conhecido como o conhecimento do coração, vai sempre existir e há uma arte milenar
desenvolvida por sábios, poetas, santos, filósofos, etc., que visa ligar este
conhecimento ao nosso conhecimento racional, para que o “coração fale” e aquilo que
realmente somos adquira uma linguagem.

A experiência da presença do ser é própria do ser humano


A voz do coração exprime uma substância que é basicamente a mesma para todas as
pessoas. Mas essa voz ficará silenciada com o falatório do mundo, entendido como
inimigo da alma, como diz a Bíblia, que para além de enredar as pessoas em
banalidades, coloca em segundo plano a identificação entre as substâncias das várias
pessoas e revela, através do aprendizado, diferenciações linguísticas, étnicas, de
classes sociais, etc. Perdendo a voz do coração, perdemos também o senso da presença
do ser, ficando até desadaptados da estrutura física do mundo real, que também é uma
componente da estrutura do ser. Perdemos o senso da dimensão e não percebemos o
paradoxo entre a pequenez da nossa dimensão física e a possibilidade de nos
comunicarmos directamente com a presença do ser. Só o ser humano pode realizar
isto, algo que a genética não pode explicar por diferenciação em relação a outros
animais, porque esta não capta o infinito mas nós podemos fazê-lo. Para outros
animais existe apenas o mundo em torno delas, mas nós temos o senso de todo o
universo.
Qualquer ciência pode apenas estudar aspectos, não está habilitada para fazer uma
comparação entre o homem e outro animal. Cada ciência apenas estuda alguns
fenómenos (objecto material, na terminologia escolástica), enfocando-os sob
determinado aspecto (objecto formal) com o fim de responder a certas perguntas
(objecto formal terminativo). Isto devia ser ensinado ao estudante de biologia na
primeira semana.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 22

O homem é o único animal que consegue sobreviver abaixo da capacidade da sua


espécie, daqui se originando uma sub-humanidade que tem que ser carregada às costas
pelos outros e que pretende ter todos os privilégios mas nenhumas das
responsabilidades inerentes à condição humana. Faz parte do potencial do homem a
apreensão da tensão entre a sua pequenez física e a capacidade de testemunhar o
tamanho do universo, não sendo isto a confirmação do princípio antrópico, porque
somos nós que precisamos de saber algo do universo e não o contrário. Pergunta o
salmo: “O que é o homem para que Deus preste atenção nele?” Aqui se expressa a
verdadeira dimensão do ser humano, do homem que não é nada e consegue dizer
“tudo”, e que é capaz de ter a experiência da presença do ser. Quando as pessoas se
afastam disto e vivem apenas em função das necessidades de adaptação social, resta-
lhes uma existência num delírio colectivo, com personalidades fabricadas a partir de
modelos dados por partidos, ideologias e pela cultura de massas que lhes fornecem
valores e reacções padronizadas; e se daqui resulta a ilusão de integração, nada mais é
do que a sombra de uma verdadeira existência, onde as pessoas não têm consciência de
nada mas têm medo de tudo.

O conhecimento e a presença do ser


Todo o conhecimento, mesmo o conhecimento a respeito de outra pessoa, depende da
presença do ser. A forma mais directa de chegar a essa presença é através do «canal do
coração». O esforço que foi feito em termos de cultura, religião, filosofia, etc., ao
longo dos tempos pretendeu traduzir essa apreensão mais directa que nos conduz a um
manancial inesgotável de conhecimento. O conhecimento é uma tradução para a
linguagem humana dos objectos reais, mas depois disso é possível obter conhecimento
indirecto a partir dos registos, que ajudam a chegar aos objectos reais mas nunca
podemos esquecer que estes contêm sempre mais informação do que aquilo que todas
as ciências possam reunir alguma vez. O universo objectivo transcende em muito o
universo físico, incluindo o mundo espiritual e as hierarquias de anjos e demónios.
Como o conhecimento se consolida em nós através do pensamento e da imaginação,
nós podemos achar que o universo é composto de objectos de pensamento imaginação,
quando estes objectos nunca poderiam existir se não tivéssemos acesso directo à
presença do ser. Se não fosse assim teríamos de criar o ser, incluindo as pessoas com
quem interagimos, o que é uma perspectiva subjectivista inaceitável mas que a
filosofia ocidental perdeu três séculos debatendo-a. Um pensamento verbal nosso nem
sequer é totalmente criado por nós porque vai se servir de elementos vindos de fora.
Apenas podemos conhecer alguém mediante a convivência da nossa presença real face
à presença real do outro. Nessa presença está um aglomerado de forças, tensões,
poderes, etc., inesgotável e que nenhum pensamento pode reter a não ser uma ínfima
fracção. Mesmo em relação a alguém que nunca vimos, ainda que seja uma
personagem histórica como Napoleão, só é possível conhecê-lo desta forma, sempre
com a noção da existência de um conjunto ilimitado de elementos naquela pessoa a
mais do que aquilo que nos foi oferecido nos registos. Conhecer uma pessoa é
justamente esta abertura para o desconhecido nela, que permite que exista um espaço
em nós onde o outro exista como criatura real que não esteja totalmente restringida ao
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 23

nosso pensamento. Se fecharmos o outro dentro do nosso esquema de pensamento,


vamos bloquear qualquer informação que venha dele e passa a ser uma convivência
entre fantasmas que se temem e se vêm forçados a usar esquemas de domínio para
evitar olhares e perguntas comprometedoras.
Em geral, a apreensão da presença do ser é a apreensão do desconhecido e do
incontrolável, sobre o qual não temos qualquer poder. O desconhecido não é
necessariamente hostil a nós, contém elementos conflituantes que constituem uma
tensão. Se fugirmos a essa tensão para nos protegermos, vamos apenas aprender a
mentir melhor e a dar ares de quem sabe tudo. Mas o resultado disso é um terror
existencial ainda maior porque impedimos o nosso coração de falar.
Mas se a experiência da presença do ser é acessível a cada ser humano, isso não quer
dizer que sozinhos vamos conseguir retirar dela todos os elementos e explorar as suas
várias dimensões. A riqueza que vamos retirar da experiência da presença do ser é em
grande medida devida aos alertas que recebemos de outras consciências e que nos
permitem focar outras dimensões que nos passariam despercebidas. Isso acontece
quando lemos Platão, Aristóteles, Dante ou São Tomás de Aquino, que nos abrem para
outras direcções do ser. A capacidade de apreender experiências que outras pessoas
tiveram do ser é algo que faz parte da própria experiência do ser, como mostrou Luis
Cencilho no livro Experiência profunda del ser.

O universo físico como abstracção


A experiência da articulação de consciências como elemento fundamental da
experiência da realidade é algo que não cabe dentro da concepção de um universo
físico. O universo de que fala a física não é o universo onde realmente existimos mas
um universo concebido por abstracção através de uma longa depuração de ideias,
depuração, essa sim, feita no universo real. A educação tornou-se numa forma de
bloquear a experiência do ser, anulando o conhecimento do coração e colocando em
seu lugar uma série de imagens e de discursos inventados com os quais as pessoas se
possam identificar e sentir que fazem parte de uma comunidade porque todos
partilham da mesma fantasia idiota. Quando se chega a este nível as pessoas ficam
mutiladas intelectualmente e ao ler Platão, Aristóteles, Hegel só conseguirão gerar
monstruosidades e por isso a vida intelectual não se pode iniciar sem reunir algumas
condições espirituais e anímicas.
Quando perdemos a ideia da morte e do infinito passamos a acreditar em cada coisa
que dizemos. As pessoas até podem acreditar que podem trocar de sexo, sem perceber
que podem apenas alterar a sua aparência exterior. Isso quer dizer que se passou a
confundir a realidade com um sonho onde tudo é virtualmente possível. Isto parte de
um erro mais profundo onde se entra na total desidentificação com o outro sexo e na
total identificação com o nosso, quando a própria condição sexual é tensional, o
homem tem sempre algo de feminino na sua alma ou não procuraria a mulher.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 24

Defesas contra a presença do ser


O senso da imensidão do cosmos provoca espanto, que pode dar origem a
conhecimento, como assinalou Aristóteles, mas também pode ser uma fonte de
ignorância quando a pessoa sente que tem uma cabeça demasiado pequena para uma
realidade tão grande e encerra-se na sua mediocridade, ou então enceta uma fuga para
o delírio de omnipotência com vista a obter o domínio racional sobre a realidade. O
sujeito faz isso para tentar resolver a tensão que compõe a existência humana, quando
ela não pode ser resolvida ou destruirá a própria vida. As seis doenças do espírito
contemporâneo, referidas por Constantin Noica, são seis estratégias de fuga da
presença do ser, precisamente aquelas que se tornaram mais comuns.

A teologia católica como primeira ciência


A teologia católica surgiu como uma forma de articular doutrinalmente o cristianismo
a partir de relatos dispersos, obrigando a um exame profundo dos textos e depois a um
esforço para encontrar ali uma coerência e uma hierarquia. As conclusões tinham de
ser provisórias e as questões analisadas sob vários ângulos. Foi a primeira vez que
apareceu uma ciência inteiramente organizada, auto-consciente e crítica. A teologia
católica é o modelo de ciência, não tendo nenhuma outra alcançado o mesmo grau de
organização interna, solidez e coerência. A teologia surgiu precisamente quando se
levantavam dúvidas sobre os acontecimentos relatados e todas foram respondidas
pelos teólogos, que praticavam uma dúvida metódica incomparavelmente superior ao
que Descartes fazia na prática. A ciência moderna originou-se a partir da teologia e
tenta seguir idealmente o processo de elaboração colectiva, que é continuado na
geração seguinte, sendo a própria sequência histórica o que mantém a coerência lógica,
mas nenhuma ciência consegue fazer isso tão bem quanto na teologia.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 25

Aula 24 – 19/09/2009

Sinopse: Esta aula coincide com a última do curso de “Conceitos Fundamentais da


Psicologia”, onde se fez um resumo do curso e se apresentaram algumas conclusões.
A primeira questão a ser avaliada é: o que é a psique? Não estando os psicólogos de
acordo com uma definição, ou até sobre a sua existência, há algo comum no modo
como encaram a psique e que permite identificá-la como uma força agente e, logo,
uma força causal. A psique é individual, estando ligada a uma única presença física, e
tem uma estrutura temporal. As causas psíquicas não podem ser reduzidas a outro
tipo de causas, não existindo também impulsos ou instintos incoercíveis. O único
método acessível à psicologia é o testemunho dialogal, já que para nos conhecermos
precisamos de outras pessoas que se incorporaram em nós, mas também só
conhecemos os outros através dos nossos sentimentos, memória, imaginação, etc. O
“eu” é uma síntese selectiva da psique correspondente à parte em que esta se
reconhece conscientemente. A psicologia, com base nas conclusões avançadas, é o
estudo da acção humana consciente. Aquilo que nos aparece como inconsciente,
impulso ou instinto é frequentemente o resultado de um processo de camuflagem
operado por processos de simbolização. O desenvolvimento da psique dá-se através
de um complexo sistema de assimilações e transformações do material exterior a ela.
A elaboração dos elementos pela psique dá-se através de funções psíquicas que não
necessitam de aprendizagem, à cabeça estando a memória e a imaginação, que são
mais ou menos a mesma função, diferenciando-se a memória por tentar criar imagens
fiéis à experiência original e a imaginação criando imagens que são, apenas,
possíveis de algum modo. A razão é uma busca da unidade subjectiva que simboliza a
unidade do ser, a partir da qual podemos construir um “mapa do mundo” que serve
para nos posicionar e orientar, e ela está sempre em tensão com o fluxo de
percepções, memórias e imaginação que enriquece a psique. O trauma da emergência
da razão surge do descompasso entre a nossa capacidade racional efectiva e aquela
que a situação nos exige por sermos seres racionais. A psique pode-se identificar com
a consciência desde que esta última seja vista não apenas como um foco de luz que
lança atenção sobre algo mas incluindo também aquilo que é iluminado. O horizonte
de consciência é o conjunto daquilo que é possível saber a cada momento e tem uma
relação topológica com o “eu”, porque é o conjunto de possibilidades do “eu” e por
isso transcende-o, mas ao mesmo tempo é uma função do “eu”. O amor ao próximo é
um requisito constitutivo da psique; tudo o que o bebé apreende é interpretado e
transformado pelo mundo humano. A experiência gnóstica decorre do temor que pode
ocorrer no confronto com a experiência da presença do ser, que evidencia o
desconhecido, e daí pode surgir a ideia salvadora de nos concebermos isolados do
ser. As doenças mentais resultam não de uma alteração das funções psíquicas mas da
sua diminuição. A meditação consiste no rastreamento de uma ideia até ao seu fundo
de realidade e não deve ser confundida com práticas que visam a concentração em
algo ou no “nada”.
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O que é a psique?
Olavo averiguou sobre o que é a psique sabendo de antemão que na psicologia não se
chegou a nenhum consenso sobre o seu significado, ao ponto de Jung considerar que
tudo é psique e B. F. Skinner achar que não existe psique alguma. Trata-se de um
desacordo teórico e não prático já que todos os psicólogos sabem localizar a psique e
oferecem um conjunto de testemunhos onde dizem algo a seu respeito e conseguem
distingui-la de outras coisas. Em todos os casos é o mesmo objecto que está em causa,
há algo de comum em todos os enfoques e que lhes está subentendido. Não é a busca
de um mínimo denominador comum que se pretende mas saber do quê realmente os
psicólogos estão falando através da reconstituição do objecto, não pelo conteúdo
específico do discurso mas pelo seu modo.
Podemos resumir a pergunta ao seguinte: Como podem todos os psicólogos localizar
aproximadamente a psique e distinguir a causa psíquica de qualquer outra?
Não existe um acordo em relação à definição mas todos os psicólogos encaram a
psique como a causa de alguma coisa. A causa psíquica nunca envolve uma
necessidade absoluta, como acontece numa necessidade de tipo lógico, que
encontramos na aritmética e também acontece em causas metafísicas, como o princípio
de identidade. Distintas ainda das causas psíquicas são as causas físicas, que são
determinações naturais, por vezes obedecendo a necessidades absolutas mas, na maior
parte, envolvendo necessidades probabilísticas, como acontece com muitas das
chamadas leis da natureza. A necessidade natural pura, como a necessidade de ingerir
alimento, não cria uma conduta psíquica.
Qualquer psicólogo sabe distinguir a causa psíquica de outro tipo de causas, mesmo se
não saiba defini-la, e o exercício da sua profissão exige isso. Até quando ele tenta
derivar a causa psíquica de outra causa, ele parte da identificação da causa psíquica, e
só depois, através do raciocínio, ele tenta fazer a redução a outros factores. A
identificação entre causa psíquica e outra causa não é, portanto, evidente, só pode ser
concebida como teoria, como o faz Skinner, tendo entrado em auto-contradição com o
behaviorismo. Quando existe outra causa de forma evidente, como numa infecção
bacteriológica, então é a própria causa psíquica que nem é colocada como hipótese.
A distinção prática que os psicólogos fazem da causa psíquica de outro tipo de causa
leva à identificação da psique como uma força agente e, por isso, uma força causal.

Características da psique
A primeira característica da psique é a sua individualidade e a sua ligação a apenas
uma presença física humana. Contudo, ninguém sabe como se relacionam corpo e
psique ou sequer se existe uma fronteira entre ambos. Esta não pode ser uma pergunta
fundadora da psicologia e teremos de deixar para mais tarde, se possível, nem é
necessário saber como se processa a relação entre corpo e psique para identificar numa
determinada conduta uma causa psíquica.
Uma segunda característica da psique é a sua historicidade. Uma causa psíquica exige
a presença de elementos do passado para se desenrolar, a começar pelo uso da
linguagem, mas não é determinada por estes. Tal como o passado está presente na
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estrutura da acção, sem a determinar, algum elemento de expectativa de futuro, remoto


ou imediato, também está sempre presente, mesmo no acto mais simples, como abrir
uma porta, onde esperamos existir algo do outro lado. A causa psíquica tem um certo
depósito do passado e uma expectativa de futuro, e no meio existe uma certa
mobilidade, onde o elemento de escolha se evidencia e ele é a própria causa psíquica.
A psique é aquilo que nos permite sermos sujeitos agentes, de sermos a causa
originária de alguma coisa. Não estamos aqui no plano metafísico do determinismo e
livre arbítrio. Poderíamos até, em última análise, remontar a causa psíquica ao sujeito e
este como tendo origem em Deus, mas para fins de observação científica isto não
altera nada.
A psique animal, ao contrário da psique humana, não é agente e sempre vai agir
probabilisticamente segundo pautas pré-determinadas, prolongando causas anteriores,
que podemos chamar de instintos, reflexos condicionados, etc.
Não é necessário colocar o elemento da liberdade na psique porque as características
da individualidade e da historicidade já bastam para resolver o problema. Também a
característica da irredutibilidade já está dada quando se identificou a causa psíquica
como distinta de qualquer outra.

Estrutura temporal da psique e os processos de assimilação e simbolização


Ao investigar a estrutura da historicidade da psique devemos começar por reconhecer
que a psique já está presente desde o nascimento e se desenvolve através de um
complexo sistema de assimilações e transformações do material exterior a ela, que
consiste em tudo o que não tem na sua origem uma causa psíquica. O corpo, apesar de
ser um pressuposto da actividade psíquica, é algo estranho à psique. Por isso a
curiosidade que os bebés recém nascidos têm com o seu próprio corpo, em especial
mão e pés que são mais fáceis de observar.
O corpo tem uma série de necessidades, precisa de ar, comida, de se mexer, mas estas
necessidades têm pesos psíquicos diferentes e nenhuma delas determina uma conduta,
sendo necessária a interferência de muitos outros factores, que serão simbolizados e
pensados para fazer surgir uma acção. As necessidades do corpo são de vária ordem,
desde a necessidade de respirar, que não pode ser adiada e é constante, até à
necessidade sexual, que pode ser adiada para sempre, passando pela necessidade de
alimento, que pode ser protelada por alguns dias. É da natureza da necessidade
respiratória ser compatível com todo o tipo de acções. O impulso da fome é uma coisa
simples, provoca algum desconforto, mas procurar comer é de uma complexidade de
outra ordem, obriga a uma coordenação de vários meios. A psique toma as
necessidades do corpo como sendo suas, mas também pode optar por se desidentificar
delas.
Imediatamente podemos tirar uma conclusão de grande importância em psicologia e
que contraria muito do que se tem dito sobre o ser humano. Não existem impulsos
incoercíveis no ser humano. Todas as necessidades corporais dependem da
simbolização que fizermos delas, e aí intervêm elementos de memória, onde as coisas
mais diversas podem aparecer sob uma figura única. Por exemplo, aquilo que aparece
simbolizado como desejo sexual pode juntar a necessidade de contacto corporal, o
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desejo de segurança, paz, o apelo da beleza, desejo de prestígio e assim por diante, e
quase todas estas coisas em si nada têm de sexual. O impulso natural é fraco, mas as
sucessivas camadas de símbolos que lhes acrescentamos vão criar uma constelação de
factores que ocupa a nossa mente de tal forma que iremos achar que não conseguimos
viver sem aquilo. Grande parte da psicologia do século XX insistiu na importância dos
instintos e impulsos na conduta humana, sem perceber a longa e complexa elaboração
simbólica ali presente e que precisa de toda uma série de elementos culturais,
linguísticos e de aprendizado. Mesmo a agressividade, que Konrad Lorenz dizia ser
um dos factores mais potentes da conduta humana, manifesta-se raramente mesmo nos
brigões, e em tempo de guerra os soldados pensam principalmente em auto-
preservação.
Também não é possível reduzir as causas psíquicas a coisas como emoção, sentimento
ou desejo. A emoção é uma reacção total psico-física a um estado de coisas tal como
interpretado no momento. E o sentimento é a reacção a uma informação. O sentimento
depende da imaginação e por si não provoca acção. O desejo, apesar de provocar
acção, também é construído pela imaginação.
Reconhecer que a psique é uma força agente em nós, fonte de causas, é reconhecer que
a psique é aquilo que nós somos. A própria existência da psicologia só é possível por
não ser possível reduzir a psique a outra coisa, mesmo que essa tentativa seja
compulsiva no ser humano, que sempre tentou descobrir fantasmas por detrás das suas
acções, não se querendo reconhecer como força agente.

Como observar a psique?


Fazer a observação behaviorista da psique não é possível porque não podemos
observar a psique desde fora, nem sequer podemos observar a psique dos outros sem
ser através da nossa psique. A pura introspecção também não é possível porque a
nossa psique está repleta de elementos culturais, como a linguagem, que não foram
inventados por nós e vieram de fora. A psicologia só pode efectivamente recorrer a um
método confessional, na forma de um testemunho confirmado por outros. Trata-se de
um método dialogal, o que se torna evidente se percebermos que tudo o que sabemos
sobre a nossa psique adveio da convivência humana. A psicologia tornará esta
convivência num processo sistemático e passível de análise racional. Não existe outro
método acessível, já que nem é possível observarmo-nos desde fora e a nossa
introspecção é parcial e sem autonomia. Nem sequer nos podemos conceber como
existentes se nunca supusemos que alguém pensou algo sobre nós. Nós conhecemo-
nos através do nosso reflexo nos outros e conhecemos os outros pelo reflexo deles em
nós. Apesar da psique ser individual e intransmissível, ela tem uma natureza dialogal
pois todos os elementos que a compõem são dialogais. O nosso testemunho não só tem
que ser confirmado por outros mas estes também são personagens do testemunho,
alguns com uma força simbólica enorme, como a nossa mãe. Conhecemos a nossa mãe
como força agente e não como mistura de natureza e cultura. A psique também
pressupõe a apreensão, absorção e conservação na memória de todos os objectos que
nos circundam. Em suma, a psique pressupõe a convivência humana num mundo real
entre seres capazes de gerar causas.
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O testemunho é fundamental na psicologia, mas qualquer ciência depende dele. Existe


o ideal de tornar a ciência impessoal e realizada apenas por processos mecânicos, mas
alguém teria de interpretar os resultados dados pela máquina e contar a outros. Aqui
voltamos a encontrar o testemunho, mas se eliminarmos este passo então temos uma
ciência que ninguém estudou ou conhece.

As relações entre a psique e o “eu”


A psique corresponde de certo modo àquilo que chamamos de “eu”, contudo o “eu”
não é a totalidade da psique mas apenas aquela parte que conhecemos a cada
momento, dependendo do nosso conhecimento auto-biográfico. O “eu” depende da
narrativa que fizemos para nós mesmos e de quantas etapas conseguimos incluir ali
reconhecendo-nos nelas. O “eu” é uma síntese selectiva da psique, correspondendo à
parte em que esta se reconhece conscientemente. A psique vai operar uma
organização, selecção e estruturação de si mesma para elaborar o “eu”, tendo por base
elementos de linguagem e de simbolização que é capaz de repetir. Por isso, não
existirá “eu” antes de obter estas faculdades, o que será por volta dos 5 anos, como
indicou Freud mas por outras razões. Existem outras coisas na psique mas que não
sabemos o que são e por isso não as chamamos de “eu”, e por isso é possível ao
bêbado agir estando “fora de si”.

Teoria geral de psicologia


Psicólogos do século XX como Freud, Jung ou Wilhelm Reich publicaram coisas
muito boas em termos de observação clínica, mas as suas teorias gerais carecem de
espírito analítico e filosófico, sendo patente que eles não sabiam lidar com os
conhecimentos que tinham em mãos. A investigação acima descrita já permite tirar
várias conclusões que podem dar uma nova orientação ao modo de estudar a
psicologia. Aquilo que o professor Olavo sem querer fez, na tentativa de obter
esclarecimentos sobre a teoria do conhecimento, foi lançar bases e fundamentos para
uma psicologia geral.
Uma teoria geral da psicologia aqui proposta parte do princípio que a psique não pode
ser definida como um objecto, e que o seu modo de existência obriga a psicologia a ser
um auto-conhecimento baseado não na introspecção mas no testemunho mútuo. Uma
importante generalização negativa que se pode fazer consiste em negar a existência de
impulsos irracionais naturais capazes de determinar a conduta humana. Quando
tentamos reduzir a psique a outra coisa perdemos o que ela tem de expressivo, que é a
sua capacidade de ser uma força causal. A psique não pode, então, ser estudada fora da
ideia da responsabilidade moral, embora isto seja um estudo à parte da psicologia,
entrando na ética, mas o simples reconhecimento de causas psíquicas implica também
o reconhecimento do “princípio de autoria”. Nesta perspectiva, a psicologia é o estudo
da acção humana consciente.
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Os elementos inconscientes da psique


O que vamos fazer com os elementos ditos inconscientes? Convém começar por
distinguir, como fez Maurice Pradines, entre aquilo que nasce connosco e
desconhecemos e outro inconsciente que consiste naquilo que foi esquecido. Mas o
esquecimento não é possível operar através de uma remoção da memória, pelo que se
torna num processo de encobrimento, onde um símbolo é encoberto por outro símbolo,
que ainda pode ser encoberto por outro e assim por diante, e no final deixamos de
reconhecer a presença original e quando esta voltar já lhe damos outro nome. Trata-se
de um processo de camuflagem activo, muito complexo e até criativo.
Não existem forças inconscientes a impelir-nos, como impulsos incoercíveis de
agressividade ou impulsos sexuais, já que as únicas forças que agem em nós são as
forças naturais externas e as necessidades corporais internas. Aquilo que chamamos de
instintos são complexas elaborações construídas através de processos de simbolização
que podem, no entanto, criar condutas compulsivas que já se tornaram compactos não
analisáveis. O Dr. Müller dizia que a neurose era uma mentira esquecida na qual ainda
se acredita. O complexo pode levar mais de 10 anos a desconstruir, havendo o perigo
de no processo se construírem outros complexos simbólicos, de onde resulta o
fenómeno da psicanálise interminável.
O sentimento maternal numa fêmea animal desponta no momento em que ela se torna
mãe, mas na mulher é algo que já pode se evidenciar 20 anos antes dela engravidar,
além de se adicionar toda uma valorização social e religiosa. Não existe, então, instinto
maternal, quanto muito existirá um instinto filiar, de gostar instintivamente da nossa
mãe, mas que é meramente passivo e receptor.

O processo de desenvolvimento da psique


Não estamos aqui interessados em abordar estratégias para desmontar esses complexos
mas apenas em esclarecer o fenómeno da psique e do seu desenvolvimento. Desde o
nascimento que a psique cresce e se desenvolve através de um processo de
incorporação, selecção e re-articulação de dados. Os primeiros elementos apreendidos
pelo bebé não são tidos por este como objectos singulares mas como símbolos de uma
potência extraordinária. A teoria aristotélica da abstracção diz que a imagem das
espécies forma-se a partir de vários elementos singulares, mas isto é uma descrição
lógica do processo. Em termos psicológicos, tudo o que o bebé apreende é sui generis.
A primeira coisa apreendida é o conceito geral da espécie na forma dos entes
singulares que a simbolizam. A formação progressiva das espécies é impossível sem
ter já uma estrutura da espécie, ou nem saberíamos o que comparar. Ou seja, toda a
estruturação do pensamento lógico possível já está dada na experiência de apreensão
dos primeiros entes.
A elaboração dos elementos pela psique dá-se através de várias funções psíquicas, a
que os escolásticos chamavam de faculdades, ou seja, facilidades, por serem algo que a
psique faz naturalmente sem necessitar de aprendizagem. A primeira dessas funções é
a memória, que consiste na experiência de um objecto na ausência do ente físico cuja
presença determinou esse estímulo. É uma repetição atenuada e com menos nitidez,
que os animais também têm e nem sequer é psíquica mas um dos pressupostos da sua
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actividade. Desde o início que temos a capacidade de pensar as coisas como símbolos
e não apenas como imagens singulares físicas. O símbolo designa uma outra coisa sem
ter identidade total com ela. Quando combinamos imagens, vamos seleccionar alguns
aspectos e fazer abstracção de outros, pelo que a atenção entra no processo. A
combinação de várias partes pode dar origem a um novo todo que não está acessível à
experiência imediata, e assim construímos o nosso mundo imaginário, constituído de
entes que não são necessariamente reais mas que são possíveis de algum modo. Isso
tem utilidade logo nos primeiros tempos, quando o bebé concebe algo que está
ausente, como a mãe ou a mamadeira, como estando presente e ele chora porque sente
o contraste entre a situação real e a imaginada. Memória e imaginação são mais ou
menos a mesma função, mas enquanto a memória tenta conceber imagens que sejam
fiéis à experiência invocada, a imaginação concebe imagens alteradas para conceber
experiências que não aconteceram mas podiam acontecer de algum modo.

A razão
Em cima da memória e da imaginação vai entrar mais tarde a razão. Voltamos atrás
para explicar o que é a razão, recorrendo ao senso da presença do ser, que é algo que
contamos o tempo todo e jamais precisamos de pensar. Tal como a presença do corpo,
é uma das condições para a existência da psique. O senso da presença do ser vem
acompanhado do senso da unidade do ser, e por isso tudo o que apreendemos é
apreendido como unidade. Duns Scott dizia que o ser e a unidade são a mesma coisa, e
nós não apreendemos uma existência se não captamos uma unidade.
Mas sabemos que nenhuma dessas unidades captada é uma totalidade, não é “a
unidade” mas uma unidade com o elemento de “numerosidade”. A apreensão dessas
unidades é problemática e tensional. As coisas estão em mudança contínua, de estado,
posição, figura, e nós percebemos a mudança de umas coisas pelo contraste com a
relativa imobilidade de outras. Sabemos que a mudança tem diferentes ritmos e a razão
é a busca de uma equação que nos permita posicionar e orientar neste contexto. A
razão é a busca da unidade subjectiva que simboliza a unidade do ser e dentro da qual
podemos, então, catalogar os vários seres que conhecemos e assim identificar as suas
relações e funções. O símbolo é necessariamente imperfeito e por isso vamos ao longo
da vida tentar diferentes estruturações e assim criar sempre novos “mapas do mundo”.
A razão vai trabalhar no sentido oposto ao da percepção, da memória e da imaginação,
pois estas vivem no mundo do permanente fluxo, que enriquece a psique com a
entrada de novos elementos, e a razão tentar estabilizar isso numa figura ou esquema,
o que, de certa forma, é um mecanismo que empobrece a psique. Esta estabilização
racional nunca pode dissolver o fluxo das funções psíquicas e vai existir uma tensão
entre ambas que, ela mesma, é um dos elementos constitutivos da psique e do nosso
modo de existência. Naturalmente, a razão vai entrar no processo de sedimentação de
símbolos que depois irão formar complexos que são chamados erradamente de
instintos ou impulsos irracionais.
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O trauma da emergência da razão


Desde o início que os seres humanos estão colocados no universo inteiro e não apenas
numa parcela e, por isso, não podem ser protegidos de nenhuma das complexidades da
vida social, afectiva, humana, histórica e assim por diante. A razão visa a produzir
visões estabilizadas do mundo que nos dão algum senso de poder e controlo, mas tudo
isso se pode desmoronar como um castelo de cartas de um momento para outro. A
necessidade que temos de usar a razão como orientação no mundo pesa desde o
nascimento, mas a posse do uso de razão é um processo longo e que necessita da
assimilação de elemento linguísticos, culturais, simbólicos, etc. Isso não acontece com
os animais, que nascem já com uma cosmovisão que delimita logo o que eles podem
conhecer. Mas no ser humano o mundo instintivo é muito pobre e o “não querer saber”
não resolve a questão, pode apenas criar camuflagens que não vão esconder a
necessidade de estruturação racional da experiência.
Como o homem é um ser dotado de razão, o mundo já o trata como se ele fosse um ser
racional completo. Em crianças podemos ser atormentados por problemas que só
teremos capacidade de entender aos 40 anos. E o máximo desenvolvimento da razão
não vai conseguir compreender todas as situações. O trauma da emergência da razão é
o descompasso entre a necessidade e a capacidade de compreensão. Esta é a maior
fonte de sofrimento humano, que pesa muito mais do que qualquer instinto. Nunca
teremos o domínio completo da situação mas, pelo facto de termos capacidade
racional, a situação exige que nos comportemos como se a nossa capacidade racional
fosse absoluta. Por outro lado, tudo o que se chama de instinto deriva de elaboração
simbólica e racional, sendo um processo consciente que depois é esquecido e que
correspondendo à formação da neurose.
Conceber o homem como criatura estruturalmente deficiente já é suficiente para
explicar uma infinidade de condutas erradas, malignas ou perniciosas sem ter que
recorrer à hipótese de impulsos malignos. Para gerar crimes em massas, como os de
Hitler ou Mao, não é preciso existir na origem uma porção de mal idêntica e nem tal
seria possível. Basta uma sucessão de enganos e geram-se consequências infinitamente
piores do que o mal presente na ideia geradora. Faz parte do trauma da emergência da
razão a dificuldade que o ser humano tem em controlar e compreender as
consequências das suas acções. Mas isto não isenta as pessoas de culpa, porque elas
são responsáveis pelos enganos e pelo encobrimento de pistas. O marxismo é um
sistema inteiro de camuflagens, é a mentira meticulosa.

Psique, consciência, horizonte de consciência e “eu”


Podemos ver a consciência como sendo a própria psique desde que não entendamos a
consciência apenas como um foco de luz que lança atenção sobre alguma coisa, como
fazia Husserl, mas prolongando a consciência no conjunto de coisas iluminadas e que
permanece na memória. A consciência é algo que existe no tempo e não se pode
confundir com o horizonte de consciência, que é o padrão inteiro de luz e sombras que
lançamos sobre as coisas, ou seja, um mapa daquilo que é possível saber a cada
momento. A consciência vai seleccionar elementos do horizonte de consciência e
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encobrir outros, pelo que ela também cria opacidade e por isso a origem de condutas
neuróticas é consciente.
Para elucidar a relação entre o “eu” e o horizonte de consciência é preciso ressaltar a
estrutura topológica de todos os elementos da psique, já que participam de uma
duplicidade de dimensões. Um exemplo de topologia são os desenhos de Hescher onde
uma escada continua na própria escada. A psique transcende a linguagem mas não a
nossa compreensão da nossa linguagem, e se nós conseguimos apenas falar uma
palavra de cada vez, o ouvinte consegue, como nos desenhos de Hescher, perceber
uma palavra entrando noutra. Então, o horizonte de consciência é, por um lado, maior
do que o “eu”, mas sobre outro aspecto está dentro do “eu” como uma sua função, pelo
que temos aqui uma configuração topológica, algo inerente à estrutura tensional da
psique e que, por acréscimo, conduz à impossibilidade de a resolver, que é, de resto,
característica de tudo o que é real porque aquilo que é explicado na íntegra é porque
foi reduzido a outra coisa e cessou de existir. O horizonte de consciência é o conjunto
de possibilidades do “eu” a cada momento, e por isso transcende-o, mas ao mesmo
tempo é um dos seus elementos formativos, e está assim aquém dele. Esta é uma
tensão contraditória da própria realidade e as ciências que não aceitam este carácter
paradoxal da realidade estão no erro, porque o conhecimento não visa eliminar
paradoxos mas nos centrar em relação às várias forças paradoxais em acção. Contudo,
apesar das ciências terem dificuldades em aceitar esta posição, elas não se coíbem de
utiliza conceito absurdos, insustentáveis, até mesmo auto-contraditórios que não
exprimem nada da realidade.

Psique e o amor ao próximo


O amor ao próximo, muito antes de poder ser encarado como um mandamento moral,
já é um elemento constitutivo da nossa psique. Já tínhamos observado que a psique,
apesar de individual e intransmissível, tem uma estrutura dialogal. A psique começa a
desenvolver-se pela integração de elementos exteriores a ela mediante outras presenças
humanas, pois mesmo os objectos naturais já nos aparecem interpretados e
transformados pelo mundo humano. Em O banquete, Platão diz que o Amor resulta do
casamento entre Poro, deus que representa a abundância e da riqueza, com Pénia,
deusa associada à necessidade e à pobreza. É precisamente esse “casamento” que
ocorre na vida de todos os bebés, que nascem cheios de necessidades que são
abundantemente providas pelos pais. Não sendo o amor ao próximo propriamente um
instinto ou uma propensão, ele é algo que está presente desde início e do qual depende
o desenvolvimento da psique. Nós incorporamos outras pessoas em nós não apenas
como elementos externos mas como forças estruturantes, com a figura materna à
cabeça, que personificará uma imagem de conforto, atenção, paz e até de um estado
paradisíaco. Há inúmeras possibilidades nossas que só podemos descobrir pela
incorporação em nós de outras pessoas que passam a estar associadas a essas
possibilidades. A nossa dependência psíquica dos outros é tão grande que se pode
dizer que, de certo modo, “os outros são eu mesmo”.
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Experiência gnóstica e tensão entre razão e experiência


A experiência do mal e da agressão não é a primeira vivência humana, aparecendo em
geral só muito mais tarde. Mas pode aparecer como ameaça potencial no confronto
com a experiência da presença do ser, que está pressuposta em tudo e aparece ao bebé
como uma presença maciça que o envolve e ele não sabe o que é. Dependendo de
como nos relacionamos com o desconhecido (e até com essa parte conhecida que é a
figura materna, que simboliza a plenitude e as satisfações iniciais mas também tem o
poder de simbolizar a carência), a presença do ser pode ser sentida como uma ameaça
e a psique pode tentar encontrar um refúgio concebendo-se isolada de tudo, e temos
aqui a experiência gnóstica. Desta experiência resulta toda uma corrente gnóstica, que
não percebe que este isolamento não é algo real mas uma camuflagem criada pela
razão e que nos pode prender ali. Daqui é um passo para o surgimento das dúvidas
cépticas que invertem a primazia da experiência sobre a prova lógica. É um truque que
até pode aguçar a inteligência racional mas não se distingue do processo neurótico.
Ao cepticismo, que encarnou na escola racionalista, opôs-se a escola empirista. Mas
trata-se de outra alternativa impossível, porque não existe a experiência da totalidade.
Todas as experiências são parciais, ocorrendo dentro do campo do senso da presença
do ser que as transcendem, e não podem ser fonte de crença total. A única coisa que é
acessível ao ser humano, e sabemos isso por confissão, é viver na tensão entre
experiência e razão, embora possamos dizer que optamos apenas por uma delas, ou
seja, conseguimos mentir.

Doenças mentais
O histérico e o maconheiro conseguem recordar perfeitamente histórias que eles
mesmos reconstruíram sem recordar a reconstrução em si. Isto é negar a autoria da
nossa psique e pode ser erigida a técnica, como fez Epicuro, criando um método
infalível para gerar neuroses. As doenças mentais não resultam de uma forma diferente
da psique funcionar mas da diminuição da actividade psíquica, nomeadamente pela
supressão de alguma faculdade. Na sociedade actual a exigência da acção racional é
tão grande que podemos bloquear o funcionamento da imaginação. Isso faz com que
muitas situações vividas pareçam fatalidades porque não queremos pensar em
alternativas. Podemos também temer em pensar em alternativas melhores como medo
de as perder, mas isso vai bloquear a nossa acção. É da natureza da imaginação ir para
lados diferentes ao mesmo tempo e não temos que bloquear isso. Sem a imagem do
inferno não podemos viver decentemente.

Pensar, meditar e contemplar


Algumas práticas espirituais e de concentração são comummente chamadas de
meditação, mas vamos esclarecer o que significa este termo. Em primeiro lugar,
começamos por verificar que pensar consiste em transitar de uma ideia a outra.
Meditar é, pelo contrário, rastrear o processo de pensamento até à raiz de realidade que
desencadeou o pensamento inteiro. Contemplar consiste em pegar em várias
meditações e vê-las em conjunto. Não existe a meditação como um “pensar em nada”,
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 35

sendo possível, no entanto, uma absorção passiva sem raciocinar em cima, mas a
actividade mental nunca pára e continua registando o que está acontecendo. Existem
outras práticas de concentração focadas na respiração, no coração como centro do ser,
na prece perpétua e assim por diante, mas que não são meditação.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 36

Aula 25 – 26/09/2009

Sinopse: O filósofo não precisa de opinar com certeza absoluta mas só deve fazê-lo
quando reuniu um património de conhecimentos e experiência humana que lhe
permita falar com elevada probabilidade de acerto. A análise de textos é uma técnica
útil mas só por si não permite captar o filosofema presente nos textos filosóficos,
sendo necessária a complementação com uma série de evocações, através de
elementos de memória e de contextualização, que permitam captar as várias camadas
de significado presentes no texto. Aristóteles percebeu que o cepticismo é um processo
puramente mental e que não pode ser refutado ao nível do discurso; o céptico deve ser
confrontado no plano da realidade e ser convidado a provar aquilo que afirma, e que
não passa de fingimento. A técnica de leitura será exemplificada utilizando um texto
de Kurt Lewin, partindo da estrutura gramatical para a estrutura lógica, e depois
enriquecendo o texto com evocações da memória e imaginação, contextualizando
ainda o texto e o autor com elementos históricos, com a descrição de propósitos e
consequências. O padre Sertillanges fala de 4 tipos de leitura, sendo a mais exigente a
leitura formativa, que pode levar vários anos num só livro, podendo ser intercalada
com leituras informativas, de lazer e edificantes.

Voto de silêncio em matéria de opinião


Nunca é demais relembrar o voto de silêncio em matéria de opinião que nos foi pedido
pelo professor Olavo, a cumprir especialmente no que concerne à participação no
fórum do seminário, que visa a troca de informações e nunca discussões pessoais. O
filósofo quando opina não tem de o fazer necessariamente com uma certeza absoluta,
mas deve ter feito um longo exame sobre o assunto, acumulando um património de
conhecimentos e experiência humana de modo a poder falar com elevada
probabilidade de acerto. Por outro lado, as suas intervenções têm que ter uma
finalidade legítima, que nunca passa pela promoção pessoal mas deve ter um objectivo
didáctico, educativo ou politicamente defensável. A maturidade exigida ao filósofo
explica a inexistência de génios precoces nesta área, e o filósofo tem de ser capaz de
viver num mar de dúvidas durante décadas porque é da condensação do material
acumulado que as soluções surgirão.

A leitura de um texto filosófico


Não podemos confundir a mera análise de texto com a leitura de texto que é suposto
um filósofo fazer. A USP segue um método de análise de texto que herdou de Martial
Guéroult, que a tinha exemplificado no livro Descartes segundo a ordem das razões.
A técnica é sem dúvida útil e está apresentada por Guéroult de forma esplêndida.
Contudo, para que seja uma técnica efectiva e não descambe numa análise que se
atenha apenas ao texto e tente eliminar qualquer referência exterior, o que culminaria
em extremos como o desconstrucionismo, é necessário ter uma sólida formação
literária. Só assim podemos captar o filosofema – equivalente filosófico do teorema –,
o que implica captar as várias camadas de significação imbricadas no texto.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 37

Os textos filosóficos são escritos para leitores capazes de evocar, de forma


aproximada, as mesmas coisas que o autor tinha em mente. Essas evocações incluem
referências à realidade exterior, memórias e também e associações que o nosso
imaginário faz sem recurso à análise crítica, tal como foi exemplificado no exercício
da leitura lenta. Existem evocações de outra ordem que podem estar ali implícitas,
incluindo ramificações para outras leituras ou aprendizados. Uma simples palavra
pode evocar toda uma tradição filosófica. Existem ainda as referências subjacentes à
cultura do autor. Não é possível a ninguém escrever tudo o que pensa e o material
implícito ou inexpressável pode ser tão grande que pode levar a uma situação como a
de S. Tomás de Aquino, que no final da vida afirmou que tudo o que escreveu foi
palha. Mas se fizermos a leitura dos seus textos correctamente, com o máximo de
evocações, vamos conseguir vislumbrar as estruturas que ele concebia mas não
conseguiu colocar em texto. O processo de entendimento de um texto é lento de início
até ganharmos a experiência que aumenta as nossas possibilidades de evocação.
A verdadeira análise de texto, que não seja um fetiche mas revele habilidade filosófica,
é a reconquista de um mundo de evocações. Do texto iremos retirar todas as camadas
de sentido. É uma aprendizagem de uma vida mas podemos aprender algo com os
grandes leitores de filosofia, como Eric Weil. Apesar de ele não dizer expressamente o
seu método, nós percebemos, por um lado, que ele nunca usa o método formal de
análise de texto e, por outro, que ele parte de uma premissa muito simples: o filósofo
escreve tendo em vista uma visão da experiência unitária do ser. É apenas uma
direcção que se aponta e nunca é realizável na totalidade. O método de Eric Weil
pressupõe um auto-esclarecimento e a busca da unidade da nossa personalidade,
inspirada pelo vislumbre da unidade do real que o filósofo também tem, torna-se num
instrumento interpretativo. A decomposição do texto em partes tem a função de
facilitar a inteligibilidade, mas se as partes depois de decompostas e entendidas não
forem integradas em conjuntos maiores não vamos captar a unidade do texto. Essa
unidade transcende a pura análise de texto e só aparece numa recomposição onde
entram todas as evocações.

Refutação do cepticismo
O cepticismo clássico, que mais tarde deu origem à paralaxe cognitiva, é algo que
apenas se desenrola ao nível do texto ou do discurso, mas é inviável desde o início
quando passamos para o plano da realidade. Joseph Marechal mostrou, no livro O
ponto de partida da metafísica, que o cepticismo grego começou como a negação ou
dúvida que qualquer afirmação filosófica, qualquer coisa dita positivamente, estava
sujeita. Aristóteles avançou com a refutação clássica ao cepticismo, tendo percebido
que o céptico não pode ser contestado apenas na base do discurso, porque este será um
novo discurso sujeito a mais uma infinidade de dúvidas hipotéticas. O processo céptico
não constitui nenhuma habilidade especial, é apenas uma processo quase automático
que se desenrola quando perdemos o foco no que estamos a fazer. Aristóteles percebeu
que o céptico argumenta apenas no plano do discurso mas realmente não acredita no
que diz, é um fingimento e o céptico sabe que não pode realizar o que diz no plano
real, e por isso ele come e viaja efectivamente não se contenta em pensar apenas
aquelas coisas. Mas enquanto o cepticismo é um truque verbal consciente, a paralaxe
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cognitiva, sendo do mesmo teor que o cepticismo, já está disfarçada com camadas de
conhecimento acumulado pelo que parece mais verosímil, e o sujeito pode nem
perceber que está fingindo.
Aristóteles inventou a lógica e a dialéctica como ciências e entendia que a
confrontação lógica requeria algumas pré-condições que asseguram que estamos nos
movendo no mesmo terreno semântico que o nosso interlocutor, por exemplo, se
usamos a palavra “causa” temos de nos referir ambos ao mesmo tipo de causa. O livro
dos tópicos sobre a dialéctica é precedido pelos livros das categorias e da interpretação
por essa razão. Uma coisa que o céptico faz é entrar com exigências de coerência
lógica quando estamos num plano que em si não é lógico, por exemplo, quando se
trata do conhecimento por experiência. Ele pode introduzir uma cunha entre a
percepção e o discurso, negando a validade do conhecimento por experiência, mas
para eles fazerem isso tiveram, por sua vez, que se servir do conhecimento por
experiência. Há 2400 anos atrás Aristóteles já sabia que o discurso não pode validar o
conhecimento por experiência precisamente por a experiência ser aquilo que não é
discurso, mas hoje as pessoas já esqueceram isto e daí resulta a omnipotência do
discurso inventado. Faz parte do aprendizado básico filosófico perceber a
incomensurabilidade entre o discurso da mera construção de frases, onde é possível
dizer qualquer coisa, e o discurso da experiência e da realidade, que tem de prestar
fidelidade a estes e não pode entrar no puro mundo do discurso e modificá-lo. Por isso
não temos que entrar em discussão com cépticos mas exigir que eles provem que
acreditam naquilo que afirmam, o que não lhes será possível porque o puro discurso
não tem a capacidade de sair de si mesmo e apreender o mundo real.

Exemplo prático da leitura de um texto


O texto deve ser visto como uma pauta que desperta evocações e garante que não
vamos parar muito longe da mente do autor. Vamos ver as múltiplas camadas de
significado que um texto pode ter utilizando o início do estudo “Algumas diferenças
sócio-psicológicas entre os Estados Unidos e a Alemanha”, de 1936, que se encontra
no livro Resolving social conflits, de Kurt Lewin:

A educação é em si mesma um processo social que envolve, às vezes,


grupos pequenos como mãe e filho, às vezes grupos maiores, como uma
classe escolar ou a comunidade de um acampamento de Verão. A
educação tende a desenvolver certos tipos de comportamento, certos
tipos de atitude na criança ou nas outras pessoas com as quais ela lida.
O tipo de comportamento e a atitude que ela tenta desenvolver, e os
meios que ela usa para isso, não são determinados meramente pela
filosofia abstracta ou por métodos cientificamente desenvolvidos, mas
são essencialmente um resultado das propriedades sociológicas do grupo
no qual esta educação ocorre. Ao examinar o efeito do grupo social
sobre o sistema educacional pensa-se principalmente nos ideais, nos
princípios e atitudes que são comuns dentro desse grupo. De facto, os
ideais e princípio desempenham uma parte importante na educação, mas
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 39

teremos de distinguir os ideais e princípios que são oficialmente


reconhecidos daquelas regras que dominam efectivamente os
acontecimentos nesse grupo social. A educação depende do estado real e
do carácter do grupo social no qual ela ocorre.

Vamos começar por pegar na estrutura gramatical e nela identificar a estrutura lógica.
Pegamos nas sentenças e transformamo-las em proposições, tentando depois perceber
a ordem e a ligação entre as várias proposições, tendo em conta que cada sentença
pode conter várias proposições.
A primeira sentença é: “A educação é em si mesma um processo social [é uma
afirmação], que envolve, às vezes, grupos pequenos como mãe e filho, às vezes grupos
maiores, como uma classe escolar ou a comunidade de um acampamento de Verão.”
Ela contém 3 proposições:
Primeira proposição: A educação é em si mesma um processo social.
Segunda proposição: A educação envolve, às vezes, grupos pequenos como mãe e
filho.
Terceira proposição: A educação envolve às vezes grupos maiores, como uma classe
escolar ou a comunidade de um acampamento de Verão.
Vamos cruzar agora esta análise com a técnica de “ler com a imaginação” já falada
antes. A palavra “educação” pode logo fazer lembrar a nossa educação, as escolas por
onde passamos e assim por diante. Depois, ainda na primeira proposição, “processo
social”, já nos remete para uma convivência mais ampla que a sala de aula, a
burocracia da escola e os regulamentos que éramos obrigados a cumprir. Ao
lembrarmos isso percebemos que o processo educativo está dentro de um processo
social mais amplo, que inclui também a interacção entre a escola e outras instituições.
Mas a experiência de educação pode trazer também outras evocações, algumas que
não remetem para um processo social, como a leitura de um livro de filosofia.
A palavra educação tem sobretudo duas camadas de significado. Numa reúne tudo o
que se relaciona com o processo educativo mas não é propriamente a educação formal.
Depois temos a educação como instrução propriamente entendida, que
etimologicamente significa ir para fora do ser, sendo uma abertura da nossa alma para
algo que não se encontrava nela, um construir por dentro. Piaget também falava de
dois aspectos presentes na educação, a assimilação e a acomodação, onde aprender
uma regra é assimilá-la, mas segui-la exige acomodação, e o mesmo se poderia dizer
para a aprendizagem de uma língua estrangeira e depois a sua utilização.
Podemos desenhar um esquema em torno de certas palavras ou frases, para tornar
explícitas as camadas de significado. O processo não é praticável numa leitura normal
mas pode ser efectuado algumas vezes para captar o “esquema” e depois o processo se
automatiza.
Concretamente para este texto, vamos apelar a um outro elemento exterior, que é o
conhecimento de que Kurt Lewin era um cientista social e usa a palavra “educação”
para essencialmente exprimir um processo que um grupo ministra sobre outro.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas (Vol. V) 40

Vamos fazer um processo idêntico com outras frases:

O tipo de comportamento e a atitude que ela tenta desenvolver (1), e os


meios que ela usa para isso, não são determinados meramente pela
filosofia abstracta ou por métodos cientificamente desenvolvidos (2), mas
são essencialmente um resultado das propriedades sociológicas do grupo
no qual esta educação ocorre.

(1)
Refere-se à educação. Depreendemos que a palavra educação não está a ser usada
no sentido geral mas no sentido concreto que já antes tínhamos antevisto, como um
processo pelo qual um grupo tenta desenvolver noutro um certo comportamento ou
uma certa atitude.
(2)
O grupo que dá a educação tem certos métodos pedagógicos e algumas teorias na
cabeça, mas isto não basta para explicar o tipo de educação que o primeiro grupo dá
para o segundo, porque o primeiro grupo tem uma composição sociológica real e
dessas outras filiações muita coisa é vertida para a educação, por isso, para entender o
tipo de educação que está sendo passada, temos de conhecer não apenas a composição
intelectual do grupo mas também a sua composição sociológica, os seus hábitos,
valores, posição social, deveres, etc.
Usando mais uma vez a memória e a imaginação, conseguimos perceber melhor o que
o autor quer dizer pelo contraste entre as nossas evocações e aquelas que este deixa no
texto. Mesmo que algumas evocações possam parecer despropositadas no momento,
mais tarde poderão revelar-se úteis. Começa a ficar claro que Kurt Lewin fala da
perspectiva do engenheiro social, que pensa na educação como processo social e o
próprio “social” como acção social e não estrutura social. Quase toda a educação
infantil no mundo focou-se num processo de socialização e moldagem a certas
condutas, e isto derivou de pessoas que aprenderam com Kurt Lewin. Percebemos que
o fenómeno é altamente complexo e não poderia ser entendido apenas a partir do texto,
sendo necessário verificar o contexto histórico do autor, as suas motivações profundas
e a sua acção na sociedade e as consequências que daí resultaram.
Kurt Lewin falava da sociedade alemã das décadas de 20 e 30, no período pré-nazi, e
verificou que a educação alemã era muito rígida e hierárquica comparativamente com
a educação americana, se bem que esta tivesse alguns pontos de maior exigência,
como na pontualidade. Ele efectuou esta comparação, e mais tarde já na Inglaterra a
experimentação em grupos, para saber qual o tipo de educação que favorecia uma
sociedade democrática. Mas ele parecia esquecer alguns aspectos, apesar de ser um
cientista sério. Apesar da educação alemã ser rígida, Berlim era considerada a capital
do pecado e os jovens alemães envolviam-se em movimentos de sexo livre e de revolta
contra o cristianismo, isto já antes do nazismo. Mas, por ironia, Kurt Lewin estava
próximo de pessoal da Escola de Frankfurt, que depois veio para os Estados Unidos e,
ao contrário deste, vieram a desenvolver estudos onde tentavam mostrar que era a
educação americana que criava uma personalidade autoritária.
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Só é possível fazer uma leitura com esta riqueza saindo do texto. A análise de texto de
Martial Guéroult deu certo aplicado a Descartes porque o livro Meditações metafísicas
foi todo pensado de antemão e ali o fundamental era a própria ordem do texto.
Aplicado a outros filósofos o método tem resultados limitados porque estes já não
escrevem textos com uma estrutura ou estratégia como fez Descartes.

Quatro tipos de leitura


No livro A vida intelectual, Sertillanges fala de quatro tipos de leitura: leitura
formativa, leitura informativa, leitura de lazer e leitura de edificação ou inspiração. A
leitura formativa de um livro pode demorar vários anos e pode ser intercalada com
várias leituras informativas. Estas serão leituras menos profundas, onde vamos na
busca de informações específicas que sirvam os nossos propósitos, ainda que possam
ser laterais ao núcleo do livro. Na leitura de edificação não vamos analisar o texto mas
deixar que ele aja sobre nós. Pode ser proveitoso ler vários livros ao mesmo tempo se
estivermos fazendo diferentes tipos de leitura. Naturalmente que os clássicos de
filosofia devem ser lidos numa leitura formativa.
Nas leituras mais rápidas também existe uma análise estrutural mas esta permanece
implícita. Quando deparamos com absurdidades ou contradições devemos parar e
avaliar de forma metódica porque podemos não estar entendendo. As leituras devem
buscar uma compreensão de um objecto que não é o próprio texto mas aquilo para
onde ele aponta, com a excepção da poesia onde é difícil separar texto, forma e
assunto. Mas devemos divisar também, ao mesmo tempo, a compreensão de inúmeros
elementos da experiência pessoal, cultural, história e assim por diante. O processo é
trabalhoso de início mas depois será espontâneo e tem uma riqueza infinita.

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