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30/07/2019 Como nossos pais | Congresso em Foco

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Como nossos pais


"O terrível efeito colateral dos 'novos tempos', paradoxalmente, é o de não se
encontrar uma solução inteligente, socialmente aceitável e economicamente
digna para a 'velha massa de pessoas' excluída dos benefícios propagandeados
pela Era Digital"

Por Cezar Britto Em 02 jul, 2019 - 7:55 Última Atualização 02 jul, 2019 - 8:12

Economia Direitos Humanos

Eu fui convidado, via WhatsApp, para participar de evento promovido pela Ordem dos

Advogados do Brasil seccional Rio de Janeiro, OAB/RJ, tendo como tema o impacto do
avanço tecnológico e o uso da robótica no mundo do trabalho. Aceitei o convite, não

antes de tirar minhas “dúvidas” pelo mesmo meio de comunicação virtual, inclusive

enviando para os organizadores o print da minha agenda também virtual. Era preciso
sincronizar o meu tempo com o dos demais palestrantes. Dias depois, o celular me

noti cava do card do evento, pedindo que o compartilhasse com os meus contatos

reservados e nas redes sociais em que participo. Cumpri a missão via um “tocar dos
dedos”. Ainda virtualmente, testei um app pré-instalado no celular que prometia uma

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transcrição simultânea da fala a ser gravada. E, para minha surpresa, parte

considerável do que seria a minha re exão se transformara em texto escrito. Texto

que, imediatamente, enviei via wi- para o computador da sala, que “adora trabalhar
nas nuvens”.

A narrativa introdutória indica que o mundo virtual integrou-se, imperceptível ou não,

ao cotidiano do mundo do trabalho, agilizando as comunicações, facilitando as

pesquisas e diminuindo o tempo para a elaboração de um artigo. Esta visão inicial


permitiria ao intérprete, de logo, concluir que o avanço tecnológico é imprescindível,

inexorável e inerente ao processo histórico. A nal, como propagandeado, no preciso


mundo tecnológico as doenças serão curadas através da inteligência arti cial, com os
dados pessoais dos pacientes colhidos, repassados e diagnósticos para os robôs-

médicos via smartpfones. Alexa, Bia, Bina, Han, Philip, Sophia, Victor, Walter e outros

computadores mais íntimos encontrarão a solução para cada um dos enigmas mais

complexos da vida diária, fazendo obsoletos os livros, as universidades e os in ndáveis

debates interpessoais para a obtenção da buscada pesquisa.

>>Senadores aprovam criação de juizados para crimes cibernéticos

Neste “admirável mundo novo” – utilizando-se a nomenclatura em que Aldous

Huxley narra a distopia futurística que imaginou – a vida será mais confortável nas
casas digitais, que calcularão a temperatura, a sonoridade, a luminosidade e todos os

mimos domésticos que possam garantir o conforto ambiental para os moradores. Até

mesmo os alimentos, adquiridos em porções previamente preparadas com rigores

nutricionais, serão apresentados como vencedores genéticos das pragas causadoras da

fome. As distâncias serão encurtadas em tempo real, não raro através de meios de
locomoção que observarão a proteção ao meio ambiente. A paz social será nalmente

alcançada, com as rápidas e e cazes prisões de criminosos, identi cados em aparelhos

faciais ou através de dados automaticamente colhidos das redes sociais pelos robôs-

policiais.

Aliás, os benefícios decorrentes dos avanços sociais já são sentidos e multiplicados na

velocidade da luz, com as redes sociais aproximando pessoas, conhecidas ou não, pelo

critério da a nidade e interesses comum. Louvam-se que os trabalhos de riscos não

mais são destinados às pessoas humanas, deixando as tarefas mais comprometedoras

da vida aos robôs. Tudo isso compartilhado, acompanhado, acessado e executado,

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individual e democraticamente, por bilhões de computadores portáteis que também

servem para telefonar. E sem falar ainda, que se poderia acrescer os melhoramentos

provocados no meio ambiente, poupando-o da destruição de milhares de árvores que,

convertidas em papéis, lotariam arquivos-mortos, aterros não-sanitários, rios, mares


e a já poluída ambiência pública. É como se fosse válida a profecia musical cantada por

Belchior, quando, diante da polêmica entre o velho e novo, vaticinou: “Mas é você que

ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.

Um olhar mais atento ao exemplo apresentado na parte introdutória deste texto


revelaria, entretanto, o desaparecimento de pessoas, instituições e instrumentos

coletivos incorporados ao conceito de essencialidade no mesmo avançar da sociedade.

Todos quedados, invisíveis, ao “novo que sempre vem”. Telefonistas, empresas de

telefonia, datilógrafos, secretárias, estagiários, carteiros, ECT, marqueteiros, agências

de propaganda e eletricitários se zeram desnecessários nos rápidos toques


tecnológicos preparatórios deste artigo. E, por serem invisíveis, sem qualquer

sentimento de dor ou culpa, mesmo sendo óbvio que quanto mais a tecnologia avança

mais desaparece ou é relegado ao obscurantismo o trabalho por ela tornado obsoleto

ou inimigo.

Não é novidade que os maquinários do campo aprofundaram o êxodo rural e os robôs

industriais geraram desempregados e desalentados em proporções geométricas, vários

deles sem qualquer perspectiva inclusiva de habitar no mundo da boa aventurança

tecnológica. No mesmo ritmo estão cando desatualizados e condenados ao


desaparecimento os bancários, os agentes de seguro, os taxistas, os hotéis, os

restaurantes e comerciantes que não estão vinculados aos serviços de entrega virtuais
e milhões de outras pro ssões e incontáveis empreendimentos. A advocacia e os juízes

já estão sendo trocados pela inteligência arti cial, assim como já começou o processo
de extinção de cargos como os de taquígrafos, o ciais de justiça e escreventes.

>>Empresas brasileiras contrataram software espanhol para impulsionar campanha

de Bolsonaro em 2018

Também não é segredo que as pro ssões e empreendimentos extintos não estão sendo
substituídos por novas fórmulas pro ssionais mais adaptadas ao tempo tecnológico. É

que o número de pessoas contratadas pelas novas tecnologias é in nitamente inferior


ao número de pessoas que serão descartadas como “inaproveitáveis pelo mercado”. O

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terrível efeito colateral dos “novos tempos”, paradoxalmente, é o de não se encontrar


uma solução inteligente, socialmente aceitável e economicamente digna para a “velha

massa de pessoas” excluída dos benefícios propagandeados pela Era Digital. O que se
a rma é que os excluídos são os verdadeiros culpados da própria exclusão, pois, ao não
se prepararem adequadamente para o “tempo nascente”, não merecem um lugar ao

sol.

É preciso car alerta aos sinais, fatos e constatações de que as máquinas e os avanços

tecnológicos continuam, única e exclusivamente à disposição do direito de ter. A “nova


regulação do trabalho” proposta pela Quarta Revolução Industrial para os
“trabalhadores sobreviventes”, conhecida como “uberização do trabalho”, retoma e

amplia a exploração originária da primeira Revolução Industrial, afastando todo o


sistema protetivo conquistado e posto nos avançar do tempo. A “coisi cação” do

trabalho segue presente na compreensão de um mundo centrado na lógica da proteção


do ter e na cumulação de poder e de riquezas materiais. Não choca à sociedade
dominante a simples constatação de que os “modernos trabalhadores uberizados” têm

jornadas de trabalho imensamente superiores à histórica e conquistada oito horas


diárias, que os riscos e os instrumentos de trabalho são dos próprios “urberizados”,

que não controlam ou sabem como são arrecadados ou distribuídos os lucros do


trabalho por eles produzidos e, igualmente grave, que podem ser demitidos por um
simples comando virtual, sem qualquer motivação ou indenização. Ao contrário, a

sociedade exige mais exploração, scalizando e punindo os “urberizados” com


avaliações e pontuações, não raro cobrando a pressa que sabe mortal para os

motorizados.

Acredito, assim, que a questão mais adequada para analisar o tema não guarda relação
direta sobre a importância inexorável de qualquer avanço tecnológicos na

consolidação do processo histórico. A tecnologia foi, é e sempre será fundamental,


imprescindível até... O que se faz relevante é saber quem é o seu proprietário, quem
nela investe, a quem se destina e com que nalidade é utilizada. Quem eram os donos

das caravelas? Quem investiu no vapor e na eletricidade? A que se destina as armas


bélicas? Qual a nalidade real dos computadores?

Ao compreendermos que a quase totalidade da tecnologia é patenteada, propriedade


privada do seu investidor, destinada a poucos e utilizada para o fortalecimento dos que
se julgam no direito de ter a propriedade das coisas, da natureza e das pessoas,
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encontraremos uma luz no túnel das respostas. A humanidade já apontou caminhos


que trilham por lógicas diversas, apostou na pessoa humana com razão de ser da
política, falou a língua da solidariedade e pregou que somente através da ação se pode

coibir a exploração. Somente a visão humanista do avanço tecnológico é que poderá


alterar o seu uso excludente do poder econômico, político e social. Este desa o é mais

importante do que o duelo entre o velho e o novo. Até porque, como também
esclareceu Belchior no refrão seguinte da genial canção já mencionada, a humanidade
não pode concluir, outra vez, que “minha dor é perceber que apesar de termos feito

tudo, tudo, tudo o que zemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos
os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

>>Por que caminhar em defesa das universidades?

>>A Reforma da Previdência e a catástrofe dos argumentos catastró cos

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Cezar Britto
Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e
crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos
Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da
OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.

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