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BENJAMIN, Walter.

Passagens de
Walter Benjamin. TIEDEMANN,
Rolf; BOLLE, Willi; MATOS, Olgária
Chaim Feres (Org.). Trad. Irene
Aron e Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: UFMG/Imprensa
Oficial de São Paulo, 2006.
Georg Otte
Universidade Federal de Minas Gerais

N uma situação sem


saída, não tenho
outra escolha a não
ser pôr fim à minha vida. É numa
pequena vila dos Pireneus,
única bagagem ao tentar fugir da
perseguição nazista é uma pasta
preta contendo um manuscrito
que, segundo o próprio Benjamin,
era “mais importante que sua pessoa”.
onde ninguém me conhece,
Há muitas especulações sobre o
que a minha vida vai acabar.
Peço à Sra. que transmita os conteúdo dessa pasta – uma delas
meus pensamentos ao meu diz que se tratava da última versão
amigo Adorno e que lhe expli- das Passagens, que Benjamin con-
que a situação na qual eu me siderava como a obra mais impor-
encontrei. Não me resta tempo tante de sua vida e que foi lançada
suficiente para escrever todas recentemente pela Editora UFMG,
as cartas que gostaria de ter coroando, de certa maneira, a
escrito. extraordinária recepção que a obra
É com essa carta a sua compa- de Benjamin encontrou no Brasil.
nheira de fuga, Henny Gurland, que Desde o início, a tentativa de
Walter Benjamin faz o seu último fuga foi extremamente difícil para
pedido e se despede da vida. Sua Benjamin, que não tinha condições

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BENJAMIN, Walter. Passagens... Georg Otte – p.223-226.

físicas necessárias para a secreta gem pela fronteira franco-espanhola


“rota F” nos acidentados Pireneus, – com o manuscrito das Passagens
pois sofria de problemas no coração. debaixo do braço – pode ser vista
Quando o grupo de refugiados como representativa de uma vida
finalmente chegou à fronteira espa- cheia de barreiras, como no caso
nhola, os guardas deram a infor- da tentativa, também fracassada,
mação de que, no dia anterior, o de ser credenciado como professor
governo espanhol do “Genera- catedrático na academia alemã. São
líssimo Franco” havia decretado o sempre barreiras irônicas, uma vez
fechamento da fronteira para os que a tese que a banca havia
refugiados vindos da França. Diante recusado ganhou fama sob o título
do péssimo estado de saúde de Origem do drama barroco alemão
Benjamin, no entanto, as autori- e é hoje um dos textos indispen-
dades permitiram que passasse a sáveis para quem trata de questões
noite em um pequeno hotel em estéticas como a da alegoria.
Port-Bou. Foi nesta noite, de 26 a 27 Segundo Hannah Arendt, que
de setembro de 1940, que Benjamin, em seu brilhante ensaio biográfico
com medo de ser entregue à Gestapo, sobre Benjamin (publicado na
tomou uma overdose de morfina coletânea Homens em tempos
para pôr fim à sua situação “sem sombrios), a vida desse pensador
saída”. Impressionados por esse estava mesmo sob o signo da má
suicídio, os mesmos guardas que sorte, e o próprio Benjamin tinha
impediram a entrada de Benjamin certeza disso, pois não se cansava
na Espanha deixaram que os outros de citar o “corcunda”, esse perso-
membros do pequeno grupo de nagem de conto que fazia com que
refugiados seguissem caminho. toda ação de uma criança desse
Ter salvado a vida dos outros errado. Talvez, a certeza de
refugiados por meio de seu Benjamin não fosse tanto a do
suicídio não foi a única ironia fracasso, mas a dessa barreira
associada à morte de Benjamin. Se irônica que lhe negava o sucesso
for verdade a hipótese de que o junto aos seus contemporâneos,
manuscrito na misteriosa pasta garantindo-lhe, no entanto, o
preta era uma última versão das sucesso póstumo.
Passagens, poderíamos acrescentar Após ver sua tese recusada pela
mais uma ironia a esse destino banca e assim a passagem para as
marcado pela falta de reconhe- honras acadêmicas barrada,
cimento em vida e pela falta de Benjamin inicia seus estudos que
sucesso em geral. Pois a tentativa iriam resultar nas Passagens, cujo
fracassada de conseguir a passa- título original é Passagen-Werk –

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Revista do CESP – v. 27, n. 37 – jan.-jun. 2007

Obra ou, então, Trabalho das Frankfurt”, solicitou-lhe um texto


Passagens. O próprio Benjamin sobre Baudelaire – e o considerou
havia proposto outros títulos impublicável. Numa longa carta, de
posteriormente, sendo que o título 10 de novembro de 1938, Adorno
inicial ilustra bem o caráter fundamentou a recusa, apontando
provisório e proces-sual de uma como maior erro a “falta de
coleção de fragmentos “em obras”. mediação”, que se tornaria
As Passagens, na verdade, não especialmente visível quando
eram nada mais e nada menos que Benjamin se obriga a seguir as
um imenso fichário com citações, coordenadas marxistas:
anotações e comen-tários sobre a
Paris do século XIX, um fichário Quero me expressar da maneira
mais simples e hegeliana [!]
“em obras”, dividido e
quanto possível. Se não me
subdividido em arquivos engano muito, falta uma coisa a
temáticos, também provisórios, e essa dialética: a mediação. [...] A
interligados através de palavras- omissão da teoria afeta a
chave, que desempenhavam ao empiria. [...] Podemos dizê-lo
mesmo tempo o papel de links, também da seguinte maneira: o
como diríamos hoje, estabele- motivo teológico de dar um
cendo ligações transversais entre nome às coisas se inverte na
os diversos arquivos. tendência de uma represen-
Um imenso fichário amplamente tação admiradora da mera
linkado, uma obra de passagens faticidade. [...] O efeito que
parte do trabalho como um
múltiplas entre os diversos arquivos,
todo [...] é que o Sr. se violentou
uma rede com seus nós temáticos e
a si mesmo [...] para pagar
suas ligações resistentes, permitindo tributos ao marxismo que não
ao mesmo tempo entradas várias, servem a este, nem ao Sr.
tinha tudo para se transformar em
um grande portal chamado “Paris Transformando a coesão aberta
do século XIX”. Mas, uma vez que e múltipla da rede na coesão fechada
fichários não se publicam e a e unidimensional do texto linear,
Internet não existia, Benjamin era Benjamin havia resistido ao fluxo
obrigado a transformar os seus fácil das mediações lógicas e sintá-
arquivos em textos que se ticas. Aplicando cortes e saltando
prestassem às formas de publicação de assunto em assunto sem
da época. Mais uma vez, a sina de aparente motivo, ele insistiu em
azarão o atingiu quando o Instituto preservar o caráter fragmentário do
de Pesquisa Social, mais conhecido seu fichário e da decorrente liber-
sob o nome de “Escola de dade do leitor de se movimentar

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BENJAMIN, Walter. Passagens... Georg Otte – p.223-226.

“aos pulos”. Mas, se o “estilo cine- não significa apenas fazer jus a um
matográfico” era admitido e até dos pensadores mais importantes
apreciado no âmbito da literatura, do século XX, mas representa ao
sua passagem para a esfera pública mesmo tempo a forma mais ade-
da vida intelectual era barrada quada de reproduzir esse pensa-
pelas convenções acadêmicas. mento, avesso a uma noção de
Parece ser mais uma ironia dessa texto como passagem de mão
história o fato de que o mesmo única – para citar a primeira obra
Adorno, que, nos anos trinta, foi o experimental de Benjamin (“Rua de
responsável pela recusa do ensaio mão única”). Graças à tradução
sobre Baudelaire, passe a fazer a cuidadosa de Irene Aron e Cleonice
apologia da escrita benjaminiana Paes Barreto Mourão, à colabo-
duas décadas mais tarde, em textos ração de Willi Bolle e Olgária
antológicos como “O ensaio como Chain Féres Matos e ao
forma” e “Parataxe”, evidenciando engajamento infatigável do Prof.
as qualidades de um estilo Wander Melo Miranda, diretor da
“paratático”, que se limita à sintaxe Editora UFMG e respon-sável pelo
aparentemente simplista das orações pioneirismo da edição, o leitor de
justapostas e coordenadas – sem as língua portu-guesa, pela primeira
mediações anteriormente cobradas. vez, tem acesso ao opus magnum
Traduzir e publicar os frag- de Walter Benjamin.
mentos das Passagens, portanto,

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