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14/06/2020 A percepção da mídia hostil | Observatório da Imprensa

domingo, 14 de junho de 2020


ISSN 1519-7670 - Ano 20 - nº 1091

Entre Aspas
Feitos & Desfeitas

A percepção da mídia hostil


Edição 605
por Rafael Cardoso Sampaio
31 de agosto de 2010

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Dois eventos recentes nas eleições de 2010 chamaram a atenção do público brasileiro. O primeiro debate entre os
presidenciáveis na Band e as entrevistas dos principais candidatos ao Jornal Nacional da Globo. Em especial, nas
entrevistas, foi notável um grande número de reclamações de partidários sobre as diferenças de tratamentos dadas aos
candidatos pelos entrevistadores. Tais reivindicações clamaram que houve um tratamento mais hostil para com a
candidata Dilma Rousseff, do PT, em relação ao candidato José Serra, do PSDB. A questão foi tamanha que o próprio
presidente Lula afirmou que os repórteres foram indelicados com Dilma. Nova polêmica se levantou sobre a capa da
revista Época e se ela buscaria, de alguma forma, prejudicar a mesma candidata.

Mas teriam, realmente, as perguntas do casal 20 do telejornal brasileiro sido muito mais hostis com Dilma? Serra foi
realmente tão bem tratado? A capa da revista Época denota uma ideia negativa a Dilma? Há, efetivamente, um partido
que determinada mídia, dita imparcial, apoia secretamente? Rapidamente, desejamos levantar questionamentos sobre a
possibilidade da distorção da entrevista não ter existido ou, no mínimo, existir com maior força entre os receptores.

Nesse sentido, há um campo de estudos nos Estados Unidos que trata exatamente dessa questão. Ao invés de se pensar
dos efeitos que a mídia (media effects) acarreta nas pessoas, analisam-se as percepções dos indivíduos sobre os meios de
comunicação massivos. Nesse sentido, os pesquisadores Robert P. Vallone, Lee Ross, and Mark R. Lepper levantaram a
hipótese da Hostile Media Perception (HMP) ou Percepção de Mídia Hostil.

Há percepção de mídia hostil quando o indivíduo acredita que os meios de comunicação de massa são tendenciosos ou
distorcidos no sentido inverso ao seu ponto de vista. Um militante de esquerda, por exemplo, acredita que a mídia é de
direita e vice-versa. Na verdade, o HMP produz uma falsa impressão do efeito de uma mensagem dos meios de massa.
Ou seja, essa percepção, em geral, tem baixo valor de realidade.

A ‘velha senhora’ com interesses pessoais

Uma explicação potencial para o HMP é que indivíduos com fortes preferências políticas (partidários, militantes) estão
tão certos da superioridade de suas opiniões que eles veem a cobertura balanceada ou neutra como inapropriada ou até
incorreta. Dito de outra forma, como os partidários acreditam estar do lado ‘certo’, uma cobertura equilibrada tenderia a
‘falsear’ a discussão. Nesse sentido, ela só seria ‘adequada’ se tratasse mais do lado do militante. Os argumentos
legítimos realizados pelo lado oposto são vistos como reivindicações inferiores, merecendo assim menor atenção da
cobertura. De tal maneira, a inclusão de tais reivindicações é percebida como uma compensação injusta do equilíbrio do
debate. E os estudos comprovam que quanto mais partidário o indivíduo, mais tende a ser distorcida a sua percepção
dos meios noticiosos de massa.

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Voltando às eleições brasileiras de 2010. É possível, então, que as mídias não sejam culpadas? Ou, ao menos, não
totalmente donas da culpa? Outra questão interessante dos estudos do HMP é a evidência por pesquisas que
demonstram que se um grupo já foi destratado pelos meios massivos, ele tende a ter uma visão negativa desses meios
no futuro. Considerando os diversos trabalhos que evidenciam uma cobertura negativa de Lula nas eleições passadas
(desde a edição do debate dos presidentes pela Globo em 1989 até a recente ‘perseguição da mídia’ no primeiro turno
de 2006), esse fato poderia estar ativando o HMP nos partidários do PT e da esquerda de forma geral em 2010?

Particularmente, busca-se enfatizar aqui que é preciso cuidado especial para diferenciação entre determinados veículos
noticiosos e os meios de comunicação de massa de maneira ampla. O fato de uma determinada revista ou emissora, por
exemplo, apresentar distorções (se é que apresentam) contra um candidato ou mesmo contra um partido não implica,
necessariamente, que toda a mídia comercial faça o mesmo. É injusto e até ingênuo fazer tal julgamento. Entretanto, ele
parece ser rotineiro entre esses que se veem como injustiçados. Tanto que geralmente os diversos veículos com suas
inúmeras características e especificidades acabam sendo tratados simplesmente como ‘a mídia’, aquela ‘velha senhora’
que parece sempre ter interesses pessoais e deixar certos grupos fora deles. Uma preocupação ‘extra’ com a percepção
hostil é quando ela deixa de se focar em determinados meios para se expandir para a mídia.

O peso das crenças pessoais

Dessa forma, conclui-se, em primeiro lugar, que a teoria da percepção de mídia hostil mostra-se como um interessante
indicador analítico para a realidade brasileira, especialmente nos períodos eleitorais. É possível que os pesquisadores
estejam sendo atenciosos à análise de inclinações nos próprios meios noticiosos, mas que estejam ignorando a
possibilidade da distorção se encontrar nos receptores.

Em segundo lugar, diversos estudiosos do HMP afirmam que seus resultados podem dar um alento ao campo
jornalístico, pois mesmo a cobertura mais equilibrada e objetiva tenderá a receber críticas dos partidários. Por outro lado,
isso também é um dilema – e exatamente pelo mesmo motivo. Não importando quão justa seja a cobertura, as críticas e
as reivindicações de distorção e manipulação sempre tenderão a existir. E ignorar completamente as opiniões dos
partidários, mesmo nessa perspectiva, é um rumo perigoso a ser tomado.

Este texto não visa a responder tais questionamentos, mas levantar reflexões advindas da teoria apresentada. Que o
leitor, especialmente se participante ou crítico dos meios de comunicação, analise bem antes de afirmar convicto que se
trata de uma ‘mídia hostil e manipuladora’. Será realmente a mídia ou poderiam ser as crenças pessoais do leitor que
estão pesando na hora da crítica? É uma perspectiva importante, senão vital, a ser considerada.

******

Jornalista formado pela UFJF e doutorando em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA

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Rafael Cardoso Sampaio

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