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O Feminismo e Elizabeth I: a exceção e a visão contemporânea

Article · December 2016

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Maria Helena Alves da Silva


Universidade do Vale do Paraíba
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O FEMINISMO E ELIZABETH I: A EXCEÇÃO E A VISÃO CONTEMPORÂNEA

Maria Helena Alves da Silva,


graduanda em História da UNIVAP (Universidade do Vale do Paraíba).
E-mail: Maria.42246@yahoo.com.br

Resumo: Rainha da Inglaterra e Governante Suprema da Igreja da Inglaterra, Elizabeth I (1533 –


1603) é vista como fonte de inspiração para milhares de mulheres, sendo alvo de dezenas de livros,
documentários e filmes produzidos todos os anos. Esse trabalho tem como objetivo, em vista de
muitas publicações que julgam Elizabeth como uma mulher feminista e ícone do feminismo do século
XVI, discutir se a última Rainha Tudor realmente influenciou positivamente a vida das mulheres da
Inglaterra, e se seus pontos de vistas e ações registrados podem ser comparados positivamente com os
ideais do feminismo. Para a efetivação dessa discussão, foi feito um levantamento de artigos, livros e
entrevistas levando em consideração seu aspecto qualitativo e relevante para a discussão.

Palavras-Chave: História da Europa, Feminismo, Elizabeth I

Governante e Rainha durante 45 anos, Elizabeth I (1533 - 1603), filha de Henrique


VIII (1491 - 1547) e Ana Bolena (1501 - 1536), executada por traição e adultério, é vista hoje
por algumas pessoas como ícone feminista e representante do feminismo na Idade Moderna -
a professora de Literatura Comparada da Universidade de Warwick, Susan Bassnett, escreveu
em 1998 um livro – “Elizabeth I: a feminist perspective” - que vê, através de uma perspectiva
feminista, a vida e as realizações de Elizabeth I. Mas não foi só em décadas recentes que
Elizabeth foi louvada por seu gênero: chamada de "Imperatriz do nosso sexo" por Diana
Primrose, conhecida por um único trabalho publicado em 1630 - 27 anos após a morte de
Elizabeth -, a Rainha deve ter parecido, de fato, uma deusa, tendo "segurado o Cetro com
mãos de Dama" (DEMERS, 2005, pág. 159), e mantido-se solteira e lutando contra todos os
que acreditavam que deveria se casar e ter um filho para assegurar a Dinastia. Como escreveu
a obervou a romancista americana Margaret George, recentemente

Elizabeth tem sido vista como uma ultrabem-sucedida diretora de empresa do sexo
feminino (ou heroína de filmes de ação, faça a sua escolha), bem como a maior
celebridade inglesa numa era fascinada pelo mística das celebridades, do ser famoso
por ser famoso. A forma como é retratada, com saias rodadas, cordões de pérolas,
golas altas, é imediatamente reconhecível como um ícone em todos os lugares. De
fato, seu reconhecimento comercial é tal que faz qualquer concorrente chorar de
inveja. (GEORGE, pág. 786-787).

De fato, os livros "Elizabeth I CEO: Strategic Lessons from the Leader Who Built an
Empire" (escrito pelo historiador Alan Axelrod e publicado pela Prentice Hall Press em 2002)
e "Leadership Secrets of Elizabeth I: Successful Strategies in the Face of Adversity" (escrito
por Shaun Higgins e Pamela Gilberd, publicado pela Diane Pub Co em 2000), comprovam a
visão de que Elizabeth I, uma das mulheres mais poderosas da História, pode nos dar diversas
lições sobre como lidar com empresas e negócios.

Elizabeth, no entanto, não era uma defensora da igualdade de gênero e nem dos
direitos e trabalhos femininos, pois via-se e era vista como uma exceção divina. Sua recepção
ao trabalho de Edmund Spencer (1552 - 1599) é uma evidência disso: publicado em 1590, "A
Rainha das Fadas", nome da obra de Spencer, dividida em doze cantos e seis livros, fez com
que seu autor fosse reconhecido como "o maior poeta vivo da Inglaterra" (SHAPHIRO, 2011,
pág. 84) no final do reinado de Elizabeth. No entanto, Spencer denunciava a “o caráter
antidivino e antinatural da ascensão de uma mulher ao trono de uma nação”, dizendo que era
aceitável apenas em casos excepcionais que uma mulher substituísse o homem como rei,
quando esta fosse elegida por Deus (ABREU, 2003, pág. 548). Ele estava se referindo, é
claro, a Elizabeth.

John Knox (1514 - 1572) também declarou que “Elizabeth era uma exceção divina”
(BUSH, 1998, pág. 26). Protestante e escocês, Knox foi vítima do tempo em sua publicação
“Primeiro Soar de Trombeta Contra o Monstruoso Regimento de Mulheres” (“The First Blast
of the Trumpet Against the Monstruous Regiment of Women”), onde afirmava que
promover a Mulher à responsabilidade do poder, superioridade,domínio e império
de qualquer Reino é repugnante à Natureza; uma coisa contrária a Deus, muitíssimo
oposta à Sua vontade revelada e Seu ritual aprovado, e por fim, é a subversão de
toda boa Ordem, de toda equidade e justiça (DUNN, 2004, pág. 52)

O grande problema para Knox foi que seu folheto, embora visasse criticar as rainhas
Maria de Guise (1515 - 1560), Maria I (1516 - 1558) e Catarina de Médici (1519 - 1589), foi
publicado no momento em que os escoceses protestantes precisavam da ajuda da Inglaterra e,
consequentemente, de Elizabeth, para expulsar do país os franceses católicos. O autor então
se desculpou, dizendo que a Rainha da Inglaterra era uma exceção a seus escritos, e pediu que
a data de publicação de sua obra fosse observada – havia sido publicado antes da ascensão de
Elizabeth e, portanto, não poderia ter se referido à ela. Ele não seria o único que louvaria
Elizabeth como uma exceção: o estudioso John Aylmer (1521 - 1594) escreveria em 1559
uma resposta à obra de Knox, anunciado que Elizabeth, ao contrário de sua meia-irmã que
havia se casado com um espanhol, preferindo mostrar-se como uma esposa obediente ao
invés de uma governanta, representava a "incomparável e infinita majestade" de Deus, de
forma que seus súditos deveriam compromete-se a ela, o "instrumento escolhido por Deus"
(MCLAREN, 1999, pág. 20, tradução minha). Diversas obras surgiriam durante seu reinado
com argumentos similares, que provavelmente tinham o “objetivo de adular as soberanas
Isabel I e Maria Stuart ou as muitas mulheres que na época detinham posições de poder, em
várias nações europeias, e, desse modo, obterem privilégios ou favores especiais para os seus
autores” (ABREU, 2003, pág. 547). De fato, poucos anos depois da ascensão de Elizabeth, o
seu “corpo de mulher escolhido por Deus para ser Seu instrumento” passou a ser
reconhecido. James Hamilton, o 3º conde de Arran e muito próximo da linha de sucessão do
trono escocês, escreveu em 1560 para William Cecil, um dos principais conselheiros de
Elizabeth, que “Deus a estruturou em forma de mulher, para sobrepujar qualquer de seus
progenitores, e Ele, de Sua infinita sabedoria, mostrará que é capaz de trabalhar para
manifestação de Sua glória em tal vaso e espécie” (DUNN, 2004, pág. 197).

Como observou a historiadora inglesa Helen Ruth Castor, é fácil evocar a imagem de
Elizabeth como uma poderosa Rainha no século 21, sabendo que, até então, o governo
feminino era visto com maus olhos, não havendo nenhum alerta para a população do século
XVI do grande reinado que estaria por vir, com uma das monarcas mais significativas e bem-
sucedidas que a Inglaterra teria (CASTOR, 2010). Como nota a autora, a própria origem da
palavra "Rainha" - "Queen", no original inglês, deriva da palavra anglo-saxônica cwén,
significando a esposa de um rei, e não a derivação feminina da palavra "Rei" (CASTOR,
2010). Apesar da origem de seu título, Elizabeth não se recusou a se casar, estabelecendo-se,
como observa Castor, como algo único, aceitando que ela seria diferente das mulheres
consideradas fracas e inadequadas para governar - das quais a Inglaterra tivera muitos
exemplos, como Matilda (1102 - 1167), Jane Grey (1536 - 1554) e Maria I -, mas sim uma
Rainha, uma deusa e um ícone, uma exceção à regra (CASTOR, 2010).

Descrita como "a mulher mais poderosa do seu tempo, numa altura em que a maioria
das mulheres não eram nada mais do que bens" pelo escritor Wayne Savage (SAVAGE,
2010, tradução minha), este entrevistou no início de 2015 a diretora artística Joanna Carrick,
que escreveu uma peça chamada Progress, que se situa no verão de 1561 e tem como um dos
personagens a Rainha Elizabeth I. De acordo com a diretora,

A idéia de direito das mulheres e as mulheres serem permitidas a fazerem todas as


coisas que os homens fariam simplesmente não ocorreria a ela e ainda mais como
um indivíduo que ela era; ela viveu (esse ideal). Ela era brilhante no esporte e no
passeio a cavalo, muito ativa, com um intelecto enorme - ela era a prova viva de que
mulheres são absolutamente incríveis. (Mas) ela foi a monarca (e sentia que tinha
sido) apontada por Deus, apesar de ser uma mulher (e) isso a diferenciava do resto
da humanidade. De certa forma ela era uma completa contradição... (SAVAGE,
2015, tradução minha).

A contradição no comportamento da Rainha também havia sido mencionado por


Margaret George:

Ela era a Rainha Virgem que encorajava a sedução (até certo ponto) e todos os
sinais externos de amor arrebatador. Seu lema era "Semper eaden", "Sempre a
mesma", e ainda assim era famosa por mudar de idéia várias vezes sobre a
mesma decisão. Era conhecida por chamar de volta seus marinheiros depois de
já terem zarpado. Sua imagem é a de liderança e determinação, mas ela gostava
de deixar "perguntas sem resposta". Era exigente, odiava o cheiro do couro
perfumado e mau hálito, mas xingava e cuspia. Era mesquinha, mas adorava
joias... (GEORGE, pág. 785)
Seu comportamento era tão contraditório que até parecia intencional, uma vez que as
críticas dirigidas ao sexo feminino desse momento histórico era sua grande indecisão, sua
sensibilidade exacerbada e sua dependência. Apesar disso, para o historiador David Loades,
embora fosse possível que a Rainha fosse mesmo incapaz de se decidir rapidamente, as suas
indecisões e adiamantes célebres também poderiam ser feitos deliberadamente para mostrar o
seu controle (LOADES, 2010, pág. 226).

A escritora Joanna Carrick também discorreu sobre o fato de que Elizabeth, apesar de
ter amigas mulheres, não acreditava que as mulheres deveriam ter posições de poder: “(Tudo
o que ela alcançou) foi indiscutivelmente brilhante; ela era indiscutivelmente brilhante, (mas)
em um contexto moderno ela foi extremamente sexista; anti-mulher de muitas maneiras”
(SAVAGE, 2015, tradução minha).

Elizabeth também foi representada como uma exceção em seus retratos; feitos e
copiados extensivamente durante seu reinado - de acordo com o historiador David Loades, é
provável que todos os cortesãos tivessem um retrato da Rainha "nas suas galerias ou salões de
visitas como um símbolo quase obrigatório de vassalagem" (2010, pág. 227) - tinham com o
objetivo glorificar e celebrar sua imagem de governante, persuadindo "espectadores, ouvintes
e leitores de sua grandeza" (BURKE, 1994, pág. 31), registrando ainda sua "autoridade,
riqueza e grandeza, as qualidades que requereriam absoluta obediência" (GENT E
LEEWLLYN, 1995, pág. 32, tradução minha), tais retratos promoviam da idéia da
excepcionalidade de Elizabeth "em relação às mulheres da época, quer pelo seu estatuto de
virgem, quer pelo seu carácter quase divino" (VIEIRA, 2004 pág. 68). Sua excepcionalidade
também foi alvo de um de seus primeiros atos propagandísticos: a publicação de suas preces
pessoais, que embora fossem dirigidas a Deus, obviamente era sua declaração para o mundo.
Nela, Elizabeth fazia uma “poderosa propaganda para si mesma como rainha de seu povo
ordenada por Deus” (DUNN, 2004, pág. 145):

Sou perfeita de corpo, com boa forma, inteligência saudável e substancial, mais
prudência que a de outras mulheres, e além disso, distinguida e superior no
conhecimento e uso de literatura e línguas, o que é altamente apreciado porque raro
no meu sexo. Por fim, fui dotada de todas as qualidades reais e dons dignos de um
reino. (DUNN, 2004, pág. 145)

Encontrar um equilíbrio entre o ser mulher e agir como homem - uma vez que a
grande parte da sociedade via a mulher como incapaz de exercer papéis públicos - foi uma
questão muito bem trabalhada por Elizabeth e aqueles que a ajudavam a exibir sua imagem
(uma vez que não podemos ver seu cuidado com seus discursos, aparições, sua
representatividade em obras e quadros como algo aleatoriamente feito). Não era possível
despir-se de suas características femininas e agir como homem, pois isto poderia criar uma
imagem não-natural para o público. Dessa forma, Elizabeth não tentou imitar a imagem
masculina de seu pai ou de outros monarcas masculinos - ela utilizou-se dos equivalentes
femininos desses atributos, como beleza e mistério (LOADES, 2010, pág. 226).

Ainda para superar as expectativas esperadas de seu sexo, Elizabeth utilizou-se da


teoria medieval dos dois corpos do rei: pressuponha-se que o corpo poderia funcionar ao
mesmo tempo no plano metafórico (político) e no físico (natural) (VIEIRA, 2004, pág. 64).
Seria o plano metafórico que legitimaria a representação icônica da rainha, uma vez que seu
corpo político tinha todas as características que faltavam no corpo feminino: o
“discernimento, determinação, coragem e probidade” (DUNN, 2004, pág. 142). A dualidade
de seu corpo pode ser visto em seu discurso mais popular, dado para o seu exército em
Tilbury frente à Armada Espanhola. Usando um vestido e uma armadura, Elizabeth disse uma
de suas frases mais famosas: "Sei que tenho o corpo de uma mulher fraca e frágil, mas tenho
o coração e coragem de um rei, e de um rei de Inglaterra..." (LOADES, 2010, pág. 234).

Em diversos discursos, Elizabeth ainda chamava-se de "Príncipe" ou "Rei", mas não


para ser reconhecida como homem (VIEIRA, 2004, pág. 74). Utilizando-se da versão
masculina das palavras, a Rainha pretendia "reivindicar para si qualidades atribuídas aos
indivíduos do sexo masculino", construindo assim uma identidade mostrando que, apesar de
ter todas as desvantagens conhecidas por ser mulher, ela era recompensada em seu corpo
político com atributos masculinos (LIMA et al, 2007, pág. 11). Seus discursos mostravam que
a Rainha tinha orgulho de si mesma, fazendo com que sua figura se tornasse intocável e
onipotente, além de se projetar sobre os demais e provocar a desigualdade entre os
interlocutores, como a ordem comum do discurso da monarquia, de forma a legitimar a
diferença entre o governante e os outros (LIMA et al, 2007, pág.11).

Se Elizabeth tivesse influenciado a vida das mulheres de sua época com ideais de
direitos e igualdades, pensar-se-ia que o efeito teria sido sentido pelo menos até o final de seu
reinado. No entanto, a historiadora Antonia Fraser, em um estudo sobre as mulheres da
Inglaterra do século 17, notou que o status social da mulher subiu com o colapso social
provocado pela Guerra Civil inglesa (1642 - 1649) e desceu novamente com a restauração da
monarquia e restauração da velha ordem em meados de 1660 (ABREU, 2003, pág. 745).

O reinado de Elizabeth, inclusive, foi marcado por um retrocesso na educação


feminina (ABREU, 2003, pág. 108). O ensino das línguas modernas e do latim, das literaturas
clássicas, filosóficas e científicas começaram a ser vedadas, restringindo o acesso "com o
saber clássico familiar à inteligência aristocrática masculina, aos advogados, aos médicos e
aos clérigos" (ABREU, 2003, pág. 117), além de obras que não estivessem traduzidas para o
inglês. Na época da morte da Rainha, "a ideia de que a inteligência da mulher era inferior à
do homem já voltara a ser um lugar-comum, tanto entre os homens quanto entre as próprias
mulheres" (ABREU, 2003, pág. 108). Além de ser um processo histórico, esse ofuscamento
das mulheres frente á Elizabeth também contribuíam para uma melhora em sua imagem – a
última Rainha Tudor não gostava de competir intelectualmente com outras mulheres,
preferindo que essas se dedicassem à artes mais femininas, como canto, dança e bordados
(embora Elizabeth também fosse prendada nesses quesitos).

Mas também não devemos ver esse acontecimento como único e objetivo do reinado
desta Rainha: alguns dos nomes de destaque no que se referia à educação das mulheres do
século XVI acreditavam que a mulher deveria, sim, ser instruída, mas não ter participação na
política. Juan Luis Vives, tutor da futura rainha Maria I, afirmou que "a mulher não tem
energia, inteligência ou discrição suficiente para exercer o poder político" (ABREU, 2003,
pág. 551), e que "...não apenas as tradições de nossos antepassados, mas todas as leis
humanas e divinas concordam com a poderosa voz da natureza que exige, por parte das
mulheres, observância e submissão" (FRASER, 2010, pág. 9). Além dele, Thomas More,
muito louvado por seu apoio à educação das mulheres, declarou quando sua filha estava
grávida de que gostaria que sua criança fosse parecida com ela em todos os aspectos, menos
"na inferioridade do seu sexo" (FRASER, 2010, pág. 9).

Embora seja possível perceber a decadência da popularidade do ensino às mulheres, a


própria educação esmerada da Rainha forçava os cortesões a darem o mínimo de educação
para suas filhas, e na última parte do reinado de Elizabeth, já haviam teorias recorrentes de
que não era necessário o ensino para uma mulher que não pertencesse à realeza, uma vez que
qualquer outra mulher não seria de utilidade no governo e, portanto, não teria motivos para
ser educada (ABREU, 2003, pág. 107).

No entanto, seria absurdo dizer que Elizabeth não representou, em nada, um avanço
ou um modelo para as mulheres. Apesar de suas ações, Elizabeth era, de fato, uma mulher.
Seu exemplo de manter-se virgem e não se casar abriu um precedente para jovens mulheres
de famílias aristocráticas fazerem o mesmo. Como observou Jane Dunn, a virgindade ainda
era uma virtude positiva para uma mulher (e também para os homens) que conseguisse
elevar-se aos pecados carnais e inferiores (DUNN, pág. 107). A escolha por uma vida
celibatária era vista como admirável e honorável, considerando a sociedade cristã da época
(DUNN, pág. 150).

Talvez fruto de artigos escritos sem pesquisa crítica, a visão de Elizabeth I como
feminista, como podemos ver nesse artigo, não tem fundamentos. A ideologia feminista como
conhecemos hoje não existia no século 16, e não poderia ter influenciado Elizabeth em suas
ações. Afirmar que Elizabeth é feminista seria dizer que ela estava "à frente do seu tempo",
que tinha uma visão moderna, revolucionária até, do papel da mulher na sociedade. No
entanto, dar essa descrição à Elizabeth, ou a qualquer outra mulher da antiguidade, seria
ilógico: afinal de contas, ninguém pode estar à frente de seu tempo.
Obviamente, a visão de uma mulher declaradamente virgem, embora flertasse muito,
sem marido e nem filhos, governando só (no sentido de não ter um marido para guiá-la em
suas decisões), foi uma visão estarrecedora no século 16, e ainda o é hoje, quando as
mulheres ainda são pressionadas para se casarem, e quando o fazem, para terem filhos. No
livro "Como Descobrir Sua Genialidade – Aprenda a Pensar Com As Dez Mentes Mais
Revolucionárias Da História", Michel J. Gelb escreve sobre como o reinado triunfal de
Elizabeth mudou a idéia mundial da capacidade das mulheres (GELB, 2002, s.p.), e Flávia
Peres Pregnolatto descreve que Elizabeth "foi a primeira mulher independente e bem
sucedida no reino da política masculina, sendo assim a maior monarca da Grã Bretanha"
(PREGNOLATTO, 2012, pág. 1). Nota-se, então, uma necessidade de representação de
mulheres fortes e independentes na História.

Além disso, a utilização de suas decisões e comportamentos no século XVI como a


dirigente de uma empresa atualmente pode mostrar, de certa forma, a falta de exemplos
femininos em cargos de gerenciamento. Afinal de contas, hoje a mulher ainda tem, muitas
vezes, que enfatizar a sua capacidade de ser agressiva e dominante, de agir como homem,
sem levar em conta a amabilidade ou sensibilidade características da mulher que podem levar
ao enfraquecimento de suas decisões. Como observou também Allison Heisch, para a
restauração das mulheres na História era necessário o foco em mulheres excepcionais -
embora não fossem representativas, as mulheres de destaque na história muitas vezes
transformaram os valores e práticas das sociedades masculinas em que viviam (HEISCH,
1980, pág. 46).

Como observa Liliana Lopes Dias, "a ascensão do feminismo e a afirmação do


potencial feminino convocavam uma figura feminina forte no ecrã" (DIAS, pág. 87), e
Elizabeth foi uma das mulheres da História escolhidas para representar esse papel - de acordo
com o IMDB, mais de 100 filmes foram produzidos tendo a Rainha como personagem entre
1904 e 2014. Talvez seja tentador que, tendo governado tanto e tendo tanto destaque
histórico, logo após sua morte quanto hoje, imaginar essa mulher poderosa como sendo nada
menos do que portadora dos ideais feministas. Como observou Johanna Mcgeary em 1999
para a revista Time,

Primeira feminista. Primeira spinmeister. Grande celebridade. Portanto, nossa era


pode julgá-la. Para a Inglaterra do século 16, Elizabeth I foi a mística feminina
original: Deusa Gloriana, Rainha Virgem, finalmente e duradoura, a Boa Rainha
Bess. A governante mulher mais notável da história pode reivindicar algumas
realizações tradicionalmente principescos, mas ela deu o seu nome a uma era. Sua
história é de um sucesso político prodigioso, construído osbre o poder da
personalidade: a Rainha como uma estrela. Uma mulher tão forte, uma política tão
hábil, uma monarca tão magnética que imprimiu a si mesma de forma indelével na
mente de seu povo para reformular o destino da Inglaterra (MCGEARY, 1999,
tradução minha).

O reconhecimento de Elizabeth e sua excepcionalidade também foi notado em seu


reinado, principalmente após a derrota da Armada Espanhola em 1588, quando a Rainha já
contava 55 anos. Acredita-se que o Papa Sexto V, que havia ainda recentemente renovado
uma bula de excomunhão dirigida à Elizabeth, teria exclamado quando soube da vitória
inglesa: “Vede só como ela governa! É apenas uma mulher, apenas dona de metade de uma
ilha, e no entanto se faz temida pela Espanha, pela França, pelo Império, por todos” (DUNN,
2004, pág. 467).

Referências Bibliográficas:

ABREU, Maria Zina Gonçalves de. A reforma da Igreja em Inglaterra: acção feminina,
protestantismo e democratização política e dos sexos. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003.

CASTOR, Helen. Elizabeth I: Exception to the Rule. Published in History Today, Volume 60, Issue
10 October 2010. Acesso em 11 de Novembro de 2015. Disponível em:
http://www.historytoday.com/helen-castor/elizabeth-i-exception-rule

DEMERS, Patricia. Women's Writing in English: Early Modern England. University of Toronto
Press, 2005.

DIAS, Liliana Lopes. O estereótipo Feminino na Representação Fílmica e Televisiva de Elizabeth I.


In: Actas das II Jornadas de Investigação do CIAC. BORGES, Gabriela (Org.). Faro, 2011

DUNN, Jane. Elizabeth e Mary. Tradução de Alda Porto. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
DUNN, Jane. Elizabeth and Mary. United States of America: Knopf Doubleday Publishing Group,
2007.

FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.

GELB, Michel J. Como Descobrir Sua Genialidade – Aprenda a Pensar Com As Dez Mentes Mais
Revolucionárias Da História. AGIR, 2002.

GENT, Lucy; LLEWLLYN, Nigel. Renaissance Bodies: The Human Figure in English Culture, C.
1540-1660. Great Britain: Reaktion Books, 1995.

HEISCH, Allison. Queen Elizabeth I and the Persistence of Patriarchy. Revista Feminist Review. No.
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LOADES, David. As Rainhas Tudor – o poder no feminino em Inglaterra (séculos XV – XVII).


Portugal: Caleidoscópio, 2010.

LIMA, Maria Cecília; MEDEIROS, Cintia Rodrigues de Oliveira; Jr., Valdir Machado Valadão. A
Manifestação do Narcisismo nas práticas discursivas de liderança. Gestão.org - Revista Eletrônica de
Gestão Organizacional. V. 5, n. 3, set/dez, 2007.

MCLAREN, A. N. Political Culture in the Reign of Elizabeth I: Queen and Commonwealth 1558–
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MCGEARY, Johanna. 16th Century: Queen Elizabeth I (1533-1603). Publicado na Revista Time em
31 de Dezembro de 1999. Acesso em 12 de Novembro de 2015. Disponível em:
http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,993034,00.html

PREGNOLATTO, Flavia Peres. Análise da Obra A Megera Domada de William Shakespeare. 10º
Simposio de Ensino de Graduação. Disponível em:
http://www.unimep.br/phpg/mostraacademica/anais/10mostra/4/506.pdf

SAVAGE, Wayne. Was Queen Elizabeth I the first feminist? .Acesso em 11 de Novembro de 2015.
Disponível em:
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SHAPHIRO, James S. 1599: Um ano na Vida de William Shakespeare. São Paulo: Planeta do Brasil,
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VIEIRA, Maria de Fátima de Sousa Basto. O corpo da Rainha: contributos para uma leitura anti-
essencialista e espacial da iconografia Isabelina. Universidade do Porto, 2004.

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