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Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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2
Ficha Catalográfica
Braga, Felipe da Silva
122 f.; 30 cm
Inclui bibliografia
CDD: 200
4
Agradecimentos
Ao CNPq e à PUC- Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Aos meus grandes amigos Wagner Toledo e Abimar Oliveira de Morais. Estes
foram os grandes responsáveis pela minha entrada no curso de mestrado e
continuidade nos estudos.
Aos professores e alunos da PUC- Rio, que fizeram parte deste importante
período da minha vida.
Aos meus familiares e amigos que de alguma forma contribuíram para esta
conquista.
5
Resumo
Palavras-chave
Igreja; sacramento; sinal; símbolo; Cristo; salvação; Revelação.
6
Abstract
Keywords
Church; sacrament; signal; symbol; Christ; salvation; Revelation.
7
Sumário
1. Introdução 9
1ª parte: Fundamentos 14
2. Simbolismo sacramental 15
2.1. Problemática 15
2.2. Definição de símbolo 17
2.3. Fundamentos para um simbolismo sacramental 21
2.3.1. Revelação 21
2.3.2. Constituição antropológica 23
2.4. Sacramentos, símbolos de salvação 25
2ª parte: A Igreja 56
4. Compreensão de Igreja 57
4.1. Introdução 57
4.2. Definição de Igreja 57
4.3. Imagens da Igreja 60
4.3.1. Povo de Deus 61
4.3.2. Corpo de Cristo 65
8
6. Perspectivas 116
1
Introdução
Motivação
Há uns quatro anos, durante a graduação, tive uma disciplina chamada
“Introdução aos sacramentos”, onde o professor abordou, entre outras coisas, a
temática da Igreja como sacramento. Pra mim foi surpreendente por ser também
uma novidade. O que eu sabia até ali era que existiam sete sacramentos somente,
tal como me disseram na catequese. O tema me encantou.
De fato eu já tinha uma queda ou um gosto todo especial pela
sacramentologia, chama-me muito a atenção, por exemplo, a idéia dos sinais, do
mistério, da mística, dos símbolos... Não foi à toa que passei a freqüentar a Igreja
Católica a partir de uma bela celebração da Eucaristia que participei num domingo
de Ramos: incenso, cantos, ramos... A idéia dos sinais me encantou
profundamente.
E fiquei ainda mais empolgado quando descobri que a Igreja é também um
sinal de Cristo neste mundo, um sacramento. Percebi que ela é muito mais que
uma instituição burocrática/ humana, mas que é a própria presença continuadora
da salvação de Cristo nesta vida. Isto nos dá uma consciência muito mais
profunda e diferente da nossa responsabilidade e missão neste mundo. Muda a
consciência que a Igreja tem de si mesma e valoriza sua presença.
O interesse pelo tema surge, portanto, como o resultado da minha própria
experiência de fé, enquanto Igreja. Surge ainda do desejo de fazer com que
também outros conheçam essa realidade tão importante para nós. Importante
porque muda, conforme já expus, a consciência que a Igreja tem de si mesma, da
sua realidade, missão e responsabilidade neste mundo. É neste sentido que
pretendemos trabalhar o tema.
Breve histórico
Por muito tempo existiu na Igreja uma compreensão restritiva a respeito dos
sacramentos. Essa palavra era utilizada e pronunciada unicamente com referência
aos sete sacramentos ou ritos sacramentais. Entretanto, é preciso dizer que essa
10
1
Cf. BOROBIO, D. (Org.). Organismo sacramental pleno: realidades sacramentais e dimensões
de sacramento, em A celebração da Igreja. Vol.1. São Paulo: Loyola, 1990, p. 293-294.
11
Problemática
Mas em que sentido a Igreja é sacramento de Cristo? O Concílio Vaticano
II, motivado por alguns teólogos, recuperou da Patrística a extensão do conceito
sacramento. Mas o modelo sacramental adotado pelo Concílio Vaticano II parece
ter sido assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido? Sendo
sacramento, a Igreja é um prolongamento da corporeidade de Cristo sobre a terra.
Para que existe esse prolongamento? Quais as implicações desse pensamento para
a doutrina e para a pastoral da Igreja?
Hipóteses
Cristo é sacramento primordial da salvação, o sacramento de Deus por
excelência2: “Quem me vê, vê o Pai” 3. Seus atos, sua vida são a manifestação do
amor divino pelos homens, sinais e causa de salvação. O Filho de Deus tornou-se
verdadeiramente homem e no encontro com ele temos um encontro pessoal com o
Deus vivo, pois aquele homem é, pessoalmente, o Filho de Deus. “O encontro
humano com Jesus, é, pois, o sacramento de encontro com Deus” 4.
Porém, como podemos encontrar o Senhor glorificado se após a sua
ressurreição e glorificação ele desapareceu do nosso horizonte visível?
Após sua ressurreição e ascensão, “Cristo torna sua presença ativa de graça
visível e palpável entre nós, não diretamente por sua corporeidade, mas
prolongando, por assim dizer, sua corporeidade celeste sobre a terra, em formas de
manifestação visíveis, que exercem entre nós a ação de seu corpo celeste. São
precisamente os sacramentos o prolongamento terrestre do “corpo do Senhor”. E
concretamente a Igreja”5.
O mistério da redenção através da corporeidade se fundamenta no próprio
mistério da encarnação e da redenção cristã. Na pessoa de Cristo a corporalidade
se tornou fonte de glória, redenção e santificação para nós e tornou possível o
encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão.
2
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro com Deus. Petrópolis: Vozes, 1967,
p.20.
3
Cf. Jo 14,9.
4
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 47.
5
Cf. Ibid., p. 48.
12
Método
Nosso ponto de partida será o livro Cristo, Sacramento do encontro com
Deus (fonte primária), de E. Schillebeeckx, que, se baseando em testemunhos
explícitos da Escritura e dos Padres da Igreja, deu uma importante contribuição à
Teologia Católica ao retomar e aplicar, na modernidade, o conceito “sacramento”
tal como era compreendido no início da Igreja. A leitura de Schillebeeckx nos
introduz também numa das grandes perspectivas teológicas do Vaticano II, que
sob a influência de Congar, Rahner e De Lubac retomou e definiu a Igreja como
Sacramento na Constituição Dogmática Lumen Gentium10.
Nosso método, portanto, consistirá no estudo de fontes que tratam do tema
(livros, artigos...), bem como dos documentos conciliares e pós-conciliares que
expressam a retomada dessa concepção na teologia católica atual, entre eles
Lumen Gentium e Puebla.
6
Cf. Ibid., p. 53.
7
Cf. Ibid., p. 54.
8
Cf. Ibid., p. 60.
9
Cf. DE LUBAC, Henri. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un
mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est elle-
même le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de
Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de
Dieu”.
10
“A Igreja é como que sacramento isto é, sinal e instrumento da união íntima com Deus e da
unidade de todo gênero humano [...]” Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM,
n.1 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 1997.
13
1ª Parte
Fundamentos
Esta primeira parte da nossa pesquisa consiste de dois capítulos e tem como
objetivo estabelecer os alicerces do nosso trabalho. No primeiro, trataremos da
característica simbólica dos sacramentos: o que é o símbolo, sua função, sua
eficácia e de que modo os sacramentos são entendidos como símbolos de
salvação. A idéia deste primeiro capítulo é mostrar que enquanto símbolo os
sacramentos comunicam aquilo que simbolizam. E assim, a Igreja.
No segundo, o foco será a Cristologia: Cristo, sacramento original. Neste
segundo capítulo trataremos da vida de Cristo, seu exemplo, a salvação operada
na cruz, sua ressurreição. Enfim, a vida e a pessoa de Cristo como o grande
sacramento revelador de Deus à humanidade. Cristo é a razão pela qual a Igreja
existe, e os mistérios salvíficos, aquilo que ela comunica à humanidade. Portanto,
a Cristologia constitui a base da eclesiologia. Daí a sua importância.
15
2
Simbolismo sacramental
2.1
Problemática
11
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T. (org.). Dicionário de conceitos fundamentais do
cristianismo. São Paulo: Paulus, 1999, p. 779.
12
Cf. MARDONES, J.M. A vida do símbolo: a dimensão simbólica da religião. São Paulo:
Paulinas, 2006, p. 7.
13
Cf. Ibid., p. 8-9.
14
Cf. Ibid., p. 10.
16
15
Cf. Ibid., p. 137.
16
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA J.T., op. cit., p. 779.
17
Cf. Ibid., p. 784.
18
Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 11.
17
2.2
Definição de símbolo
19
Cf. SAMANES, C.F.; ACOSTA, J.T., op. cit., p. 784.
20
Cf. Ibid., p. 784.
21
Termo grego de origem militar. “Quando um soldado saía do quartel, quebrava-se uma vara;
uma parte era dada àquele que saía e a outra era guardada pelo porteiro; quando o soldado voltava,
o colocá-las juntas e comparar ambas as partes da vara encaixando-as bem era o que se chamava
de símbolo”. Cf. FERNÁNDEZ, C. Manual de liturgia II: CELAM: a celebração do Mistério
Pascal: fundamentos teológicos e elementos constitutivos. São Paulo: Paulus, 2005, p. 87.
18
“colocar junto”, mas juntar alguma coisa que já estava junto antes e agora não está
mais. Deste modo, o símbolo não é algo que cria a unidade, mas a restabelece. Em
outras palavras, o que constitui o símbolo é que os portadores das metades têm a
possibilidade de se comunicar um com o outro e só tem sentido por causa dessa
comunicação22.
Um bom exemplo para compreendermos esta explanação é a imagem do
joelho. Duas metades movidas por uma única articulação e que só têm sentido se
unidas. A locomoção das pernas depende do trabalho conjunto das metades.
Essas definições são importantes porque nos ajudam a compreender o
processo de simbolização. O pensamento simbólico é algo consubstancial ao ser
humano; precede a linguagem e a razão discursiva. Não se trata de uma criação
irresponsável da psiqué, mas algo que preenche uma função e responde a uma
necessidade humana23.
Os símbolos revelam certos aspectos da realidade que desafiam qualquer
outro tipo de conhecimento e linguagem. Expressam muito mais do que alguém
poderia exprimir pela linguagem analítica24. Constituem a parte do humano que
não pode se apresentar diretamente à sensibilidade25. “Revelam uma modalidade
do real e da estrutura do mundo que não é evidente no nível da experiência
imediata” 26. Trata-se, portanto, de uma categoria universal27.
No campo religioso, o teólogo Paul Tillich entende o símbolo como a
linguagem mais própria para a fé: “A fé, como a condição em que se está tomado
por aquilo que nos toca incondicionalmente, não conhece outra linguagem a não
28
ser a do símbolo” . Isto significa dizer que as pessoas só conseguem
compreender e expressar a sua fé e a sua religiosidade, num sentido bem amplo,
utilizando-se do visível para falar do invisível, do presente para falar do ausente,
do humano para falar do divino, do imanente para falar do transcendente. “Aquilo
22
Cf. AUGÉ, M. Liturgia: história, celebração, teologia, espiritualidade. 2ªed. Ave Maria: São
Paulo, 2004, p. 99-100; GIRARD, M. Os símbolos na Bíblia: Ensaio de teologia bíblica enraizada
na experiência humana universal. Paulus: São Paulo, 1997, p. 26.
23
Cf. ELIADE, M. Imagens e símbolos. Martins Fontes: São Paulo, 1996, p. 8.
24
Cf. Ibid., p. 13.
25
Cf. MARDONES, J.M., op. cit., p. 90.
26
Cf. Ibid., p. 89.
27
Cf. ALDAZÁBAL, J. Gestos e símbolos. São Paulo: Loyola, 2005, p. 15.
28
Citação de PAUL TILLICH em KLEIN, R. O lugar e o papel dos símbolos no processo
educativo-religioso. Disponível em: http://www.est.com.br/publicacoes/estudos_teologicos.
19
que toca o homem incondicionalmente precisa ser expresso por meio de símbolos,
porque apenas a linguagem simbólica consegue expressar o incondicional” 29.
Alguns traços marcantes acompanham e identificam a experiência
simbólica.
Primeiro, do ponto de vista cognitivo o símbolo deve ser sempre objeto de
conhecimento imediato, capaz de ser assimilado e conhecido com facilidade;
Também do ponto de vista lingüístico deve ser facilmente exprimível, simples de
ser compreendido. O simbolizante está para ajudar a compreender o simbolizado,
e não para dificultar a sua compreensão30.
Do ponto de vista semântico, o simbolizante deve ser o mais possível
expressivo (objeto, palavra, gesto, pessoa...), bem como facilmente reconhecido
por uma coletividade. O símbolo deve ser algo que faz parte da sociedade na qual
está inserido, facilmente reconhecido e identificado por todos, e, portanto, ligado
à vivência/ experiência pessoal ou coletiva de uma determinada pessoa ou grupo,
respectivamente. Neste sentido, o símbolo só se torna instrumento de
comunicação se atinge a experiência vivida daqueles que o recebem31. Deve ser
extraído do quotidiano daqueles a quem se dirige.
Evidencia-se, assim, o papel e o poder das imagens e dos símbolos nas
religiões e na religiosidade das pessoas.
Pode-se dizer que do ponto de vista teológico até a visão e a interpretação
que o homem tem e faz do mundo são de natureza simbólica. Os meios que se
utiliza para transmissão dessa cosmovisão, tais como a linguagem, por exemplo,
são igualmente de natureza simbólica.
No simbolismo descobrimos uma nova relação com a realidade e,
sobretudo, uma possibilidade de comunicar e de comunicar-nos com tudo aquilo
que nos circunda de uma forma muito mais profunda do que qualquer outro modo
nos permita. A capacidade simbólica do homem não consiste em dizer ou fazer
determinadas coisas, mas em ver todas as coisas de uma determinada maneira, na
sua integração global e significativa32.
Neste sentido, só é possível chegar a uma visão coerente, unitária e
significativa da realidade se ele se abre ao transcendente, de tal forma que o
29
Cf. TILLICH, P. Dinâmica da fé. São Leopoldo: Sinodal, 1974, p. 30 em Klein, R. op.cit.
30
Cf. GIRARD, M., op. cit., p. 37.
31
Cf. Ibid., p. 38-39.
32
Cf. AUGÉ, M., op. cit., p. 100.
20
33
Cf. Ibid., p. 100.
34
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 88.
35
Cf. AUGÉ, op. cit. p. 101.
36
Cf. BELLOSO, J.M.R. Os sacramentos: símbolos do Espírito. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 57-
58.
21
2.3
Fundamentos para um simbolismo sacramental
2.3.1
Revelação
Muitas vezes e de modos diversos falou Deus aos Pais por meio dos profetas;
agora nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho39; Há um só
Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo40.
37
Cf. RAHNER, K. Theologie des symbols em SCHNEIDER, T. (org.). Manual de Dogmática.
Vol. II. Petrópolis: Vozes, p. 192.
38
Cf. BELLOSO, J.M.R., op. cit., p. 59.
39
Cf. Hb 1, 1-2.
40
Cf. 1Tm 2,5.
22
41
“O homem é um ser sacramental; no nível religioso, exprime suas relações com Deus num
conjunto de sinais e símbolos; Deus, igualmente, os utiliza quando se comunica com os homens.
Toda a criação é, de certa forma, sacramento de Deus, porque no-lo revela”. Cf. DOCUMENTO
DE PUEBLA 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus, 2004, p. 506.
42
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 89.
43
Cf. LATOURELLE, R. Teologia da Revelação. 4ª ed. São Paulo: Paulinas, 1985 p. 33.
44
“A religião veterotestamentária é a religião da “palavra”, mas, como no caso de qualquer
linguagem, a primeira reação ao “dizer” não é outro dizer, mas o silêncio e a escuta”.
FISICHELLA, R. Introdução à teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 2000, p. 71.
45
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174.
46
Cf. Ibid., p. 175.
47
“O Novo Testamento dirá que em Cristo “a graça de Deus se manifestou para a salvação de
todos os homens” (Tt 2,11) e que nele “se manifestaram a bondade e o amor de Deus, nosso
salvador” (Tt 3,4; 2Tm 1,10). “Cristo é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15) a irrupção da
divindade na carne visível (Cl 2,9). Os Padres, como Agostinho, reconhecerão que “não há outro
sacramento de Deus senão Cristo”. E outros admirarão a união sem confusão das duas naturezas
que visa um divino intercâmbio”. Cf. BOROBIO, D. (org.). A celebração da Igreja: liturgia e
sacramentologia fundamental. Vol.1. São Paulo: Loyola, 2002, p. 298.
23
que o próprio Jesus tinha ao situar-se diante da sua vida, do sentido a dar a ela e
da resposta que ele realmente deu a essa vida48.
O sinal inequívoco e realizador de Deus por excelência no Novo Testamento
é, portanto, a pessoa de Jesus Cristo, definido por são João como o Verbo eterno
de Deus feito carne49 para manifestar aos homens o amor50 e a Verdade de Deus51;
e, depois dele, a comunidade na medida em que atua no poder do ressuscitado.
Sua vida e seu exemplo são para a humanidade sinais de vida e salvação52.
A esta comunicação divina deve-se, por parte dos crentes, a resposta
obediente e confiante a que denominamos fé. O fato de ser realmente Deus que
age e é experimentado no evento salvífico não se pode comprovar
independentemente da fé53; pois da experiência faz parte não somente o evento,
mas também a sua interpretação54.
Por ser um evento dirigido aos seres humanos de forma humana, a revelação
não poderia deixar de ser simbólica. Entenda-se por “simbólica” primeiramente a
capacidade de se dirigir ao humano por uma linguagem não analítica, mas
compreensível, já que composta por elementos próprios de um determinado grupo
ou pessoa; depois, a capacidade de comunicar aquilo que se simboliza por meio
do simbolizante.
Neste sentido, a revelação é um ponto fundamental para a compreensão de
todo o simbolismo sacramental.
2.3.2
Constituição antropológica
48
Cf. FISICHELLA, R., op. cit., p. 81-82.
49
Cf. Jo 1,1-14; 1Jo 5,7; Ap 19,13.
50
Cf. Jo 3,16; 1Jo 4,10; 1Jo 4,16.
51
Cf. Jo 14,6.
52
Cf. LATOURELLE, R., op. cit., p. 41-90.
53
“É pela fé que se tem acesso ao mistério, ao Evangelho, à palavra. De fato, é pela fé que o
homem reconhece como verdadeiro o plano de salvação, realizado por Deus na morte e
ressurreição de Cristo, adere inteiramente a esse plano, se bem que desconcertante para a humana
sabedoria (1Cor 1,17-30; 2,1-4). A pregação do evangelho tem por finalidade conseguir a
obediência da fé (Rm 16,26; 2Cor 10,5). Fé é a resposta específica do homem à palavra do
Evangelho” (LATOURELLE, R., op. cit., p. 65).
54
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 174-177.
24
55
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., passim.
56
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 320.
25
2.4
Sacramentos, símbolos de salvação
57
Cf. Ibid., p. 325-326.
58
Cf. GOMES, C. F. Riquezas da mensagem Cristã. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1989 p.
502.
59
O termo é formado pela raiz “Sacr-” e pela desinência “-mentum”. “Sacr”, que origina os termos
“sacrum”, “sacrare”, “consecrare”, indica sempre uma relação com o numinoso, o divino. Além do
mais, na cultura latina destaca comumente o aspecto público e jurídico do religioso. Por isso, a
“res sacra” se distinguia da mera “res religiosa”, que pertencia ao âmbito da religiosidade privada.
O sufixo “-mentum” designa o meio pelo qual algo se torna sagrado. Daí “sacramento” significar o
instrumento através do qual alguém ou algo se torna sagrado.
De fato, devido a um enriquecimento semântico, “sacramentum” chegou a ter um sentido ativo e
passivo, podendo ser aplicado indistintamente ao agente, ao meio, à ação consagrante e ao objeto
26
consagrado. (para aprofundamento cf. MARSILI, S. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus,
2001, p. 1059 passim).
60
A palavra sacramentum entrou no vocabulário cristão como uma tradução do termo grego
mysterion, utilizado primeiramente pelos pagãos, sobretudo pelos gnósticos. Foi adotado e
freqüentemente aplicado por Paulo nas suas cartas para designar os “mistérios” da vida de Cristo,
isto é, todo evento da salvação realizado em Jesus Cristo, especialmente sua encarnação, morte e
ressurreição: “o desígnio divino oculto em Deus desde todos os séculos” (Ef 3,9; Cl 1,26), agora
“revelado em Cristo” (Cl 1,27). Com a vinda de Cristo o mistério salvífico se faz “revelação
manifesta” (1Tm 1,9-10; Tt 2,11) e presença entre os homens (Jo 1,9-14; Ap 21,3). Embora tivesse
origem pagã, o uso termo mistério, na compreensão cristã, nada tinha a ver com os cultos pagãos e
a compreensão gnóstica da época (cf. MARSILI, S., op. cit., p. 1059).
Nos Padres da Igreja a palavra mysterion encontra outros significados. Fala-se, no plural, dos
“mistérios” do AT., da vida de Jesus e dos ritos cristãos. Neste último sentido pensa-se na
comunicação do invisível através das realidades sensíveis (Cf. GOMES, C.F., op.cit., p. 503.).
61
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293.
27
62
Cf. Ibid., p. 294.
63
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 180.
64
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 293-294.
28
Cristo na história. Essa afirmação é importante, pois quer dizer que a obra
salvífica não cessou com o retorno do Cristo para junto do Pai e que, portanto, a
salvação não foi um ato restrito a um grupo de pessoas de uma época delimitada,
mas se estende a toda humanidade de todos os tempos e lugares.
De acordo com o Concílio, os sacramentos devem ser reconhecidos no
quadro global da experiência cristã65. Diz ainda que pela participação da Igreja,
sacramento radical de Cristo, somos inseridos no esquema ternário das funções ou
ofícios de Cristo, sacerdote, profeta e rei66. Sua perspectiva é mais funcional que
essencialista, mais prática que teórica. Não se prende tanto em explicar o que são,
mas em definir o que fazem67.
65
Cf. CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA LUMEN GENTIUM, n.10-12, 14-15, 34, 37, 42;
DECRETO CONCILIAR AD GENTES, n. 6, 9; DECRETO CONCILIAR PRESBYTERORUM
ORDINIS n. 2, 4 em Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997.
66
Cf. SESBOUÉ, B. (org.). História dos dogmas: os sinais da salvação. Tomo 3. São Paulo:
Loyola, 2002, p. 218.
67
Cf. Ibid., p. 231.
68
Cf. CONSTITUIÇÃO CONCILIAR SACROSSANTUM CONCILIUM, n. 59 em Documentos
do Concílio Ecumênico Vaticano II. Paulus: São Paulo, 1997.
69
Cf. Mt 28, 19-20; Mc 16, 15-18; At 1,8; BOROBIO, D., op. cit., p. 295-297.
29
70
Cf. BARAÚNA, G. (org.). A Igreja do Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 410.
71
Cf. LUMEN GENTIUM, n. 7, op.cit.
72
Cf. ALDAZÁBAL, J., op. cit., p. 18.
73
Cf. FERNÁNDEZ, C., op. cit., p. 93.
74
Citação da Suma Teológica III.ª, q.62, a1, 1m, em GOMES, C.F., op. cit., p. 503.
75
Esta teoria faz parte da compreensão do Concílio Vaticano II, por exemplo, na Sacrossantum
Concilium, n. 7.
76
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 507.
77
Sobre o aprofundamento dos termos ver BOROBIO, D., op. cit., p. 332.
78
Essas conclusões foram abstraídas da sua obra clássica Cristo, sacramento do encontro com
Deus, citada ao longo do corpo do texto.
30
79
Cf. DOCUMENTO DE PUEBLA, n. 920 em DOCUMENTOS DO CELAM. São Paulo: Paulus,
2005
80
Cf. PUEBLA, n. 921, op. cit.
81
Cf. PUEBLA, n. 922, op. cit.
82
Mt 28,20.
83
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 504-506.
31
humanidade redimida. Ele é a linguagem própria para a fé, pois consegue exprimir
de maneira simples, mas de forma profunda e compreensível, a realidade
simbolizada, sem esgotá-la.
O símbolo nos coloca em sintonia com realidade comunicada, não somente
representa, mas nos permite entrar em contato com o simbolizado, comunicando-
o. É neste sentido que entendemos os sacramentos, como agentes comunicadores
daquilo que simbolizam: a graça, a salvação, a pessoa divina. E neste contexto
está a Igreja, sacramento radical de Cristo, sinal de salvação para a humanidade.
Esta perspectiva simbólica, desde que compreendida corretamente, também
pode ser aplicada à pessoa de Cristo. No capítulo seguinte queremos apresentar de
que maneira Cristo é sacramento/ símbolo do Pai. Note-se que, mesmo que por
algumas vezes o termo símbolo seja omitido da nossa pesquisa, a dinâmica e a
perspectiva simbólicas não só perpassarão, mas constituirão a base de todo o
nosso trabalho. Daí a importância deste primeiro capítulo.
32
3
Cristo, sacramento original
3.1
Introdução
84
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20.
85
Jo 14,9
86
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p.47.
87
Cf. SCHNEIDER, T. (org). Manual de dogmática. Vol. 1. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 199.
33
3.2
A Encarnação como fundamento da sacramentalidade cristã
Jesus é o homem que inteiramente e sem reserva entrou em união com Deus
e com o próximo e a eles se entregou. Toda a sua existência, vida, morte e
88
ressurreição é um grande gesto de reconciliação . Sua paciência e bondade com
os pecadores são sinais da graça divina que procura os perdidos e os salva da
morte da sua culpa. Seus atos e sua vida são uma manifestação do amor divino
pelos homens e do amor humano para com Deus89. Desse modo, Jesus aparece
como o grande sacramento, sinal do amor salvífico de Deus inserido na
humanidade, ação divina para todos os homens e entre eles90.
Jesus é sacramento pela sua atuação, pela sua verdade ética, pela totalidade
da sua ação messiânica e salvadora. Sua vida é uma verdadeira missão junto dos
homens: dedica-se ao próximo, ouve suas misérias, dúvidas e anseios; cura os
doentes, perdoa os pecadores, reconduz os perdidos91. Ao fazer-se servo92 e
membro dos exilados torna-se a manifestação e a revelação do próprio coração de
Deus, de tal forma que em Jesus podemos ver o próprio “rosto” misericordioso do
Pai: “Quem me vê, vê o Pai” 93. Por sua vida revela a intimidade e a profundidade
88
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411.
89
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23.
90
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412.
91
Cf. Ibid., p. 411.
92
Cf. Fl 2,6-11.
93
Jo 14, 9.
34
de Deus aos homens: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o
94
Filho o quiser revelar” . Através de seus atos o mistério da encarnação vai se
esclarecendo e se manifestando e a sacramentalidade “ontológica” de Cristo surge
como sacramentalidade ética95.
Demonstra através do seu comportamento e da sua pregação uma abertura
radical a seus contemporâneos, sem distinções e reservas, sem discriminações ou
diferenças. Por isso mesmo atropelou, freqüentes vezes, costumes respeitados,
convenções sociais e tradições marginalizantes. Desse modo, teve trato com todos
os grupos sociais de seu tempo: doentes, leprosos, pecadores, publicanos,
saduceus, zelotas, samaritanos, sem excluir pessoa alguma. E ainda foi mais além
ao dar preferência aos que na época eram considerados os mais afastados do
Reino de Deus, como os pobres e os pecadores. Os pobres por desconhecer a lei,
não a praticavam e, portanto, não tinham chance alguma diante de Deus. Os
pecadores, por terem pecado e, estariam assim, condenados96.
O fundamento da sua conduta era a experiência que tinha de Deus como
alguém que o amava infinitamente, que o aceitava totalmente e que fundamentava
sua resposta incondicionada. Toda sua vida girava em torno do Pai, que ocupou
sempre o centro da sua vida e pregação. Vivia em obediência e entrega ao Pai o
completo despojamento de si. Neste sentido, era alguém sempre voltado ao outro,
mesmo que isso significasse prejuízo, sofrimento, incompreensão, conflito e
ameaça97.
É sacramento por seus atos privilegiados, isto é, pelos atos nos quais se
manifesta de forma especial o seu poder salvador, a presença maravilhosa de Deus
nele: “Pois bem, para que saibais que o Filho do homem tem poder na terra de
perdoar pecados... disse então ao paralítico: levanta-te, toma teu leito e vai para
casa” 98. Essas ações, embora realizadas em forma humana são, por sua natureza,
ações de Deus, como podem ser os milagres, o perdão dos pecados, o oferecer o
seu corpo como comida e o seu sangue como bebida e, sobretudo, a sua morte,
ressurreição e glorificação: mistério pascal, a partir do qual toda as demais coisas
assumem sentido e valor. Por esses atos, Jesus revela a obediência ao Pai e o amor
94
Mt 11,27
95
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300.
96
Cf. MIRANDA, M. F. A salvação em Jesus Cristo: A doutrina da graça. São Paulo: Paulus,
2004, p. 71.
97
Cf. Ibid. p. 72-73.
98
Mt 9,6
35
aos homens, glorifica ao Pai e santifica os homens. “São os atos mais perfeitos de
um novo culto” 99.
Por sua morte ensinou-nos o que é o abandono de si e a obediência ao Pai;
Pelo sofrimento associou-se a nós e fez da solidão uma das experiências mais
ricas de comunhão com Deus e com os irmãos. Pela paixão se tornou a oblação
perfeita, uma oferenda viva em prol da humanidade. Por sua ressurreição se
tornou a ponte que nos permite voltar a Deus, bem como participar da vida eterna.
Assim, o homem Jesus, manifestação terrestre e pessoal da graça redentora
divina, é o sacramento primordial, pois este homem, filho de Deus, é querido pelo
Pai como o único acesso à realidade da salvação. Pois há um só Deus e, também,
um só mediador entre Deus e os homens, que é o homem Jesus Cristo100. Quem
encontra esse homem, quem se entrega a ele, quem constrói sua vida sobre ele e se
deixa assumir por ele, este encontra a força redentora de Deus e é salvo por ele.
A vontade de Deus teve em Cristo sua real presença histórica no mundo.
Cristo é o sinal da vontade salvadora e da misericórdia divina. É ao mesmo tempo
a realidade da graça tornada perceptível na história. A encarnação se tornou o
grande evento salvador pelo qual Deus alcançou a humanidade de maneira
historicamente sensível101.
Uma das afirmações mais profundas e anunciadoras da missão de Cristo
junto a nós está no Evangelho de João: “Deus amou tanto o mundo que enviou o
seu Filho único para que todo o que nele crer não morra, mas tenha vida eterna”
102
. Deus amou-nos, é a primeira afirmação do texto. E amou-nos para que
fôssemos salvos, em seu Filho. A finalidade concreta da encarnação do Filho de
Deus é a salvação do gênero humano, que em outros termos denominamos
“redenção”. Tal redenção consiste em libertar o homem do pecado e levá-lo a uma
comunhão de graça e de amor para com Deus. O amor humano de Jesus é a
própria manifestação do amor divino pela humanidade. A vivência desse amor faz
dos seres humanos imagens semelhantes a Deus. Por este amor Cristo os
diviniza.103.
99
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300.
100
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 22.
101
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 412.
102
Cf. Jo 3,16
103
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 23.
36
Mas não somente isso. Numa perspectiva ascendente, Cristo faz da sua vida
um verdadeiro culto de adoração ao Pai, uma oblação perfeita. Não apenas revela
a salvação de Deus, mas se faz, ele mesmo, o adorador supremo do Pai, a
realização suma e perfeita de toda religião. Mostrou-nos por sua vida o que é um
homem inteiramente entregue a Deus104.
Se considerarmos que a humanidade de Jesus é representativa de todos nós,
torna-se claro que o movimento de baixo para cima é um movimento que parte de
toda a humanidade e vai a Deus, através da humanidade representativa de Jesus.
Nele encontramos o protótipo realizador supremo e perfeito da resposta de amor
com que a humanidade deve corresponder ao projeto do Pai. Por seu oferecimento
em nosso nome e em nosso lugar, o homem Jesus se torna pessoalmente fonte e
norma de todo encontro e diálogo com Deus105. Neste contexto adquirem
particular importância os eventos da vida de Jesus.
A páscoa é o mistério da submissão plenamente amorosa de Jesus ao Pai,
até a morte, a fidelidade do encarnado ao Pai; é ao mesmo tempo o mistério da
resposta divina a esse dom de amor. A misericórdia de Deus sobre esse sacrifício
é a anulação do pecado pela ressurreição.
Embora na ordem cronológica tenha ocorrido primeiro, na ordem da fé, o
mistério da Encarnação não foi a primeira verdade contemplada pelos apóstolos; a
primeira foi a ressurreição. No entanto, foi somente a partir deste primeiro olhar,
de característica ascendente106, que se chegou a entrever a divindade de Jesus na
sua humanidade107.
Nos textos bíblicos, a encarnação aparece já nas primeiras páginas dos
evangelhos como o sinal por excelência do Novo Testamento: “E o Verbo se fez
108
carne e habitou entre nós; e nós vimos sua glória” . Cristo entra na história
humana como um “sinal-sacramento”: “Quando, porém, chegou a plenitude dos
tempos, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei, para
104
Cf. Ibid., p. 24.
105
Cf. Ibid., p. 25.
106
Cf. At 2,22-36; 4,10ss; 13,16-41; Rm 1,2ss; Fl 2, 6,11
107
A reflexão sobre a encarnação do Cristo deu margem para vários debates e heresias. De um
lado os que acentuavam a divindade em detrimento da humanidade de Cristo (docetismo,
apolinarismo, monofisismo monotelismo), do outro os que acentuavam sua humanidade
(adocianismo e nestorianismo) em detrimento da sua divindade. Para aprofundamento deste
assunto ver SERENTHÁ, M. Jesus Cristo ,ontem, hoje e sempre. Ensaio de Cristologia. São
Paulo: Dom Bosco, 1986.
108
Jo 1,14
37
109
remir os que estavam sob a lei” . A encarnação é entendida como o
cumprimento de uma presença prometida: “Tomar-vos-ei por meu povo, e serei o
110
vosso Deus” ; a concretização de uma resposta fiel esperada desde o Antigo
Testamento (esperança messiânica): “Muitas vezes e de modos diversos, falou
Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos falou-
nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual
fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão do seu ser” 111.
O Mistério salvífico de Deus, que se revela no fato histórico da Encarnação,
consiste em que “Deus não poupou o seu próprio Filho, mas o entregou por todos
nós” 112. E o Filho, em seu amor e na força da obediência total ao Pai113, pode de
tal modo esvaziar-se de si mesmo, que por nós e em nosso lugar se fez homem
como nós114; privando-se de sua glória divina e assumindo a existência de
pecado115 se entregou a mais extrema humilhação, sofrendo uma morte
vergonhosa116, destinada a ladrões e pessoas perigosas para a sociedade da época.
“Somente quando se considera este fim da existência humana do Filho de
Deus é que se pode calcular qual o mistério que operava em Deus, no início, no
‘momento’ em que o Filho era enviado para dentro da história, a fim de assumir,
pessoal e definitivamente, tal ‘ser homem’”. Somente nesta perspectiva a
katábasis117 do Filho de Deus assume verdadeiro sentido118. A Encarnação de
Cristo, o mistério de sua entrada na existência humana, constitui o início do seu
rebaixamento e humilhação para a nossa salvação119.
Segundo as Escrituras, a história da salvação tem o seu ponto culminante e
significado supremo em Jesus Cristo. Nele todos nós recebemos “graça sobre
graça” 120 e também nele somos reconciliados com o Pai121.
109
Gl 4, 4-5; O Novo Testamento nos mostra Cristo como um só indivíduo (Jo 2,19; 3,13; 1,5;
1Cor 2,8; At 3,15; 20,28; Jo 1,14; Fl 2,6). Fala-se de um só Cristo, de sua igualdade com o Pai e de
sua igualdade conosco (1Jo 1,2; Rm 1,3; 8,3.32; 1Tm 2,5; Cl 2,9).
110
Ex 6-7; Jr 7,23
111
Hb 1, 1-3; Cf. BOROBIO, D., op.cit., p. 297.
112
Rm 8,32
113
Cf. Jo 5,19
114
Cf. Fl 2, 6ss.
115
Cf. Rm 8,3; Hb 12, 2
116
Cf. Mt 27,46
117
Palavra de origem grega. Significa o movimento de descida que Deus fez ao assumir a nossa
humanidade, seu rebaixamento humilhação para a nossa salvação (Fl 2,1ss).
118
Cf. FEINER, J; LOEHER, M. Mysterium Salutis: Compêndio de dogmática histórico-salvífica.
Vol.III/5: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 33.
119
Cf. Ibid., p. 33.
120
Jo 1, 16
38
121
Cf. Rm 5, 10; 2 Cor 5, 18; INCARNATIONIS MYSTERIUM. Bula de proclamação do grande
jubileu do ano 2000. In http://www.vatican.va
122
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/5, op. cit., p. 29.
123
Com a expressão “hipóstase” ou “união hipostática” quer-se acentuar que a presença divina em
Jesus não é algo exterior a ele, mas é a base do seu ser, a raiz do existir humano de Cristo. O
homem Jesus e o divino Verbo são um só ente, uma só hipóstase, uma só pessoa.
124
Cf. Sl 110, 4; Hb 7,24-25; 13,8
125
Cf. GOMES, C.F., op. cit., p. 307.
126
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 25.
39
127
Cf. Ibid., p. 33.
128
Cf. Ef 1,4; 1Cor 2,7; 2Cor 1,20; Col 1,25s; 1Pd 1,20.
129
Cf. Mc 1,15; Ef 1,10.
130
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium salutis. III, 5, op. cit., p. 30.
131
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 21.
132
Cf. Ibid., p. 22.
133
O Concílio de Calcedônia se desenrolou entre 08 e 31 de outubro de 451, na Basílica de Santa
Eufêmia e se debruçou sobre a questão das naturezas de Cristo e a unidade da sua pessoa.
40
disseram dele, como o próprio Senhor Jesus Cristo, ensinou, e como o símbolo dos
santos Padres nos transmitiu 134.
Antes, o Concílio de Éfeso (431) já havia definido que só existe uma única
pessoa em Jesus Cristo. Segundo o mesmo Concílio, é na pessoa do Filho que se
unem o divino e o humano e a diferença entre as duas naturezas jamais foi
suprimida ou afetada por essa união135. Sua intenção era a de resguardar a verdade
da humanidade do Verbo de Deus, concretizada na pessoa de Jesus Cristo136.
Pois não dizemos que a natureza do Verbo, transformada, se fez carne; nem
tampouco que se mudou no homem inteiro, composto de alma e corpo; mas que,
tendo unido consigo o Verbo, segundo a hipóstase ou pessoa, a carne animada de
alma racional, se fez homem de modo inefável e incompreensível, e foi chamado
filho do homem, não somente pela vontade ou complacência, nem tampouco pela
assunção somente da pessoa, e que as naturezas que se juntam em verdadeira
unidade são distintas, mas que de ambas resulta um só e mesmo Cristo e Filho;
não como se a diferença das naturezas se destruísse pela união, mas porque a
divindade e a humanidade constituem, antes, para nós um só Senhor e Cristo e
Filho, pela concorrência inefável e misteriosa na unidade... Porque não nasceu
primeiramente um homem vulgar, da santa Virgem, e logo então desceu sobre ele
o Verbo; mas que, unido desde o seio materno, se diz que se submeteu a
nascimento carnal, como quem faz seu nascimento da própria carne... Desta
maneira [os santos padres] não consideraram inconveniente chamar mãe de Deus
à santa Virgem 137.
134
Definição do Concílio de Calcedônia em DS 302: DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos,
definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/ Loyola, 2007.
135
Cf. RUBIO, A. G. O encontro com Jesus Cristo vivo: um ensaio de cristologia para os nossos
dias. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 168-169.
136
Para aprofundamento ver SESBOUÉ, B. (org). História dos dogmas: O Deus da salvação.
Tomo 1. São Paulo: Loyola, 2002, p.317-334.
137
Definição do Concílio de Éfeso em DS 250, op. cit.
41
encontra nela fundamento para uma vida cristã mais autêntica, inserida na
realidade do mundo, sem, no entanto, com ele equiparar-se.
Imagem do Deus invisível (Col. 1,15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos
filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que,
nele, a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em
nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho
de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas,
pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com
um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de
nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado. Cordeiro inocente, mereceu-
nos a vida com a livre efusão do seu sangue; n 'Ele nos reconciliou Deus consigo e
uns com os outros e nos arrancou da escravidão do demónio e do pecado. De
maneira que cada um de nós pode dizer com o Apóstolo: o Filho de Deus «amou-
me e entregou-se por mim» (Gl. 2,20). Sofrendo por nós, não só nos deu exemplo,
para que sigamos os seus passos, mas também abriu um novo caminho, em que a
vida e a morte são santificados e recebem um novo sentido 138.
3.3
Cristo sacramento do Pai
138
CONSTITUIÇÃO PASTORAL GAUDIUM ET SPES, n. 22, em Documentos do Concílio
Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 563.
139
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20.
140
Cf. Ibid., p. 22.
42
especial naquele homem que mereceu tão grande “fim”? Quem era ele? Estas
perguntas compõem o centro do Kerygma141 primitivo.
O ápice dessa reflexão foi a conclusão de que o Cristo glorioso e
ressuscitado, o mesmo que nasceu no meio de nós e morreu livremente para a
nossa salvação, preexistia no mistério de Deus desde toda a eternidade.
Começando pelo estado glorioso e a condição de ressuscitado, a identidade
pessoal de Jesus e sua filiação divina foram gradativamente estudadas e
desvendadas num processo retrospectivo, que, partindo dos mistérios de sua vida
até o seu nascimento humano, chegaram à sua preexistência em Deus142.
A conseqüência foi que puderam ver em Jesus a face de Deus manifestada
aos homens, o sinal revelador do Pai. Jesus de Nazaré é o Filho de Deus feito
homem para a nossa salvação. O sacramento realizador das promessas divinas.
É sacramento, em primeiro lugar, pelo seu próprio ser, por sua própria
verdade ontológica, por sua presença entre os homens como Filho de Deus: “O
Verbo se fez carne” 143. Não se trata de um homem qualquer, mas do próprio Deus
feito homem entre os homens. O fato de Cristo ter assumido a natureza humana e
de assim ter manifestado, corporal e visivelmente, a bondade de Deus faz dele um
verdadeiro sacramento144.
“Através do homem - Jesus se chega a Deus e através do Deus - Jesus se
chega ao homem. Nele, há perfeita adequação e harmonia entre o seu ser de Deus
141
Palavra de origem grega, cujo significado pode ser traduzido por “anúncio”. Diz respeito à Boa
nova do Reino pregada por Cristo, bem como os mistérios da nossa salvação, que são a paixão,
morte e ressurreição do Senhor. Nas primeiras comunidades cristãs, diz respeito ao anúncio da
salvação em Jesus Cristo, que tem como finalidade a conversão e adesão à fé por parte de quem
recebe o anúncio.
As características da cristologia do Kerygma primitivo podem ser sintetizadas em poucas palavras
deduzidas do sermão de Pedro no livro dos Atos dos Apóstolos, capítulo 2: trata-se de uma
cristologia pascal , baseada na ressurreição e glorificação de Jesus pelo Pai. Sua exaltação é uma
ação do Pai, sobre Jesus, em nosso favor, a que devemos responder com nosso arrependimento e
conversão, concretamente simbolizados pela adesão ao batismo cristão.
O mistério pascal constitui o centro do Kerigma primitivo, acentuado na ressurreição de Jesus
(1Cor 15, 3-7; Rm 1, 3-4; 1Tm 3,16; 1Ts 1, 10; Gl 1, 3-5; 3, 1-2). Cf. DUPUIS, J. Introdução à
Cristologia. São Paulo: Loyola, 1999.
142
Embora não haja unanimidade entre os exegetas, segundo Dupuis a primeira cristologia
neotestamentária palestina desenvolvida foi a da “parusia” (marana tha), que unia a ressurreição
de Jesus à sua vinda escatológica: aquele que devia voltar é o mesmo que ressurgiu glorioso,
vencedor da morte. A cristologia do ressuscitado estava estreitamente ligada à esperança da sua
volta futura. O “já” da ressurreição era a garantia do cumprimento da promessa do “ainda não”
escatológico. “Jamais houve fé numa parusia de Jesus sem exaltação, como também nunca houve
fé na exaltação pura e simplesmente. O que se esperava era a parusia daquele que fora alcançado
até a divindade”. Cf. DUPUIS, J., op.cit., p. 79-80.
143
Jo 1,14.
144
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 299.
43
e para Deus e o seu ser de homem para o homem” 145. Por ser Deus, Cristo é capaz
de revelar-nos fielmente os planos do Pai; por ser homem, pode representar-nos
de modo perfeito diante de Deus. Estando perfeitamente com Deus, ele está
perfeitamente com o homem e vice-versa. A fronteira humana de Deus e a
fronteira divina do homem aparecem de modo maravilhoso na pessoa de Cristo,
tornando possível o encontro radical. A partir do seu próprio ser, Cristo é o
sacramento desse encontro146.
147
“Cristo é a imagem do Deus invisível” . Como tal é o “Sacramento
148
primordial e radical do Pai” . Ao assumir a natureza humana Jesus torna-se
homem como nós e vive, com liberdade, na sua humanidade, a vontade do Pai. Na
sua vida está realizada a absoluta comunhão do homem com Deus. Em Jesus o ser
humano atinge o ápice da comunhão com o seu criador149. Ele é o Sacramento
original sobre quem está estabelecido todo pensar teológico-sacramental cristão e
é o fundamento de toda e qualquer expressão sacramental eclesial150.
3.4
A morte de Cristo como sacramento de sua entrega
145
Cf. Ibid., p. 299.
146
Cf. Ibid., p. 300.
147
Cl 1,15.
148
Cf. PUEBLA, n. 921.
149
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 411.
150
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 20; BARAÚNA, G., op. cit., p. 410.
151
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M. Mysterium Salutis: compendio de dogmática histórico salvífica.
Vol. III/6: O evento Cristo. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 57-62.
152
Ef 5,2.
153
1Cor 15,3-4; Rm 4,25.
154
Ef 5, 25; Cf. MIRANDA, M. F., op. cit., p. 76.
44
155
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 254-255.
156
Cf. Mc 14, 1 ss.
157
Cf. At 7,54-60.
158
Cf. Mc 14, 61.
159
Cf. Lc 23, 2-5. 13-24.
160
Cf. Mt 27,37.
161
Cf. Ibid. p.256.
45
A Escritura nos diz que “um só morreu por todos, então todos passaram pela
morte” 162, e ainda, que Cristo “provou a morte em favor de todos” 163. No alto da
cruz fez ecoar o grito que brota das profundezas da infelicidade e da dor de toda a
humanidade: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste!” Grito de quem se
identificou em tudo com o sofrimento humano e viveu até o fim a nossa fraqueza.
Na iminência da morte sentiu medo e angústia164, realidades que sugerem a idéia
de um homem tomado por profunda pertubação e solidão165, mas que por seu
despojamento e entrega total ao Pai renovou e dignificou a humanidade: “Pai, em
tuas mãos eu entrego o meu Espírito” 166.
O valor da morte de Cristo está no fato não somente dele ter se doado “por
nós”, mas em ter se doado “em nosso lugar”. Ofereceu-se, gratuitamente, pelo
perdão dos pecados de quem já estava condenado. Seu sacrifício pagou
definitivamente a nossa culpa. Desse modo, Jesus é identificado como o “servo
sofredor” do livro de Isaías, no Antigo Testamento167: o justo que é oferecido em
expiação pelos pecados do mundo168. Jesus morreu por amor a nós, em proveito
nosso e em nosso lugar169.
Expiação170 é, antes de tudo, entrega total para salvar a vida de quem já está
condenado; sacrifício oferecido por uma situação irreparável, por uma culpa que
mereça a morte ou por uma vida irremediavelmente perdida. A expiação consiste
na libertação da vida condenada. Na compreensão do Antigo Testamento, um
animal oferecido em expiação de uma pessoa substituía a vida daquele em prol de
quem se oferecia o sacrifício, era oferecido no lugar da pessoa e pagava pelo
crime da mesma. O bode expiatório constituía um exemplo muito conhecido171:
carregado com os pecados do povo, o bode era solto no deserto, onde morria.
162
Cf. 2Cor 5,14.
163
Cf. Hb 2,9.
164
Cf. Lc 22,44.
165
Cf. CANTALAMESSA, R. Nós pregamos Cristo crucificado. São Paulo: Loyola, 1996, p. 132.
166
Lc 23,46.
167
Cf. Is 52, 13-53,12.
168
Cf. Rm 6,10; 1 Pd 3,18; Hb 7,27; 9,12; MIRANDA, M.F., op. cit., p. 77.
169
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 127.
170
“Teologicamente, compreende os conceitos de expiação do pecado e de reconciliação do
homem com Deus. No Antigo Testamento, o termo chave que se refere à expiação é o hebraico
kapper, que significa “cobrir” “ocultar” o objeto que ofende, removendo assim o obstáculo à
reconciliação. No ritual cultual, o termo é usado em sentido técnico para indicar um ato de
expiação realizado através da aspersão do sangue da vítima”. No Novo Testamento o termo
hebraico encontra várias traduções, com vários significados, entre as quais está hilasmos, aplicado
a Jesus com o sentido de reconciliação (Cf. MACKENZIE, J. L. Dicionário bíblico. São Paulo:
Paulus, 2005, p. 329-330).
171
Cf. Lv 16,20-26.
46
3.5
A ressurreição de Jesus como sacramento da nova vida
179
Cf. Col 2,14s.
180
Cf. Mc 15, 33-37.
181
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. III/6, op. cit., p. 32.
182
Cf. 2Tm 1,10; 1Cor 15,25s.
183
Cf. Hb 2,14.
184
Cf. Rm 14,9.
185
Cf. Rm 6,9; MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 633.
186
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 35.
187
Sem dúvida, podemos afirmar que no contexto da paixão a Eucaristia é um elemento que
assume grande importância. Trata-se do próprio memorial continuador da paixão do Senhor junto
a nós. “Ao instituí-lo, Jesus não se limitou a dizer ‘isto é o meu corpo’, ‘isto é o meu sangue’, mas
acrescenta ‘entregue por vós’, derramado por vós (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o
que lhes dava a comer e a beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor
sacrifical, tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois
realizaria na cruz pela salvação de todos”.“Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do
Gólgota, a Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como se se
tratasse simplesmente de uma oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual” (Cf. JOÃO
PAULO II. Carta Encíclica Ecclesia de Eucharistia, n. 12. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 17).
48
188
passaram três dias que essas coisas aconteceram” . Em outras palavras, o caso
Jesus estava considerado encerrado189.
A ressurreição de Jesus constitui o artigo mais fundamental da fé cristã, a
ponto de São Paulo poder dizer: "Se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação;
vã também é a vossa fé... e ainda estais nos vossos pecados" 190. A ressurreição de
Jesus ocupa um lugar primordial e indispensável no conjunto das verdades cristãs.
Sem ela tudo teria se encerrado com a morte de Cristo na cruz e toda e qualquer
perspectiva de continuidade, atualização e celebração do mistério pascal perderia
o seu sentido.
A ressurreição é a fé central da Igreja, constitui o nervo, o ponto crucial da
nossa fé e da vida de Cristo. É um mistério do qual vive a cada dia: a Igreja afirma
que o ressuscitado vive com ela e se faz presente na vida quotidiana, na comunhão
fraterna, na vida litúrgica, tanto quanto na primeira experiência pascal191. Isto nos
é revelado pelos sacramentos. Daí a relevância de abordarmos o tema da
ressurreição como elemento constitutivo e fundamental da teologia sacramental.
Nada se afirma a respeito do modo como teria ocorrido a ressurreição. O
motivo é simples, trata-se de um acontecimento sem testemunhas. Ninguém
estava presente no momento em que Jesus ressuscitou. Da ressurreição só se tem
notícias mediante as aparições do próprio Jesus, que é posterior ao evento. O
anúncio, portanto, é feito não a partir de testemunhos oculares do evento, mas a
partir do encontro dos discípulos com o ressuscitado192. A origem e o fundamento
da fé na ressurreição encontram-se nas aparições do próprio ressuscitado aos seus
discípulos193.
Por estas, Deus revela que aquele Jesus, morto, está agora plenamente vivo.
Constituem uma experiência de fé da ação reveladora de Deus às suas
testemunhas. Entretanto, não é a fé que cria o ressuscitado, mas a revelação de
Deus a respeito da sua ressurreição que constitui a origem e o fundamento da fé.
188
Lc 24,21.
189
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 50.
190
1Cor 15, 14. 17.
191
Cf. CHARPENTIER, E. Cristo ressuscitou. São Paulo: Paulinas, 1984, p. 41.
192
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 52.
193
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 107.
49
Não se trata de uma invenção brotada da esperança frustrada dos discípulos, mas
de um acontecimento concreto, factual194.
A ressurreição de Jesus constitui a confirmação da sua vida e exaltação até
Deus. Delas brota a percepção de que ele fora confirmado por Deus. Os que o
viram reconheceram que aquele que se manifestava era o Jesus terreno que
pregava em seu meio. Neste sentido o testemunho seria a confirmação da
pregação. Possui uma implicação missionária195.
196
O Evangelho nos diz que o Senhor “ressuscitou verdadeiramente” , quer
dizer, de fato, realmente. Sua ressurreição deve ser compreendida como o início
da plenitude final, tal como na perspectiva escatológica judaica. Nele estão as
primícias da ressurreição dos mortos197. Através dela Deus revelou
definitivamente a si próprio.
O Novo Testamento enuncia a fé na ressurreição de Jesus a partir de três
elementos principais: primeiro, a partir das confissões ou fórmulas de fé198;
segundo, pelo exemplo das testemunhas que afirmam a realidade da ressurreição e
que tiveram um encontro com o ressuscitado; e, por fim, a partir dos relatos
evangélicos sobre o ressuscitado199.
Entre os principais testemunhos do Novo Testamento encontramos os textos
de 1Cor 15, 1-11; Rm 1,3-4; At 2, 23-24. Tais fórmulas provavelmente se
desenvolveram em ambiente litúrgico e constituem alguns dos substratos mais
194
Com este parágrafo, sem entrar no mérito da discussão, queremos apontar para um debate
levantado, sobretudo por R. Bultmann e pela corrente protestante liberal, sobre a veracidade do
evento da ressurreição. Segundo ele, a ressurreição não passaria de uma visão psicogênica, de
alguns sonhos, ou ainda, de uma invenção dos discípulos de Jesus, por causa da frustração de
terem perdido o seu mestre, em quem colocaram toda a sua esperança. Esta teoria tem por base a
teoria da demitização. Segundo Bultmann só é possível chegar ao conhecimento verdadeiro de
Cristo retirando os mitos que compõe os evangelhos. Eles seriam modos de pensar e representar o
mundo de uma época pré-científica, que concebia o universo formado por planos sobrepostos: o de
Deus, o do homem e dos infernos. Segundo ele, essa concepção mítica estaria superada.
A escola de Rudolf Bultmann julga ainda que todo episódio transcendental só pode ser ficção ou
mito. Por isto nega a ressurreição corpórea de Jesus. Afirma, sim, que o que ressuscitou foi a
Palavra de Deus; esta foi ameaçada de sufocação pelos judeus perseguidores, mas superou as
adversidades e propagou-se vitoriosamente pelas regiões do Império Romano. Segundo Bultmann,
o que teria ressuscitado não seria propriamente o Cristo, mas a mensagem de Cristo, por meio da
pregação apostólica.
195
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 385.
196
Lc 24, 34.
197
Cf. 1Cor 15,20; RUBIO, G., op. cit., p. 110.
198
Tratam-se de fórmulas nascidas no entusiasmo da comunidade: nascidas espontaneamente ou
compostas, são apreendidas e proclamadas, especialmente por ocasião do Batismo ou diante dos
tribunais. Formam o núcleo central do Kerygma ou anúncio primitivo (Cf. CHARPENTIER, E.,
op. cit., p. 41).
199
Cf. RUBIO, G., op. cit., p. 104-108.
50
O que lhes transmiti, foi em primeiro lugar, o que eu tinha recebido: que Cristo
morreu por nossos pecados e que ressuscitou ao terceiro dia, cumprindo as
mesmas escrituras; que apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a
maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já morreram. Posteriormente
apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu
também a mim, que sou como quem nasceu fora do tempo 201.
200
Cf. RUBIO, G., op. p.104-105.
201
1Cor 15, 3-8; Trata-se de uma confissão pré-paulina, recebida por Paulo da comunidade
primitiva da Palestina. Constitui um resumo do Kerygma pascal (cf. RUBIO, G., op. cit., p. 106).
202
Cf. CANTALAMESSA, R., O mistério da Páscoa..., p. 51.
203
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol.1, p. 258.
204
Cf. MOLTMANN, J. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola/ Teológica, 2005.
205
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 26.
206
A crença na ressurreição dos mortos é muito antiga, anterior ao cristianismo, podendo ser
encontrada já no judaísmo tardio. Surge como uma forma de afirmar uma recompensa para os
justos frente ao problema dos sofrimentos. Questionava-se se não existiria uma realidade pós-
51
quando disse que a ressurreição consiste na vida eterna em comunhão com Deus.
Além disso, estabeleceu uma grande diferença quando fez uma identificação entre
o “filho do homem” e ele próprio. Jesus também se apropriou de textos dos
salmos em que os justos exprimiam a confiança de serem arrancados por Deus às
garras da morte207 e aplicou a si os textos judaicos que falavam da ressurreição 208.
Verdadeiramente a ressurreição de Jesus foi um evento inovador e
surpreendente para os apóstolos. Eles não só não acreditavam como também não
compreendiam o que Jesus queria dizer quando falava da sua ressurreição. A
expressão “terceiro dia”, utilizada pelos evangelistas para se referir à promessa da
ressurreição, constitui menos uma informação cronológica que a certeza de um
triunfo final.
Para os apóstolos a ressurreição não evoca a reanimação de um cadáver,
mas a passagem definitiva para onde se viverá plenamente com Deus numa
existência corporal transfigurada. Se eles o esperavam para o “terceiro dia”, isto
significa para o “dia da consolação dos mortos”, no fim dos tempos, o dia em que
Deus dará a vida aos mortos, e não o dia depois do amanhã, cronológico.
Na verdade, em nenhum momento os apóstolos esperavam a ressurreição de
Jesus como aconteceu e como acreditamos hoje. Não só não aguardavam a
ressurreição para o domingo, como também não acreditaram quando viram o
Senhor ressuscitado. Isto porque não compreenderam o que Jesus lhes dizia sobre
sua própria ressurreição209, pois para eles o Messias não podia morrer210.
morte onde os justos receberiam a recompensa pelas boas obras praticadas, enquanto os maus, os
castigos pelas faltas cometidas nesta vida. Desta forma surge no judaísmo, embora de forma ainda
não definida, a idéia de uma vida pós-morte, fruto da justiça de Iahweh, que honra o seu povo.
Citamos dois textos bíblicos que atestam aquilo que afirmamos: Jó 19, 25-26: “Eu sei que o meu
defensor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó; depois do meu despertar, levantar-me-á
junto dele, e em minha carne verei a Deus”; Dn 12,2: “E muitos que dormem no solo poeirento
acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbio, para o horror eterno”.
207
Cf. Sl 16.
208
Todos os crentes do tempo de Jesus esperavam o cumprimento da promessa de Deus. Porém,
esta expectativa se diversificava na sua concepção, segundo os diversos grupos e ideologias
existentes na época. Alguns acreditavam na ressurreição, outros negavam-na explicitamente. Entre
os mais conhecidos, citamos: 1) os saduceus: grupo de radicais conservadores, que tinha como
princípio a fidelidade rigorosa à lei de Moisés fixada no Pentateuco. Rejeitavam explicitamente a
ressurreição. 2)os fariseus: acreditavam firmemente na ressurreição dos mortos, embora sob duas
posições: uns acreditam que a ressurreição aconteceria antes da vinda do messias; outros, após a
sua vinda. 3) Os essênios: estes falavam pouco a respeito da ressurreição. Não está claramente
atestada nos textos de Qumran. Consideravam-na como a entrada num universo transformado (Cf.
CHARPENTIER, E., op. cit., p. 36).
209
Cf. Mc 9, 9-10.
210
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 97.
52
211
Cf. Ibid., p. 39.
212
Cf. Ibid., p. 89.
213
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1, p. 382.
214
Cf. Ibid., p. 383.
215
Cf. Gl 1,1; Rm 1,4; 1 Pd 3, 18; Ef 1, 19ss.
216
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 383.
53
3.6
A ressurreição de Jesus como sacramento da Esperança
O que aconteceu com Jesus é antes de tudo, um sinal para nós. Para
compreendermos o que somos e o sentido da história, seria necessário que
pudéssemos nos situar no termo desta história. Ora, o que aconteceu com Jesus é o
que Deus havia prometido para o fim dos tempos. Em sua ressurreição, o
acontecimento do fim se torna presente diante de nossos olhos. No ressuscitado já
podemos contemplar o termo para o qual nos encaminhamos. Nele todo o sentido
de nossa existência de homem, pessoal e coletiva, nos é desvendado. A
ressurreição se tornou o protótipo daquilo que se realizará em toda a humanidade,
o sacramento mais expressivo da esperança da humanidade na vida futura. A
ressurreição de Cristo é o sacramento, o sinal eficaz, da nossa passagem, com todo
217
Cf. Ibid., p. 386.
218
Cf. Ibid., p. 383.
219
Cf. Ibid., p. 384.
54
Com efeito, sua ressurreição é uma antecipação da nossa. O que seremos um dia
já se acha realizado nele. Após a ressurreição, o cristão pode certamente sofrer
com sua morte, mas não pode ficar surpreendido com ela: pois já a viveu em
Jesus, ‘servo sofredor’; poderá certamente maravilhado de ser introduzido um dia
junto de Deus, mas não ficará espantado, pois desde já, em Jesus ‘Filho do
Homem’, ‘Deus nos vivificou juntamente com Cristo... com ele nos ressuscitou e
nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus’ 221.
Por sua ressurreição encontramos uma outra face para a morte, não mais a
de um fim, como se fosse o ponto final da nossa existência, mas a de um novo
nascimento, como uma ponte que nos permite o acesso à nova vida.
Segundo Moltmann, em Jesus ressuscitado tudo já está feito. Deus cumpriu
sua promessa para ele e para nós. Mas, no entanto, tudo ainda está por fazer, no
sentido de que aquilo que já está realizado em Jesus deve nos incitar a trabalhar
para que a promessa se realize também em nós e o senhorio do crucificado se
realize sobre todas as coisas.
Se levarmos a sério a ressurreição de Cristo, nossa esperança será
exigência de uma transformação histórica de vida. Os cristãos são as testemunhas
de uma promessa que faz surgir o novo na história e que lhes proporciona um
futuro possível. A teologia da esperança termina numa teologia de missão na
Igreja222.
Ora, se Jesus viveu inteiramente ligado a Deus e para os outros, sua
ressurreição também só pode ser compreendida sob este olhar, isto é, a partir da
sua dupla relação com Deus e conosco. Não se trata de uma consumação para si
mesmo, mas uma concretização da sua vida para “o outro” e só pode ser
compreendida sob este duplo aspecto da sua exaltação para a plena imediatez com
Deus e unidade permanente com ele (relação com o Pai) e exaltação para a
posição permanente de mediador da salvação (relação com a humanidade). O
humilhado se tornou Senhor223.
Enquanto exaltação para junto de Deus, entendemos a sua glorificação, o
Senhorio que Deus lhe concedeu, após a sua ascensão. A ressurreição e a
220
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 102.
221
Cf. Ibid., p. 91; Ef 2, 5-6.
222
Cf. CHARPENTIER, E., op. cit., p. 93.
223
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.
55
Ele permanece para sempre o que foi outrora: aquele que nos prepara um lugar
junto de Deus (Jo 14,2) e a auto promessa ou auto comunicação de Deus a nós em
pessoa, o sacramento pessoal em que Deus nos entende a si mesmo e convida.
Assim, o Cristo exaltado continua sendo a proposta de relação que Deus nos faz, a
mão estendida de Deus 226.
224
Cf. Jo 17,5.
225
Cf. 1Tm 2,5.
226
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 387.
56
2ª Parte
A Igreja
4
Compreensão de Igreja
4.1
Introdução
4.2
Definição de Igreja
227
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/1..., p.126.
58
era ela que, reunida em assembléia, decidia sobre os problemas postos pelas
outras igrejas235. Apesar disso, cada igreja local, com seu clero e com seu povo,
era considerada ekklesia com toda sua propriedade e integralidade. A inserção na
Igreja se dava pelo rito do Batismo 236.
Devemos lembrar também que os Atos dos Apóstolos muitas vezes
237
acrescentam à palavra ekklesia a expressão tou Theou (de Deus) . Este
acréscimo indica que é Deus quem conclama e reúne a comunidade toda e nela se
encontra presente. Um outro elemento importante é que nos Atos nos Apóstolos a
Igreja nunca é denominada “Igreja de Cristo”, mas sempre como “Igreja de
Deus”. Isto encontra sua explicação no fato da expressão ter sido retirada do
Antigo Testamento e evidentemente deve expressar o pensamento de que aqueles
que acreditam em Cristo são os legítimos herdeiros do povo de Deus238.
Em Paulo a palavra ekklesia aparece 65 vezes, na maior parte dos casos
significando a igreja local239, mas também a universal. É o primeiro a usar o termo
no plural (ekklesiai) para indicar a igualdade das várias igrejas locais240. Em
Efésios e Colossenses utiliza-o com referência aos seguidores de Jesus, dispersos
pelo mundo. Fala de Cristo como cabeça do corpo, princípio mediante o qual se
realiza a plenitude da Igreja241. Vê em Cristo o esposo da Igreja242, modelo de
amor que os maridos devem testemunhar às suas mulheres. Por esta imagem,
retoma a antiga concepção de Yahweh como o esposo de Israel243.
A imagem da Igreja como corpo de Cristo também está na base do
pensamento paulino. Segundo ele, cada cristão é chamado a desempenhar com
amor sua função no corpo. Paulo dá aos membros da Igreja o título de “santos”,
isto é, aqueles que amam a Deus, aqueles que são santificados em Cristo, que
235
Cf. At 15,22.
236
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; At 10,1ss.
237
Cf. At 20,28.
238
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. IV. 1: a Igreja um mistério de fé. Petrópolis: Vozes, p.
20.
239
Cf. 1Ts 1,1; 1Cor 1,1; 2Cor 1,1; 1Cor 16,1; 1Cor 16,19; Fm 2.
240
Cf. 1Ts 2,14; 1Cor 4,17; 11,16; 16,1; 2Cor 8,1.
241
Cf. Ef 1,22-23; Cl 1,18.
242
Cf. Ef 5,25ss.
243
Cf. Os 2,2ss; Jr 2,2.
60
4.3
Imagens da Igreja
244
Cf. 1Cor 1,2.
245
Cf. Cl 3,12; 2Tm 2,10; Tt 1,1.
246
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 433; SCHMAUS, M. A fé da Igreja. vol. IV.1…, p. 20.
247
Cf. 1 Ts 2,14; KEHL, M., op. cit., p. 257.
248
SCHMAUS, A fé da Igreja. vol. IV… p. 20.
249
Cf. 3Jo 6.9.10
250
Cf. Jo 15.
251
Cf. Jo 17,20.
252
Cf. Jo 21,15.
253
Cf. MACKENZIE, J. L., op. cit., p. 434.
61
4.3.1
Povo de Deus
254
A palavra povo, Láos em grego, é muito significativa. Comporta um caráter salvífico, isto é, a
missão da Igreja na continuação da obra de Cristo. O que designa a qualidade diferencial desse
povo é o adjunto adnominal restritivo a ele atribuído: de Deus. Não se trata de um povo qualquer,
mas o “povo do alto”, os “cidadãos do céu”.
255
Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 13.
62
256
Expressão utilizada pelo próprio autor. Cf. SCHILLEBEECKX, E., op. cit., p. 16.
257
Cf. Ibid., p. 14-16.
258
Expressão hebraica usada no Antigo Testamento para designar o povo escolhido, a assembléia
de Deus reunida em oração.
259
Cf. Dt 8,6-7.
260
Cf. Ex 6,7.
261
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 272.
262
Cf. At 3,23; 15,4; Rm 9,24.
263
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 274.
63
Deus (...) escolheu, por isso, a nação israelita para Seu povo. Com ele estabeleceu
uma aliança; a ele instruiu gradualmente, manifestando-Se a Si mesmo e ao
desígnio da própria vontade na sua história, e santificando-o para Si. Mas todas
estas coisas aconteceram como preparação e figura da nova e perfeita Aliança que
em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais completa que seria
transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne. Eis que virão dias, diz o
Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e a casa de Judá uma nova
aliança... Porei a minha lei nas suas entranhas e a escreverei nos seus corações e
serei o seu Deus e eles serão o meu povo... Todos me conhecerão desde o mais
pequeno ao maior, diz o Senhor (Jer 31, 31-34). Esta nova aliança instituiu-a
Cristo, o novo testamento no Seu sangue ( 1Cor 11,25) 264.
Esse povo nasce da fé em Cristo. É o “povo que em outro tempo não era
povo mas agora é povo de Deus”265. Tem por cabeça Cristo, por condição a
dignidade de filhos de Deus, por lei o mandamento do amor e por ideal a busca do
Reino de Deus. A Constituição Dogmática Lumen Gentium no capítulo 13 afirma
que todos são chamados a fazer parte desse povo. Nele não há mais separação
entre judeus e gentios266. Seus membros são verdadeiramente irmãos267, pois são
filhos do mesmo Pai268. Pertencem a Cristo, porque são seus discípulos269.
Ao novo Povo de Deus todos os homens são chamados. Por isso, este Povo,
permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os
séculos, para se cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou
uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que
estavam dispersos (Jo 11,52). Foi para isto que Deus enviou o Seu Filho, a quem
constituiu herdeiro de todas as coisas (Hb 1,2), para ser mestre, rei e sacerdote
universal, cabeça do novo e universal Povo dos filhos de Deus. Para isto Deus
enviou finalmente também o Espírito de Seu Filho, Senhor e fonte de vida, o qual é
para toda a Igreja e para cada um dos crentes princípio de agregação e de
unidade na doutrina e na comunhão dos Apóstolos, na fração do pão e na oração
(At 2,42) 270.
264
Cf. LG 9.
265
Cf. 1Pd 2,10
266
Cf. At 15,14.
267
Cf. Mt 18,34.
268
Cf. Mt 18, 1-4.
269
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 324.
270
Cf. LG 13.
64
momento em que o drama da paixão atingiria o seu ponto máximo Jesus anuncia a
eclosão da Nova Aliança. Dá sua vida pela redenção de muitos. Seu próprio
sangue é o selo dessa Aliança. Diz que estará presente nas reuniões daqueles que o
invocarem279 e que os discípulos renovarão essa benção do pão e do cálice em sua
memória, na esperança da sua volta280. O grupo dos doze se vê no centro de uma
forma nova de aliança baseada na morte redentora de seu mestre e na continuação
de seu sacrifício 281.
Mas a escolha de Doze apóstolos282 também não foi ocasional. Seu número
relembra o das doze tribos de Israel. Os Apóstolos passam a ser entendidos como
os novos patriarcas, sobre quem Cristo estabeleceu o novo Povo283. Trata-se do
início de um novo tempo, o da Igreja. “Ninguém entre os evangelistas é tão
explícito sobre os caracteres da Igreja como Mateus. Coloca-nos diante dum
grupamento tão organizado que se pode falar de instituição” 284.
Mostra que os apóstolos são conscientes da sua unidade, função, poderes e
missão285 e que ser discípulo implica comunhão de existência com os outros
discípulos e com Mestre, bem como o reconhecimento de Jesus como Messias.
Participam das instruções especiais, levam uma vida semelhante à de Jesus. Por
fim, participam da mesma sorte do seu mestre: sofrimento, morte e
ressurreição286.
A Igreja é o germe da salvação, início do Reino de Deus aqui na terra, a
reunificação definitiva de Israel, instrumento de redenção para todos, sacramento
universal de salvação.
4.3.2
Corpo de Cristo
Essa imagem é própria de São Paulo e reflete a comunicação que Cristo faz
de sua vida aos ressuscitados pelo Batismo e pela Eucaristia287. Os cristãos são
membros uns dos outros por participarem da mesma vida divina de Cristo. O
279
Cf. Mt 18,20.
280
Cf. Lc 22,19.
281
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326.
282
Cf. Mt 10,9.
283
Cf. BARAÚNA, G., op. cit., p. 326.
284
Cf. Ibid., p. 324.
285
Cf. Mt 18, 17-18.
286
Cf. Mt 17, 21; BARAÚNA, G., op. cit., p. 324.
287
Cf. 1Cor 10,16; 12,12-27; Rm 12,4-8.
66
288
Cf. 1Cor 12,12ss; Rm 12, 4ss.
289
Cf. Rm 7,4.
290
Cf. Cl 1,18.
291
Cf. Ef 4,16; Cl 2,19; CARTA ENCÍCLICA MYSTICI CORPORIS, n. 33 em www.vatican.va
292
Cf. Mystici Corporis, n. 51-57.
293
Cf. Cl 1,18; Ef 1,22; 4,15s.
294
Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61.
67
cheio de graça e verdade, que todos nós recebemos da sua inexaurível plenitude
(cf. Jo 1,14-16) 295.
295
Cf. Mystici Corporis, n. 47.
296
Cf. Fl 3,21; 1 Cor 15, 44ss; 1Cor 10,16s; 11, 24s.
297
Cf. 1Cor 12,27; Rm 12,5; KEHL, M., op. cit., p. 262.
298
“O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que
partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora
sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão” (1Cor 10,
16-17).
299
Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433.
300
Cf. LG 7.
301
Cf. 1Cor 12,13; Gl 3,28; Ef 4,4; Cl 3,15.
302
Cf. 1Cor 12,13.
303
Cf. 1Cor 12,27; 6,15.
304
Cf. 1Cor 12,12.
305
Cf. Ef 3,4.
68
pagãos na unidade de uma só fé306. Já os outros sacramentos nos fazem viver mais
intimamente a vida do corpo, em especial a Eucaristia307.
Este último se refere, sobretudo, à unidade da comunidade308 e à
solidariedade aos mais fracos e necessitados309.
Esta imagem da Igreja como corpo aparece com bastante regularidade nos
textos paulinos, mas nem sempre da mesma maneira. Apresenta algumas
diferenças entre o uso nas epístolas pastorais e nas demais, (Coríntios,
Colossenses, Efésios e Romanos). O apóstolo fala do corpo como “membros de
310 311
Cristo” , como “corpo de Cristo” ou ainda, do “corpo em Cristo” . Apesar
disso, em nenhuma parte encontramos em Paulo a imagem da Igreja como corpo
místico de Cristo. O termo místico só foi associado à imagem do Corpo, bem mais
tarde, provavelmente a partir de meados do século XII, pela teologia312.
Outro elemento importante da corporalidade eclesial diz respeito aos
ministérios. Para Paulo, a unidade da Igreja também se manifesta sob a via
carismática. Assim como num corpo existem vários membros, cada um com a sua
função específica, assim também a Igreja possui uma diversidade de carismas e
funções, que compõem a sua riqueza e organicidade: apóstolos, profetas, doutores,
taumaturgos. Para ajudar a Igreja, Deus conferiu carismas de cura, assistência,
governo, línguas, e outros. Cada cristão deve cumprir a função que lhe foi
atribuída313 e usar dos diferentes dons de maneira que correspondam ao seu
314
destino e ao bem de toda a comunidade . Em tudo, Paulo insiste na caridade
como o maior dos dons315. Sobre isto nos diz a epístola aos Romanos: “Assim
como em um só corpo temos muitos membros, mas todos os membros não têm a
306
Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 61.
307
Cf. Ibid., p. 59-60.
308
Cf. 1Cor 12, 12-27.
309
Cf. 1Cor 11,22ss.
310
No capítulo 6 da primeira carta aos Coríntios Paulo combate uma falsa compreensão da
liberdade cristã, que levava os cristãos a dispor de si numa busca desordenada do prazer. Contra
isso o apóstolo recorda à comunidade de Corinto que devido ao batismo o homem todo, corpo e
alma, é propriedade do Senhor e que por esse motivo, não pode mais fazer o que simplesmente lhe
apraz. Pelo batismo, o Espírito estabeleceu uma união tão intima entre Cristo e os cristãos que
podem ser denominados membros de Cristo: Não sabeis que vossos corpos são membros de
Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo
algum! (1Cor 6,15). Cf. SCHMAUS. M., A fé da Igreja: Vol. IV.1..., p. 59.
311
Cf. Ibid., p. 59.
312
Cf. Ibid., p. 58.
313
Cf. 1Cor 12,28ss.
314
Cf. MACKENZIE, J.L., op. cit., p. 433.
315
Cf. 1Cor 13, 1-13.
69
mesma função, assim nós, embora sejamos muitos somos um só corpo em Cristo,
e cada um de nós membros uns dos outros”316.
4.3.3
Templo do Espírito Santo
316
Cf. Rm 12, 4-5.
317
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 133.
318
Cf. 1Cor 3, 16-17.
319
Cf. Ef 2,19; Gl 6,10; 1Cor 3,5ss; Ef 2,19ss; 4,7ss.
320
Cf. Lv 26,11s; Ez 37,26; Zc 8,8.
321
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134.
322
Citação de Santo Agostinho, Sermões 267,4, em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, São
Paulo: Loyola/ Vozes, 1993, n. 797, p. 230.
323
Cf. 2Cor 6,16.
324
Citação de Santo Irineu, adv. Haer. 3,24,1 em CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit.,
797, p. 230.
70
Todos nós que cremos em Cristo somos as pedras vivas desse Templo.
Contudo, a chave desta casa é a vivência do amor. Por ser compreendido como o
325
Cf. Jo 16, 13-15.
326
Cf. FEINER, J.; LOEHER, M., Mysterium Salutis. IV/I…, p. 134.
327
Cf. Ibid., p. 134.
328
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68.
329
Cf. Mystici Corporis, n. 54-55.
330
Cf. At 20,32.
331
Cf. LG, n. 7.
332
Cf. LG, n. 12.
333
Cf. Mystici Corporis, n. 55.
71
amor intradivino, e a Igreja viver desse Espírito, pode-se dizer que a Igreja
aparece como a comunidade do amor. O amor é o mais profundo mistério da
Igreja, não apenas pela associação e vivência de seus membros, mas como uma
aliança decretada pelo amor de Deus334. Sobre isto nos diz o Papa João Paulo II:
“É bom pensar que esta casa está ainda em construção pelo mundo inteiro. Temos
por construtora a graça de Deus” 335.
O que o Espírito fez para a constituição da Igreja, continua a fazer no
decorrer da sua história. Ele está sempre ativo como enviado do Pai celeste, como
presente e dom, que Jesus Cristo fez à sua Igreja, que é o seu corpo. Segundo os
Atos dos Apóstolos, também é o Espírito quem dá a incumbência definitiva de
levar a salvação aos pagãos 336.
4.4
A Igreja no projeto de Deus
334
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 68.
335
JOÃO PAULO II em L' Osservatore Romano de 02-12-90.
336
Cf. At 28,28; SCHMAUS, M., A fé da Igreja: Vol. IV. 1..., p. 62.
337
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia, carne de Cristo: en las fuentes de la eclesiologia
de comunion. Verdade e Imagem: Salamanca. 1994, p. 15.
338
Cf. At 4, 32-35.
72
4.4.1.
A Igreja como obra do Espírito
No dia de Pentecostes (no fim das sete semanas pascais), a Páscoa de Cristo se
realiza na efusão do Espírito Santo, que é manifestado, dado e comunicado como
Pessoa Divina: de sua plenitude, Cristo, Senhor, derrama em profusão o Espírito.
Nesse dia é revelada plenamente a Santíssima Trindade. A partir desse dia, o
Reino anunciado por Cristo está aberto aos que crêem nele; na humildade da
carne e na fé, eles participam já da comunhão da Santíssima Trindade. Por sua
vinda e ela não cessa, o Espírito Santo faz o mundo entrar nos "últimos tempos", o
tempo da Igreja, o Reino já recebido em herança, mas ainda não consumado341.
339
Cf. At 2, 1-36.
340
Cf. At 1,8.
341
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 731-732.
73
O Espírito Santo, que habita nos crentes, que enche e governa toda a Igreja, é
quem realiza maravilhosa comunhão dos fiéis e une todos tão intimamente em
Cristo, sendo o princípio da unidade da Igreja. É ele quem causa a diversidade das
graças e dos ministérios 345.
342
KEHL, M., op. cit., p. 63.
343
Cf. Mt 16,18.
344
LG, n. 7.
345
DECRETO CONCILIAR UNITATIS REDINTEGRATIO, n.2 em DOCUMENTOS DO
CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. Paulus: São Paulo, 1997.
74
Da mesma origem formal que a habitação de Deus em nós do Espírito Santo como
“espaço” único e abrangente que possibilita a nossa fé na revelação de Deus em
Jesus Cristo. Todo encontro de fé com o Deus que nos agracia acontece “no
Espírito Santo”; sem essa pré-condição do espaço do encontro, proporcionado por
Deus e que nos abre os olhos, ou seja, o Espírito Santo, não pode haver fé. Pois só
quem se permite entrar na amorosa relação entre o Pai e o Filho, neste Espírito
que os une, pode ganhar os olhos do amor, com os quais pode reconhecer nos
Jesus histórico o Filho eterno do Pai. No Espírito Santo ficamos inteiramente
preenchidos e tomados por ele, de sorte que podemos confessar na fé: “Jesus
Cristo é o Senhor!” (Rm 10,9; 1Cor 12,3; Fl 2,11). Vale, pois, para uma teoria
teológica do conhecimento: ‘Deus, por assim dizer, já está no Espírito lá onde ele
chega por meio do Logos348.
346
Cf. 1Cor 12, 3.
347
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 64.
348
Cf. Ibid., p. 65
349
Cf. Ibid., p. 65.
350
Cf. Ibid., p.66.
351
Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, op. cit., n. 735-736.
75
352
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 67.
353
Cf. Ibid., p. 68.
354
Cf. Jo 19,30.
355
Cf. Jo 13,34;
356
Cf. Jo 15,12ss.
76
4.4.2
Igreja de comunhão
357
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 69.
358
Cf. Jo 20, 19-23.
77
359
vivida diante de Deus, o outro se encontra necessariamente no horizonte” .A
existência cristã é necessária e essencialmente uma existência de comunhão.
Outro grande equívoco quando se fala de comunhão é pensar que unidade
seja sinônimo de uniformidade, duas realidades bem diferentes. Estar em
comunhão não significa uniformidade de pensamento ou opinião. A grande
característica e riqueza da Igreja de comunhão é que a unidade se estabelece na
diversidade. A diferença não é algo estranho à comunhão eclesial, mas parte
integrante e necessária do seu ser. Este princípio vale tanto para as comunidades
particularmente consideradas quanto para a comunhão entre as Igrejas locais
360
(paróquias, dioceses, conferências episcopais...) . É também nesse sentido que
deve ser entendida a catolicidade ou universalidade da Igreja, isto é, no sentido
que reúne na única comunhão de Cristo as diversidades que brotam de sua
capacidade criadora. A uniformidade restringe o verdadeiro espírito de comunhão
da Igreja na medida em que se fecha à diversidade dos carismas361.
Nos textos paulinos a relação com o outro é apresentada como algo
essencial. O “outro” evoca primeiramente o Cristo, objeto do evangelho de Deus:
“Cristo morreu por todos a fim de que os que vivem já não vivam para si, mas
362
para aquele que por eles morreu e ressurgiu” . Ele é a fonte da vida cristã363,
aquele através do qual o Pai estabeleceu comunhão com os seres humanos364.
Neste conjugado da relação de Cristo com o Pai e do cristão com Cristo se define
a existência cristã365.
Um estudo ainda mais atento e apurado dos textos de Paulo nos permite
perceber também que a comunhão com Cristo é igualmente uma comunhão com o
Espírito. Todas as vezes que Paulo usa a expressão “em Cristo” está sempre a
associando à expressão “no Espírito”. Isto nos permite dizer que a vida em Cristo
é também uma vida no Espírito, que estar em Cristo é estar sob o signo e o poder
359
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 13.
360
Cf. Ibid., p. 21.
361
Cf. Ibid., p. 22.
362
Cf. 2 Cor 5,15.
363
Cf. Rm 8, 31-39; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 14.
364
Cf. Gl 2, 19-20; 6,17.
365
Daqui deriva uma situação que marcará profundamente a condição cristã. “A existência cristã é
em sua fonte radicalmente, por obra de Deus, a negação absoluta de toda auto-suficiência, de todo
isolamento do indivíduo em si mesmo”. A relação com o outro- esse outro que é antes de tudo
Deus- é intrínseca à existência cristã, a constitui. Onde não há comunhão com Jesus Cristo, não há
existência cristã365. Mas a relação com Cristo é inseparável da relação com os outros. O “outro”
[Deus] implica os “outros” [os irmãos na fé]. Cf. Ibid., p. 15-16.
78
366
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 16.
367
Cf. SCHILLEBEECKX, op. cit. p.54.
368
Cf. 1 Cor 12,13; TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 17.
369
Cf. Jo 15.
370
Cf. Jo 15,4.
371
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 25-27.
372
Jo 15,13.
373
Cf. Tg 2, 1-13.26.
374
Cf. TILLARD, J. M. R., Carne de la Iglesia..., p. 97-108.
79
4.4.3
Povo de Deus ou casa do Pai?
“Povo de Deus” e “casa do Pai” são duas lógicas diferentes que refletem e
determinam a nossa maneira de pensar e agir na e como Igreja e que afetam
diretamente a constituição e a estrutura da mesma.
A primeira lógica, do Povo de Deus (Láos tou Theou), tem como base o
princípio de igualdade e inclusão de todos os batizados, os quais constituem a
Igreja de Cristo, e que corresponde exatamente à proposta de retorno às fontes
primitivas empreendida pelo Concílio Vaticano II. Nesta proposta todos são vistos
como membros de um mesmo corpo, com igual dignidade, embora com funções
diferentes. Essa lógica ganha importância sobretudo quando se trata de ressaltar a
missão e a dignidade do leigo contra toda forma de totalitarismo e outros abusos
por parte dos clérigos, bem como de compreender e aplicar o ministério
hierárquico como uma forma de serviço.
Em segundo lugar temos a lógica dos códigos familiares greco-romanos,
que penetrou na Igreja e transformou a experiência da igualdade fundamental e da
comunhão entre os batizados numa escala de dominações e dependências. Sua
constituição é piramidal e o poder é concentrado, na sociedade romana, nas mãos
dos homens, e, posteriormente, na Igreja, nas mãos dos clérigos. Os leigos se
tornam meros espectadores, sujeitos às resoluções dos mesmos. A grande
conseqüência desse sistema é que os leigos não são considerados membros ativos,
sujeitos-protagonistas da fé. As comunidades ficam à mercê da “boa vontade” dos
padres, sem qualquer poder de decisão ou direito à participação. Os clérigos são
colocados em grau de superioridade e os leigos em situação de subserviência.
375
Cf. Ibid., p. 109.
80
4.4.4
Proposta do Vaticano II
379
Cf. LG 2.
380
LG 23.
381
Cf. GS 36.
382
Cf. GS 53.
82
4.4.5
Hierarquia e laicato
O conjunto dos fiéis, com exceção daqueles que receberam uma ordem sacra ou
abraçaram o estado religioso aprovado pela Igreja, isto é, os fiéis que, por
haverem sido incorporados em Cristo pelo Batismo e constituídos em Povo de
Deus, e por participarem a seu modo do múnus sacerdotal, profético e real de
383
Cf. LG 8.
384
Cf. LG 15; UR 13-24.
385
Cf. SCHILLEBEECKX, E. La définition typologique du laic chretien selon Vatican II em
BARAÚNA, G., L’Eglise de Vatican II. tomo 3. Paris: Cerf, 1966, p.1013.
83
386
LG 31.
387
Cf. LIBÂNIO, J. B. Concílio Vaticano II: em busca de uma primeira compreensão. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 113.
388
Cf. Ibid., p. 114.
389
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1023.
390
Cf. Idem.
391
Cf. LG 32.
392
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique..., p. 1024.
84
da sua da tríplice função, sacerdote, profeta e rei393. Através dos leigos a Igreja se
faz presente e atuante na sociedade. São agentes propagadores do Reino nos
meios seculares.
A Igreja tem uma missão a cumprir no mundo e a grande peculiaridade do
leigo é esta: ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo de experiência
e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável do leigo394: viver no tempo
cada uma das atividades e profissões, bem como a vida familiar e social para nelas
testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão
verdadeiramente cristãos395.
No único povo de Deus, o Espírito suscita os pastores chamando-os a uma
função essencial de magistério, de governo e de santificação; a distinção entre os
pastores e laicato é e continua sendo de direito divino. Contudo, a continuação da
obra da salvação é tarefa de todos os fiéis396. Não é ocasional que no número 32
da Lumen Gentium se fala de “verdadeira igualdade” quanto à dignidade e ação
comum dos fiéis, o que indica uma relação de necessidade recíproca e de co-
responsabilidade na missão. Em certos lugares, inclusive, a ação da Igreja só se
torna possível através da presença dos leigos397.
Tal definição, entretanto, ficou restrita ao âmbito jurídico, dependente da
“benevolência” do clero. Contudo, existe um tipo de participação dos leigos na
missão salvífica da Igreja que não depende da vontade da hierarquia: é uma
participação que brota de uma perspectiva sacramental e encontra a sua fonte nos
sacramentos do Batismo e da Crisma. Segundo M. Gozzini a solução deste
problema está na superação do aspecto jurídico pelo sacramental398, que, segundo
ele, é também uma das vias de superação do clericalismo.
De extraordinário auxílio pode ser a aplicação rigorosa e severa da reforma
litúrgica. A missa como ato comunitário do celebrante e do povo juntos,
requerendo participação pessoal e não somente assistência de espectadores pode
393
Cf. MONSEGÚ, B. In Concílio Vaticano II: comentarios a la Constituición sobre la Iglesia.
BAC: Madrid, 1966, p.643.
394
Cf. Ibid., p. 644-645.
395
Cf. Ibid., p. 650-651.
396
Cf. LG 30.
397
Cf. LG 33.
398
Entende-se por perspectiva sacramental do povo de Deus a missão que brota dos sacramentos
que receberam. Não se trata de um reconhecimento por parte do clero dos carismas e aptidões dos
leigos, mas de uma exigência que brota do próprio sacramento e que independe do aspecto jurídico
da Igreja.
85
ser uma imagem perfeita da vida eclesial autêntica, com o fiel que leva ao altar a
sua vida, como verdadeira hóstia viva ao Senhor. Só quando uma consciência
deste gênero tiver sido universalmente afirmada em todos quantos se dizem
católicos, e o comportamento prático destes houver se modificado também nas
relações com a hierarquia poderão ser vividas numa perspectiva diversa, e não
mais clericalista. Trata-se de uma passagem de um catolicismo meramente
sociológico e/ou de tradição a um catolicismo autêntico, que nasce de uma
decisão interior, de modo que todos os fiéis se sintam testemunhas e apóstolos, em
conseqüência dos sacramentos recebidos399. Trata-se ainda de um elemento
fundamental para uma frutuosa vida religiosa dos leigos.
Em segundo lugar, manifesta-se em medida sempre crescente a necessidade
de um conhecimento mais profundo da fé professada: “Os leigos procurem
diligentemente um conhecimento mais profundo da verdade revelada, e
400
instantemente peçam a Deus o dom da sabedoria” . Enquanto a hierarquia
continuar a manter numa espécie de menoridade os leigos, não os preparando para
assumir as tarefas que lhes seriam próprias; enquanto a fé dos leigos não dispuser
de raízes mais profundas e a hierarquia se fiar nos leigos que aguardam as ordem
eclesiásticas para agir sem prepará-los para iniciativas próprias; a Igreja
continuará sendo uma Igreja clericalista.
Sabem os pastores que não foram instituídos por Cristo a fim de concentrarem em
si sozinhos toda a missão salvífica da igreja no mundo. Seu preclaro múnus é
apascentar de tal forma os fiéis e reconhecer suas atribuições e carismas, que
todos, a seu modo, cooperem unanimemente na obra comum401.
Todavia não seria justo esperar que as inovações venham dos institutos e a
formação dos fiéis seja um fato adquirido. A participação nasce do interior das
comunidades menores402. É necessário que se comece logo a inovação dos
costumes. E que se comece pela supressão dos vários títulos aplicados aos bispos;
que a hierarquia seja entendida numa perspectiva paterno-fraterna; ao laicato seja
motivado o diálogo com a hierarquia e não somente uma obediência passivo-
399
Cf. GOZZINI, Mario. Relations entre les laïcs et la hierarchie em BARAÚNA, G., L’Eglise de
Vatican II..., p. 1087- 1088.
400
Cf. LG 35.
401
LG 30.
402
Cf. LIBÂNIO, J. B., op. cit., p. 117.
86
403
Cf. Ibid., p. 116.
404
Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1091.
405
Cf. GOZZINI, M., op. cit., p. 1095-1099.
87
4.4.6
Histórico e definição etimológica de leigo
406
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 110
407
Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 641.
408
Cf. Is 24,2; Os 4,9; KHEL, M., op. cit., p. 111.
409
Cf. SCHILLEBEECKX, E., La définition typologique…, p. 1014.
410
Cf. KHEL, M., op. cit., p. 110.
411
Cf. KHEL, M., op. cit., p. 111.
88
4.4.7
O tríplice múnus dos fiéis
412
Cf. MONSEGÚ, B., op. cit., p. 640.
413
Cf. Ibid., p. 648.
414
Cf. Ibid., p. 672.
89
Entretanto, a família é uma das instituições que mais tem padecido nos tempos
modernos. Correntes como o laicismo, o materialismo, o egoísmo e o hedonismo
têm contribuído para uma grande crise de valores nas famílias.
Ainda sobre a missão profética do leigo, não se diga que o apostolado
acontece também na vida secular, pois o leigo evangeliza também pelo simples
fato de ser um bom profissional.
E ainda, os leigos não realizarão plenamente sua missão profética se
carecerem de um conhecimento profundo da Revelação. A propagação do
Evangelho é impensável sem um sólido conhecimento da teologia. Em outras
palavras, como o leigo tem a missão de propagar a fé é necessário que ele a
conheça, por isso a necessidade de um estudo teológico. A ignorância religiosa é
sem dúvida um dos grandes males do nosso tempo420. O mesmo se poderia dizer
da necessidade de uma espiritualidade mais sólida.
4.4.8
Espiritualidade de comunhão
deu ao Filho e ao mesmo tempo nos faz participar da plenitude da vida divina424.
Ele nos leva a uma vida de perfeita comunhão com as demais pessoas da
Trindade, fazendo com que o Pai e o Filho venham ao nosso encontro e passem a
agir em nós.
O valor dessa Espiritualidade de comunhão está no fato de que por meio
dela é possível superar problemas como o individualismo, a competição e o
indiferentismo. O grande desafio se torna ser um com o outro, valorizando-o,
como o exemplo da Trindade. Tanto João Paulo II quanto o atual Bento XVI
apresentam a amizade com Deus e com o próximo, como possíveis vias para uma
autêntica espiritualidade de comunhão425.
Não se trata de um privilégio para a Igreja, mas de uma necessidade, que
brota da experiência do conhecimento do próprio Deus, que é comunhão, por que
é Trindade. A experiência da comunhão torna-se ainda mais necessária quando
ouvimos do Senhor: “que sejam um como eu e o Pai somos um”, e mais, “para
que o mundo creia”. A salvação ou a aceitação da Palavra de Deus por parte dos
que não crêem passa, segundo as palavras de Cristo, pela experiência da
comunhão eclesial. Grande responsabilidade, que, apesar das grandes reflexões
apresentadas pelo Concílio, teve, na prática, ainda poucas assimilações ou
repercussões práticas.
Todos estes elementos são importantes para que a Igreja seja realmente
testemunha de Cristo no mundo. Sem a vivência da comunhão, do amor, da
solidariedade, entre tantas outras coisas, a Igreja se distanciaria da palavra de
Cristo e da sua vontade. Deixaria de dar testemunho daquele por quem e para
quem foi constituída. Seu testemunho tem como principal finalidade fazer com
que também outros creiam em Jesus como salvador e que nenhum daqueles que
foram confiados ao Cristo se perca. Trata-se da Igreja como instrumento da
salvação cristã, ou, como é o tema da nossa pesquisa, sacramento de salvação.
424
Cf. OLIVEIRA, J. L. M. Teologia da vocação. São Paulo: Loyola, p. 40-41.
425
BENTO XVI. Carta encíclica Deus é amor. São Paulo: Loyola, 2006, n.18.
92
5
A igreja, sacramento de salvação
5.1
Introdução
Cristo é a luz dos povos. Por isso, este sagrado Concílio, congregado no Espírito
Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja ilumine
todos os homens, anunciando o Evangelho a toda criatura (cf. Mc 16,15). E,
porque a Igreja é em Cristo, como que sacramento, isto é, sinal e instrumento, da
união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano, retomando o ensino
dos concílios anteriores, propõe-se explicar com maior clareza aos fiéis do mundo
inteiro, a sua natureza e missão universal426.
426
Cf. LG 1.
427
Não há, entre os teólogos, uma uniformidade de pensamento sobre o momento exato do
surgimento da Igreja. Uns colocam-no no momento em que Jesus convoca e institui o grupo dos
Doze apóstolos; outros, no momento da cruz quando, transpassado pela lança, jorraram de seu
peito aberto sangue e água; outros ainda encontram na ceia eucarística o momento do seu
surgimento, expressão de um novo culto e, portanto, de uma nova religião. Esta variedade de
interpretações é devida às diferentes possibilidades de leitura global que se pode fazer do mistério
pascal de Cristo. Cf. TILLARD, J. M. R. Iglesia de Iglesias. Salamanca: Ed. Sígueme. 1999, p.14-
15. Segundo a Encíclica Mystici Corporis, “o divino Redentor começou a fábrica do templo
místico da Igreja, quando na sua pregação ensinou os seus mandamentos; concluiu-a quando,
glorificado, pendeu da Cruz; manifestou-a enfim e promulgou-a quando mandou sobre os
discípulos visivelmente o Espírito paráclito” (MC 25). Já na Lumen Gentium lemos: “descendo
sobre os apóstolos, o Espírito Santo deu início à Igreja” (LG 19).
93
5.2
Sacramentos, prolongamento da sacramentalidade de Cristo
428
Cf. TILLARD, J. M. R., Iglesia de Iglesias..., p. 11-13.
429
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 20.
430
Cf. At 4,12.
431
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 47.
94
432
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
433
Cf. At 1, 6-11.
434
Cf. Jo 14,2.
435
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
436
Cf. Mt 24,36.
437
Cf. 1Cor 13,12; SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 48.
95
438
Cf. Ibid., p. 49.
439
Cf. Ibid., p. 50.
440
Cf. Catequeses de João Paulo II em 21/07/82 em http://www. vatican.va.
441
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 49.
442
Cf. Ibid., p. 50.
96
pela qual encontramos o Cristo vivo após a sua ascensão e glorificação celeste.
Assim que o sacramento primordial deixou o mundo, por ocasião da sua ascensão,
entrou em ação, como prolongamento da encarnação, a Igreja, que por sua vez,
nos possibilita os outros sacramentos443.
A sacramentalidade lança uma ponte sobre o afastamento ou desproporção
que existe entre o Cristo celeste e a humanidade não glorificada, e torna possível o
encontro humano recíproco entre Cristo e a humanidade, após a sua ascensão. A
existência e religiosidade cristãs são necessariamente uma existência e
religiosidade sacramentais. A economia sacramental é parte integrante e
constitutiva do seu ser. E encontra como fundamento a própria revelação do
Cristo feito homem444.
Esta necessidade, ao mesmo tempo antropológica e cristológica, “mostra
que os sacramentos da Igreja não são coisas, mas encontros de homens sobre a
terra com o homem glorificado445, Jesus, mediante uma forma visível. São, na
dimensão da visibilidade histórica, uma manifestação concreta do ato de salvação
celeste de Jesus Cristo” 446.
Os sacramentos nos permitem entrar em contato vivo com o próprio
mistério santificante de Cristo. Sob o véu terrestre os sacramentos são esse
mistério da manifestação terrestre da salvação cristã447.
Embora a atual presença de Cristo seja ainda uma presença abscôndita e
muito provisória, ela nos impele para o encontro pleno e desvelado com ele face-
a- face, para estar plenamente junto de Deus. Essa presença provisória, mas real e
pessoal, é atestada e realizada por Cristo através desses sinais palpáveis, que a fé
percebe como lugares fidedignos de sua ativa presença no Espírito, entre os quais
está a Igreja, comunidade dos fiéis, Corpo de Cristo, templo vivo da Graça de
Deus448.
443
Cf. Ibid., p. 51.
444
Cf. Ibid., p. 51.
445
Esta afirmação é de grande importância para a teologia pastoral sacramental. A compreensão
dos sacramentos, não como “coisas”, mas como “encontro” exige necessariamente uma catequese
mistagógica e menos sacramentalista; A experiência da fé passa a ter como foco não o “objeto” em
si, mas aquele que se pode conhecer por meio do “objeto”. A conseqüência prática dessa idéia será
uma Igreja mais consciente da sua missão e comprometida no discipulado de Nosso Senhor Jesus
cristo, que é proposta da última conferência do Conselho Episcopal Latino Americano, em
Aparecida/SP.
446
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 52.
447
Cf. Ibid., p. 52.
448
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., vol. 1. p. 388.
97
5.3
A Igreja, sacramento radical
449
Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 53.
450
Cf. Ibid., p. 54.
451
Embora a expressão “Sacramento primordial” seja aplicada com propriedade à pessoa de
Cristo, E. Schillebeeckx e O. Semmelroth aplicam-na também à Igreja, designando-a “sacramento
primordial de Cristo”. Cf. SCHILLEBEECKX, E., Cristo, sacramento do encontro..., p. 60.
452
“Embora, no Novo Testamento, mal se encontre uma expressa caracterização da Igreja como
sacramento e na Patrística seja muito rara, não existe, provavelmente, nenhuma expressão mais
apropriada para a originária visão da Igreja do que a categoria sacramental”. Cf. BARAÚNA, G.,
op. cit., p. 397.
98
453
si mesma e colocando-a em relação a Cristo” . Fornece uma nova chave de
leitura para uma nova consciência eclesial, fundamentada na encarnação e, de
modo mais amplo, no evento da salvação em Jesus Cristo454.
Apesar disso, o Concílio foi cauteloso em sua formulação, pois na
constituição sobre a Igreja (n.1), diz que ela é em Cristo “como um sacramento ou
sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano”. Contudo, a palavra “como” é omitida no texto do capítulo segundo455,
onde afirma que a Igreja é convocada e constituída por Deus para ser um
sacramento visível da unidade. Neste segundo capítulo a nota remete a
Cipriano456, o qual assegura que a Igreja é o sacramento indissolúvel da
unidade457.
Vários teólogos modernos aplicaram o termo sacramento à Igreja: M.
Scheeben, E. Schillebeeckx, H.U.Von Balthasar, K. Rahner, Y.M.J. Congar. Sua
retomada aconteceu na década de 30 com o movimento jesuíta francês de retorno
às fontes – a Novelle Theologie - e teve como grande precursor e expoente o
teólogo católico Henri de Lubac458, na sua obra Catholicisme, publicada em 1938,
na qual diz que “se o Cristo é o Sacramento de Deus, a Igreja é para nós o
sacramento de Cristo” 459. Em Méditation sur l’Eglise faz as mesmas afirmações:
453
Cf. Ibid., p. 396.
454
Cf. TIHON, P. A Igreja em SESBOUÉ, B. (Org). História dos dogmas: Os sinais da salvação.
Tomo 3. Loyola: São Paulo, p. 433.
455
LG 9.
456
Citação da Carta 69, 6 em LG 9.
457
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2: Caráter sacramental da Igreja. Petrópolis: Vozes,
1980, p. 7.
458
Nascido em Cambrai, na França, no ano de 1896, Henri De Lubac é um dos personagens que
mais representa a última renovação teológica e seu pensamento atual. Jesuíta tomista, professor de
Teologia Fundamental e História das Religiões nas faculdades católicas de Lyon, empreendeu
junto à “Escola de Fourvière” um importante movimento de superação da estagnação de uma
teologia escolástica que havia se estabelecido e se fechava às possibilidades de um diálogo com o
pensamento contemporâneo.
459
“Si le Christ est le sacrament de Dieu, l’Eglise est pour nous le sacrament du Christ”. Cf. DE
LUBAC, H. Catholicisme: les aspects sociaux du dogme. Paris: Cerf, 1983, p.50.
460
Cf. DE LUBAC, H. Méditation sur l’Eglise. Paris: Aubier, 1968, p. 164: “L’Eglise est un
mystére, c’est-à-dire, aussi bien, un sacrement. <<Lieu total des sacrements chrétiens, elle est elle-
même le grand sacrement qui contient et vivifie tous les autres. Elle est ici-bas le sacrament de
Jésus-Christ, Comme Jésus-Christ lui-même est pour nous, dans son humanité, le sacrament de
Dieu”
99
São as primeiras intuições, sem grandes elaborações. Idéias que não são
originais de De Lubac, mas que ele recupera da literatura Patrística, sobretudo de
Irineu e Cipriano462, suas fontes principais. Vê na Igreja o “ponto de encontro dos
463
desejos do homem e dos desejos de Deus” . Teve o mérito de ser o primeiro a
recuperar, na modernidade, esta concepção, que mais tarde seria aprofundada e
sistematizada por O. Semmelroth e, posteriormente, por K. Rahner, que também
deu grandes contribuições464.
Igual relevância teve a Encíclica Mystici Corporis, do papa Pio XII, lançada
em 1943. Embora não designe a Igreja pelo nome de sacramento, o documento,
que gira em torno da temática da Igreja como corpo, ofereceu grandes
contribuições aos teólogos. Estes entenderam a corporalidade como a forma
mediante a qual Deus encontra o ser humano e vice-versa, e nisto, o que a
qualifica como sacramento.
O Concílio Vaticano II, valendo-se das contribuições desses teólogos
também aplicou à Igreja o conceito de sacramento para determinar sua relação
específica com o agir salvífico de Deus em prol do mundo465. Expressou com este
conceito a unidade inseparável e a diversidade inconfundível entre a Igreja e a
auto-comunicação de Deus em Jesus Cristo, no Espírito Santo. A Constituição
sobre a Igreja começa afirmando que Jesus é a luz dos povos e que a Igreja é o
reflexo dessa luz 466. “Ela é como que o sacramento, isto é, sinal e instrumento, da
união íntima com Deus e da unidade de todo gênero humano” 467. E é justamente
neste sentido que a Igreja é entendida como sacramento da salvação, isto é, como
o reflexo e sinal eficazes da salvação realizada pelo Pai, em Jesus Cristo. A Igreja
461
“L’Eglise, toute l’Eglise, la seule Église, celle d’aujour-d’hui comme d’hier et de demain, est le
sacrament de Jesus Christ”. Cf. DE LUBAC, H. Méditation…, op. cit. p. 171.
462
Cipriano denomina a Igreja “sacramentum unitatis”. Cf. citação de CIPRIANO. De cat. Eccl.
Unitate, 4 em BORÓBIO, D., op.cit., p. 301.
463
Cf. DE LUBAC, Catholicisme…, op. cit., p.234.
464
Na verdade, H. De Lubac não teve a preocupação de uma sistematização ou um
aprofundamento mais elaborado do tema, mas recuperar a teologia presente no início da Igreja, de
forma especial, na Patrística, da qual De Lubac era grande conhecedor e se servia para fazer suas
meditações. O mérito de O. Semmelroth em relação a H. De Lubac foi que ele sistematizou e
aprofundou a problemática levantada pelo teólogo francês. Foi o primeiro, pode-se dizer, a
sistematizar o tema. Cf. Ibid., p. 433; GIBELLINI, R. A teologia do século XX. Loyola: São
Paulo. 2002, p. 182-191.
465
Cf. LG 1, 9, 48, 59; SC 5, 26; GS 42,45; AG 1,5.
466
Cf. KEHL, M., op. cit., p. 77-78.
467
LG 1.
100
é, no mundo de hoje, o meio pelo qual Cristo continua a realizar a sua obra
redentora, o sinal ordinário pelo qual continua a levar os homens ao conhecimento
da sua salvação: É o sacramento de Cristo para comunicar aos homens a vida nova
468
.
Assim entendemos em que sentido Jesus e a Igreja são designados como
sacramentos:
468
Cf. PUEBLA 922.
469
Cf. BARAÚNA, G., A Igreja do Vaticano II..., p. 410.
470
Cf. 1Cor 12, 12-30.
471
Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento de salvação em FEINER, J.; LOEHRER,
M. Mysterium salutis: compêndio de dogmática histórico-salvífica. Vol. IV/2. Vozes: Petrópolis,
1975, p. 89-90.
472
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol. V. 2..., p. 10.
101
473
Cf. Cf. SEMMELROTH, O. A Igreja como sacramento..., p. 81-82.
474
Cf. Ibid., p. 83.
475
Cf. Ibid., p. 84.
476
At 1,8.
477
Mt 28,19-20.
478
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo sacramento do Encontro..., p. 53.
479
Cf. Ibid., p. 53.
480
Cf. Ibid., p. 58.
481
Cf. Ibid., p. 55-56.
482
Cf. BOROBIO, D., op. cit., p. 300-304.
102
5.4
Ritos sacramentais: manifestações da sacramentalidade eclesial
483
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 60.
103
dentro da vida diária diante das tentações (Confirmação). Além disso, o homem e
a mulher devem realizar seu encontro sexual dentro da comunidade marcada por
Cristo em forma adequada à sua fé nele (Matrimônio) 486.
486
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 20.
487
Lc 22,14-20; Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 3, 21-22; Mc 1, 9-11; Mt 3, 13-17.
488
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. V. 2..., p. 21.
489
Cf. Ibid., p. 21.
490
Cf. Ibid., p. 27.
105
5.4.1
Batismo
491
Cf. Ibid., p. 28.
492
Cf. Ibid., p. 35.
106
493
Cf, Ibid., p. 109.
494
Cf. Tt 3,5; Ef 5,26; Hb 10, 22.
495
Cf. Rm 6,4; 1Jo 3,9.
496
Cf. Gn 7,18-24; Ex 14.
497
Cf. 1Pd 3,20s; 1Cor 10,1s.
498
Cf. Rm 6,3-5.
499
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 41.
500
Cf. Ibid., p. 42.
501
Cf. Cl 2,20.
502
Cf. Rm 7,6.
503
Cf. Rm 6,6.
107
outros, que entrega sua vida livremente pela salvação do próximo. Ele deve
morrer para tudo aquilo que não seja a vida que o Senhor o ensinou504.
A primeira conseqüência dessa adesão é que quem o recebe é revestido de
Cristo 505. Pelo Batismo a mesma vida de Cristo está presente e age naquele que o
506
recebeu . Trata-se de uma referência à mudança ontológica operada pelo
sacramento naquele que o recebe, mas também à conduta que deve assumir a
partir dessa nova constituição.
Outro aspecto de grande relevância diz respeito à relação entre o batismo e à
ação do Espírito Santo. A presença do Espírito no batizado é característica
essencial e específica do batismo cristão. Segundo os relatos do Novo
Testamento, o batismo cristão não é só um batismo na água, como o de João, mas
507
o próprio mover do Espírito na vida do crente . O Espírito também é o
fundamento da experiência de força, amor, alegria e liberdade que impulsionou e
impulsiona ainda hoje tantos homens e mulheres à experiência da missão, da
comunhão e do serviço508. Trata-se de uma experiência forte que age com energia
509
na vida do cristão e o impulsiona a testemunhar com audácia, liberdade e
510
autoridade a mensagem de Jesus .
Neste sentido, o batismo só pode ser entendido a partir do mistério pascal de
Cristo, o qual compreende sua morte, ressurreição e o derramamento do Espírito
sobre a Igreja, no evento de Pentecostes. A Igreja é a manifestação histórica desse
mistério, seu sinal visível para a humanidade. Ela é, no mundo, o sinal visível da
511
páscoa eterna . E o Batismo é um dos modos pelos quais a Igreja atualiza esse
mistério na vida dos crentes.
Da mesma maneira que a passagem pelo Mar Vermelho foi, para os
israelitas, a passagem da escravidão à liberdade e o que os vinculou ao destino de
512
Moisés , assim também o batismo cristão se tornou a experiência fundamental
504
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43.
505
Cf. Gl 3,27.
506
Cf. Rm 6,3; 11,36; 1Cor 8,6; 12,13; Ef 2,15.21-22.
507
Cf. Mt 3,11; Mc 1,8; Lc 3,16; Jo 1,33; At 1,5; 10,47; 11,15-17; 19,3-5; 1Cor 12,13.
508
Cf. Mc 13, 11; Mt 10, 20; Lc 2,27; At 13,4; 20,23; Lc 10,21; At 9,31; Rm 5,5; 14,17; 15,30;
1Cor 13,13; 2Cor 3,17.
509
Cf. At 1,8; 4,31.
510
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 43.
511
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro…, p. 161.
512
Cf. 1Cor 10,2.
108
513
de liberdade. Não se trata de uma libertação para a libertinagem , mas uma
libertação do pecado e da vida profana 514.
De acordo com os elementos que se podem apreender da comunidade
primitiva, o Batismo é, desde o início, entendido como a porta de entrada para a
recepção na comunidade de salvação515. Por ele tornamo-nos membros do povo de
Deus, povo que é Filho do Pai, pela virtude do Espírito de filiação que já nos é
dada no Batismo. Por ele também somos inseridos nessa mesma força do Espírito,
a fim de rendermos culto filial ao Pai516.
A Igreja, sacramento de salvação, é também a comunidade dos batizados,
daqueles que foram configurados a Cristo por sua morte e ressurreição. Por sua
vocação batismal, tem que ser, no mundo e na sociedade, a comunidade dos que
livre e conscientemente assumiram um destino de vida: sofrer e dar a vida pelos
outros. É a comunidade dos que se revestiram de Cristo e que, por este motivo,
devem reproduzir na própria vida o que foi a vida de Jesus.
Enfim, depois de tudo o que dissemos só podemos entender que o Batismo
que é um sacramento fundamental para a compreensão da sacramentalidade
eclesial. Ele constitui a base da experiência cristã, a razão pela qual devemos ser
Cristo para o mundo. Tal como no Batismo esta exigência também brota da
Eucaristia, sacramento de tão grande importância para a vida de fé da Igreja e para
o aprofundamento do nosso estudo.
5.4.2
Eucaristia
513
Cf. Rm 6,1.
514
Cf. SAMANES, C. F.; ACOSTA, J. T., op. cit., p. 44.
515
Cf. At 2,41.
516
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Cristo, sacramento do encontro..., p. 164.
517
Cf. LG 11
518
Cf. LG 26
519
Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia de Eucharistia. 12ªed. São Paulo: Paulinas, 2005, n.1, p. 3
109
Sempre que no altar se celebra o sacrifício da cruz, na qual ‘Cristo, nossa Páscoa,
foi imolado’ (1Cor 5,7), realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo
sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a
unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1Cor 10,17) 520.
520
Cf. LG 03
521
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia... p. 44.
522
Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.21.
523
Cf. 1Cor 10,17.
524
Cf. DIDAQUÉ: Catecismo dos primeiros cristãos. 4ªed. Petrópolis: Vozes, 1983, n. 9,4, p.32.
525
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 46.
526
Cf. Ibid., p. 47.
110
ele: “O que me come viverá por mim” (Jo 6,57). Na comunhão Eucarística,
realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo:
“permanecei em mim e eu permanecerei em vós” 527.
527
Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de Eucharistia..., n.22.
528
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 48.
529
Cf. Ibid., p. 53-55.
530
Cf. Ibid., p. 63.
531
Cf. Ibid., p. 64.
111
532
Cf. Ibid., p. 88-89.
533
“Desde então e até o fim dos séculos a Igreja edifica-se através da comunhão através da
comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós”. Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia de
Eucharistia..., n.21.
534
Cf. TILLARD, J. M. R. Carne de la Iglesia..., p. 70.
535
Cf. Ibid., p. 83.
536
Cf. Ibid., p. 75.
537
Cf. Ibid., p. 79.
112
5.4.3
A Crisma
538
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2…, p. 135.
539
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234.
540
At 2, 1-13.
113
541
Cf. SCHMAUS, M. A fé da Igreja. Vol. V.2..., p.135.
542
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 235.
543
Cf. At 8, 17s; 19,6.
544
Cf. Hb 6,2
545
Cf. At 2,38; 10, 44-48.
546
Cf. At 8,16s.
114
547
Cf. Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 234.
548
Cf. SCHMAUS, M., A fé da Igreja. Vol.V.2..., p. 137.
549
Cf. Lc 24,19; At 1,8.
550
Cf. Jo 14,26; 16,13.
551
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 239.
552
Cf. Gn 48,14s; Mc 10, 13-16.
553
Cf. Mc 5,23; 6,5; At 28,8.
554
Cf. Nm 27,15-23; Dt 34,9; At 6,1-6; 1Tm 4,14; 2Tm 1,6.
555
Cf. SCHNEIDER, T., op. cit., p. 236.
115
Israel, sacerdotes e reis eram empossados em seus cargos por meio da unção556.
No Novo Testamento não se constata nenhum rito de unção em conexão com o
derramamento do Espírito; no entanto, a “unção” se tornou a figura para designar
a concessão do Espírito ocorrida no Batismo 557.
A relevância deste sacramento para a vida sacramental da Igreja está na
consciência mais amadurecida que se tem da fé, no compromisso do testemunho e
na identidade que cada cristão deve assumir diante do mundo. Os sacramentos não
podem ser reduzidos a meros gestos rituais, mas têm de nos projetar para um
compromisso de vida concreto, caracterizado pela conversão pessoal e a
transformação da sociedade pelo nosso diferencial de vida.
556
Cf. Ex 29,7; Lv 4,3; 1Sm 16, 1-13; 2Sm 2,4.
557
Cf. 2Cor 1,1s; 1Jo 2,20. 27.
116
6
Perspectivas
próximo, que ele mesmo realizou. Cabe a ela, portanto, a grande tarefa de
continuar e manifestar nos tempos hodiernos a graça e a salvação Cristo,
derramadas sobre a humanidade no Sacrifício da cruz. A salvação não cessou. A
graça de Cristo continua a se manifestar. Pentecostes continua a acontecer na vida
dos fiéis. Mas isso não é tão simples quanto parece.
Vivemos num tempo de recuperação do valor do leigo e da sua atuação
como membro ativo da Igreja. Tempo de desafios no que se refere ao ecumenismo
e à comunhão entre as religiões. Além disso, a tentação de uma religião fácil, sem
compromissos ou exigências, a multiplicidade de denominações religiosas e de
ofertas para resolver os problemas quotidianos daqueles que sofrem, aliados ao o
crescimento da pobreza e das diferenças sociais se tornaram um prato cheio para
as “raposas” de plantão, isto é, pessoas mal intencionadas que longe de se
comprometerem com a verdade do evangelho, fazem da religião e da boa fé dos
seu fiéis um modo de satisfazer suas próprias vontades e caprichos.
Tempo em que a presença da Igreja em muitos continentes começa a ser
escassa e a laicização dos Estados se torna fator determinante para o cerceamento
das atividades evangelizadoras, senão até a sua proibição. Tempo, enfim, em que
a falta de sentido e a grande variedade de alternativas religiosas, todas requerendo
para si o primado da verdade, juntamente com a falta de testemunho da parte
daqueles que dizem crer, fazem com que cada vez mais cresça o número daqueles
que se dizem sem religião, ou ainda, ateus.
Ser sacramento de salvação, sinal vivo da presença ativa de Cristo no
mundo, é mais que um privilégio, tornou-se uma necessidade. Talvez por isso o
Concílio Vaticano II tenha definido o tema da sacramentalidade da Igreja como
um dos seus mais importantes conceitos. Ser sacramento de Cristo é perceber-se
um membro ativo deste grande corpo, que é a Igreja. É reconhecer que na missão
evangelizadora não somos meros expectadores, mas protagonistas principais.
Trata-se de uma prioridade nos projetos de ação, evangelização e formação da
Igreja.
Mas que modelo de Igreja queremos ser e apresentar para a sociedade?
Como fazer com que de fato a Igreja seja sinal de salvação? Que respostas
queremos dar ao mundo frente aos desafios levantados? A humanidade nos
interpela. É possível ser sinal de esperança em meio a tantos conflitos e
contradições?
118
Ora, uma Igreja mais participativa e mais consciente da sua missão passa
também pela oportunidade e pela capacitação, sobretudo daqueles que mais tem
carecido desta atenção, os fiéis leigos. Quais os passos empreendidos nesta
direção? Que atitudes concretas têm sido realizadas para que isto se aconteça?
Não seria, porventura, a hora de recuperar a idéia de comunidades mais
participativas, co-responsáveis na missão do evangelho, decentralizadas na
questão da autoridade e do poder, e iluminadas pela proposta de uma Igreja de
comunhão?
Sabe-se, que o Concílio Vaticano II deu grandes avanços com a proposta de
recuperação de alguns valores e modelos da Igreja primitiva. Contudo, também é
possível dizer que o modelo eclesial adotado pelo Concílio ainda não foi
totalmente assimilado e transmitido pela catequese que temos recebido.
No âmbito do direito, é preciso fazer com que a legislação canônica
acompanhe a renovação proposta do Concílio e que a Igreja sacramental não seja
mais um elemento utópico, no sentido de que sempre se apresenta como um ideal,
mas quase nunca como uma realidade. Do contrário, as propostas e definições da
Igreja nunca passarão de documentos.
A missão da Igreja é ser sal da terra e luz no mundo. O mundo como campo
de experiência e transfiguração cristã é propriedade irrenunciável da Igreja,
especialmente do leigo: viver no tempo cada uma das atividades para nelas
testemunhar o Cristo. Só assim responderão à sua vocação e serão
verdadeiramente cristãos.
Grande auxílio também pode nos dar a liturgia. A missa como ato
comunitário do celebrante e do povo juntos, requerendo participação pessoal e não
somente assistência de expectadores pode ser uma imagem perfeita da vida
eclesial autêntica, o fiel que leva ao altar a sua vida, como verdadeira hóstia viva
ao Senhor. Somente quando uma consciência deste gênero tiver sido
universalmente afirmada em todos quantos se dizem católicos os fiéis
compreenderão a necessidade de fazer a sua parte no trabalho da messe.
Concluímos nosso trabalho lembrando que a proposta desta pesquisa não foi
a de fechar questões ou apresentar conclusões sobre os aspectos tratados, mas
simplesmente despertar para a necessidade de um aprofundamento do tema e,
dessa forma, dar uma contribuição para a teologia e para a pastoral da Igreja. Meta
que esperamos ter alcançado.
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Referências bibliográficas
Documentos
BENTO XVI. Carta encíclica Deus é amor. São Paulo: Loyola, 2006.
JOÃO PAULO II. Carta apostólica novo millennio ineunte. São Paulo:
Loyola, 2001.
Livros
Dicionários
Jornais e revistas
Bíblias