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Espelho da Nação
M6nica Pimenta Velloso
gando também uma hierarquia de va muito maior do que possa parecer à
lores que poderia explicar sua sensi primeira vista. Já foi assinalado o pa
bilidade singular de escritor. Estas pei central que a instituição famflia
idéias são defendidas por Peregrino ocupa dentro do projeto realista, cons
Júnior num curioso artigo intitulado tituindo-se mesmo em sua referência
" A iconografia de Machado de Assis". obrigatória:
Nele, o autor se esforça por recupe
rar a defasagem autor-obra, procuran "A menção de uma hereditarieda
do reconstituir a história de Macha de ou de uma família, como figura
do através de fotografias. Na falta do simultânea de referência realista
texto escrito recorre-se à fotografia, da classificação, de chamada e de
na esperança de que ela venha a nota informática, ( . . . ) como fi
preencher as lacunas deixadas pelo gura de transferência e circulação
texto. Na descrição minuciosa d.o fí de um certo tipo de saber genéti
sico, a tentativa de encontrar a his co (e reencontramos perpetuamen
tória de vida: te esta problemática da circulação
de saber) é sem dúvida importan
H •as feições se vão atenuando.
• •
terário realista, que a interpreta como com o seu tempo (Slrube, 1985:
elemento revelador da obra artística 33-44; e Cledson, 1986). Se a critica
(Hamon, 1984: 147). Machado não literária do Estado Novo insiste em
escapa a esse gênero de interpretação. desqualificar sua obra pelo tom de
Ele é visto como "retratista das con· alienação nela contido, é porque Ma
tradições da alma", porque sua doen chado fala uma outra linguagem que
ça O coloca em sintonia com as ano foge ao código consagrado. Essa lin
malias sociais. Pela enfermiMde é guagem é a subjetividade. Para um
que ele penetra no mundo subterrâ projeto que se pretende realista e "s0-
neo da mente, retirando de lá a ma cial", a subjetividade não tem abso
téria-prima para compor o universo lutamente nada a ver. O narrador
conturbado dos seus personagens. Daí deve ser invisível para proporcionar
se explicam o delírio de Brás Cubas ao leitor a impressão da objetividade
e a loucura de Quincas Borba. Nesta do relato. Note-se bem: a coincidência
perspectiva, Machado é acusado de do projeto literário com o projeto
fazer o elogio da loucura, confundin historiográfico iluminista. Ambos in
do-a com filosofia. Vale a transcri cumbidos de transmitir a "verdade"
ção: pela boca de um autor que se encon
tra destituído de qualquer juízo de
"A obra do romancista parece-nos valor. e por isso que Machado des
que poderia, sem impropriedades, toa. Recusando o ideal da observação
ser representada em resumo por
científica e a tradição descritiva, típi
aquele hospício de Itaguaí, do fa
cos da narrativa naturalista, o autor
moso conto ' O Alienado'. Doidos,
gera controvérsias. Daí o tom de es
doidos, todos doidos. Mas porque
panto e até de queixa registrado pela
Machado repugnava a violência, o
crítica ao constatar que sua obra
alarido, o excesso, mesmo na lou
cura, todos os seus loucos são
"Não tem paisagens, nem descri
mansos. Quincas Borba, o pior de
todos, não faz esgares, faz filoso ções ( . . . ) não tem mesmo am
bientes. Não encontramos também
•
do autor, Visão esta que vai direta As mesmas notícias locais e estran·
mente contra a ideologia regionalista geiras, os furtos do Rio e de Lon
do regime. Não é à toa que José Lins dres, as damas da Bahia e de
do Rego, fazendo sua apreciação s0- Constantinopla, um incêndio em
bre Machado, escreve um artigo com Olinda, uma tempestade em Chica
o seguinte tftulo: "Um escritor sem go. As cebolas do Egito, os juízes
256 ESTUDOS HISTÓRICOS -- 1988/2
Euclides não nega suas origens, não dade, ampliando-os apenas e mal em
se envergonha delas, e por isso tam prestando os cambiantes de um tem
bém não nega as origens de nossa na peramento" (Cunha, 1942a: 74). A
cionalidade_ Como bom caipira que elaboração da obra de arte se dá fora
é, reconhece o sertão como berço da do artista, ou melhor, fora do circuito
nossa civilização, já que o nascedou de suas emoções pessoais. Como um
ro da nacionalidade também é o seu. dos representantes da geração cienti
Essa identidade fundamental que une ficista de 1870, é natural que Eucli
autor-nação - ambos têm raízes in des defenda este ponto de vista que
terioranas - vai ser um dos aspectos privilegia a observação sobre a emo-
capitalizados pela ideologia estadono çao.
-
so O aponta como um dos nossos mais J á vimos o peso que nossa crítica
bizarros "heróis-literários" (Celso, literária confere à palavra documento.
1 942: 69) . E é esta faceta do herói Este é o fiel da balança que vai ava
que aparece na carta que Euclides liar a contribuição da obra literária à
endereça a Machado de Assim em fe nação. Documento, objetividade, na-
çao. aparecem como termos smont-
.
Nela, o autor lamenta que o trabalho mos. Dentro desse contexto, aventu
o afaste de seus autores preferidos rar-se fora do gênero documental sig
- Taine, Bucke, Comte, Renan - nifica cair nas armadilhas e labirin-
•
Brás Cubas ( 1881 ) . O autor parte de Toda essa argumentação deixa cla
uma referência histórica para montar ros os vinculas entre a história e a
sua ficção. Não se trata do Brás literatura, sem que sejam negligencia
Cubas, fundador da cidade de Santos, das as especificidades dos respectivos
conforme possa parecer ao leitor de discursos. Recapitulando as idéias ex
savisado. Trata-se da história de um postas, vemos que a tentativa de fa
indivíduo narrada após sua morte. No zer uma nova história da literatura
entanto, nessa narrativa de além-tú brasileira aparece balizada pela idéia
mulo entram desde os acontecimentos de nação. Tanto a literatura como a
da conjuntura nacional às minúcias história devem espelhar o corpo e
do cotidiano. Os reflexos da queda alma da nação, adquirindo uma fun
de Napoleão Bonaparte, O período re ção claramente ética e pedagógica. A
gencial, as dissensões poUticas, a pro história de vida do escritor passa a
blemática da escravidão, a margina
ser considerada elemento-chave, por
lização e miséria das camadas popu
que capaz de revelar os rastros de
lares são fatos que se entrecM1zam
uma trajetória que se quer clara,
com as vivências Intimas do persona
exemplar e didática. Assim, Euclides
gem, suas frustrações políticas e amo
da Cunha é tão herói quanto Caxias.
res secretos. Desaparece a contradi
ção entre imaginário e realidade, nar Suas histórias são a história da na
ração e documento, impressão e regis ção. Dentro desse contexto de valo
res, a figura de Machado de Assis
tro, referencial interno e externo. A
reconstituição da memória é subjetiva. mais se aproximaria da de 11m Cala
Também o Manifesto Antropófago bar: traidor de sua história e da his
( 1 928) reforça essas idéias. Nele Os tória de seu país.
wald de Andrade reinventa lima nova Esse aspecto é marcante. A ausên
forma de contar a história do Brasil: cia de dados biográficos sobre O autor
ao invés do documento, o fragmento. leva os críticos a cometerem verda
História, ficção, poesia e política se deiros malabarismos e peripécias dig
misturam, desestruturando a narrati nas de um detetive. Para investigar
va tradicional: contra a verdade dos a vida de Machado, recorre-se a de
povos missionários, contra as elites poimentos de amigos, à análise de
vegetais, contra os importadores de suas fotografias e até mesmo à gra
consciência, contra a realidade social fologia. Mas Machado mostra-se inde
opressora. cifrável. Indecifrável também sua
Um outro aspecto que denota a obra, acusada de trair seu pais e sua
compatibilidade entre a· história e a gente.
literatura é a captação do passado. · Em vez de fazer de sua obra do
Paul Veyne lembra que, assim como cllmento e espelho da realidade bra
o romance, a história também sele sileira, Machado problematiza e re
ciona, simplifica e organiza o tempo. cria essa realidade, fazendo-a emer
\! por isso que o historiador se apro gir em toda a sua tensão e dinamis
xima da ficção: ele também reinventa mo. Aí não cabem intenções, convic
o tempo. Assim, o historiador "faz ções e projetos a priori. A realidade
com que um século caiba numa pá (seja ela individual ou social) sempre
gina" (Veyne, 1982: l I ). Que crité supera as expectativas e surpreende:
rios ordenariam esses cortes, senão os "Não escrevi a história que esperava:
da subjetividade? a que de lá trouxe é esta." I
262 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/2
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