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A Literatura como

Espelho da Nação
M6nica Pimenta Velloso

cia portadora elou refletora do mun­


1. A IradlçJo documental d. "lOralur.
do social. Assim, a produção literária
miadas as literaturas impe- aparecia como reflexo imediato e di­
"
rativamente o público exige retamente condicionado pela ordem
novos reflexos do meio, do social. Raros foram os nossos autores
tempo, da alma; grandes re­ que se rebelaram contra esse paradig­
velações naturais e sociais do espaço." ma de análise, buscando formas alter­
(Ali/ores e Livros, 31 . 8 . 1941). nalivas para pensar a relação litera­
À primeira vista parece que se está tura-sociedade. Os que tentaram esse
falando da arte fotográfica, ao menos caminho foram tachados de aliena­
como ela foi concebida na sua origem, dos, alienígenas, e definitivamente
em finais do século XIX. Nessa épo­ proscritos da legião dos escritores con­
ca, acreditava-se que a realidade só sagrados. Afinal, a grande acusação
poderia ser capturada pela sábia e que sobre eles pesava era séria: des­
todo-poderosa rede da ciência. Assim, conhecer a nação!
a invenção da fotografia vinha respon­ Era senso comum ver a literatura
der a esse anseio de obje6vidade. Ela como veículo da nacionalidade. No­
passou a ser considerada quase um mes como Olavo Bilac, José Lins do
sinôrumo de realidade. Todas· as ve­ Rego, Cassiano Ricardo, Raquel de
zes que se pretendia objetivar qual­ Queirós, Afonso Celso, Jorge Amado
quer coisa, falava-se em retrato. O reforçam, embora de perspectivas di­
ideal fotográfico acabou fundamen­ ferentes, essa vertente tradicional de
tando uma determinada concepção de análise. Seja ao defender a literatura
mundo cujo referencial era a visibili­ como "escola de civismo" (Olavo
dade e a exatidão. Daí porque, no Bilac e Afonso Celso), seja ao consi­
texto acima, vemos a idéia da litera­ derá-Ia como instrumento de conscien­
tura-reflexo, da literatura-revelação. tização política (fase inicial da obra
Ao longo de nossa história polí6- de Jorge Amado), a idéia acaba sem­
co-intelectual, as mais diferentes cor­ pre incidindo sobre o mesmo ponto:
rentes de pensamento tenderam a con­ literatura-sociedade via relação didá­
ceituar a literatura enquanto instân- tico-pedagógica.
Estlldos Ilist6ricos, Rio de Janeiro. vol. I, n. 2, J988, p. 239-263.
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Essa concepção da literatura, que base em que argumentos eles rormu­


entre nós se constitui em verdadeira laram a equação literatura=socieda­
tradição, é no mínimo simplista. Sim· de? Ou, em outras palavras, por que
plista porque apresenta a obra literá­ motivos se consolidou entre nós uma
ria como mero testemunho da socie� tradição documental da literatura?
dade, como uma espécie de documen­ Nossa condição de país colonizado
to destinado exclusivamente ao regis­ explica em parte essa situação. Antes
tro dos fatos. Perde-se, dessa forma, de termos uma existência histórica
uma dimensão essencial da questão: própria, já éramos uma idéia euro­
a de que a sociedade é ao mesmo péia. E Octavio Paz quem diz: "So­
tempo uma realidade objetiva e sub­ mos um capítulo da história das uto­
jetiva. Se o escritor exterioriza seu pias européias." País do futuro, Novo
ser no mundo social, ele também o Mundo, enfim, uma existência preme­
interioriza como realidade objetiva. ditada, imaginada e projetada ideolo­
Não há, portanto, um mundo dos fa­ gicamente pelo outro. Como o restan­
tos pairando acima do indivíduo. Essa te da América Latina,. o Brasil serviu
relação unilateral e objetiva entre os de campo experimental ao saber eu­
termos não existe. Existe, sim, uma ropeu. Assim, os princípios da abs­
profunda dinâmica entre indivíduo e tração, racionalização e sistematiza­
sociedade feita de interações, desloca­ ção acabaram minimizando a indivi­
mentos e modificações. dualidade, a imaginação e a invenção
A produção literária é um fenôme­ local (Paz, 1 976; e Rama, 1 985). Des­
no social, na medida em que resulta sa forma, nossa literatura já nasceria
de convicções, crenças, códigos e cos­ comprometida com uma escala de va­
tumes sociais (ver Oliveira, 1984). lores adversa à sua natureza ficcio­
Enquanto tal exprime a sociedade, nal. Racionalidade ao invés de ima­
não ipsis til/eris, mas modificando-a ginação, sistematização ao invés de
e até mesmo negando-a. Se a litera­ invenção. Essa herança cultural apa­
tura emerge de uma determinada rea­ rece magistralmente corporificada em
lidade histórica, isso não implica que um personagem de Garcia Marques
deva ser o seu registro fiel, ou a sua chamado Florentino Ariza. Encarre­
fotografia. Ao contrário: a literatura gado de escrever ofícios e relatórios,
tende freqüentemente a insurgir-se esse personagem se confronta com um
contra este real, apresentando dele sério problema: a incapacidade de
uma imagem em que a própria socie­ fazê-lo de acordo com as exigências
dade muitas vezes se recusa a reco­ burocráticas. Florentino sempre des­
nhecer-se. Trata-se, portanto, de uma camba para a literatura. Mistura o
relação necessária, contraditória e im­ mundo dos negócios com o mundo
previsível (ver Paz, 1983: 1 2-34) . imaginário, pragmatismo com subjeti­
Essas questões se referem a um vidade. Redigir um ofício significa
problema epistemológico de funda­ para ele a oportunidade de fazer lite­
mentai importância no campo da teo­ ratura. Assim, literatura e documento
ria literária, que tem aliás merecido acabam sendo uma coisa só.
a atenção dos especialistas no assun­ Realmente, o veto ao imaginário e
to: o da relação entre arte e realidade à subjetividade tem sido uma cons­
!ver Auerbach, 1971; e Lima, 1980 tante em nossa história intelectual.
e 1984). O que nos interessa aqui é Para Lufs Costa Lima, desde a inde­
mostrar como essa problemática foi pendência política do país tem preva­
pensada pelos nossos intelectuais. Com lecido '10s escritos literários o para-
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digma da objetividade. Seja através e fadada ao erro. A verdade reside


de Gonçalves Dias cantando a sau­ no mundo dos fatos, dos acontecimen­
dade no exilio, seja através de Alva­ tos e da ação. � neste mundo que
res de Azevedo falando do seu "eu", determinou-se estar o lugar do real.
é visível a tendência ao pragmatis­ Continuando o nosso raciocínio: se
mo (Lima, 1 986). Debruçar-se sobre a literatura tem como função repre­
um objeto exterior (seja ele a pátria sentar o real, como fazê-lo? Recor­
ou a pessoal. dissecando-o e analisan­ rer aos aparatos conceituais da ciên­
do-o como se fora um fato pronto a cia, objetivar o seu discurso, concei­
ser decodificado, é ver a literatura tuar. Foi o que fez a escola realista,
como instância encaflegada de docu­ quando procurou tomar o real aces­
11.
mentar elou descrever o "real sível à descrição, definindo-o como
Essa concepção da literatura, vista "um campo complexo e produtivo,
como apêndice ou epifenômeno d a so­ descontínuo, 'rico' e enumerável, no­
ciedade, é de matriz positivista. En­ meável, de que se deve fazer o in­
carada como coisa menor ou discurso ventário" (Hamon, 1984: 1 75-176).
de segunda grandeza, a literatura só A literatura se transforma, então, num
passa a ser respeitada quando esco­ inventário da realidade, já que essa
rada pelos parâmetros cientificistas. realidade é algo que pode ser ma­
Exige-se precisão, objetividade, exati­ peado. Está feita a associação: litera­
dão. Condenam-se os juízos de valor, tura = representação ·do real = do­
as interpretações e opiniões. A reali­ cumento ou inventário. A partir daí,
dade social é concebida como um é possível conceituar a literatura como
fato a ser examinado pelas lentes da o canal adequado para a captura do
ciência. Essa visão se faz presente nos "real" (entendido como mera objeti­
paradigmas clássicos da crítica literá­ vidade). Tal forma de ver supõe lima
ria brasileira, através de Silvio Rome­ transparência ou uma correspondên­
ro e José Veríssimo. Se, para Sílvio cia imediata entre a realidade e a
Romero, o padrão de julgamento de obra artística. � como se ao artista
uma obra literária é a nacionalidade, coubesse a função única de retratar
para Veríssimo esse padrão é a lin­ uma realidade já dada. No entanto, os
guagem. Com as devidas diferenças, objetivos da obra literária estão longe
o raciocinio é o mesmo: a literatura de ser estes. Em lugar de retratar o
é considerada como representação fiel real, o que ela busca é transfigurá-lo.
de uma realidade maior que a con­ E é problematizando a realidade his­
diciona, seja ela a nação, conforme o tórica, transformando-a em aventura,
quer Sílvio Romero, ou a .língua, co­ que o autor constrói sua obra. A His­
mo quer Veríssimo. tória se confunde com a história. A
O que está em discussão é uma de­ realidade histórica é mero instrumen­
terminada concepção ou modelo de to, matéria-prima sobre a qual tra­
realidade. E que realidade é esta que balha o artista quando recria a rea­
a literatura deve tomar como paradig­ lidade.
ma? Que valores os escritores devem Voltamos à questão inicial: por
acatar, no intuito de terem suas obras que, no interior do discurso literário,
reconhecidas? De modo geral, nossa a realidade foi reduzida então à mera
crítica literária tem insistido num objetividade, relato, fato? Por que
princípio: o da "verdade". E esta ver­ nossa crítica literária se deixou mar­
dade deve ser buscada fora da mente car tanto pela mentalidade cientifi­
humana, que é considerada ilusória cista-positivista? Afinal de contas, por
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que tamanha ênfase à idéia de nação dram as grandes reflexões sobre a


e de pátria? nacionalidade, com as obras de Eucli­
Uma coisa é certa: essa vinculação des da Cunha, Gilberto Freyre, Sér­
literatura-nação, da forma como foi gio Buarque de Holanda. A preocupa­
feita, acabou dificultando a apreen­ ção sociológica que move esses auto­
são da literatura como forma discur­ res é tIpica de toda lima geração de
siva própria. Note-se bem: não esta­ intelectuais que se voltou para a bus­
mos incompatibilizando literatura e ca de nossas raízes civilizatórias, Para
realidade histórica, nem estabelecendo conhecer o Brasil, era necessário do­
oposição entre subjetividade e obje­ minar um instrumental de análise que
tividade. Se assim fosse, estaríamos passasse pelo crivo da cientificidade.
apenas reforçando a tradicional ver­ Munido deste aparato, nosso intelec­
tente positivista da nossa cdtica lite­ tual teria melbores condições de
rária. O que estamos pondo em ques­ apreender a nacionalidade, diagnosti­
tão é o vínculo obrigatório, o compro­ cando seus males e propondo terapias.
misso que se estabeleceu existir entre A sociologia é este saber que ga­
a criação literária e a nação. No afã nha o estatuto da cientificidade, por­
de retratar o Brasil, nossa literatura que é capaz não só de oferecer lima
inclinou-se mais para as tendências análise mais Hrealista" da nossa situa­
realistas do que propriamente ficcio­ ção, como também de nela interferir.
nais. Isso porque ou a ficção foi con­ Esse mito criado em torno da socio­
siderada matéria de segunda grande­ logia não passaria despercebido a Má­
za (devido à sua alegada incompati­ rio de Andrade, que ironicametne a
bilidade com o "real"), ou significava denominaria a "arte de salvar rapida·
uma ameaça à ordem de valores vi­ mente o Brasil" (Mário de Andrade,
gente. Pertencente ao universo da sub­ O empalhador de passarinho, citado
jetividade, a ficção passou a ser vista por Sadeck, 1 978: 8 1 ) .
como peça indesejável e prejudicial Il no período do Estado Novo
em um discurso cujo referente era (1937-1945) que as idéias salvacionis­
exterior, ou seja, a nação. Obcecado tas ganham maior força entre nossas
pela captura do real-nação e pela ca­ elites intelectuais, preocupadas em
ça ao documento, o discurso dos nos­ marcar sua presença no cenário polí­
sos intelectuais nasceu na confluên­ tico. No debate que então se trava,
cia entre o discurso histórico e o dis­ um aspecto chama particularmente a
curso literário. Assim é que as mais atenção: a tentativa de redefinir o pa­
significativas expressões da sensibili­ pei da literatura no seio da nacionali­
dade nacional assumiram esse discur­ dade. Já se sabe o quanto a literatura
so heterodoxo, onde literatura e his­ é sensível às oscilações da política,
tória se confundiam na apreensão da servindo como área estratégica na im­
nação. plementação das mudanças, venham
Essa mentalidade positivista, calca­ elas de onde vierem. E este fato é par­
do no culto à veracidade, daria ori­ ticularmente notável no Estado Novo,
gem a uma produção intelectual sui quando o regime resolve tomar a seu
generis. Buscando interpretar o Brasil, cargo a esfera da cultura, utilizan­
os nossos ensaios se inspirariam nas do-a como canal difusor de sua dou­
• • • •

mais diversas áreas de reflexão, como trins.


a história, a economia, a arte, a polí­ Vivendo um momento de afirmação
tica, a literatura (ver Cândido, 1965). da identidade nacional, o regime se
Dentro desse gênero é que se enqua- esforça por capitalizar os !!"andes no-
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mes de nossa literatura, transforman­ questões. reina o consenso. Mas essa


dcros em "vultos nacionaisu respon­
I
idéia não se sustenta por muito tem­
sáveis pela nossa história pátria. 1 Da po. Na avaliação que o regime faz do
mesma forma que a concepção clás­ movimento aparecem claramente as
sica da história, a literatura também divergências.
aparece como "mestra da vida" des­ I
, á se sabe que a doutrina do regi­
tinada aos exemplos edificantes e vir­ me se apropria do modernismo, esta­
tuosos. Assim, ela aparece como uma belecendo com ele lima relação de
espécie de feito nacional realizado pe­ continuidade em que o movimento
los nossos heróis-escritores. Associa­ acaba aparecendo como um prenún­
se então explicitamente a literatura à cio do Estado Novo. Subjacente à
nação, transformando-se a primeira idéia de prenúncio, temos a de inaca­
num espelho capaz de estampar com bado, imaturo, incompleto. Assim, o
perfeição a imagem da nacionalidade. pe.riodo modernista é minimizado,
Essas idéias dão uma dimensão da perdendo sua autonomia e impacto,
importância que, durante o Estado .
para aparecer apenas como o anunCiO
-

Novo, é atribulda à literatura, vista ca­ de um período glorioso e maior que


ma elemento-chave na constituição da é o Estado Novo.
nação. Não é à toa que o regime pro­ O modernismo é sempre retomado
põe que seja feita uma nova história como momento primeiro de um pro­
da literatura brasileira. Este projeto cesso em que os desacertos predomi­
começa a ser implementado por seu nariam sobre os acertos. Se são apon­
porta-voz, o jornal A Manhã, através tados os equivocas do movimento, se
do suplemento literário Autores e Li­ este é visto como prenúncio de um
vros. Esta fonte de análise é riquissi­ outro momento, é porque se tem em
ma, pois oferece uma verdadeira ge­ mente um modelo. E este modelo é
nealogia da vida intelectual brasileira. o projeto literário do Estado Novo.
Toda essa genealogia é construida Que argumentação legitimaria esta
com base em uma determinada con­ idéia? Ou, como os intelectuais do
cepção de literatura, calcada na idéia regime vão demonstrar a "superiori­
de representação da nação. Buscando dade" da literatura estadonovista so­
legitimar tal concepção ao longo da bre a modernista?
nossa história, o regime esbarra num A argumentação que fundamenta
adversário: o movimento modernista. todo esse discurso pode ser resumida
Por que adversário? Onde estaria a
numa única idéia: a literatura do Es­
incompatibilidade entre o regime e o tado Novo seria mais nacional. Mais
movimento? • nacional porque fruto da Revolução
de 30, que refletiria as aspirações
2. Um balanço do movimento modernista
mais autênticas da sociedade. O con­
traponto com o modernismo é ime­
Comecemos pelas afinidades. Tanto diato: nascido do impacto da Primei­
o movimento modernista como a ra Guerra Mundial, este movimento
ideologia do Estado Novo estão de­ refletiria muito mais a influência ex­
fendendo a literatura como veículo terna do que a interna. Resultaria dai
da nação, o papel do escritor enga­ um nacionalismo de caráter puramen­
jado (ou ao menos inspirado na te­ te "sentimental e livresco". Sentimen­
mática nacionalista) e um projeto cul­ tal, porque preocupado em demasia
tural centrado na idéia de brasilidade. com a valorização das coisas da terra.
Aparentemente, ao menos nas grandes Livresco, porque restrito a um peque-
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no círculo de intelectuais. Assim, o Assim, a funcionalidade da arte, le­


movimento é ironicamente descrito vada ao extremo, acaba esvaziando-a
como uma "conspiração tramada en­ do seu verdadeiro papel, que é o da
tre meia dúzia de intelectuais". Já o transformação e recriação poética da
nacionalismo estadonovista é qualifi­ realidade. O contexto social não im­
cado de "objetivo e realista", porque põe nem determina a obra literária.
em comunhão com os anseios sociais E simples pano de fundo sobre o qual
(Lousada, jun. 1942: 3 76-3 77) . se desenrola a trama ficcional.
Para os ideólogos do Estado Novo, Na década de 30 pensava-se o in­
o romance da década de 30 repre­ verso. A literatura é vista como frau­
senta a verdadeira literatura, porque de, engodo, ret6rica, enquanto a so­
voltado para a construção da nacio­ ciologia representa a revelação e a
nalidade. Unindo os elementos inspi­ ação. Jorge Amado em Cacau propõe
rados na modernidade com aqueles fazer um mínimo de literatura para
herdados da tradição naturalista, o um máximo de honestidade; José Lins
romance de 30 iria perder muito do do Rego em Meus verdes anos decla­
impeto criativo modernista. Assim, da ra-se disposto a não recorrer às ima­
mesma forma que a literatura volta a gens poéticas que podem encobrir a
ganhar sua aura - identificada com realidade (ver Sussekind, 1 984: 1 70-
uma função social - o poeta reassu­ 1 7\). Política, realidade, honestidade,
me seu papel de guia, encarregado verdade. Essas são também as pala­
também de cumprir sua missão sal­ vras de ordem do projeto literário do
vacionista. Em uma palavra: promo­ Estado Novo.
ve-se a sacralização da arte. A partir Fazendo um balanço do movimen­
daí, esta s6 é concebível quando atre­ to modernista, os ide610gos do regime
lada a urna obrigação política. Logo, vão acusá-lo de um erro capital: o
de construir uma visão Uliteráriau da
" . . . o engajamento do artista re­ nacionalidade (Lousada, mar. 1 94 1).
duzia-se à suas possibilidades de Associa-se literatura a ficção, no sen­
comunicar, de transmitir, de fa­ tido de incompatibilizá-la com a pro­
zer funcionar a literatura dentro blemática nacional. Nessa crítica, o
do quadro maior da revolução. que fica subjacente não é a condena­
Acrescente-se a isso 8 visão mecâ­ ção da literatura em si mesma. O
nica das relações infra-estrutura e grande espectro a ser combatido é a
ideologia, além da ingenuidade na subjetividade, vista como prejudicial
concepção do 'rea!', e ter-se-á a à nação. Assim, no interior desse dis­
descrição do realismo 'socialista' " curso já fica transparente um prin­
(Lafetá, 1 974: 1 74). cípio: o da "vocação nacional" atri­
buída à literatura. O que significa di­
A caça ao real e a rígida atribui­ zer que a literatura s6 deve ser reco­
ção de papéis - o artista sendo en­ nhecida enquanto voltada para a ta­
callegado da captura desse real - refa de construção da nação. Neste
mostra-se incompatível com a litera­ ponto é que o reside o x da questão:
tura, cuja natureza é ficcional. Ao para o desempenho da grande missão,
longo dos anos 30 tanto as correntes é necessário que a literatura se mova
de pensamento da esquerda quanto as dentro de uma determinada escala de
da direita vão negar essa natureza valores. Esta escala, segundo os ide6-
essencial da literatura, procurando logos do regime, deve ser pautada pe­
subordiná-la aos ditames' da política. los ideais da objetividade científica.
A LITERATURA COMO ESPELHO OA NAÇÃO 245

Nessa linha de raciocínio é que os O mundo das letras - personifi­


intelectuais modernistas são desquali­ cado em Machado - passa a repre­
ficados como intérpretes da nacionali­ sentar a parte falsa do Brasil, porque
dade, porque adversos a esses ideais. voltada para a cultura importada. Já
O fato de o nacionalismo modernista a sociologia - personificada em Eu­
ser qualificado de "sentimental" e clides - se transforma na própria
"livresco" denota claramente os valo­ expressão da brasilidade. A valoriza­
res que estão em jogo. O princípio ção do mundo rural é concomitante
da eficácia, pragmatismo e ação é alo­ à desqualificação do universo urba­
cado no universo da sociologia, que no. Nesse contexto de valores, esco­
é o locus da "interpretação realista", lher a cidade como temática significa
em oposição à interpretação literária, dar as costas ao "Brasil real". Como
que aparece como terreno da pura a maioria dos escritores cariocas, Ma­
subjetividade. Esta categoria é apon­ chado se inclui entre os autores que
tada como verdadeiro descaminho optam pelos temas urbanos, toman­
para a construção do nacionalismo, do como cenário a rua do Ouvidor,
já que envereda por trilhas que fogem os salões aristocráticos de Botafogo
ao controle da ação humana. 10 nessa ou os subúrbios humildes. A revista
perspectiva que os modernistas são Cultura PolCtica, não desprezando o
acusados de se perderem em "aven­ mérito de tais escritores, lamenta que
turas freudianas", paganismos e ex­ negligenciem a "nobreza de suas raí­
perimentalismos insensatos (Lousada, zes rurais" (Lousada, ago. 1 941:
mar. 1 94 1 : 252-256). 277-279).
O que está em discussão é o saber Num contexto onde o universo ur­
mais adequado para interpretar a bano é identificado como uma espé­
nossa nacionalidade. Nacionalidade cie de corpo estranho à realidade na­
esta que se apresenta cindida entre cional, escolhê-lo como temática sig­
duas realidades: litoral e sertão. E é nificava. em última instância, assumir
CUriOSO como essa oposlçao geogra- o anti nacionalismo. Esse esquema de
. . - �

fica ganha extensão, a ponto de se interpretação da. nacionalidade cen­


transformar em uma oposição de sa­ trado na geografia assume uma im­
beres. Ou seja: estabelece-se um ver­ portância inédita entre nós. E é. com
dadeiro confronto entre aqueles inte­ base nele que vai ser construída lima
lectuais que vêem o Brasil literaria­ espécie de tipologia intelectual cen­
mente (do ponto de vista do litoral e trada nas categorias litoral e sertão.
da cidade) e aqueles que o vêem so­ Extrapola-se, ou melhor, sofistico-se
ciologicamente (do ponto de vista do a tese dos dois brasis, que passam a
sertão e do interior). O exemplo que configurar saberes opostos.
melhor ilustra essa divisão geográfica A partir daí, estabelece-se uma vel'
de saberes, se é que assim podemos dadeira antinomia, que vincula so­
chamá-la, é o de Machado de Assis ciologia-objelividade-serlão-brasilidade
e Euclides da Cunha. Machado cor­ em contraposição a lileralura-subjeli­
porifica o literato, cidadão litorâneo, vidade-liloral-cosmopolitismo. A série
cuja obra se caracteriza pelo ucosmo­ sociológica, eleita como a mais capa­
politismo dissolvente". Já Euclides citada para o conhecimento da nacio­
da Cunha representa o sociólogo' que nalidade, acaba desaguando na tradi­
adentrou O sertão; seu· pensamento é ção regionalista. Explicando melhor:
a "força original da terra" (Ricardo, entre nossos intelectuais a região sem­
1 941 : 549). pre se constituiu em referencial obri-
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gat6rio para se pensar a nação. Sem­ E o chamado ao real que está em


pre existiu o apelo às raízes e tradi­ primeiro plano. Ocorre que os mo­
ções locais, enfim, à idéia de que o dernistas são desqualificados para li­
escritor só poderia realizar-se brasi­ dar com a realidade. E por quê? A
leiramente através do regionalismo. r�sposta pode surpreender: pela sua
Assim, o ponto de partida para se alegria, pela sua forma irreverente,
traçar uma interpretação da naciona· irônica e jocosa de encarar a vida. A
Iidade deveria ser regional e rural. ruptura com a linguagem 'linear, a
Daí porque os ide6logos do Estado mistura de ficção e realidade é vista
Novo saúdam com entusiasmo o r0- como verdadeiro acinte à Hcausa na­
mance dos anos 30, vendo a corrente cional". Os modernistas se dizem in­
"socioI6gica-regional" como anuncia­ teressados na nação. Mas a forma
dora dos novos tempos. Segun do sua como eles expressam esse interesse é
avaliação, tal corrente levaria a um errada. Errada porque foge do sério,
reencontro com o Brasil, determinan­ acusam os críticos do Estado Novo.
do o "fim do período subjetivo", dos A H alegria é a prova dos nove"
"abusos da literatura" e do esteticis­ nos diz Oswald de Andrade. Real­
mo modernista (Lousada, set. 1 94 1 : mente. Na dinâmica modernista, a
29 1 ) . A idéia é que, no modernismo, alegria ocupa papel central. Pondo
a literatura se esquivara de sua função em questão a linguagem acadêmica
frente à nação. Ou seja, ela cam.ioba­ formal, o riso desestrutura a antiga
ra sobre um terreno falso, porque se poética, contribuindo assim para a
afastara das raízes, do povo e da dessacralização da arte. E justamente
terra. Numa palavra: da região. a recusa desse espírito dionisíaco, do
Quando os modernistas voltaram humor e da blague que caracteriza o
os seus olhos para o regional, o fize­ romance dos anos 30 (ver Lafetá,
ram de forma errada. Já vimos a cau­ 1974: 186). E essa reação à herança
sa. Afastados da sociedade, esses in­ modernista é taxativa: li Passou a hora
telectuais construíram idéias falsas das coisas bonitas",2 :E necessário,
sobre ela, geralmente perdendo-se em então, encarar a dura face da vida.
divagações. O trabalho de pesquisa Beleza, alegria e humor não fazem
folclórica desenvolvido por Mário de mais parte desse universo, onde o mo­
Andrade é um dos grandes alvos des­ dernismo se transforma num "dolo­
sa crítica. Acusa-se o autor de fazer roso equívoco", numa infantilidade
mau uso das ricas inspirações da cul­ que urge superar (Picchia, 1 9t 1 : 426).
tura regional, transformando-as em Na crítica dirigida contra os mo­
"fórmulas de invenção pessoal". Mais dernistas duas questões se destacam:
uma vez é a subjetividade que é posta a primeira diz respeito à subjetivida­
em questão. F. o julgamento é severo: de, vista como prejudicial à Constru­
• ção da nação, na medida em que di­
"O certo é que nenhum deles ficultaria o acess� ao real". Já vimos
Ir

(nossos modernistas) pôde ir além que o regime s6 cpncebe a literatura


da superfície e alcançar o que ha­ enquanto documento, capaz de impri­
via de real sob o nosso tédio. Fi­ mir a face da nação. Não é essa a
caram !las lendas do folclore, fica­ concepção literária defendida pelos
ram no primitivismo. Ficaram nu­ modernistas. Fugindo da tradição do­
ma pretendida renovação estética cumentai, eles·não vão concordar com
de frágil valor objetivo" (Lousa­ a rígida simetria que se pretende esta­
da, mar. 1941: 255; grifo meu). belecer entre literatura e nação. O
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 247

tom dos escritos modernista. é muito é um estudioso da nossa etnografia e


mais de perplexidade do que de cons­ folclore, se está preocupado em res­
tatação e de testemunho. Com exce­ gatar retratos do Brasil - o que o
ção, é verdade, do grupo Verde-Ama­ aproxima do documentalismo -, não
relo, que defendeu enfaticamente esta podemos dizer que sua literatura
vinculação entre literatura e naciona­ preencha completamente os requisitos
lidade. Não é por acaso que a ideolo­ do projeto estadonovista. Uma coisa
gia deste grupo vai predominar na é certa. Em Macunaíma, escrito em
doutrina do regime, notadamente a 1928, é clara a grande incompatibili­
sua forma de conceber a literatura.' dade do autor com o regime. Trata­
Iá se sabe O quanto alguns dos nos­ se de um retrato do Brasil. !\-Ias este
sos modernistas questionaram nossa retrato não tem nada de documental!
identidade, jogando por terra a ima­ Misturam-se tempos, lugares, situa­
gem de lima nacionalidade coesa e ções. E o retrato do brasileiro acaba
em paz consigo mesma. Nesse con­ sendo o do "herói sem nenhum cará­
texto conflituoso, a idéia de simetria ter" ... Um herói que a cada momen­
não tem lugar. A paternidade é pura to suspira: "Ai que preguiça'" Um
invenção autoritária: herói que mente, dribla, é cético e
imaturo. E, além do mais, vive con­
"O pater famma. é a criação da flitado entre valores culturais diver­
moral de cegonha: ignorância real sos. Ao longo de sua obra, Mário
das coisas mais falta de imagina­ problematiza questões de fundamen­
ção mais sentimento de autorida­ tal importância: o caráter abstrato da
de ante a prole curiosa" (Oswald identidade nacional, o trágico desen­
de Andrade, Manifesto Antropó­ contro entre sociedade e Estado e
fago, em Fonseca, 1982). entre intelectuais e povo (ver Sandro­
ni, 1987). Essa forma critica, irônica
Se a nação brasileira ainda não se
e livre de apreender a realidade na­
conhece enquanto tal, como preten­
cional se choca diretamente com os
der que a literatura seja seu registro
paradigmas literários do Estado Novo.
infalfvel? Como se preocupar com as
O outro aspecto que é o grande
simetria., quando se desconhece a
alvo da crítica literária é o regiona­
própria matriz? Essa é a visão que
lismo modernista, acusado de visar
Oswald de Andrade deixa transpare·
puramente o lado estético. Da! ele
cer em todos os seus escritos, que na­
ser chamado de "inconseqüente" e
da têm de simétricos. E o que seria
"pobre de colorido", tendo apenas
o Manifesto Antrop6fago (1 928) se­
caráter experimental. E preciso su­
não uma proposta de ruptura com a
blinhar que esta desqualificação se re­
nossa consagrada tradição documen­
fere a distintas formas de ver O Bra­
tal? E a partir da "desconstrução" dos
sil. E no interior do movimento mo­
documentos e de sua fragmentação
dernista que é construída uma visão
que Oswald de Andrade nos apresen­
de Brasil voltada para a desregiona­
ta a sua visão de Brasil. E esta é ca6-
lização. Visão esta adversa 11 do regi­
tica e inquieta, insurgiodo-se "contra
todas as catequeses". Não é 11 toa que me, que reforça a nossa tradição re­
este autor tenha sido um dos raros gionalista, conforme veremos mais
intelectuais intransigentemente veta­ adiante.
dos pelo regime do Estado Novo. Se até agora nos detivemos na ava­
I á a avaliação da figura de Mário liação que os intelectuais do Estado
de Andrade é mais complexa. Se ele Novo estão fazendo do modernismo,
248 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1 988/2

é porque ela nos permite compreen­ de Sílvio Romero e do mexicano


der com maior clareza o projeto lite­ Francisco Pimentel é que assistimos
rário defendido pelo regime. No inte­ às primeiras tentativas de reconstitui·
rior deste projeto, o requisito da obje­ ção de nossa literatura, enquadran­
tividade assume importância funda­ do-se esta dentro do projeto naciona­
mental. Na maioria das vezes, quan­ lista (ver Rama, 1985: 91). Foi, por­
do se fala em objetividade, fala-se tanto, sob o signo do pensamento po­
em sociologia. Idéia esta que pode sitivista e de todo o seu corolário de
ser assim equacionada: conhecimento valores que o conceito de literatura
objetivo = sociologia. No discurso começou a tomar forma entre nós.
estadonovista, a categoria da objeti­ Para a literatura adquirir validade era
vidade vai se encontrar, portanto, di­ necessário ganhar O veredictum da
retamente relacionada com a defesa ciência. Daí por que ela cresceu à
de um enfoque sociológico da litera­ sombra protetora da sociologia, que
tura. E esse enfoque exige uma rup­ lhe fornecia os requisitos necessários
tura com a estética e a subjetividade, ao seu reconhecimento social.
vistas como falsas porque incapazes Este marco de fundação acompa­
de apreender a nacionalidade. nha nossa literatura até os dias de
hoje. A cada esforço de reconstitui­
ção, vemos reeditarem·se os mesmos
3. Re.gatando o "dlscurao veridlco" ...
pressupostos tido como "científicos":
observação, precisão, descrição, obje­
Num contexto onde a sociologia é
tividade etc. Nesses pressupostos está
identificada como o saber social ca­
subjacente a idéia de deciframento
paz de amparar e dar validade aos
do real, do "verdadeiro", enfim, do
outros saberes, a literatura passa ne­
alcance da profundidade. Philippe Ha­
cessariamente para a sua órbita de in­
mon chama a atenção para este aspec­
nuêncUJ. Assim, ela é redimensiona­
to, mostrando 8 "verticalidade" como
da, passando a ser a "voz da nação",
uma das principais tendências do dis­
espécie de oráculo, capaz de revelar
curso realista, voltado que está para
"verdades essenciais sobre 8 nossa
ler os signos do ser íntimo, verda­
história, a nossa formação espiritual
deiro e profundo. Nesse movimento
e principalmente sobre o nosso des­
estabelece-se, ainda, segundo Hamon,
tino" (Moog, 1 943: 21).
uma relação de tipo pedagógico onde
Enquanto revelação da nacionali­
a narrativa se estrutura como pro­
dade, à literatura cabe a missão de
cura do saber (Hamon, 1 984: 173).
retratar o país, sendo o seu documen­
to fiel e translúcido. Ela deve ater-se, Na doutrina do Estado Novo, este
portanto, à descrição da terra e do fato é claramente constatável: trata-se
de resgatar a "essência" do ser ínti­
homem, cortando definitivamente seus
mo Brasil. Neste resgate, a história
vínculos com a ficção. Essa ruptura
com a ficção implica um compromisso é sempre chamada a testemunhar, ou
cada vez mais forte com a objetivi­ melhor, a ensinar 80S que ainda não
dade. Aqui o ponto a que pretende­ sabem. Foi assim e assim deverá ser I

mos chegar, ou seja, o quanto nossa porque o passado é o grande inspira­


literatura se deixou marcar por essas dor do presente.
características. Ocorre que foi den­ Tomando a seu encargo a tarefa
tro dos moldes do pensamento positi­ de reconstituir nossa história literá­
vista que a história do nosso conti­ ria, a revista Cultura Política parte
nente começou a ser escrita. Através de dois ·pressupostos: a evolução si-
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 249

multânea da literatura e da política e to, a literatura logo se depara com


o caráter documental da literatura. um problema: como captar a identi·
Nesse contexto, a política é pensada dade frente à uma realidade tão frag·
como um� espécie de matriz da lite· mentada? Como estabelecer continui·
ratura. Explicando melhor: a política dade em meio a tantas ambigüida­
é que inspiraria os nossos prim�iros des? Esse universo de contradições,
escritores que, imbuídos dos ideais onde se quer o uno no múltiplo, a
nativistas, dariam voz aos anseios da continuidade na ruptura, sugere a me­
nação. Mas seria apenas no romantis­ táfora do espelho. Pretendendo o
mo que se efetuaria a união das duas igual, ele apenas ludibria, pois a ima­
esferas, a partir daí inseparáveis (ver gem projetada jamais cottesponde ao
Fusco, 1942: 368·369). Assim, à lite­ real. Reflexo e real nunca poderão se
ratura caberia a função de documen· encontrar, posto que são inversos.
tar e registrar nossa história pátria. Poderia existir, entre nós, metáfo­
Esta é a idéia que a revista procura ra mais precisa do que a literatura
marcar, mostrando que a tendência como o espelho da nação? • Conforme
documental de nossa literatura re­ mostra o sugestivo trabalho de Flora
monta aos primórdios de nossa histó­ Sussekind, a persistência de um pro­
ria. Vamos encontrá·la na carta dos jeto literário realista e documental se
escrivães, nos diários de bordo e nos explica justamente pela dificuldade
sermões dos jesuítas. Seja para exal­ em captar nossa realidade, que é de­
tar as belezas naturais da terra, fixar masiado complexa e conflituosa. O
os usos e costumes dos nativos ou projeto se transforma, então, num
prestar contas à coroa portuguesa, artif(cio, quando a literatura é a cão
nossa literatura sempre prestou·se ao mara fotográfica que focaliza a na­
papel documentalista. Ela foi a' "pin· ção (de acordo com a ótica deseja.
tura entusiasta da natureza" e o or­ da, é claro). Diluídas as ambigüida·
gulho dos grandes feitos dos reis, na· des, reconstituídos os fragmentos, é
vegantes, soldados e jesuítas (Sodré, possível alcançar a simetria desejada
1942: 142·147; e Lousada, fev. 1942: entre literatura e nação.
241-243). Já vimos como a idéia de objetivi·
Fica claro, então, o papel que a dade se articula com a defesa de um
literatura deve desempenhar. A re­ enfoque sociológico da literatura. coo·
constituição hlstórica tem este objeti· cebendo-se esta como documento da
vo, qual seja, o de demonstrar que nação. E como é pensada esta nação?
a nossa literatura sempre obedeceu a
determinados parâmetros. E fugir des­
4. O a...1I • um arqulpjtago cultural!
ses parâmetros significa pôr em risco
a "vocação nacional" atribuída à lite­
Entre nós, o nacionalismo sempre
ratura. Por isso a condenação do mo­
foi compreendido como a capacidade
dernismo, visto como experiência es·
de retratar, o mais fielmente possí·
tética que veio quebrar uma determi­ vel, as coisas locais. Descrever luga.
nada linha evolutiva. res, cenas, fatos e costumes das di­
,á foi assinalada a tendência con· versas regiões brasileiras significava
servadora do projeto literário natura· entrar em comunhão com a nação.
lista, cuja preocupação é a de preser­ Dentro desse quadro, as diferentes
var identidades e estabelecer conti­ regiões vão adquirir força inusitada,
nuidades no corpo da nação. 4 Ocorre dificultando uma visão sintética da
c;lue ao operacionalizar esse movimen- nacionalidade. O Brasil se transfor·
250 F.STUOOS HISTÓRICOS - 1988/2

ma" então, num verdadeiro arquipé­ blema ficará imediatamente sim­


lago: plificado. Lá. onde esses fatores
se conjugam numa certa unifor­
" ...apesar da continuidade do midade, pode ter-se a certeza de
território, não constitu{mos um que há de encontrar um núcleo
contmente, somos antes um arqUI-

cultural homogêneo e definidor.


pélago cultural. Com muitas ilhas formando uma unidade à parte


de cultura mais ou menos autÔ­ no conjunto da literatura brasi­
nomas e diferenciadas." (Moog, leira" (Moog, 1943: 22: o grifo
1943: 22). é meu).

Estas idéias foram defendidas por .; a defesa de um critério regional


Vianna Moog numa palestra realiza­ para a literatura brasileira que está
da no Itamarati em 1940. Dando con­ em jogo. Mais uma vez fica clara a
tinuidaíle a este ciclo de palestras, ênfase na geografia que informa a
dois anos após, Mário de Andrade nacionalidade e, conseqüentemente.
faria a sua avaliação do movimento deve informar o nosso projeto literá­
modernista. A visão da literatura e rio. As várias regiões brasileiras 'são
da nacionalidade expressa pelos dois vistas como "ilhas" e analisadas em
autores é radicalmente diferente. De­ ordem geográfica. Assim, a Amazô­
fendendo a idéia do Brasil enquanto nia, de natureza exuberante e tropi­
"arquipélago cultural", Vianna Moog cal, gera uma literatura marcada pelo
reforça a tradição regionalista incor­ "sentimento cósmico". Já no Nordeste,
porada pelo regime. Em contraste são os contrastes das paisagens os
com a "teoria da desgeografização", responsáveis por uma literatura de
proposta por Mário, em que a preo­ cunho social, e assim por diante ...
cupação maior era a de encontrar nas A idéia é a de que o meio geográfi­
manifestações culturais uma unidade co modela o homem, exercendo in­
fixada por nossa história (ver Moraes, fluência determinante em toda a sua
1983), o regime insiste em acentuar obra. Não é por acaso que a crítica
as diferenças regionais. A própria ên­ literária identifica a expressão "rea­
fase nas metáforas geográficas - lismo da terra" com fidelidade e au·
Brasil = arquipélago; regiões = tenticidade. Se o homem é fruto do
ilhas - traduz uma maneira de ver meio, sua obra deve, conseqüente­
o Brasil em que a geografia é o refe­ mente, refletir esse meio. Esses são
rencial de conhecimento. E é ela que alguns dos argumentos que funda·
traduz a idéia de fragmentação e iso­ mentam a defesa de um critério re­
lamento. Se a literatura é como a na­ gional para nossa literatura.
ção, posto que é o seu espelho, ela é A teoria dos núcleos regionais co­
incapaz de abrangê-Ia como um todo. mo base para a elaboração da histó­
Seguindo esta linha de raciocínio, ria da literatura foi amplamente utili­
Vianna Moog apresenta seu projeto zada pelo Estado Novo.' Esta idéia
literário: é que vai dar origem a um projeto
ideológico de grande envergadura: o
"Fragmente-se o Brasil em regiões de reconstruir a história da cultura
onde predominem o mesmo cli­ brasileira. A idéia, conforme já vi­
ma, a mesma geografia, as mes­ mos, toma corpo no jornal A Manhã.
mas formas de produção, e o pro- através do suplemento literário Allto-
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 25 1

res e Livros, dirigido pelo acadêmico


5 . A Uloroluro reboldo: Ma_do do AII'o
Múcio Leão. Logo no seu editorial de
lançamento, fica claro o cunho regio­
A maioria dos autores que escreve
nalista do projeto literário. Anuncian­
em Autores e Livros · mostra-se unâ­
do-se disposto a divulgar a obra dos
nime em identificar Machado como
nossos escritores de província, O jor­
elemento à parte em nossas letras. O
nal se propõe terminar com o exclu­
que significa isso? Em que aspectos
sivismo cultural da metr6pole. � no­
sua obra iria entrar em confronto com
t6ria a importância que confere ao
o projeto literário do regime? Onde
local de nascimento do autor como
estaria afinal a dissonância?
determinante de sua hist6ria de vida
Um ponto é claro: Machado não
e produção intelectual. A idéia é a de
recorte ao gênero documental, esca­
que na sua região de origem estão as
pando assim à famosa simetria autor­
raízes sociais capazes de modelar a
obra. Por isso é acusado de uma du­
nação. Região-autor-obra passam a
pla alienação: em relação à nação,
ser projeção de um ideal maior con­
quando não se interessa pelos proble­
substanciado na nação. � o princípio mas públicos, e em relação a si pr6-
da semelhança e da identidade que prio, quando nega suas origens . Logo,
ordena essas categorias, dentro de um sua obra não se assemelha a ele -
universo centrado na idéia de nação. que é pobre e mestiço - nem à sua
Flora Sussekind traduz com precisão pátria, porque ele se identifica mais
esta idéia: •
com os ideais gregos e ingleses. A si­
metria se realizaria se Machado se
"A tradição literária parece exi­ visse tal como é, ou seja, se escre­
gir não só que a obra se asseme­ vesse um Hromance mulato", com a
lhe a seu país mas que todos os experiência de suas origens e sua psi­
filhos (textos) se assemelhem en­ que (Lima, 1941: 98).
tre si à maneira de produtor em No número do suplemento Iiterádo
série obediente ao molde pater­ dedicado a Machado fica flagrante a
no" (Sussekind, 1984: 30; o grifo ruptura que este realiza com o gêne­
é meu). ro documental. Fugindo da autobio­
grafia, recusando-se a ser um mero
No projeto literário do Estado No­ retratista do seu meio, Machado esta­
vo, a exigência desta simetria obra = ria indo frontalmente contra os valo­
país manifesta-se mais clara do que res e padrões estéticos de sua época.
nunca. O próprio Utulo dó suplemen­ � impressionante como essa ruptura
to Autores e Livros já explicita uma vai causar impacto entre os intelec­
determinada concepção de literatura. tuais do Estado Novo, cuja maior
Concepção esta que toma a análise preocupação é de caráter documental­
biográfica, a hist6ria de vida do autor biográfico. Inquirindo sobre a vida de
como o elemento que dá sentido à Machado, eles, consternados, con­
obra. Supõe�se, assim, uma cOlIe� cluem que:
pondência imediata entre o autor e a
obra. "Não existe a respeito de sua ori­
Revisitando a vasta galeria dos nos­ gem humilde e de sua infância
sos escritores, a critica literária apon­ pobre e triste . nenhum dado exato,
ta um personagem destoante : Macha­ nenhuma referência obietiva, ne­
do de Assis. nhuma informação minuciosa e
252 ESTUDOS H ISTÓRICOS -- 1 988/2

documentada" (Peregrino Júnior, botadas e imprecisas" dimensiona bem


1 94 1 : 105 e 1 1 1 ; o grifo é meu). a importância· que o regime credita à
documentação. A vida do autor deve
Essa ausência de dados, de objeti­ ser transparente para que se estabe­
vidade, é vista como um verdadeiro leça a necessária transparência entre
empecilho para se compreender a ele, sua obra e a nação. Esta relação,
obra machadiana. Sem a história fa­ conforme mostra o sugestivo trabalho
miliar, o autor e a obra literária cor­ de Flora Sussekind, é lima relação
rem o risco de se transformar em ver­ familiar onde o que interesse resga­
dadeiros órfãos. Ao negar a história tar é o elemento semelhança.
.
de suas origens, Machado estaria ne­ Este aspecto tem uma unportancla
. '

gando também uma hierarquia de va­ muito maior do que possa parecer à
lores que poderia explicar sua sensi­ primeira vista. Já foi assinalado o pa­
bilidade singular de escritor. Estas pei central que a instituição famflia
idéias são defendidas por Peregrino ocupa dentro do projeto realista, cons­
Júnior num curioso artigo intitulado tituindo-se mesmo em sua referência
" A iconografia de Machado de Assis". obrigatória:
Nele, o autor se esforça por recupe­
rar a defasagem autor-obra, procuran­ "A menção de uma hereditarieda­
do reconstituir a história de Macha­ de ou de uma família, como figura
do através de fotografias. Na falta do simultânea de referência realista
texto escrito recorre-se à fotografia, da classificação, de chamada e de
na esperança de que ela venha a nota informática, ( . . . ) como fi­
preencher as lacunas deixadas pelo gura de transferência e circulação
texto. Na descrição minuciosa d.o fí­ de um certo tipo de saber genéti­
sico, a tentativa de encontrar a his­ co (e reencontramos perpetuamen­
tória de vida: te esta problemática da circulação
de saber) é sem dúvida importan­
H •as feições se vão atenuando.
• •

te . . . " (Hamon, 1 984: 146).


o nariz é mais fino, os lábios me­
nos grossos, o prognatismo se es­ Concordamos. A ausência do fator
conde e disfarça por trás da bar­ família na recuperação da obra ma­
ba rala e do tímido bigode ( . . . ) chadiana salta aos olhos. Em todos
há certa tendência para uma com­ os números de Autores e Livros apa­
posição mais doce e menos vul­ rece uma sessão, logo na primeira pá­
gar da fisionomia: talvez innuên­ gina, intitulada "Notícia". A própria
cia do pince-nez ( . . . ) que lhe etimologia da palavra já esclarece o
atenua até certo ponto a grossura
significado da sessão: memória, resu­
do nariz e a dureza do olhar."
mo, nota histórica. Local e hora do
E mais ai:liante, a conclusão: nascimento, n9me dos pais e avós,
amizades de infância, primeiros estu­
"S um branco e os resíduos da dos etc., estes são alguns dados que
cor e da raça, doença, do seu dra­
fazem o perfil do personagem . Todos
ma, enfim, são tão escondidos que
os autores são apresentados ao públi­
se torna quase impossível desco­
co através desses referenciais, onde a
bri-los à primeira vista" (Peregri­
família desempenha papel chave. O
no Júnior, 1 94 1 : 105).
flash-back, a recordação e a tradição
Este exercício de imaginação e mes­ são, portanto, peças indispensáveis
mo de detetive sobre fotografias "des- que vão dar sentido ao discurso rea-
A LITERATURA COMO ESPElHO DA NAÇiio 253

lista. Acontece que Machado consti­ to o autor seria um analista cruel e


tui uma exceção. Ele não tem o mes­ um niilista.
mo tratamento que os outros autores. A chamada "crítica biográfica"
O único número do suplemento onde (Moysés, 1973: 58) incide num equí­
não aparece a sessão "Notícia" é o voco fundamental quando confunde
número dedicado a Machado. Ele é o narrador com a pessoa do autor.
visto como verdadeiro utrânsfuga" Como eles não se correspondem (um
por ter abandonado sua história. E é cruel, o outro é indulgente), então
Graça Aranha quem diz: "Machado a obra aparece como deformação, per­
de Assis não tem história de famí­ cepção distorcida da realidade, fraude.
lia ! " Não tem, porque a esconde. Ele Para Luís Costa Lima, é justamen­
passaria a vida evitando as "tentati­ te no jogo ficcional que reside a mo­
vas de devassa" que os seus poucos dernidade de Machado, capaz de arti­
amigos pudessem empreender para cular dois níveis narrativos: o primei­
encontrá-la (Lima, 1941 : 98). ro, aparentemente cordato, teria a
Aqui entra outro aspecto importan­ função de encobrir a virulência críti­
te: o grupo de amigos. Dentro do pro­ ca do segundo (Lima, 1984: 242-261).
jeto realista, os amigos são referência Se o autor evita uma crítica direta às
obrigatória, pois são aqueles que c0- instituições de sua época, não deixa,
nhecem os antecedentes . Ou seja, c0- contudo, de fazê-Ia. E no drama dos
laboram diretamente na recuperação seus personagens que Machado habil­
da tradição e da memória (Hamon, mente deposita a crítica às institui­
1984: 146). Machado de Assis foge ções s6cio-políticas do seu tempo. Mas
ao modelo. Ele tem poucos amigos. E como esses dilemas não aparecem c0-
um solitário, não vive em sintonia com mo reflexos imedia tos da sociedade,
a crítica machadiana acabou passan­
a sociedade do seu tempo. Daí a dife­
do despercebida, e o autor foi acusa­
rença do autor em relação ao restante
do de ser um intimista, alienado dos
da intelectualidade : sua obra não é
problemas sociais.
ele, não é a SUB uverdadeH• mas pura
Através do suplemento dedicado a
ficção, ocultamento do real. O racio­
Machado, fica claro que o ponto sen­
cínio é mais ou menos este: se Ma­
sível e polêmico de sua obra reside
chado não foi capaz de encarar a si
no perfil dos seus personagens. Isto
próprio, reconhecendo suas origens não acontece por acaso, pois é atra­
humildes, como poderia encarar a so­ vés do personagem que se revela o
ciedade em que vivia? Como retra­ caráter fictício ou não do texto (Cân­
tá-Ia, se temia o seu próprio retrato? dido, 1987). E como os personagens
De onde se conclui: sua obra é pura machadianos fogem ao "eu empírico
ficção, ilusão, fruto de uma mente do autor", reforçando a esfera do
aluc.inada que teme enfrentar o real. imaginário, a crítica literária mostra­
Ass.im, autor desenraizado = obra se intransigente nesse aspecto. Não há
desenraizada. Este é o tom do artigo meias-palavras: seus personagens ou
de Tristão da Cunha que aparece lo­ são bonecos, porque carentes do ce­
go na primeira página do suplemento nário social, ou " aMorais", porque
(substituindo a sessão "Notícia", vale refletem a personalidade solitária e
lembrar) . O autor parte de uma su­ doentia de seu criador (Amaral, 1941;
posta dicotomia entre a pessoa de e Leão, 1941).
Machado e o arlisla. A pessoa seria A doença, conforme observa Ha­
indulgente. discreta e cordata, enquan- mon, também faz parte do projeto Ii-
254 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1 988/2

terário realista, que a interpreta como com o seu tempo (Slrube, 1985:
elemento revelador da obra artística 33-44; e Cledson, 1986). Se a critica
(Hamon, 1984: 147). Machado não literária do Estado Novo insiste em
escapa a esse gênero de interpretação. desqualificar sua obra pelo tom de
Ele é visto como "retratista das con· alienação nela contido, é porque Ma­
tradições da alma", porque sua doen­ chado fala uma outra linguagem que
ça O coloca em sintonia com as ano­ foge ao código consagrado. Essa lin­
malias sociais. Pela enfermiMde é guagem é a subjetividade. Para um
que ele penetra no mundo subterrâ­ projeto que se pretende realista e "s0-
neo da mente, retirando de lá a ma­ cial", a subjetividade não tem abso­
téria-prima para compor o universo lutamente nada a ver. O narrador
conturbado dos seus personagens. Daí deve ser invisível para proporcionar
se explicam o delírio de Brás Cubas ao leitor a impressão da objetividade
e a loucura de Quincas Borba. Nesta do relato. Note-se bem: a coincidência
perspectiva, Machado é acusado de do projeto literário com o projeto
fazer o elogio da loucura, confundin­ historiográfico iluminista. Ambos in­
do-a com filosofia. Vale a transcri­ cumbidos de transmitir a "verdade"
ção: pela boca de um autor que se encon­
tra destituído de qualquer juízo de
"A obra do romancista parece-nos valor. e por isso que Machado des­
que poderia, sem impropriedades, toa. Recusando o ideal da observação
ser representada em resumo por
científica e a tradição descritiva, típi­
aquele hospício de Itaguaí, do fa­
cos da narrativa naturalista, o autor
moso conto ' O Alienado'. Doidos,
gera controvérsias. Daí o tom de es­
doidos, todos doidos. Mas porque
panto e até de queixa registrado pela
Machado repugnava a violência, o
crítica ao constatar que sua obra
alarido, o excesso, mesmo na lou­
cura, todos os seus loucos são
"Não tem paisagens, nem descri­
mansos. Quincas Borba, o pior de
todos, não faz esgares, faz filoso­ ções ( . . . ) não tem mesmo am­
bientes. Não encontramos também

fia" (Autores e Livros, 28.9 . 1 9 4 1 ) .


personagens nos seus enredos. Os
E m O alienista está contida uma funcionários públicos e as viúvas
das críticas sociais mais profundas ao que se multiplicam nos seus livros
sistema político-ideol6gico brasileiro. são antes situações do que pes­
Os desmandos do poder e da ciência, soas" (Lima Sobrinho, 1941 : 106-
a manipulação das massas, os valores 107).
hipócritas de uma sociedade provin­
ciana, tudo isso é captado pela sensi­ Em suma: cobra-se a ausência. Fal­
bilidade singular de Machado. Alguns tam paisagens, pessoas; falta a descri­
autores interpretam este conto como ção! e a "estética do visível" que
verdadeiro libelo contra o poder, na quer a representação fiel do real, a
medida em que desmascara a psiquia­ fotografia exata, o millmetro dos de­
tria enquanto instrumento autoritário talhes. Machado recusa esta receita
de imposição de uma disciplina. literária. Ao invés do retrato bem
Combatendo a escravidão, a misé­ comportado, prefere falar pelas pul­
ria humana, as injustiças e mentiras sões e contradições dos seus persona­
sociais, Machado é considerado como gens, deixando que o social aí apa­
um dos grandes autores sintonizados reça.
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 255

I nterpretando o naturalismo como raízes" (Rego, 1 941 : 99). Destacan·


expressão típica de nossa "adolescên­ do a viva imaginação de Machado,
cia literária", Machado se coloca co­ José Lins lamenta que sua obra não
mo um dos seus maiores opositores, seja um modelo para quem deseja
criticando a visão de Eça de Queirós obter um retrato do povo brasileiro.
e de Sílvio Romero. Mas a onda de A crítica é clara: não se faz literatura
protesto seria tamanha que o autor recorrendo apenas aos caminhos da
acabaria recuando e desistindo do seu imaginação. Se assim o fizer, o escri­
papel de crítico do naturalismo (ver tor incorre num grave erro: o de per­
Broca, 1 963: 9-72). O· que importa der o contato com a nação! Por isso,
destacar é que Mdchado sempre ocu­ Machado é considerado como um
pou posição de v �nguarda no campo autor desenraizado e até mesmo mal­
intelectual, minando com sua crítica dito, e compara-se sua obra com a de
mordaz o status quo da literatura. Edgar AlIan Poe (a metáfora dos cor­
A obra de Machado tem, portanto, . vos não é aleatória).
importância-chave na nossa história Walter Benjamin chama a atenção
literária, pois seria capaz de subver­ para a corrente literária que se de­
ter a relação tradicional entre ficção tém nos aspectos ameaçadores e in­
e história. Libertando a ficção do seu quietantas da vida urbana e suas mul­
papel subordinado, o autor a dota de tidões (Benjamin, Poesia y capitalis­
autonomia suficiente para inspirar-se mo, citado por Veneu 1986). Tal ' cor­
na matéria histórico-política (Lima, rente, a seu ver, estaria inspirada em
1984: 260). A nosso ver, é justamente autores como Oscar Wilde, Dickens
esse caráter inédito e revolucionário e Allan Poe. Não é à toa que Macha­
da obra que a coloca em nítido anta­ do é acusado de buscar inspiração
gonismo com a crítica literária do Es­ nas obras de Poe e de ser um "autor
tado Novo. No suplemento Autores desenraizado". espécie de bruxo mal­
e Livros, há um autor que reconhece dito. fascinado pelas paixões e per­
o mérito da obra machadiana: Mon­ versões humanas.
teiro Lobato. Voz destoante do regi­ A imaginação é vista como verda­
me, Lobato distingue a originalidade deiro desvio, quando impede que se
de Machado no conjunto da nossa li­ realize a Hyocação nacionalista" da
teratura, vendera como a ruptura com nossa literatura. e nesse sentido que
o patriotismo e a "grotesca brasilida­ Machado é acusado de assumir frente
'de" ( Lobato, 1 94 1 : 124). Astrojildo à nação uma "atitude literária", Já
Pereira também defende o aspecto na­ vimos o que significa isso, quando a
cionalista da obra machadiana, argu­ lileratura é vista como alienação, fu­
mentando que o autor seria tanto ga e descompromisso, Para mostrar o
mais nacional quanto universal e tan­ descaso do autor f rente aos proble­
to mais universal quanto mais nB- mas políticos, Autores e livros deixa
cional. - a fala ao próprio Machado:
Este outro aspecto nos interessa
li.
particularmente: a visão universalista •

que me trariam os diários?


do autor, Visão esta que vai direta­ As mesmas notícias locais e estran·
mente contra a ideologia regionalista geiras, os furtos do Rio e de Lon­
do regime. Não é à toa que José Lins dres, as damas da Bahia e de
do Rego, fazendo sua apreciação s0- Constantinopla, um incêndio em
bre Machado, escreve um artigo com Olinda, uma tempestade em Chica­
o seguinte tftulo: "Um escritor sem go. As cebolas do Egito, os juízes
256 ESTUDOS HISTÓRICOS -- 1988/2

de Berlim, a paz de Varsóvia, os A outra grande dissonância da obra


mistérios de Paris, o carnaval de Machado indubitavelmente reside
de Veneza . . . " (Lima Sobrinho, no seu caráter anti-regional. Antônio
1941 : 198). Cândido chama a alenção para este
aspecto, observando que a contribui­
o noticiário é o discurso da mono­ ção do autor é decisiva para os ru­
tonia. Acontecimentos iguais em todo mos da nossa história literária. Ao to­
o mundo, seja na Bahia ou em Cons­ mar como motivo de inspiração o ho­
tantinopla! � o caráter descritivo e mem universal, Machado estaria co­
a escrita transparente -- monopoliza­ locando o regionalismo como "opção
da pela transmissão da informação temática secundária" (Cândido, 1 98 1 :
-- que parecem aborrecer Machado. 6 \ ) . Este corte com a tradição literá­
Para ele, a literatura não é cópia, ria é visível em Instinto da nacionali­
descrição ou reprodução da realidade dade, texto escrito em 1873. Nele,
social. Fazer literatura significa sobre­ Machado vai defender os limites da
tudo criar e/ou recriar o real. Não é temática regionalista, mostrando-se to­
de se estranhar que essa sua perspec­ talmente avesso ao provincianismo.
tiva não tenha sido compreendida na Baseado no exemplo da literatura in­
época. Para a maioria dos críticos, ela glesa, questiona a região como foco
não passava de "evasão" e alienação irradiador da nacionalidade:
frente à realidade. Esse julgamento
não é próprio de uma determinada "E perguntarei se o Hamlet, Otelo,
época, mas tem aparecido sempre que Júlio Cesar, Julieta e Romeu têm
se tenta construir uma visão autôno­ alguma coisa com a história ingle­
ma da arte: sa nem com O territ6rio britânico,
e, se, entretanto, Shakespeare não
.. . . . onde quer que se formule é, além de um gênio universal,
uma aspiração autonomista do um poeta essencialmente inglês"
campo estético sem que se anali­ (Assis, 1959: 815-822).
se seu compromisso e confluên­
cia com outras formas de relacio­ Assim, o grau de autenticidade de
namento com o mundo. será ine­ uma obra literária não passa necessa­
vitável que se a confunda com riamente pelo critério espacial -- re­
uma forma de evasionismo" (li­ gião -- nem tampouco temporal -­

ma, 1986: 1 56). história. Se as paisagens locais inspi­


ram normalmente o escritor. isto não
Machado recorre a uma outra for­ quer dizer que o espírito nacional re­
ma de relacionamento com o mundo side apenas nestas obras. Assim, o
social: a ficção. E esta não é o avesso que é necessário "exigir de um escri­
da realidade. Apenas um outro ca­ tor antes de tudo, é certo sentimento
nal, uma outra forma de captar e re­ íntimo que o torne homem do seu
criar o real. E é por isso que ele se tempo e do seu país, ainda quando
incompatibiliza com a crítica literária trate de assuntos remotos no tempo e
do Estado Novo, que consagra o pa­ no espaço" (Assis, 1959: 8 1 7). Estas
radigma naturalista. De acordo com idéias colocam a obra de Machado em
esse paradigma, ficção e realidade flagrante desacordo com o projeto li­
são termos absolutamente antagôni­ terário do regime, centrado na tradi­
cos. Logo, os que optam por uma ção regionalista. O universal é visto
categoria tomam-se automaticamente ' como uma verdadeira ameaça à na­
adversários da outra. ção, na medida em que não se detém
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 257

nas paisagens, ambientes e persona· membro da Academia Brasileira de


gens locais. � inconcebível, portanto, Letras . que 8 maioria dos seus cola­
se fazer literatura sem o referencial boradores pertence a esta instituição,
da região: e que esta instituição desfruta do
maior prestfgio político, já que o pró­
" Fora do seu núcleo cultural, o prio presidente Vargas é acadêmico,
escritor, a menos que o traga en· o fato adquire uma outra dimensão.
tranhado na alma, quaisquer que Dimensão esta que revela o quanto
sejam os caminhos que a vida lhe foi profunda a ruptura introduzida
reserve, corre o risco de corrom­ por Machado no campo da nossa li·
per·se. Conserva a habilidade, ex· teratura.
tingue.se.lhe porém o fogo interior. Se Machado representa a desabe·
O homem sem núcleo cullural, diência ao "modelo paterno", já que
como o sem região e o sem pálria, contradiz as grandes linhas do pro­
é uma ulopia quando não é uma jeto literário estadonovista, em Eucli·
indignidade" (Moag, t 943: 75; o des da Cunha encontramos a consa·
griFo é meu). gração deste mesmo modelo.

No projeto literário do Estado No­


e . li tIt... tu..-modeto: Euctld" d. Cunha
vo o escritor tem um dever: ser fiel
ao seu tempo e ao núcleo cultural de
o primeiro aspecto que permite a
origem. Em outras palavras: literatu·
capitalização deste intelectual para o
ra = nação, via região. Rebelando­
projeto literário estadonovista é o ca·
se contra esse modelo e essa forma
ráter documental de sua obra. Dife·
de fazer literatura, Machado realizou
rentemente de Machado, a vida de
uma dupla ruptura: de um lado, com
Euclides é um livro aberto: suas ori·
a nossa tradição documental, de outro,
gens são fartamente documentadas,
com. a tradição regionalista. No Ins·
com retrato dos pais e avós maternos
linlo da nacionalidade essa ruptura
e paternos. Se a vida do autor é assim,
se torna clara quando nossa tradição
assim é a sua obra, que é um retrato
documental é vista como fruto da
do Brasil. Mais uma vez temos pre·
"adolescência literária" em' que vive­
sente a idéia da simetria: Euclides da
mos, e quando o referencial de valor
Cunha se confunde com Os serlões.
de uma obra literária deixa de ser o
Mais do que isso: Euclides é o pró­
tempo e o espaço para ser o "senti·
prio sertão, é Brasil. 7
mento íntimo" do seu autor para com
O autor é descrito como tendo a
a nação. Sentimentos Ín\imos e im·
"vulgaridade mameluca" da nossa
pressões não combinam com objetivi·
"humilde e boa caipiragem". Ele não
dade, da mesma forma que o univer·
se "apavona"; suas vestes são sim­
salismo não tem lugar no seio da tra·
ples, seu tipo despretensioso (Rangel,
dição regionalista. � por esse motivo 1942). Curiosamente, a estrutura físi·
que o perfil de Machado é tão estig­ ca do autor passa a vestir a estrutura
matizado no Estado Novo. Nem o fato de sua obra. EuclJdes é o intelectual
de ele ser o fundador da Academia autêntico porque fala sobre o seu
Brasileira de Letras e de ser conheci· meio rural, o sertão, o mameluco, e o
do e respeitado internacionalmente faz de forma simples, objetiva, des·
consegue diluir a crítica do regime. pretensiosa e nacional: "As roupas de
Se lembrarmos que o suplemento Au· Euclides desconheciam os recortes da
lares e Livros é dirigido por um tesoura de Poal . . . ..
258 F.STUIlOS H I STÓRICOS - 1 988/2

Euclides não nega suas origens, não dade, ampliando-os apenas e mal em­
se envergonha delas, e por isso tam­ prestando os cambiantes de um tem­
bém não nega as origens de nossa na­ peramento" (Cunha, 1942a: 74). A
cionalidade_ Como bom caipira que elaboração da obra de arte se dá fora
é, reconhece o sertão como berço da do artista, ou melhor, fora do circuito
nossa civilização, já que o nascedou­ de suas emoções pessoais. Como um
ro da nacionalidade também é o seu. dos representantes da geração cienti­
Essa identidade fundamental que une ficista de 1870, é natural que Eucli­
autor-nação - ambos têm raízes in­ des defenda este ponto de vista que
terioranas - vai ser um dos aspectos privilegia a observação sobre a emo-
capitalizados pela ideologia estadono­ çao.
-

vista na consagração da obra eucli- . Analisando o culto da observação,


diana, Luís Costa Lima mostra que, entre
A simetria autor-nação via interior n6s, esta não remete ao imaginário
é claramente constatável quando se do sujeito, estimulando a leitura de
compara a obra de Euclides com a de si mesmo, mas sim ao objeto obser­
Machado. Enquanto o primeiro resga­ vado (Lima, 1 984: 201 -236). E o prin­
ta o fenômeno AntÔnio Conselheiro cípio da fidelidade, segundo o qual
como uma epopéia, compondo uma ao escritor cabe tão-somente o papel
verdadeira " sinfonia wagneriana" , de fazer falar o seu objeto. Assim, ele
Machado compara os jagunços com emudece as suas emoções e juízos de
os românticos (Lima Sobrinho, 1 941: valor para deixar a fala ao objeto. A
106). E o lugar de onde fala o autor natureza se apresenta aos olhos do
que vai autorizar ou não a IIverdade" artista para ser descrita e observada,
do seu texto. Falando do sertão (e enfim, para ser "testemunhada veraz­
sobre ele) Euclides passa a emitir o mente". Na obra de Euclides, este
discurso verdadeiro, sério e grandio­ aspecto é claro: o escritor se compor­
so: a epopéia. Já o texto de Machado, ta como verdadeiro observador que,
que fala da cidade, é no mínimo pou­ munido da objetividade científica, des­
co sério. pouco convincente e super­ creve a natureza (Cunha, 1942b: 70).
ficial. Ele nos fala, então, de um "Amazo­
Há um texto notável, onde Eucli­ nas real" diferindo-o da imagem sub­
des vai deixar clara a simetria que jetiva que temos deste rio. Assim, às
entende existir entre autor-obro-na­ impressões que nos sugerem os sen­
ção. Analisando o papel do artista na tidos devem corresponder "verdades
modernidade, Euclides detecta uma positivas". Estamos em pleno domí­
mudança radical: o declínio da sub­ nio do cientificismo, do rigor e da
jetividade e da religiosidade em prol precisão. Não se exige do artista a
da ciência. Para sobreviver, o artista mais absoluta neutralidade? Que ele
deve priorizar as verdades extraídas retrate os brilhos da natureza e da
,

da análise objetiva, vinculando-se ca­ sociedade, mal deixando transparecer


da vez mais ao seu meio. Ele adquire, o seu temperamento . . .
então, 8 "passividade de um prisma". Estes são os pressupostos que nor­
refletindo aspectos da natureza e da teiam a geração intelectual de 1870,
sociedade. Donde se conclui existir da qual fazia parte Euclides da Cunha.
uma crescente dificuldade do artista E é este grupo, conforme já foi assi­
em transmitir sua emoção na obra de nalado anteriormente, que introduz
arte: o artista "retrata os brilhos de uma concepção sociológica da litera­
um aspecto da natureza, ou da soeie- tura, ligada à corrente realista-natura-
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 259

lista. O grupo encontraria em Taine "Quase que o Brasil ou apenas


um dos seus maiores inspiradores. Se­ sentia que seria justa aquela ter­
gundo a famosa trindade tairuana, a rível e canibal trucidação fria de
arte seria conseqüência direta do meio, cinco mil brasileiros inermes, e
raça e momento (Coutinho, 1980: daí tinham vindo Os sertões. lem­
1 24-125). Essas idéias, conforme já bra a beleza de Helena, justifican­
foi assinalado, exerceram influência do toda e penitência, por dez
considerável entre os nossos intelec­ anos, dos guerreiros gregos e troia­
tuais, vindo a se constituir em uma nos. Termin6vamos a chacina com
das vertentes mais sólidas do nosso um saldo: Euclides da Cunha . . .

pensamento político. No Estado No­ Nunca a nossa admiração nos


vo, essa tradição é minuciosamente custara tanto . . . " (Peixoto, 1942:
recapitulada, analisada e atualizada. 70).
A defesa de uma abordagem socioló­
gica está de novo na ordem do dia, A sociologia aparece como verda­
recorrendo-se ao aval da ciência para deiro saber, capaz de conscientizar a
viabilizar a existência da literatura. A nacionalidade dos seus problemas
fidelidade ao tempo, lugar e raça pas­ reais. Ela documenta, informa e age.
sa a ser o referencial obrigatório por Em contraposição, a literatura aliena
onde tem que passar a literatura para porque se desenvolve no terreno da
ser reconhecida enquanto tal. Eucli­ estética, e esta é incapaz de conviver
des da Cunha segue exemplarmente com a realidade. Daí O equívoco la­
esta trajetória, caminhando soh a ins­ mentável, para o qual Afrânio Pei­
piração de Taine. xoto deseja chamar a atenção. A ohra
Significativo a este respeito é o tex­ de Euclides, consagrada pela "bele­
za ", acabara por emudecer a realidade
to que Afrânio Peixoto escreve sobre
que trazia. Mais uma vez temos a
Euclides da Cunha, reivindicando pa­
idéia da literatura como universo do
ra o autor o papel de "pai da sociolo­
ilusório. Mais do que isso: como ver­
gia brasileira" (Peixoto, 1942: 70).
dadeira fraude.
Nele, fica claro que a instância de con­
Há ainda um outro aspecto que
sagração de uma obra que se pretenda
favorece a identificação da ohra eucli­
nacional há de ser a sociologia. Conhe­
diana com as idéias do projeto lite­
cedor da terra e da gente hrasileiras, rário em questão: o regionalismo. J á
Euclides iria inspirar várias gerações se apontou o critério espacial como
de intelectuais: de Alberto Torres a um dos princípios ordenadores da
Gilberto Freyre. No entanto, observa obra euclidiana (Sevcenko, 1983:
Afrânio, este aspecto não é considera­ 1 30-160). A maior parte de seus es­
do na sua obra. Consagrado como critos gira em tomo de três referên­
"epopéia", valorizado pelo estilo, Os cias geográficas - Norte, Sul e Re­
sertões acabara por se transformar em gião Amazônica - e é através delas
obra de arte. E vendo firmar-se seu que o autor desenvolve suas reflexões
reconhecimento literário, a ohra per­ sobre a nacionalidade. Conferindo pa­
dera seu caráter mais importante, que pei decisivo à geografia como elemen­
era O de denúncia social. Literatura e to modelador das diferenças regio­
nacionalidade acabam sendo coisas nais, defendendo o expansionismo
incompatíveis, já que a primeira aca­ territorial e o sertanismo, Euclides se
ba justificando crimes contra a pró­ transforma numa espécie de escritor­
pria nação: modelo do Estado Novo. Afonso Cel-
260 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/2

so O aponta como um dos nossos mais J á vimos o peso que nossa crítica
bizarros "heróis-literários" (Celso, literária confere à palavra documento.
1 942: 69) . E é esta faceta do herói Este é o fiel da balança que vai ava­
que aparece na carta que Euclides liar a contribuição da obra literária à
endereça a Machado de Assim em fe­ nação. Documento, objetividade, na-
çao. aparecem como termos smont-
.

vereiro de 1904 (Cunha, 1 942c: 7 1 ) .


- . �

Nela, o autor lamenta que o trabalho mos. Dentro desse contexto, aventu­
o afaste de seus autores preferidos rar-se fora do gênero documental sig­
- Taine, Bucke, Comte, Renan - nifica cair nas armadilhas e labirin-

obrigand<Hl a lidar apenas com li­ tos do imaginário humano. Lembre-


vros científicos, esses "bárbaros anô­ mos a crítica dirigida a Machado de
nimos" . O dilaceramento entre o ho­ Assis e aos modernistas: imaturidade,
mem do Hmau-ofício" - engenheiro evasão, alienação e até demência.
- e o intelectual - amante das le­ Esses os riscos corridos por aqueles
tras - indica a necessidade de pra­ que ousam se afastar da objetividade
ticidade, mesmo que custosa. Se o es­ e do jargão documenta lista . . .
critor é visto como herói, não deve J á se sabe o quanto essa oposição
medir esforços para ajudar a obra objelividade x subjetiv.idade resulta
de construção nacional. Euclides vai enganosa. Fruto do legado positivista.
preencher estes requisitos: além de ela acabou por incompatibilizar dis­
literato e sociólogo, participa na edi­ curso histórico e discurso literário.
ficação da nossa rede ferroviária e Ou melhor: o discurso literário só
fluvial. seria aceitável se referendado pelo
Autodefinindo-se como "homem prá­ histórico (identificado como documen­
tico", distante das abstrações dos poe­ to-objetividade). Aqui começa o equí­
tas e sonhadores, Euclides obtém o voco. A idéia de documento não sub­
reconhecimento do regime, que o con­ tende necessariamente a de objetivi­
sagra como um dos grandes vultos da dade. Ao contrário: a escolha de um
nacionalidade. Em contraposição, Ma­ documento histórico pode ser inteira­
chado de Assis acaba por encarnar o mente guiada por motivos subjetivos.
estereótipo do intelectual. "Inteligên­ Não é só isso. O mesmo se pode di­
cia antigregária" (vivendo na sua tor­ zer em relação à interpretação desse
re de marfim). é um desencantado documento, capaz de dar margem a
com a cultura da sua época, deixan­ iOl"meras leituras. Se a obra histórica
do-se apenas fascinar pelos "cavacos guarda certa dose de subjetividade. a
da Garnier". Este confronto entre Ma­ literária não se indispõe com certos
chado e Euclides revela claramente parâmetros da realidade objetiva. t;
quais eram as instâncias de consagra­ por isso que a obra literária também
ção do campo intelectual no Estado pode oferecer um retrato de época.
Novo. Ela recorre à história não na perspec­
tiva de testemunho ocular ou repórter
7 . Conllderaç6e1 final.
dos fatos. mas como intérprete. capaz
de recriar poeticamente a realidade.
Literatura não é documento, histó­ História como matéria inspiradora
ria é documento. t; possível que se para a ficção, reinvenção da reali­
chegue a tais conclusões após a leitu­ dade.
ra deste texto. Se estas afirmações são A obra de Machado de Assis é um
verídicas. é necessário, no entanto, exemplo claro dessa fusão real-imagi­
relativizá-Ias. nário. desde Memórias póstumas de
A LITERATURA COMO ESPELHO DA NAÇÃO 261

Brás Cubas ( 1881 ) . O autor parte de Toda essa argumentação deixa cla­
uma referência histórica para montar ros os vinculas entre a história e a
sua ficção. Não se trata do Brás literatura, sem que sejam negligencia­
Cubas, fundador da cidade de Santos, das as especificidades dos respectivos
conforme possa parecer ao leitor de­ discursos. Recapitulando as idéias ex­
savisado. Trata-se da história de um postas, vemos que a tentativa de fa­
indivíduo narrada após sua morte. No zer uma nova história da literatura
entanto, nessa narrativa de além-tú­ brasileira aparece balizada pela idéia
mulo entram desde os acontecimentos de nação. Tanto a literatura como a
da conjuntura nacional às minúcias história devem espelhar o corpo e
do cotidiano. Os reflexos da queda alma da nação, adquirindo uma fun­
de Napoleão Bonaparte, O período re­ ção claramente ética e pedagógica. A
gencial, as dissensões poUticas, a pro­ história de vida do escritor passa a
blemática da escravidão, a margina­
ser considerada elemento-chave, por­
lização e miséria das camadas popu­
que capaz de revelar os rastros de
lares são fatos que se entrecM1zam
uma trajetória que se quer clara,
com as vivências Intimas do persona­
exemplar e didática. Assim, Euclides
gem, suas frustrações políticas e amo­
da Cunha é tão herói quanto Caxias.
res secretos. Desaparece a contradi­
ção entre imaginário e realidade, nar­ Suas histórias são a história da na­
ração e documento, impressão e regis­ ção. Dentro desse contexto de valo­
res, a figura de Machado de Assis
tro, referencial interno e externo. A
reconstituição da memória é subjetiva. mais se aproximaria da de 11m Cala­
Também o Manifesto Antropófago bar: traidor de sua história e da his­
( 1 928) reforça essas idéias. Nele Os­ tória de seu país.
wald de Andrade reinventa lima nova Esse aspecto é marcante. A ausên­
forma de contar a história do Brasil: cia de dados biográficos sobre O autor
ao invés do documento, o fragmento. leva os críticos a cometerem verda­
História, ficção, poesia e política se deiros malabarismos e peripécias dig­
misturam, desestruturando a narrati­ nas de um detetive. Para investigar
va tradicional: contra a verdade dos a vida de Machado, recorre-se a de­
povos missionários, contra as elites poimentos de amigos, à análise de
vegetais, contra os importadores de suas fotografias e até mesmo à gra­
consciência, contra a realidade social fologia. Mas Machado mostra-se inde­
opressora. cifrável. Indecifrável também sua
Um outro aspecto que denota a obra, acusada de trair seu pais e sua
compatibilidade entre a· história e a gente.
literatura é a captação do passado. · Em vez de fazer de sua obra do­
Paul Veyne lembra que, assim como cllmento e espelho da realidade bra­
o romance, a história também sele­ sileira, Machado problematiza e re­
ciona, simplifica e organiza o tempo. cria essa realidade, fazendo-a emer­
\! por isso que o historiador se apro­ gir em toda a sua tensão e dinamis­
xima da ficção: ele também reinventa mo. Aí não cabem intenções, convic­
o tempo. Assim, o historiador "faz ções e projetos a priori. A realidade
com que um século caiba numa pá­ (seja ela individual ou social) sempre
gina" (Veyne, 1982: l I ). Que crité­ supera as expectativas e surpreende:
rios ordenariam esses cortes, senão os "Não escrevi a história que esperava:
da subjetividade? a que de lá trouxe é esta." I
262 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/2

-- .. 1981. "Os brasileiros e a literatura


latino-americana". Novos Estudos Cebrop.
dez.
I . Esta idéia também é desenvolvida --.. 1987. "Literatura e personagem" em
por Ana Cristina César (1980) 8 respeito
A personagem de ficção. São Paulo. Pers·
do cinema no Estado Novo.
pectiva.
2 . Este � o titulo de um artigo de Tri.­
tão de Ath.yde publicado em Vida Lite­ CELSO, Alonso. 1942. "Euclides da Cunha:
rdria, 1 9 . 1 0 . 1930. Cit.do por Laletá (1974: trecho de um discurso". Autores e Li·
.
187) . vros. 1 6 ago.
3 . Consultar . propósito Velloso (1983), CESAR, Ana Cristina. 1980. Literatura nüo
mais particulannente o capítulo 2, "0 pro­ é documento. Rio de Janeiro, Funarte.
jeto cultural dos Verde-Amarelos". p. 24-65. CLEDSON, lobn. 19U. Machado de Assis:
4 . Ver Sussekind (1984: 94). A .utor. ficção e hisldria. Rio de Janeiro, Paz e
mostra 8 continuidade do projeto literário Terra.
naturalista, que tcria sua origem no século
p....do, p.ss.ndo pel. d�da d. 30 e COUTINHO, Alrânio. 1980. Crítica e poé·
tica. Rio de Janeiro. Civilização Brasi·
marcando presença nos anos 70.
leira.
S . Esta idéia da dissimetria entre a lite­
ratura e a realidade poUtico-sociaI da Amé· CUNHA, Euclides da. I 942a. "A vida das
rica Latina � trabalhada por Morse (1982) . estátuas", Autores e Livros, 1 6 ago.
6 . Wilson Lousada escreve uma série de --o 1942b. "A primeira impressão do
artigos em Cultura Polftica em que toma Amazonas" (extrato de "À margem da
o critério regional como referência na cons­ h.istória"), Autores e Livros, 1 6 ago.
trução da história da literatura brasileira. --o 1942c. "Carta a Machado de Assis" .
7 . Comentando o livro Anna de Assis, Autores e Livros, 16 ago.
história de um trágico amor (Rio de Ja­
neiro, Codecri. 1979) . escrito em co-auto-­ FONSECA, Maria Augusta. 1982. Oswald
ria com Judith Ribeiro de Assis, Jerrerson de Andrade. São Paulo. Brasiliense (Co1 .
de Andrade declara que enquan..tD escreveu Encanto Radical) .
esta obra não abandonou a leitura de Os FREITAS, Maria Teresa de. 1986. Litera­
sertões, para não conrundir o escritor Eu.
tura e histdria: ° romance revoluciondrio
clides da Cunha com o homem. Judith de de André Malraux. São Paulo, Atual.
Assis rerorça este ponto de vista: COA obra
de Euclides da Cunha é uma das mais imo FUSCO, Rosário. 1942. "História literária
portantes da literatura brasileira, mas o ho­ do Brasil". Cultura politico, jul.
mem Euclides nada tem a ver com a obra."
HAMON, Philippe. 1984. "Um discurso de·
Ver Idéias, Jornal do Brasil, 1 5 . 8 . 1987.
terminado· em Roland Banhes et aI.,
8 . Consultar a propósito o sugestivo tra­ Literatura e realidade: que é o realismo?
balho de Freitas (l9U).
Lisboa, Dom Quixote.
9. Machado de Assis. Casa velha, cita­
do por Cledson (19U: 36). LAFETA, loão Luiz. 1974. 1930: a . crltica
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