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doutrina alemã
1. Introdução
Em boa parte dos regimes preexistentes ao Iluminismo, a responsabilidade penal era objetiva,
solidária, impessoal e desigual, fundada em sistemas que não consideravam o ser humano como
indivíduo, nem tampouco como pessoa livre e responsável pelos seus atos - a pena ultrapassava a
pessoa do infrator, sendo compartilhada entre o autor do fato e seus parentes -, bem como sistemas
em que a mera relação de causalidade era suficiente para se atribuir a alguém a responsabilidade
pela prática do fato ilícito. A decisão de punir um sujeito individual ou coletivo era discricionária e se
valia de critérios absolutamente inseguros, como presunções, delações ou mesmo conveniência
política.
A pena podia alcançar pessoas que nenhuma relação tinham com o fato, mas sim com o criminoso,
sendo que o mal causado pelo crime era comparado a uma doença que contaminava todos aqueles
que estivessem próximos do infrator, e, se coletiva era a imputação, coletivo era o castigo. O ser
humano sofria a pena em face da conduta de seus ascendentes, de seu cônjuge, de seus filhos e
das pessoas do seu círculo próximo de relação. Trata-se de sistema que desconsidera o valor único
e irrepetível da atividade interna do sujeito.
O conceito de culpabilidade não é criação do Direito Penal, tendo um papel importante em outras
searas do conhecimento, tais como teologia, filosofia, criminologia e psicologia.2 Na esfera penal, há
uma correlação entre as ideias de culpabilidade e de imputação, podendo-se dizer, em certa medida,
que a culpabilidade surgiu como princípio para determinar critérios pelos quais se pode atribuir a
alguém a responsabilidade por dado fato criminoso.
A culpabilidade, como categoria sistemática, possui uma pluralidade de contextos, sendo possível
estabelecer, nessa linha, três conceitos possíveis de culpabilidade: a) culpabilidade como princípio
que fundamenta e limita a própria violência estatal, sendo instrumento para a própria legitimação do
Direito Penal em face do indivíduo concreto; b) culpabilidade como medida da pena, descrevendo o
suposto de fato que serve como referência para a medição judicial da pena; c) culpabilidade como
fundamento da pena, pela qual se justifica ou se exclui a pena frente a um autor particular. A
culpabilidade passa a constituir um conjunto de elementos que justificam ou impedem a pena a um
autor individual.5
2. Da culpabilidade iluminista ao conceito psicológico de culpabilidade
Francesco Carrara, principal representante da Escola Clássica, constrói seu sistema de imputação a
partir da autonomia e responsabilidade moral do indivíduo, em que o livre-arbítrio serve de
justificação às penas, impostas como castigo merecido, pela ação criminosa e livremente voluntária.
O ser humano, para a Escola Clássica, é punido na medida em que decidiu livremente pelo caminho
do crime, e por isso deve ser pessoal e individualmente responsabilizado. O sujeito é penalmente
responsável porque é moralmente responsável.6
A culpabilidade surgiu como categoria autônoma na teoria do delito, como instituto distinto da Página
ilicitude
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no final do século XIX, notadamente com o pensamento de Franz von Liszt e sua teoria psicológica
da culpabilidade, vinculada ao positivismo científico reinante na época. A concepção psicológica
revestia-se de um caráter meramente formal, limitando-se a observar os vínculos psicológicos do
autor com o fato, reconhecidos através da observação científica.
No início do século XX, o positivismo avalorativo entra em crise, e há uma mudança paradigmática
no conceito de dignidade da pessoa humana, em face dos novos direitos sociais e econômicos que
se acumulam aos direitos fundamentais clássicos. A nova concepção de dignidade humana
determina que às pessoas deve ser assegurado um mínimo de bem-estar material, social, de
aprendizagem e de educação. Rompe-se, então, com o paradigma de neutralidade axiológica própria
do positivismo, pois a ordem jurídica é novamente vista como uma ordem de valores.11
O pensamento normativista não pode ser descrito como um movimento único e harmônico de ideias,
mas o elemento nota comum do pensamento normativista de então está radicado na interpretação
mais ampla do conteúdo da culpabilidade, rompendo com a identificação da culpabilidade com o dolo
e a imprudência - concepção própria do psicologismo naturalista - e introduzindo conceitos ou juízos
de valor. Na linha do que sustenta Achenbach, é possível identificar, no que tange aos
posicionamentos normativos do século passado, três categorias de normativismo: 1) tendências
etizantes; 2) concepções segundo as quais a culpabilidade possui um elemento normativo; 3)
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concepções nas quais a culpabilidade é, em si mesma, normativa. Essas concepções podem ter uma
matriz individualizadora, como em Frank, Goldschmidt e Freudenthal, ou generalizantes, defendidas,
sobretudo, por Mezger e Eberhard Schmidt, que na análise dos juízos de exculpação, ou na
possibilidade ou não de atuar de outro modo, adotavam como barema o que se chama de cidadão
médio ( Durchshnitts-Staatsbürgertyp).12
3.1 Reinhard Frank e o conceito de reprovabilidade
Atribui-se a Reinhard Frank a construção inicial de uma toria normativa da culpabilidade. Frank,
analisando as decisões dos tribunais e a linguagem popular, considera que existem elementos da
culpabilidade para além dos conceitos de dolo e culpa. Esses elementos são denominados de
circunstâncias concomitantes, que servem não apenas para graduar a culpabilidade, diminuindo-a ou
aumentando-a, mas também para excluí-la. Dessa maneira, se são capazes de graduar ou excluir a
culpabilidade, as circunstâncias concomitantes integram o conceito de culpabilidade.13
A concepção de Frank, apesar das críticas, valoriza o homem na medida em que individualiza a
imputação e limita o poder punitivo do Estado, permitindo ao juiz graduar e excluir a culpabilidade a
partir das circunstâncias individuais do sujeito. A possibilidade de graduação da culpabilidade, ou sua
exclusão, a partir da normalidade das circunstâncias ou de motivação, valoriza o homem e limita a
intervenção punitiva do Estado, o que termina realizando, em maior medida do que a concepção
psicológica, o conceito de dignidade humana.
Freudenthal busca um conceito de culpabilidade mais próximo da linguagem popular, que às vezes
se distancia da terminologia técnica dos juristas. Há situações em que, mesmo presente o dolo, não
há culpabilidade, pois o agente não podia atuar de outra maneira. Página 4
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Sua concepção de culpabilidade parte da ideia de que, se não há possibilidade de agir, tampouco há
dever de agir. Dessa forma, a inexigibilidade se constitui no fundamento dogmático comum a todas
as causas de exculpação, em resposta ao direito positivo de então, que somente considerava a
possibilidade de exclusão da culpabilidade no estado de necessidade. Está aberto, então, o caminho
para a exculpação supralegal com arrimo no conceito de inexigibilidade, o que significa uma
possibilidade evidente de concretização dos direitos fundamentais e limitação ao jus puniendi estatal
pelo magistrado, o que vai ser decisivo na concretização da dignidade da pessoa humana no
pós-positivismo.
Freudenthal recorre a Beling17 para dizer que o Direito exige das pessoas a ele submetidas que
orientem suas decisões de acordo com as regulações valorativas do próprio Direito. No entanto, o
comportamento conforme a norma só pode ser exigível apenas e tão somente quando isso for
possível. Quando não for possível, também estará ausente a reprovabilidade, e, por consequência, a
culpabilidade.18
Freudenthal analisa situações em que o juízo de reprovação se verifica nos crimes culposos, nos
quais devem ser considerados dois momentos distintos: o primeiro, de natureza objetiva, se houve
ou não o cuidado devido necessário; e o segundo, de natureza subjetiva, se o autor estava em
condições de se abster da realização do tipo. Essa inevitabilidade, presente nos crimes culposos,
está presente, também, nos crimes dolosos, de tal maneira que a exigibilidade da inexecução do fato
é convertida num pressuposto de admissão do dolo.21 Desse modo, com o dolo não se exige
apenas o lado psíquico, mas também o elemento ético, que não é encontrado na lei, mas na
essência da própria culpabilidade.
Freudenthal narra diversas situações em que se impõe o juízo de absolvição, com a práxis
confirmando a ciência, como em hipóteses em que o cocheiro, atendendo às ordens de seu superior
e temendo perder seu emprego, manteve atrelada ao seu coche um cavalo arredio, que terminou se
desgarrando e atropelando e ferindo um pedestre.
Uma das concepções normativistas que mais influenciou o finalismo - que se tornaria dominante na
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segunda metade do século XX - foi a conhecida distinção, feita por Graf zu Dohna, entre objeto da
valoração e valoração do objeto. Para Graf zu Dohna, a vontade de ação é o objeto da valoração,
que passa a ser remetida ao tipo subjetivo, e a valoração do objeto passa a ser o juízo da motivação
do autor.24
4. A culpabilidade e o finalismo
O finalismo, corrente dominante após a Segunda Guerra Mundial, vincula o direito a estruturas
lógico-objetivas, isto é, estruturas do ser tais como aparecem na realidade.25 Welzel, criador da
teoria finalista, constrói uma teoria do delito a partir das referidas estruturas, indo ao âmbito do
ontológico, cujo centro está no conceito de ação, que não é mais um conceito causal, e sim um
conceito final, que reestrutura todo o sistema do delito. A finalidade da ação, como estrutura
lógico-objetiva, deve ser respeitada tanto pelo legislador como pela ciência. A capacidade do ser
humano de se autodeterminar também é outra estrutura ontológica que nem o legislador nem a
ciência jurídica podem desconhecer. O Direito positivo e a teoria do delito deviam partir dessas
estruturas, que se lhes impõem como limites objetivos infranqueáveis.26
Para o finalismo, a culpabilidade vai além da mera discordância objetiva entre a conduta e a ordem
jurídica: ela se alicerça na censura pessoal do sujeito, em que a conduta não devia ser contrária ao
direito, porque podia ser conforme ao direito. O autor, examinado concretamente em sua situação
individualizada, será culpável quando poderia adotar uma resolução de vontade conforme a norma,
em vez de realizar a vontade antijurídica.27
Por isso se estabelece uma clara distinção entre a teoria normativa pura, em que a culpabilidade é
uma qualidade valorativa negativa da vontade, e as teorias normativas que a precederam, pois a
culpa e, notadamente, o dolo integravam, em maior ou menor medida, o conteúdo da culpabilidade.
A diferença entre antijuridicidade e culpabilidade para a teoria final da ação não está no objeto da
valoração, que é o mesmo (a conduta). A distinção está na escala da valoração, em que a
antijuridicidade é examinada na conformidade ou não da conduta com a ordem jurídica, e a
culpabilidade se refere à censura pessoal, quando o autor atuou de modo contrário ao direito quando
podia atuar conforme a ele. O juízo de culpabilidade, para Welzel, só pode censurar o sujeito que
pode, com livre determinação, conhecer e dirigir seu comportamento conforme a sentido. O finalismo
também faz uma distinção entre os elementos da culpabilidade cuja ausência acarreta exclusão de
culpabilidade e as causas de exculpação.
O fundamento material da culpabilidade finalista é o "poder atuar de outro modo", isto é, o sujeito
atuou de forma contrária ao Direito quando podia ter atuado conforme a ordem jurídica. Essa
possibilidade tem como fundamento a liberdade analisada num triplo aspecto: 1) antropológico, em
que o homem se liberta das formas inatas e instintivas de comportamento, devendo realizar e
descobrir por si mesmo o comportamento correto por intermédio de comportamentos inteligentes, a
partir do qual o ser humano é instado a elaborar racionalmente um sistema de ação para o futuro.
Essa liberdade existencial e desvinculação do orgânico, instintivo, é a característica positiva e
decisiva do homem; 2) caracteriológico, que faz referência a um "eu", centro regulador responsável
que está sobre as demais formas instintivas de conduta. Tanto esse "eu" como as forças instintivas
de conduta possuem uma determinada força e um determinado conteúdo de sentido; 3) categorial,
no qual se reconhece, na conduta humana, a concorrência de várias formas de determinação, mas o
ser humano não pode apenas ser objeto de seus impulsos, pois o homem será responsável pelo
impulso do ato de conhecimento, que deve se sobrepor a outros impulsos contrários.29
A culpabilidade penal deve ser interpretada à luz do novo constitucionalismo, em que os critérios de
imputação pessoal deixem de ser mera expressão de censura moral, mas se observe o juízo de
culpabilidade sob o prisma dos direitos e garantias fundamentais. E a dignidade humana termina
sendo o princípio constitucional que fundamenta e alicerça, de maneira cada vez mais intensa, o
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Um desses pensamentos, contemporâneo do finalismo, é o formulado por Mezger, que, com base no
pensamento de Aristóteles, desenvolveu um conceito de culpabilidade em que o juízo recai sobre o
modo pelo qual o sujeito adquiriu componentes culposos no próprio caráter. Sobre o tema, comenta
Costa Antunes: "A desvalorização da conduta do agente já não se exercitaria em razão do fato
produzido, mas se transformaria em culpabilidade pela condução da vida. O que viria a ser uma
espécie de culpabilidade pelo caráter da pessoa, conforme Mezger; a reprovação seria motivada por
ter o indivíduo se descuidado da sua direção vital. Enfim, culpabilidade por condução ou decisão
defeituosas de vida".33
Esse conjunto de penalistas, embora reduzido, teve significativa importância pela projeção e
influência de seus membros e seguidores, que defendiam não uma culpabilidade do fato, mas uma
culpabilidade do autor. Como pondera Toledo, as correntes em questão, malgrado as distinções
internas no que se refere a seu conteúdo, partem da premissa de que em certos casos a
compreensão do injusto fica comprometida pela conduta de vida ou pelo modo de ser do agente. E
como defendem o ponto de vista de que o "poder atuar de outro modo" é indemonstrável, a única
maneira de preservar a culpabilidade seria deslocando o juízo de censura do fato para o modo de ser
e viver do agente: seu caráter, sua personalidade, por sua condução de vida.34
Sobre o tema destacam-se as doutrinas de Schopenhauer e Engish, não por acaso críticos do
conceito de liberdade como " poder atuar de outro modo" e que adotam um viés visivelmente
determinista. Para Schopenhauer, o sujeito atua ou deixa de atuar porque ele é assim, tal como seu
caráter, de modo que o sujeito deve ser responsável pelo seu caráter. Engish, por sua vez, sustenta
que o caráter do sujeito faz com que ele tenha responsabilidade de suportar a pena. Roxin critica
posicionamentos desta natureza, pois seria paradoxal que se atribuísse culpabilidade a alguém por
algo inato, sobre o qual nada se pôde fazer.35
Cirino, sintetizando as críticas de Roxin, pondera que teses dessa natureza, ainda que tenham a
louvável pretensão de excluir bases metafísicas do juízo de culpabilidade, pecam por três razões: 1)
culpabilidade pelo caráter é culpabilidade sem culpa; 2) a tese representa uma responsabilidade
social, supondo um Direito Penal em que a culpabilidade é substituída pela prevenção; 3) a
culpabilidade pelo caráter anula o significado político e limitador do princípio da culpabilidade.36
Teses dessa natureza são incompatíveis com uma concepção de dignidade da pessoa humana, pois
tornam o homem responsável pelo que é, e não pelo que ele faz. Não se podem aceitar teses que
responsabilizam o homem por atributos que escapam a qualquer possibilidade de escolha ou
evitação, o que corresponde, em última análise, a responsabilidade objetiva. Responder pelo caráter
permite a estigmatização de pessoas por determinadas condições pessoais, revelando preconceitos
e discriminações contra os mais vulneráveis, o que termina fazendo a culpabilidade mais moralizante
do que a ideia de reprovação. Além disso, se a culpabilidade é composta por um conjunto de
decisões sobre caráter ou modo de vida, na verdade, acaba ela recaindo sobre uma série de
decisões (pouco importa se livres ou não) sobre fatos que, em si mesmos, não podem sequer ser
ilícitos, o que é impensável num contexto de direitos fundamentais que inspiram uma culpabilidade
jurídica e secularizada.
Na verdade, a recorrência à culpabilidade do autor pode ser vista desde a Escola de Kiel, verdadeiro
núcleo do Direito Penal nazista, cujo principal representante foi Dahm, para quem a questão do
Direito Penal e da culpabilidade não se manifesta apenas sobre as ações, mas também sobre o
modo de ser. Sobre o referido autor, pondera Greco:37 "Para Dahm, os tipos não proíbem só ações,
mas modos de ser. 'O tipo de autor representa aqui "uma ideia de personalidade", uma "imagem de
homem", a representação viva que faz o povo do assassino, do ladrão, do receptador, do proxeneta'.
Deve-se punir por furto não aquele que subtrai coisa alheia móvel com fim de assenhorar-se, mas
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aquele que for, em sua essência, um ladrão. A essência do ladrão corresponderia à imagem que
dele existe no são sentimento do povo".
A referência ao Direito Penal da Escola de Kiel não é acidental: a culpabilidade pelo caráter, pela
condução de vida, pela inimizade ao direito ou qualquer outra expressão equivalente transforma o
homem num objeto, num animal que deve ser punido pelos seus impulsos, em nome de um
utilitarismo que não respeita os princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito. Por
conseguinte, faz-se necessário considerar as concepções contemporâneas sobre culpabilidade na
doutrina alemã, sempre tendo como perspectiva o respeito à dignidade humana.
6. As concepções de culpabilidade no pós-finalismo
Uma significativa parcela da doutrina pós-finalista tem recorrido, para aferir o juízo de censura da
culpabilidade, ao paradigma do "homem médio", em que a capacidade individual do sujeito é
substituída pela capacidade de um sujeito ideal, criado a partir de supostas características ordinárias
de um cidadão comum. Essa corrente parte da concepção de culpabilidade desenvolvida por Gallas,
que entende que a culpabilidade é uma reprovabilidade do ato em relação ao ânimo, isto é, uma
atuação interna desaprovada juridicamente,38 conceito que é acompanhado por Jescheck, Weigend
e Wessels.
Com base nesses posicionamentos, a visão de Jescheck sobre culpabilidade termina reduzindo
bastante as possibilidades de exculpação, que ficariam cingidas às hipóteses excepcionais previstas
em lei, em que a culpabilidade é um conceito jurídico, e não moral.
A tese que escolhe como barema o homem médio faz uma opção preconceituosa e discriminatória,
pois universaliza e homogeneíza valores e comportamentos. Essa abertura conduz ao arbítrio, ao
preconceito, à intolerância. No aspecto, é evidente que haverá significativas distinções entre o
homem médio e o sujeito concreto, pois nenhuma pessoa individual possui integralmente as
características desse homem ideal. Essa generalização, evidentemente, não tolera a diferença, as
particularidades, o multiculturalismo.
A culpabilidade como atitude jurídica desaprovada é um conceito formal e vazio, tendo em vista que
não explica nem indica nenhum critério em virtude do qual se desaprove a atitude interna do sujeito,
não respondendo ao "porquê" da imputação.
Winfried Hassemer aproxima a culpabilidade da política criminal, partindo da ideia de que há uma
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crise em todo o sistema penal, cujos princípios fundamentais vêm sofrendo um processo de erosão,
dentre eles o da culpabilidade, que tem desempenhado historicamente a tarefa de estabelecer limites
à potestade punitiva do Estado, mas que atualmente a introdução de conceitos preventivos no
conceito de culpabilidade pode afrouxar tais limites.
Hassemer assevera que não se pode exigir do juiz o impossível (demonstrar a liberdade de ação),
mas sim descrever situações negativas que podem fundamentar uma exculpação, de modo que o
juiz poderá buscar a ausência de liberdade e de culpabilidade, como conceito negativo, a partir de
limites acumulados historicamente ao exercício do jus puniendi estatal, o que justifica sua posição de
que a culpabilidade não é fundamento da pena, mas seu limite, fundado na ideia de
proporcionalidade.
Claus Roxin adota uma concepção de culpabilidade estreitamente relacionada com a ideia de
prevenção, em que culpabilidade e prevenção são elementos que se limitam mutuamente, e se
encontram reunidas numa categoria denominada "responsabilidade".41 A culpabilidade deixa de ser
elemento autônomo para constituir-se numa parte de um conceito maior: a responsabilidade, que
representa um juízo de valoração que pode fazer um sujeito ser considerado penalmente
responsável.
A necessidade preventiva representa uma garantia adicional que supre as deficiências que a
culpabilidade tem para fundamentar a imposição da pena. O reconhecimento de que culpabilidade e
prevenção ocupam o mesmo nível na condição de pressupostos da responsabilidade penal produz,
para Roxin, uma série de vantagens: uma delas seria a evidente conexão do conceito de
responsabilidade com a teoria dos fins da pena. O juiz, dessa maneira, poderia excluir a
responsabilidade penal quando a pena não fosse mais preventivamente necessária. A culpabilidade
como limite da prevenção tem estreita relação com uma ideia de preservação da dignidade humana,
como expressamente afirma Roxin: " Há uma diferença fundamental entre utilizar a ideia de culpa
para colocar o particular à mercê do Estado e empregá-la para o preservar do abuso do referido
poder". E prossegue dizendo que a culpabilidade, em verdade, constitui um mecanismo para manter
dentro de limites toleráveis os interesses da coletividade em razão da liberdade individual, " porque a
dignidade do homem proclamada na Lei Fundamental é um direito de proteção frente ao Estado e
não pode ser transformada numa faculdade de ingerência".42
A concepção de Roxin utiliza as finalidades preventivas da pena a serviço dos direitos fundamentais
e da dignidade da pessoa humana. No entanto, sua concepção não ficou imune a críticas, pois a
liberdade para Roxin é tida como ficcional, além de que as necessidades preventivas não conduzem
necessariamente à solução menos gravosa para o sujeito.
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Pelo funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs, a missão do Direito Penal tem íntima relação com a
estabilização dos conflitos sociais através do resgate na confiança normativa, violada pela prática da
infração penal. A pena tem uma incumbência decisiva - embora não exclusiva - na estabilização
desses conflitos.
Para Jakobs, culpabilidade pode ser conceituada como responsabilidade por um déficit de motivação
jurídica dominante, em um comportamento antijurídico. Em síntese, a culpabilidade corresponde a
uma infidelidade ao direito, que é um conceito determinado normativamente. O juízo de culpabilidade
permite selecionar, dentre as condições de fato que defraudaram a expectativa normativa, apenas
uma, a motivação defeituosa do autor, para que haja a imputação do fato ao sujeito.43 A exigência
do funcionalismo sistêmico de restabelecer a confiança no Direito mediante a contraposição
simbólica da pena é mais do que fundamento da culpabilidade, mas é o verdadeiro critério de
comprovação dos ingredientes subjetivos do delito, de determinar o grau de culpabilidade e a medida
da pena. Com isso, a culpabilidade perde a função de critério ontológico e de limite de adstrição de
responsabilidade penal.
A tese de Jakobs permite que um homem seja utilizado como mecanismo estabilizador da ordem
normativa, deslocando o centro da ordem jurídica, que não mais é o ser humano, mas sim a
prevalência do sistema. Nessa linha, o ser humano pode ser validamente massacrado, hostilizado,
vulnerado, atingido nos seus direitos fundamentais, desde que essa violência sirva para cumprir as
expectativas normativas. É uma tese que privilegia o interesse público em detrimento dos direitos
individuais, mas que tem o equívoco de não centrar a imputação no ser humano, mas no sistema.
Afirma-se, contudo, que as relações entre culpabilidade e a ideia de igualdade constituem a
contribuição do funcionalismo sistêmico que mais relevância possui para a consideração da
culpabilidade como adequada aos direitos fundamentais que concretizam a ideia de dignidade
humana.
Habermas sustenta que o cidadão é autor racional das normas a partir do processo racional,
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discursivo e democrático das normas jurídicas, em que cada indivíduo deve ter a possibilidade igual
de expressar as suas opiniões em um processo de debate e argumentação. Dessa maneira, o
destinatário da norma deve ser, também, autor dela, de maneira efetiva ou potencial.
Klaus Günther sustenta a ideia de culpabilidade em que o indivíduo é tido como "pessoa
deliberativa", em que os cidadãos, numa democracia, não são apenas destinatários, mas também
autores das normas jurídicas. A pessoa possui essa dupla condição em face de sua capacidade
crítica de tomar posições motivadas, sendo capaz de seguir os respectivos motivos e com base
neles executar ações. A pessoa deliberativa deve ter capacidade de participar de argumentações
discursivas, tomar posições motivadas e participar do processo crítico-argumentativo de formação
das normas jurídicas.47
O conceito de pessoa deliberativa considera o ser humano como sendo fonte própria de suas ações
e manifestações, tanto no sentido causal como num sentido autocrítico, tendo a capacidade de
adotar uma posição frente a ações e expressões próprias ou de outra pessoa.48
A pessoa deliberativa desempenha uma dupla função: cidadão e pessoa capaz de direito. O cidadão,
como autor da norma, tem o direito de rejeitá-la, tomando publicamente uma atitude crítica em
relação à norma. A pessoa capaz de direito, por sua vez, como destinatária da norma, não tem o
direito de rejeitá-la. Por isso, em caso de inobservância da norma, pode o Direito cominar sanções
àqueles que estejam obrigados a evitar o injusto, ainda que não concordem com a norma. Logo, uma
eventual lesão normativa somente poderá ser imputada ao sujeito quando esta pessoa tiver
capacidade crítica em relação às suas ações e manifestações próprias e alheias, bem como a
oportunidade jurídica e institucional de participar de modo eficaz no processo democrático de
alteração normativa. Essa capacidade é o critério geral para a capacidade de imputação da pessoa
capaz de direito. A culpabilidade, neste sentido, resulta desta relação de tensão entre a capacidade
de atitude crítica do cidadão e da pessoa capaz de direito.
A concepção de Günther trata a culpabilidade como concepção jurídica, que depende dos processos
institucionalizados juridicamente, através do princípio democrático em que se assegure o direito de a
pessoa deliberativa, no seu papel de cidadão, revelar sua rejeição à norma, através do procedimento
argumentativo. A culpabilidade, pois, é compatível apenas com o Estado Democrático de Direito,
relacionando, inclusive, os conceitos de culpabilidade como censura moral ou como dotada de
critérios preventivos como características de regimes autoritários.
A partir desses postulados, Kindhäuser questiona como poderia uma culpabilidade material ser
legítima, se o Direito não oferece razões que podem motivar racionalmente a todos e a cada um a
cumprir a norma penal. As razões da legitimidade da norma, então, são obtidas a partir de sua
legalidade.50
A legitimidade se relaciona com legalidade, pois numa sociedade secularizada e laica não existe
nenhum conteúdo apriorístico das normas jurídicas, sendo que a legitimidade somente poderá ser
deduzida da autonomia dos participantes no processo de integração social, e pressupõe ao mesmo
tempo que o indivíduo não pode ser utilizado como instrumento para a execução de propósitos
heterônomos.
Para Kindhäuser, a culpabilidade material resulta da violação do acordo que fundamenta a norma
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Assim, dessa maneira, é definida a culpabilidade material: "A censura da culpabilidade material
contém a censura pela carência de lealdade em face da autonomia comunicativa do participante na
interação. Esta censura de culpabilidade se refere ao autor de forma não objetivante em terceira
pessoa, mas não, por assim dizer, como fator perturbador da integração social, senão certamente
como participante no acordo normativo. A autonomia comunicativa do autor lhe é garantida; e se lhe
solicita aceitar o prejuízo da pena como uma reação simbólica à decepção produzida pela
deslealdade de sua ação e, ademais, o apreciar sua ação desde a perspectiva de outra pessoa".51
As teses defendidas por Günther e Kindhäuser relacionam culpabilidade com legitimidade das
normas. No entanto, a concepção de Günther é capaz de incitar à desobediência civil, pois a
igualdade de condições de participação crítica só existe em situações ideais, enquanto a tese de
Kindhäuser desvincula o dever de obediência ao Direito de qualquer conteúdo, senão o da
obediência em si mesma em face da legitimidade do processo de formação das normas.
A culpabilidade formal está no juízo de imputação de um fato ilícito a um autor determinado. Esse
juízo tem-se firmado historicamente como "reprovabilidade", ou "censurabilidade", embora tal
atribuição não seja universalmente aceita como integrante da culpabilidade formal, notadamente pelo
viés moralizante e ambíguo que encerram as expressões "reprovação" ou "censura". Os maiores
problemas, no entanto, estão no fundamento da imputação, que reside na culpabilidade material.
Todas essas questões passam pela discussão sobre a culpabilidade material, que se inicia com os
princípios de imputação individual e subjetiva, chegando até a busca das demais condições que
permitem responsabilizar alguém pela prática de um fato ilícito, e que podem ser, dependendo da
corrente de pensamento adotada, a liberdade de escolha, o "poder atuar de outro modo", a
capacidade de se motivar ou de se dirigir pelas normas, de ser responsável em face das exigências
do Estado ou da condição de coautor das normas jurídicas. O certo é que a noção de culpabilidade
vai se referir a uma determinada concepção de ser humano e vai refletir no próprio âmbito da
condição de pessoa.
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Atualmente, crê-se que o ser humano culpável é portador de algumas características que o fazem
especial e diferenciado. A doutrina sobre culpabilidade tem invocado diversos predicados para
considerar a pessoa como especial e culpável. Alguns dos postulados mais relevantes entendem que
o homem pode ser: 1) um ser motivável (aí incluídas todas as variações da motivabilidade); 2) um ser
dirigível normativamente; 3) alguém dotado de livre-arbítrio; 4) um cidadão com capacidade
discursiva e liberdade de ação comunicativa; 5) um ser socialmente responsável.
1. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Culpabilidad y teoría del delito. Buenos Aires: B. de F., 1995. vol. 1, p.
139.
2. DÍAZ PITA, Maria Del Mar. Actio libera in causa, culpabilidad y estado de derecho. Valencia: Tirant
lo Blanch, 2002. p. 73.
4. E que guarda relações com o conceito de imputação subjetiva do Direito Romano. No aspecto,
MOMMSEN, Teodoro. Derecho penal romano. 2. ed. Bogotá: Temis, 1999.
7. BUSTOS RAMIREZ, Juan José; HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernan. Lecciones de derecho penal.
Madrid: Trotta, 1999. vol. 2, p. 328.
9. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal - Parte general. 7. ed. Buenos Aires: B. de F., 2004. p. 453.
17. Fato curioso é que, como visto, Beling não aceita a inexigibilidade na sua teoria da culpabilidade.
20. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal - Parte general. 7. ed. Buenos Aires: B. de F., 2004. p. 526.
CEREZO MIR, José. Curso de derecho penal español - Parte general. Madrid: Tecnos, 2005. vol. 3 -
Teoría jurídica do delito/2, p. 594.
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50. Nesse ponto, a influência de Habermas é expressa, como se pode ver no seu Direito e
democracia: entre facticidade e validade, quando Habermas demonstra claramente que a
legitimidade pode ser obtida a partir da legalidade.
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