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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna

doutrina alemã

A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE CULPABILIDADE E A MODERNA DOUTRINA


ALEMÃ
Ciências Penais | vol. 12 | p. 261 | Jan / 2010
DTR\2010\579

Sebástian Borges de Albuquerque Mello


Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor de Direito Penal da Graduação e Pós-Graduação
(mestrado e doutorado) da UFBA e da Universidade Salvador - UNIFACS e Faculdade Baiana de
Direito. Advogado.

Área do Direito: Penal


Resumo: O presente trabalho se propõe a expor a evolução do conceito de culpabilidade no âmbito
da moderna doutrina alemã. Com o fito de traçar um panorama de tal evolução conceitual, inicia
abordando a culpabilidade iluminista e o conceito psicológico de culpabilidade. Dito isso, passa a
analisar as concepções neokantistas, dentre as quais se destacam as de Frank, Goldschmidt e
Freudenthal e as concepções generalizantes. Posteriormente, esquadrinha o conceito finalista de
culpabilidade, criticando-o. Por fim, debruça-se sobre as concepções pós-finalistas, passando por
Hassemer, Roxin, Jakobs, Habermas, Gunther e Kindhäuser. Por fim, conclui ressaltando a ligação
entre o conceito material de culpabilidade e a definição jurídica de pessoa responsável em face das
exigências do Estado ou da condição de coautor das normas jurídicas.

Palavras-chave: Culpabilidade - Moderna doutrina alemã - Evolução conceitual


Abstract: The present essay intends to discuss the evolution of the culpability concept in the context
of modern German doctrine. Targeting to trace an outlook of such conceptual evolution, this paper
commences approaching the illuminist culpability and the psychological concept of culpability.
Further, it analyses the neokantist concepts, such as Frank's, Goldschmidt's, Freudenthal's and the
generalist conceptions. It proceeds the examen of the finalist's culpability concept, criticizing. After all,
bends over the post-finalist's culpability concept, all the way from Hassemer, Roxin and Jakobs,
passing thru Habermas, until Gunther and Kindhäuser. And finally, it concludes emphasizing the
connection between the material concept of culpability and the juridical definition of a responsible
person facing the State exigencies and the condition of juridical norms co-author.

Keywords: Culpability - Modern German doctrine - Conceptual evolution


Sumário:

1.Introdução - 2.Da culpabilidade iluminista ao conceito psicológico de culpabilidade - 3.O


neokantismo e a culpabilidade normativa na Alemanha. Os pensamentos de Frank, Goldschmidt e
Freudenthal - 4.A culpabilidade e o finalismo - 5.Crítica ao finalismo - 6.As concepções de
culpabilidade no pós-finalismo - 7.Conclusão

1. Introdução

Em boa parte dos regimes preexistentes ao Iluminismo, a responsabilidade penal era objetiva,
solidária, impessoal e desigual, fundada em sistemas que não consideravam o ser humano como
indivíduo, nem tampouco como pessoa livre e responsável pelos seus atos - a pena ultrapassava a
pessoa do infrator, sendo compartilhada entre o autor do fato e seus parentes -, bem como sistemas
em que a mera relação de causalidade era suficiente para se atribuir a alguém a responsabilidade
pela prática do fato ilícito. A decisão de punir um sujeito individual ou coletivo era discricionária e se
valia de critérios absolutamente inseguros, como presunções, delações ou mesmo conveniência
política.

A pena podia alcançar pessoas que nenhuma relação tinham com o fato, mas sim com o criminoso,
sendo que o mal causado pelo crime era comparado a uma doença que contaminava todos aqueles
que estivessem próximos do infrator, e, se coletiva era a imputação, coletivo era o castigo. O ser
humano sofria a pena em face da conduta de seus ascendentes, de seu cônjuge, de seus filhos e
das pessoas do seu círculo próximo de relação. Trata-se de sistema que desconsidera o valor único
e irrepetível da atividade interna do sujeito.

Com a culpabilidade, o Direito Penal impõe limites ao poder soberano, descartando


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responsabilidade objetiva pelo resultado e introduzindo a responsabilidade atrelada a um vínculo


psicológico entre o sujeito e o fato punível, contribuindo para que a responsabilidade criminal se
subjetivize e a autoridade penal pública se modere.1 Adota-se o homem como referência da
intervenção punitiva.

O conceito de culpabilidade não é criação do Direito Penal, tendo um papel importante em outras
searas do conhecimento, tais como teologia, filosofia, criminologia e psicologia.2 Na esfera penal, há
uma correlação entre as ideias de culpabilidade e de imputação, podendo-se dizer, em certa medida,
que a culpabilidade surgiu como princípio para determinar critérios pelos quais se pode atribuir a
alguém a responsabilidade por dado fato criminoso.

No aspecto, Achenbach3 adverte que a concepção jurídico-penal de culpabilidade, surgida naquela


época, não representou o início de uma "teoria da culpabilidade" ou de uma "teoria da imputação
individual", pois a tarefa que passou a ser desempenhada pelo conceito de culpabilidade já era
desempenhada antes por outro conceito, a imputatio juris, vinculada pela doutrina alemã aos
conceitos tradicionais de dolo e de culpa,4 com origens no Direito Romano. Afirma, inclusive que a
palavra "culpabilidade" não é nova para o Direito Penal, só que antes era utilizada em outro sentido,
e não para designar imputação ( Zurechnunstatbestad). Conclui, então, que o conceito de
culpabilidade passou a ocupar, no Direito Penal, o espaço que antes era ocupado pelo conceito de
imputação.

A culpabilidade representa o desenvolvimento histórico de um conjunto de postulados filosóficos


relativos à imputação penal - é construída como conceito, princípio, fundamento e limite da
intervenção punitiva. A culpabilidade tem a função de individualizar a imputação, que se converte em
garantia da autonomia individual e em requisito de legitimidade da pena.

A culpabilidade, como categoria sistemática, possui uma pluralidade de contextos, sendo possível
estabelecer, nessa linha, três conceitos possíveis de culpabilidade: a) culpabilidade como princípio
que fundamenta e limita a própria violência estatal, sendo instrumento para a própria legitimação do
Direito Penal em face do indivíduo concreto; b) culpabilidade como medida da pena, descrevendo o
suposto de fato que serve como referência para a medição judicial da pena; c) culpabilidade como
fundamento da pena, pela qual se justifica ou se exclui a pena frente a um autor particular. A
culpabilidade passa a constituir um conjunto de elementos que justificam ou impedem a pena a um
autor individual.5
2. Da culpabilidade iluminista ao conceito psicológico de culpabilidade

O fundamento da imposição da pena a um indivíduo concreto, nas primeiras manifestações


iluministas, era o livre-arbítrio, isto é, a vontade livre e consciente de um homem racional. No início
do século XIX, a liberdade era direito fundamental, e o axioma vigente determinava que essa
liberdade era consequência da capacidade de livre-arbítrio do homem, como ser autônomo, racional
e valioso, que influenciou a corrente de pensamento que se tornou conhecida como Escola Clássica.

Francesco Carrara, principal representante da Escola Clássica, constrói seu sistema de imputação a
partir da autonomia e responsabilidade moral do indivíduo, em que o livre-arbítrio serve de
justificação às penas, impostas como castigo merecido, pela ação criminosa e livremente voluntária.
O ser humano, para a Escola Clássica, é punido na medida em que decidiu livremente pelo caminho
do crime, e por isso deve ser pessoal e individualmente responsabilizado. O sujeito é penalmente
responsável porque é moralmente responsável.6

A tese da responsabilidade moral em decorrência de um absoluto indeterminismo sofreu severas


críticas, primeiro por entender o livre-arbítrio como um dogma, a partir de uma ideia de homem ideal,
irreal, metafísico, que não corresponde às características do ser humano individual.7

O livre-arbítrio entrou em decadência em meados do século XIX, sendo progressivamente


substituído pelo positivismo científico, muito se devendo à correlação que se fazia entre livre-arbítrio
e liberalismo burguês, este último em crise em face das novas tensões surgidas pelas ideologias
comunistas e anarquistas, e a ascensão da ideia de luta de classes. No âmbito do Direito Penal e da
culpabilidade, implantou-se uma doutrina de responsabilidade social, fundada numa ideia de homem
subordinado ao determinismo causal.8

A culpabilidade surgiu como categoria autônoma na teoria do delito, como instituto distinto da Página
ilicitude
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no final do século XIX, notadamente com o pensamento de Franz von Liszt e sua teoria psicológica
da culpabilidade, vinculada ao positivismo científico reinante na época. A concepção psicológica
revestia-se de um caráter meramente formal, limitando-se a observar os vínculos psicológicos do
autor com o fato, reconhecidos através da observação científica.

A teoria psicológica estava em conformidade com uma postura determinista, preocupada em


expulsar valorações imprecisas do conceito de culpabilidade, sujeitando-a a dados verificáveis com
segurança. Consiste ela no positivismo jurídico aplicado ao Direito Penal, em que o fundamento das
leis é buscado nos fenômenos submetidos às leis naturais. A estrutura do delito, dessa forma, era
dividida em duas partes que se manifestam de maneira separada de acordo com a percepção dos
sentidos: a parte externa, que se identifica com o objeto da antijuridicidade; e a parte interna, que se
apresenta como o conjunto de elementos subjetivos do fato. O elemento definidor fundamental desse
conceito é a ideia de ação e de causalidade, de modo que o delito aparece como uma dupla
vinculação causal: a relação de causalidade material, que dá espaço à antijuridicidade; e a
causalidade psíquica, que vai constituir a culpabilidade.9 Nessa estrutura "objetivo-subjetiva", todo o
externo (objetivo) ficava ao encargo da antijuridicidade e todo o interno (subjetivo) ficava sob o abrigo
da culpabilidade.

As críticas à culpabilidade psicológica conduziram à sua superação histórica: a) pela impossibilidade


de se excluir a culpabilidade em situa- ções em que o sujeito atua dolosamente (como coação
irresistível e estado de necessidade exculpante); b) pelo caráter normativo da culpa; c) pela
inexistência de qualquer relação anímica do autor com o fato na culpa inconsciente; d) pelo caráter
vazio do conceito de culpabilidade, que reúne num mesmo instituto elementos absolutamente
díspares como dolo e culpa, transformando a culpabilidade num conceito meramente formal; e) pela
violação da dignidade da dignidade humana, porque universaliza e engessa a culpabilidade em
elementos subjetivos e avalorativos, cuja rigidez não permite a graduação no conceito de
culpabilidade, e, nessa consequência, não permite tomar em consideração o homem concreto, suas
particularidades e individualidades.10
3. O neokantismo e a culpabilidade normativa na Alemanha. Os pensamentos de Frank,
Goldschmidt e Freudenthal

No início do século XX, o positivismo avalorativo entra em crise, e há uma mudança paradigmática
no conceito de dignidade da pessoa humana, em face dos novos direitos sociais e econômicos que
se acumulam aos direitos fundamentais clássicos. A nova concepção de dignidade humana
determina que às pessoas deve ser assegurado um mínimo de bem-estar material, social, de
aprendizagem e de educação. Rompe-se, então, com o paradigma de neutralidade axiológica própria
do positivismo, pois a ordem jurídica é novamente vista como uma ordem de valores.11

Como reação ao positivismo, surgem correntes neokantianas, que redescobrem a filosofia e


reitroduzem o valor no âmbito da ciência do Direito. Dentre elas, destaca-se a Escola de Baden,
também conhecida como Escola Sudocidental Alemã, que parte de concepções valorativas
apriorísticas, inequívocas, e tem como principais referências Rickert, Windelband e Lask, que tiveram
nítida influência na doutrina penal do início do século.

Esse ambiente cultural e científico, aliado às insuficiências dogmáticas da teoria psicológica da


culpabilidade, fizeram aparecer, na doutrina alemã, uma modificação no conceito de culpabilidade,
que passou a integrar no seu conceito um juízo de valor, ou melhor, de desvalor. A culpabilidade
deixa de ser um vínculo psicológico entre o autor e o fato para constituir-se num juízo de valor que
representa uma censura ou uma reprovação que incide sobre o autor do delito. Dolo e culpa deixam
de esgotar toda a culpabilidade, tornando-se, a partir de então, elementos necessários, mas não
suficientes, da culpabilidade - o elemento decisivo para sua conceituação é o juízo de censura e
reprovação. Surgem as teorias normativas da culpabilidade.

O pensamento normativista não pode ser descrito como um movimento único e harmônico de ideias,
mas o elemento nota comum do pensamento normativista de então está radicado na interpretação
mais ampla do conteúdo da culpabilidade, rompendo com a identificação da culpabilidade com o dolo
e a imprudência - concepção própria do psicologismo naturalista - e introduzindo conceitos ou juízos
de valor. Na linha do que sustenta Achenbach, é possível identificar, no que tange aos
posicionamentos normativos do século passado, três categorias de normativismo: 1) tendências
etizantes; 2) concepções segundo as quais a culpabilidade possui um elemento normativo; 3)
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concepções nas quais a culpabilidade é, em si mesma, normativa. Essas concepções podem ter uma
matriz individualizadora, como em Frank, Goldschmidt e Freudenthal, ou generalizantes, defendidas,
sobretudo, por Mezger e Eberhard Schmidt, que na análise dos juízos de exculpação, ou na
possibilidade ou não de atuar de outro modo, adotavam como barema o que se chama de cidadão
médio ( Durchshnitts-Staatsbürgertyp).12
3.1 Reinhard Frank e o conceito de reprovabilidade

Atribui-se a Reinhard Frank a construção inicial de uma toria normativa da culpabilidade. Frank,
analisando as decisões dos tribunais e a linguagem popular, considera que existem elementos da
culpabilidade para além dos conceitos de dolo e culpa. Esses elementos são denominados de
circunstâncias concomitantes, que servem não apenas para graduar a culpabilidade, diminuindo-a ou
aumentando-a, mas também para excluí-la. Dessa maneira, se são capazes de graduar ou excluir a
culpabilidade, as circunstâncias concomitantes integram o conceito de culpabilidade.13

Frank constrói a culpabilidade como um fenômeno complexo, formado de elementos subjetivos e


normativos, reunidos sob a denominação de reprovabilidade (que se confunde com a própria
culpabilidade). Assim, partem dos seguintes pressupostos: a) dolo e culpa não esgotam a
culpabilidade, embora sejam integrantes dela; b) a imputabilidade é elemento da culpabilidade; c)
existem circunstâncias concomitantes que devem ser levadas em conta na graduação da
culpabilidade. Desse modo, Frank construiu um conceito alternativo de culpabilidade, composto por
três exigências básicas: imputabilidade, dolo e culpa e circunstâncias concomitantes. Esses três
elementos foram por ele resumidos numa expressão breve, que, na falta de outra melhor, denominou
reprovabilidade (Vorwerfbarkeit).14

Na culpabilidade em Frank, substitui-se a ideia de gênero e espécie, típica da teoria psicológica, e se


funda um conceito complexo, formado de elementos de igual nível, cujo conjunto constitui o conceito
de reprovabilidade, de natureza eminentemente normativa. Trata-se de juízo valorativo de
culpabilidade, sendo que o conteúdo psicológico (dolo e culpa) mantém-se na culpabilidade como
objeto de valoração, motivo pelo qual a referida teoria foi denominada psicológico-normativa.15

A concepção de Frank, apesar das críticas, valoriza o homem na medida em que individualiza a
imputação e limita o poder punitivo do Estado, permitindo ao juiz graduar e excluir a culpabilidade a
partir das circunstâncias individuais do sujeito. A possibilidade de graduação da culpabilidade, ou sua
exclusão, a partir da normalidade das circunstâncias ou de motivação, valoriza o homem e limita a
intervenção punitiva do Estado, o que termina realizando, em maior medida do que a concepção
psicológica, o conceito de dignidade humana.

3.2 Goldschmidt e a culpabilidade como violação à "norma de dever"

A concepção normativa de Goldschmidt parte da existência de dois tipos de norma: há a norma


jurídica (norma de direito), que exige ao particular determinada conduta externa, e uma norma de
dever não manifesta, que ordena o sujeito a conduzir sua conduta interna e motivar-se pelas
representações de valor jurídico. A norma externa se refere à conduta exterior, à causalidade, e a
norma interna refere-se à conduta interior, sua motivação. A norma de dever ordena que alguém se
abstenha regularmente de pôr em prática a vontade contrária à norma de direito. É o
descumprimento da norma de dever que fundamenta o elemento normativo da culpabilidade.16

Na culpabilidade de Goldschmidt, existe o dolo, como relação psíquica puramente psicológica, e, ao


lado do dolo, encontra-se o elemento normativo, que é a contrariedade ao dever. Assim, os crimes
dolosos representariam uma dupla contrariedade à norma: objetivamente, a infração à norma de
direito, e subjetivamente, a infração correspondente à norma de dever. A norma de dever marca o
limite da exigibilidade, que será, portanto, o fundamento das causas de exculpação, quando a
motivação anormal ou contrária à norma de dever não é penalmente reprovável. Assim, as normas
que regulam as causas de exculpação, em face da ausência de motivação normal, constituem a
exceção às normas de dever.

3.3 Freudenthal e a causa geral de exculpação

Freudenthal busca um conceito de culpabilidade mais próximo da linguagem popular, que às vezes
se distancia da terminologia técnica dos juristas. Há situações em que, mesmo presente o dolo, não
há culpabilidade, pois o agente não podia atuar de outra maneira. Página 4
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Sua concepção de culpabilidade parte da ideia de que, se não há possibilidade de agir, tampouco há
dever de agir. Dessa forma, a inexigibilidade se constitui no fundamento dogmático comum a todas
as causas de exculpação, em resposta ao direito positivo de então, que somente considerava a
possibilidade de exclusão da culpabilidade no estado de necessidade. Está aberto, então, o caminho
para a exculpação supralegal com arrimo no conceito de inexigibilidade, o que significa uma
possibilidade evidente de concretização dos direitos fundamentais e limitação ao jus puniendi estatal
pelo magistrado, o que vai ser decisivo na concretização da dignidade da pessoa humana no
pós-positivismo.

Freudenthal recorre a Beling17 para dizer que o Direito exige das pessoas a ele submetidas que
orientem suas decisões de acordo com as regulações valorativas do próprio Direito. No entanto, o
comportamento conforme a norma só pode ser exigível apenas e tão somente quando isso for
possível. Quando não for possível, também estará ausente a reprovabilidade, e, por consequência, a
culpabilidade.18

Começa a se delinear, então, a grande contribuição de Freudenthal para a culpabilidade: a relação


que se estabelece entre poder e exigibilidade. De acordo com sua concepção normativa, se não há
poder, não há, tampouco, dever. E se não há dever, não há reprovabilidade, e, por consequência,
não há culpabilidade. Esse elemento ético, normativo, da culpabilidade não está na lei, mas na
própria essência da culpabilidade.19 Neste ponto, percebe-se uma sensível diferença entre
Goldschmidt e Freudenthal: o primeiro relaciona a culpabilidade com violação a dever, enquanto o
último relaciona dita violação com a ausência de poder.

O entendimento de Freudenthal é fruto do momento econômico difícil em que se encontrava a


Alemanha, quando muitos cidadãos estavam em situação economicamente angustiante, e havia o
problema de desobedecer à lei para tentar resolver questões econômicas.20

Freudenthal analisa situações em que o juízo de reprovação se verifica nos crimes culposos, nos
quais devem ser considerados dois momentos distintos: o primeiro, de natureza objetiva, se houve
ou não o cuidado devido necessário; e o segundo, de natureza subjetiva, se o autor estava em
condições de se abster da realização do tipo. Essa inevitabilidade, presente nos crimes culposos,
está presente, também, nos crimes dolosos, de tal maneira que a exigibilidade da inexecução do fato
é convertida num pressuposto de admissão do dolo.21 Desse modo, com o dolo não se exige
apenas o lado psíquico, mas também o elemento ético, que não é encontrado na lei, mas na
essência da própria culpabilidade.

Freudenthal narra diversas situações em que se impõe o juízo de absolvição, com a práxis
confirmando a ciência, como em hipóteses em que o cocheiro, atendendo às ordens de seu superior
e temendo perder seu emprego, manteve atrelada ao seu coche um cavalo arredio, que terminou se
desgarrando e atropelando e ferindo um pedestre.

3.4 O normativismo e as visões generalizantes

A despeito da vertente individualizadora da culpabilidade normativa desenvolvida por Frank,


Goldschmidt e Freudenthal, há uma corrente normativa de viés generalizante, capitaneada por
Eberhard Schmidt, cujo conceito de culpabilidade parte da distinção entre a norma jurídica e norma
de autopreservação.22 A culpabilidade requer a possibilidade de se exigir um comportamento
conforme ao direito em lugar do ilícito efetivamente realizado. Essa exigência se dá por aquilo que
poderia fazer um cidadão médio, que serve de modelo a partir do qual será possível estabelecer a
expectativa ideal de conduta.

De viés também generalizante é a concepção de Mezger, ao entender que a culpabilidade é uma


situação de fato, valorada juridicamente como contrária ao Direito e censurável. Assim, a
culpabilidade é um juízo normativo acerca de uma situação de fato psicológica. No entanto, Mezger
desenvolveu um conceito de culpabilidade pela condução de vida, segundo a qual o sujeito se torna
culpável por formar seu caráter de maneira "inimiga ao direito", quando os maus hábitos e os vícios
fazem o agente responsável pela maneira em que conduziu sua vida. O referido conceito é
moralizante e instrumentaliza o homem, pois responsabiliza a pessoa por circunstâncias que fogem
ao controle do indivíduo.23

Uma das concepções normativistas que mais influenciou o finalismo - que se tornaria dominante na
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segunda metade do século XX - foi a conhecida distinção, feita por Graf zu Dohna, entre objeto da
valoração e valoração do objeto. Para Graf zu Dohna, a vontade de ação é o objeto da valoração,
que passa a ser remetida ao tipo subjetivo, e a valoração do objeto passa a ser o juízo da motivação
do autor.24
4. A culpabilidade e o finalismo

O finalismo, corrente dominante após a Segunda Guerra Mundial, vincula o direito a estruturas
lógico-objetivas, isto é, estruturas do ser tais como aparecem na realidade.25 Welzel, criador da
teoria finalista, constrói uma teoria do delito a partir das referidas estruturas, indo ao âmbito do
ontológico, cujo centro está no conceito de ação, que não é mais um conceito causal, e sim um
conceito final, que reestrutura todo o sistema do delito. A finalidade da ação, como estrutura
lógico-objetiva, deve ser respeitada tanto pelo legislador como pela ciência. A capacidade do ser
humano de se autodeterminar também é outra estrutura ontológica que nem o legislador nem a
ciência jurídica podem desconhecer. O Direito positivo e a teoria do delito deviam partir dessas
estruturas, que se lhes impõem como limites objetivos infranqueáveis.26

Para o finalismo, a culpabilidade vai além da mera discordância objetiva entre a conduta e a ordem
jurídica: ela se alicerça na censura pessoal do sujeito, em que a conduta não devia ser contrária ao
direito, porque podia ser conforme ao direito. O autor, examinado concretamente em sua situação
individualizada, será culpável quando poderia adotar uma resolução de vontade conforme a norma,
em vez de realizar a vontade antijurídica.27

A culpabilidade é culpabilidade de vontade, pois somente o que depende da vontade do homem


pode ser censurado como culpável. Neste sentido, a vontade da ação tem uma culpabilidade maior
ou menor - é mais ou menos culpável, mas a vontade, em si mesma, não é culpabilidade. Trata-se
de uma qualidade valorativa negativa da vontade de ação, mas ela não consiste na vontade. Uma
vontade pode ter uma culpabilidade maior ou maior, mas ela não é, em si mesma, culpabilidade.28

Por isso se estabelece uma clara distinção entre a teoria normativa pura, em que a culpabilidade é
uma qualidade valorativa negativa da vontade, e as teorias normativas que a precederam, pois a
culpa e, notadamente, o dolo integravam, em maior ou menor medida, o conteúdo da culpabilidade.

A diferença entre antijuridicidade e culpabilidade para a teoria final da ação não está no objeto da
valoração, que é o mesmo (a conduta). A distinção está na escala da valoração, em que a
antijuridicidade é examinada na conformidade ou não da conduta com a ordem jurídica, e a
culpabilidade se refere à censura pessoal, quando o autor atuou de modo contrário ao direito quando
podia atuar conforme a ele. O juízo de culpabilidade, para Welzel, só pode censurar o sujeito que
pode, com livre determinação, conhecer e dirigir seu comportamento conforme a sentido. O finalismo
também faz uma distinção entre os elementos da culpabilidade cuja ausência acarreta exclusão de
culpabilidade e as causas de exculpação.

4.1 O "poder atuar de outro modo"

O fundamento material da culpabilidade finalista é o "poder atuar de outro modo", isto é, o sujeito
atuou de forma contrária ao Direito quando podia ter atuado conforme a ordem jurídica. Essa
possibilidade tem como fundamento a liberdade analisada num triplo aspecto: 1) antropológico, em
que o homem se liberta das formas inatas e instintivas de comportamento, devendo realizar e
descobrir por si mesmo o comportamento correto por intermédio de comportamentos inteligentes, a
partir do qual o ser humano é instado a elaborar racionalmente um sistema de ação para o futuro.
Essa liberdade existencial e desvinculação do orgânico, instintivo, é a característica positiva e
decisiva do homem; 2) caracteriológico, que faz referência a um "eu", centro regulador responsável
que está sobre as demais formas instintivas de conduta. Tanto esse "eu" como as forças instintivas
de conduta possuem uma determinada força e um determinado conteúdo de sentido; 3) categorial,
no qual se reconhece, na conduta humana, a concorrência de várias formas de determinação, mas o
ser humano não pode apenas ser objeto de seus impulsos, pois o homem será responsável pelo
impulso do ato de conhecimento, que deve se sobrepor a outros impulsos contrários.29

O finalismo concebe a liberdade de vontade como a possibilidade de poder reger-se conforme a


sentido, isto é, a liberdade não é a possibilidade de eleger arbitrariamente entre o que tem sentido e
o absurdo, entre o valor e o desvalor, pois a liberdade não é um estado, mas sim um ato - o ato de
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liberação da coação causal dos impulsos para a autodeterminação conforme a sentido. E a


culpabilidade é a falta de autodeterminação conforme a sentido em um sujeito que era capaz de
tê-la. Não é a decisão em si mesma, mas sim o fato de o ser humano se deixar arrastar por impulsos
contrários a valor. Portanto, a culpabilidade não seria uma livre decisão em favor do mal - ela
consiste no fato de o sujeito se deixar prender pela coação causal dos impulsos, sendo capaz de se
determinar conforme a sentido.

Assim, a reprovabilidade concreta é formada de elementos intelectuais e volitivos, sendo a


consciência real ou potencial da ilicitude o elemento intelectual da culpabilidade e a exigibilidade de
obediência ao direito seu elemento volitivo. E os critérios jurídicos fundamentais da culpabilidade
fluem diretamente das determinações antropológicas básicas do homem como ser atuante e
conformador de seus impulsos.30 Dessa maneira, firmam-se como elementos da culpabilidade: a
imputabilidade, a consciência efetiva ou potencial do injusto e a exigibilidade de comportamento
distinto, os quais continuam sendo utilizados mesmo no início do século XXI.

Do ponto de vista material, a culpabilidade se fundamenta na possibilidade de o homem concreto


atuar conforme ao direito, quando atuou de maneira contrária a ele. Trata-se do conhecido "poder
atuar de outro modo", centrado numa ideia de liberdade de vontade, que sustenta a reprovabilidade
da conduta antijurídica. Esse é o conteúdo material da culpabilidade finalista, que representa o ponto
de partida para as concepções contemporâneas de culpabilidade, seja para reafirmar a ideia de
liberdade, seja para negá-la, em face de sua falta de verificabilidade empírica.
5. Crítica ao finalismo

O finalismo firmou-se, no Pós-Guerra, como doutrina penal dominante, notadamente no conceito de


culpabilidade normativa, em que todos os objetos de valoração são excluídos do conceito de
culpabilidade, que passou a ser, efetivamente, um juízo de valor, representado pela ideia de
reprovabilidade. A estrutura formal da culpabilidade finalista permanece até a atualidade. A principal
crítica ao finalismo, no âmbito da culpabilidade, reside no seu fundamento material: a liberdade de
agir conforme ao sentido, que termina no conceito de poder atuar de outro modo.

Desde a década de 60 do século XX já se buscava uma alternativa, no campo doutrinário, à tese de


liberdade de Welzel. As principais críticas estão centradas na impossibilidade da prova empírica e o
seu " poder atuar de outro modo". São conhecidas, no aspecto, as críticas de Engish, na sua
conhecida obra Die Lehre von der Willensfreiheit in der strafrechtsphilosophischen Dokrin der
Gegenwart, na qual sustenta ser impossível provar empiricamente o livre-arbítrio welzelniano, base
do juízo de reprovação da teoria normativa da culpabilidade.

Critica-se, também, o caráter moralizante da ideia de reprovabilidade, que atribui à culpabilidade


estampas de natureza moral, religiosa e metafísica que distorcem o juízo de culpabilidade.31 Há
críticas, também, no sentido de que as dificuldades práticas de se verificar o poder atuar de outro
modo acarretam a recorrência ao barema do homem médio, ou mesmo ao cotejo do homem
concreto com outro homem "ideal" nas mesmas condições e circunstâncias, o que compromete a
função individualizadora da pena.32

O finalismo puro, desvinculado de indagações de ordem constitucional e político-criminal, não


responde à pergunta sobre a legitimidade da imposição da pena a um indivíduo concreto, em virtude
de sua condição de ser humano, e, portanto, detentor de uma dignidade que se consubstancia, no
mundo jurídico, pelo respeito aos direitos fundamentais previstos de forma expressa ou implícita no
texto constitucional.

Atualmente, a missão de garantia intrínseca à culpabilidade se vê submetida a novas tensões, de tal


forma que a procura de um conceito alternativo ao "poder atuar de outro modo" é uma característica
comum da dogmática penal do pós-finalismo. Percebe-se, na doutrina penal alemã e espanhola, que
o ponto de partida para a discussão sobre a culpabilidade é a crítica ao conteúdo material da
culpabilidade em Welzel.

A culpabilidade penal deve ser interpretada à luz do novo constitucionalismo, em que os critérios de
imputação pessoal deixem de ser mera expressão de censura moral, mas se observe o juízo de
culpabilidade sob o prisma dos direitos e garantias fundamentais. E a dignidade humana termina
sendo o princípio constitucional que fundamenta e alicerça, de maneira cada vez mais intensa, o
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princípio da culpabilidade. A culpabilidade passa a ser entendida como um princípio de dimensão


constitucional, como uma densificação do princípio da dignidade da pessoa humana, o que demanda
uma reinterpretação constitucional de tudo a que se refira o princípio da culpabilidade.

Um desses pensamentos, contemporâneo do finalismo, é o formulado por Mezger, que, com base no
pensamento de Aristóteles, desenvolveu um conceito de culpabilidade em que o juízo recai sobre o
modo pelo qual o sujeito adquiriu componentes culposos no próprio caráter. Sobre o tema, comenta
Costa Antunes: "A desvalorização da conduta do agente já não se exercitaria em razão do fato
produzido, mas se transformaria em culpabilidade pela condução da vida. O que viria a ser uma
espécie de culpabilidade pelo caráter da pessoa, conforme Mezger; a reprovação seria motivada por
ter o indivíduo se descuidado da sua direção vital. Enfim, culpabilidade por condução ou decisão
defeituosas de vida".33

Esse conjunto de penalistas, embora reduzido, teve significativa importância pela projeção e
influência de seus membros e seguidores, que defendiam não uma culpabilidade do fato, mas uma
culpabilidade do autor. Como pondera Toledo, as correntes em questão, malgrado as distinções
internas no que se refere a seu conteúdo, partem da premissa de que em certos casos a
compreensão do injusto fica comprometida pela conduta de vida ou pelo modo de ser do agente. E
como defendem o ponto de vista de que o "poder atuar de outro modo" é indemonstrável, a única
maneira de preservar a culpabilidade seria deslocando o juízo de censura do fato para o modo de ser
e viver do agente: seu caráter, sua personalidade, por sua condução de vida.34

Sobre o tema destacam-se as doutrinas de Schopenhauer e Engish, não por acaso críticos do
conceito de liberdade como " poder atuar de outro modo" e que adotam um viés visivelmente
determinista. Para Schopenhauer, o sujeito atua ou deixa de atuar porque ele é assim, tal como seu
caráter, de modo que o sujeito deve ser responsável pelo seu caráter. Engish, por sua vez, sustenta
que o caráter do sujeito faz com que ele tenha responsabilidade de suportar a pena. Roxin critica
posicionamentos desta natureza, pois seria paradoxal que se atribuísse culpabilidade a alguém por
algo inato, sobre o qual nada se pôde fazer.35

Cirino, sintetizando as críticas de Roxin, pondera que teses dessa natureza, ainda que tenham a
louvável pretensão de excluir bases metafísicas do juízo de culpabilidade, pecam por três razões: 1)
culpabilidade pelo caráter é culpabilidade sem culpa; 2) a tese representa uma responsabilidade
social, supondo um Direito Penal em que a culpabilidade é substituída pela prevenção; 3) a
culpabilidade pelo caráter anula o significado político e limitador do princípio da culpabilidade.36

Teses dessa natureza são incompatíveis com uma concepção de dignidade da pessoa humana, pois
tornam o homem responsável pelo que é, e não pelo que ele faz. Não se podem aceitar teses que
responsabilizam o homem por atributos que escapam a qualquer possibilidade de escolha ou
evitação, o que corresponde, em última análise, a responsabilidade objetiva. Responder pelo caráter
permite a estigmatização de pessoas por determinadas condições pessoais, revelando preconceitos
e discriminações contra os mais vulneráveis, o que termina fazendo a culpabilidade mais moralizante
do que a ideia de reprovação. Além disso, se a culpabilidade é composta por um conjunto de
decisões sobre caráter ou modo de vida, na verdade, acaba ela recaindo sobre uma série de
decisões (pouco importa se livres ou não) sobre fatos que, em si mesmos, não podem sequer ser
ilícitos, o que é impensável num contexto de direitos fundamentais que inspiram uma culpabilidade
jurídica e secularizada.

A culpabilidade pelo caráter possibilita, dessa maneira, a violação de um postulado fundamental da


dignidade humana, que é a proibição de instrumentalização do homem, reconhecido como pessoa
através de direitos fundamentais. Dessa maneira, assentou-se o entendimento de que não se pode
extrair a culpabilidade a partir de defeitos de caráter que se manifestem na sua personalidade ou na
sua condução da vida geral.

Na verdade, a recorrência à culpabilidade do autor pode ser vista desde a Escola de Kiel, verdadeiro
núcleo do Direito Penal nazista, cujo principal representante foi Dahm, para quem a questão do
Direito Penal e da culpabilidade não se manifesta apenas sobre as ações, mas também sobre o
modo de ser. Sobre o referido autor, pondera Greco:37 "Para Dahm, os tipos não proíbem só ações,
mas modos de ser. 'O tipo de autor representa aqui "uma ideia de personalidade", uma "imagem de
homem", a representação viva que faz o povo do assassino, do ladrão, do receptador, do proxeneta'.
Deve-se punir por furto não aquele que subtrai coisa alheia móvel com fim de assenhorar-se, mas
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

aquele que for, em sua essência, um ladrão. A essência do ladrão corresponderia à imagem que
dele existe no são sentimento do povo".

A referência ao Direito Penal da Escola de Kiel não é acidental: a culpabilidade pelo caráter, pela
condução de vida, pela inimizade ao direito ou qualquer outra expressão equivalente transforma o
homem num objeto, num animal que deve ser punido pelos seus impulsos, em nome de um
utilitarismo que não respeita os princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito. Por
conseguinte, faz-se necessário considerar as concepções contemporâneas sobre culpabilidade na
doutrina alemã, sempre tendo como perspectiva o respeito à dignidade humana.
6. As concepções de culpabilidade no pós-finalismo

Uma significativa parcela da doutrina pós-finalista tem recorrido, para aferir o juízo de censura da
culpabilidade, ao paradigma do "homem médio", em que a capacidade individual do sujeito é
substituída pela capacidade de um sujeito ideal, criado a partir de supostas características ordinárias
de um cidadão comum. Essa corrente parte da concepção de culpabilidade desenvolvida por Gallas,
que entende que a culpabilidade é uma reprovabilidade do ato em relação ao ânimo, isto é, uma
atuação interna desaprovada juridicamente,38 conceito que é acompanhado por Jescheck, Weigend
e Wessels.

Os defensores do paradigma do homem médio, notadamente Jescheck e Wessels, defendem a


liberdade de atuação do homem, pelo menos do ponto de vista jurídico, compatível com um Estado
Democrático de Direito que fez a opção pela existência da liberdade, que é, contudo, distinta do
conceito iluminista de liberdade. A responsabilidade de um homem adulto e psiquicamente são é um
pressuposto imprescindível de toda ordem social baseada na liberdade. Mas como a liberdade
individual é indemonstrável, a reprovação da culpabilidade contra o indivíduo é formulada a partir de
um juízo abstrato-hipotético de comparação. O autor será culpável, por essa tese, quando, na
situação em que se encontrava, o autor poderia atuar de outra forma no sentido de que, segundo
nossa experiência em casos similares, qualquer outro em seu lugar teria se comportado de modo
diverso em face da pressão da força da vontade que possivelmente falhou ao autor.39

Com base nesses posicionamentos, a visão de Jescheck sobre culpabilidade termina reduzindo
bastante as possibilidades de exculpação, que ficariam cingidas às hipóteses excepcionais previstas
em lei, em que a culpabilidade é um conceito jurídico, e não moral.

Há de se reconhecer, no pensamento dos autores acima referidos, o mérito de construir uma


concepção de ordem jurídica fundada na ideia de liberdade, vista como verdadeira opção do Estado
Democrático de Direito. Contudo, a doutrina centrada na culpabilidade como atuação de ânimo
juridicamente desaprovada, verificável de acordo com o paradigma do homem médio, não resiste às
críticas formuladas, pois o juízo de censura é baseado em capacidades que poderiam estar
presentes em outras pessoas, mas que justamente estão ausentes no autor. Reafirma-se, com a
referida tese, uma presunção generalizante, em que se atribui ao cidadão ideal qualidades que
supostamente faltariam ao sujeito concreto.

A tese que escolhe como barema o homem médio faz uma opção preconceituosa e discriminatória,
pois universaliza e homogeneíza valores e comportamentos. Essa abertura conduz ao arbítrio, ao
preconceito, à intolerância. No aspecto, é evidente que haverá significativas distinções entre o
homem médio e o sujeito concreto, pois nenhuma pessoa individual possui integralmente as
características desse homem ideal. Essa generalização, evidentemente, não tolera a diferença, as
particularidades, o multiculturalismo.

A concepção do homem médio afasta-se da própria ideia de culpabilidade, como maneira de


individualizar e pessoalizar os critérios de imputação. Cria-se uma culpabilidade por analogia, por
comparação, a partir de uma construção intelectual, abstrata, impessoal.

A culpabilidade como atitude jurídica desaprovada é um conceito formal e vazio, tendo em vista que
não explica nem indica nenhum critério em virtude do qual se desaprove a atitude interna do sujeito,
não respondendo ao "porquê" da imputação.

6.1 A culpabilidade para Hassemer. Culpabilidade como limite da pena e a proporcionalidade

Winfried Hassemer aproxima a culpabilidade da política criminal, partindo da ideia de que há uma
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

crise em todo o sistema penal, cujos princípios fundamentais vêm sofrendo um processo de erosão,
dentre eles o da culpabilidade, que tem desempenhado historicamente a tarefa de estabelecer limites
à potestade punitiva do Estado, mas que atualmente a introdução de conceitos preventivos no
conceito de culpabilidade pode afrouxar tais limites.

O referido autor destaca a importância do princípio da culpabilidade, para reafirmar a


responsabilidade penal pessoal e subjetiva, impedir a responsabilidade pelo resultado e permitir a
graduação da pena e estabelecer critérios para que se estabeleça uma sanção equitativa e justa,
numa relação que aproxima a culpabilidade do princípio da proporcionalidade, que termina
substituindo a reprovabilidade, pois considera que a culpabilidade como reprovação nada tem de
limitador, e que os limites da pena podem ser deduzidos de maneira mais eficaz a partir dos critérios
de proporcionalidade.40

Hassemer assevera que não se pode exigir do juiz o impossível (demonstrar a liberdade de ação),
mas sim descrever situações negativas que podem fundamentar uma exculpação, de modo que o
juiz poderá buscar a ausência de liberdade e de culpabilidade, como conceito negativo, a partir de
limites acumulados historicamente ao exercício do jus puniendi estatal, o que justifica sua posição de
que a culpabilidade não é fundamento da pena, mas seu limite, fundado na ideia de
proporcionalidade.

A substituição da culpabilidade por critérios de proporcionalidade reafirma a culpabilidade como


limite da pena, mas possui um déficit no que tange ao fundamento da pena, pois a proporcionalidade
não afirma nada quanto ao conteúdo, abrindo possibilidade de um conceito de culpabilidade sem que
haja um substrato positivo que a fundamente.

6.2 Culpabilidade e prevenção em Claus Roxin

Claus Roxin adota uma concepção de culpabilidade estreitamente relacionada com a ideia de
prevenção, em que culpabilidade e prevenção são elementos que se limitam mutuamente, e se
encontram reunidas numa categoria denominada "responsabilidade".41 A culpabilidade deixa de ser
elemento autônomo para constituir-se numa parte de um conceito maior: a responsabilidade, que
representa um juízo de valoração que pode fazer um sujeito ser considerado penalmente
responsável.

A necessidade preventiva representa uma garantia adicional que supre as deficiências que a
culpabilidade tem para fundamentar a imposição da pena. O reconhecimento de que culpabilidade e
prevenção ocupam o mesmo nível na condição de pressupostos da responsabilidade penal produz,
para Roxin, uma série de vantagens: uma delas seria a evidente conexão do conceito de
responsabilidade com a teoria dos fins da pena. O juiz, dessa maneira, poderia excluir a
responsabilidade penal quando a pena não fosse mais preventivamente necessária. A culpabilidade
como limite da prevenção tem estreita relação com uma ideia de preservação da dignidade humana,
como expressamente afirma Roxin: " Há uma diferença fundamental entre utilizar a ideia de culpa
para colocar o particular à mercê do Estado e empregá-la para o preservar do abuso do referido
poder". E prossegue dizendo que a culpabilidade, em verdade, constitui um mecanismo para manter
dentro de limites toleráveis os interesses da coletividade em razão da liberdade individual, " porque a
dignidade do homem proclamada na Lei Fundamental é um direito de proteção frente ao Estado e
não pode ser transformada numa faculdade de ingerência".42

O conceito material de culpabilidade em Roxin é a realização do injusto apesar da idoneidade para


ser destinatário de normas e da capacidade de autodeterminação do sujeito a partir dessa
idoneidade, em que o poder atuar de outro modo é substituído por um conceito empírico-normativo,
denominado dirigibilidade normativa. Em outras palavras, o sujeito é culpável quando, no momento
da prática do fato, estava disponível para atender ao chamado normativo em face de seu estado
mental e anímico, sendo irrelevante se essa vontade se orienta por uma postura determinista ou
indeterminista. O que é relevante é a possibilidade de decidir por uma conduta orientada de acordo
com a norma.

A concepção de Roxin utiliza as finalidades preventivas da pena a serviço dos direitos fundamentais
e da dignidade da pessoa humana. No entanto, sua concepção não ficou imune a críticas, pois a
liberdade para Roxin é tida como ficcional, além de que as necessidades preventivas não conduzem
necessariamente à solução menos gravosa para o sujeito.
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

6.3 A substituição da culpabilidade pela prevenção em Jakobs

Pelo funcionalismo sistêmico de Günther Jakobs, a missão do Direito Penal tem íntima relação com a
estabilização dos conflitos sociais através do resgate na confiança normativa, violada pela prática da
infração penal. A pena tem uma incumbência decisiva - embora não exclusiva - na estabilização
desses conflitos.

Para Jakobs, culpabilidade pode ser conceituada como responsabilidade por um déficit de motivação
jurídica dominante, em um comportamento antijurídico. Em síntese, a culpabilidade corresponde a
uma infidelidade ao direito, que é um conceito determinado normativamente. O juízo de culpabilidade
permite selecionar, dentre as condições de fato que defraudaram a expectativa normativa, apenas
uma, a motivação defeituosa do autor, para que haja a imputação do fato ao sujeito.43 A exigência
do funcionalismo sistêmico de restabelecer a confiança no Direito mediante a contraposição
simbólica da pena é mais do que fundamento da culpabilidade, mas é o verdadeiro critério de
comprovação dos ingredientes subjetivos do delito, de determinar o grau de culpabilidade e a medida
da pena. Com isso, a culpabilidade perde a função de critério ontológico e de limite de adstrição de
responsabilidade penal.

Jakobs sustenta que a motivação do autor em desconformidade ao direito é o motivo do conflito. E


pune-se o sujeito para manter a confiança geral na norma, de modo que a culpabilidade, com base
nos fins preventivos que apresenta, não se volta para o futuro, mas sim para o presente, na medida
em que o Direito Penal contribui para estabilizar o ordenamento.44 O déficit de motivação é
determinado, pois, a partir das finalidades da pena adotadas pelo Estado, o que revela um
deslocamento do conteúdo da culpabilidade do indivíduo para a norma, ou melhor, para a sociedade
e suas expectativas normativas.

A culpabilidade, segundo o funcionalismo sistêmico, tem caráter formal, pois é centrada na


imputação, mas não determina como se constitui o sujeito a quem se imputa, pois o conteúdo da
culpabilidade está no fim de estabilização da ordem social através do reforço à fidelidade ao direito e
à confiança na norma. Assim se constrói o tipo positivo e o tipo negativo de culpabilidade.

A ideia de culpabilidade do funcionalismo sistêmico está vinculada à finalidade preventiva, de modo


que a imputação da pena ao autor é feita porque houve um defeito na motivação jurídica de um
sujeito, que se comportou de maneira contrária ao direito, sendo ele responsável por essa falta, na
medida em que tinha capacidade para respeitar o fundamento das normas. Essa capacidade de
motivação não é medida por suas aptidões individuais, mas sim pela conformação entre as
finalidades da pena e a constituição social, e se funda numa ideia de igualdade.45

A tese de Jakobs permite que um homem seja utilizado como mecanismo estabilizador da ordem
normativa, deslocando o centro da ordem jurídica, que não mais é o ser humano, mas sim a
prevalência do sistema. Nessa linha, o ser humano pode ser validamente massacrado, hostilizado,
vulnerado, atingido nos seus direitos fundamentais, desde que essa violência sirva para cumprir as
expectativas normativas. É uma tese que privilegia o interesse público em detrimento dos direitos
individuais, mas que tem o equívoco de não centrar a imputação no ser humano, mas no sistema.
Afirma-se, contudo, que as relações entre culpabilidade e a ideia de igualdade constituem a
contribuição do funcionalismo sistêmico que mais relevância possui para a consideração da
culpabilidade como adequada aos direitos fundamentais que concretizam a ideia de dignidade
humana.

6.4 A culpabilidade e a ação comunicativa de Habermas

Há um moderno conceito de culpabilidade, na doutrina germânica, que segue, em linhas gerais, o


pensamento Jürgen Habermas sobre legiti- midade, democracia e racionalidade do discurso. Para
Habermas, a legitimidade das normas jurídicas está condicionada à potencial participação de todos
os sujeitos atingidos pela norma, num processo democrático de normatização discursiva. A
comunicação racional, através da linguagem, serve como garantia do princípio democrático, em que
as normas jurídicas são editadas a partir da liberdade comunicativa entre cidadãos que pretendem
se entender racionalmente, na busca de uma posição racional que justifique e satisfaça o resultado
no debate político.46

Habermas sustenta que o cidadão é autor racional das normas a partir do processo racional,
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

discursivo e democrático das normas jurídicas, em que cada indivíduo deve ter a possibilidade igual
de expressar as suas opiniões em um processo de debate e argumentação. Dessa maneira, o
destinatário da norma deve ser, também, autor dela, de maneira efetiva ou potencial.

6.4. 1 Klaus Günther e a pessoa deliberativa

Klaus Günther sustenta a ideia de culpabilidade em que o indivíduo é tido como "pessoa
deliberativa", em que os cidadãos, numa democracia, não são apenas destinatários, mas também
autores das normas jurídicas. A pessoa possui essa dupla condição em face de sua capacidade
crítica de tomar posições motivadas, sendo capaz de seguir os respectivos motivos e com base
neles executar ações. A pessoa deliberativa deve ter capacidade de participar de argumentações
discursivas, tomar posições motivadas e participar do processo crítico-argumentativo de formação
das normas jurídicas.47

O conceito de pessoa deliberativa considera o ser humano como sendo fonte própria de suas ações
e manifestações, tanto no sentido causal como num sentido autocrítico, tendo a capacidade de
adotar uma posição frente a ações e expressões próprias ou de outra pessoa.48

O dever de obediência à norma jurídica, para Günther, está na possibilidade de participação


democrática nos processos argumentativos que legitimam a formação da norma jurídica. Esse dever
não depende da utilização efetiva dessa capacidade crítica, nem tampouco do convencimento
interno dos motivos vencedores na argumentação jurídica. O dever existe porque cada pessoa teve
igual direito de exercer publicamente sua capacidade crítica no processo democrático.

A pessoa deliberativa desempenha uma dupla função: cidadão e pessoa capaz de direito. O cidadão,
como autor da norma, tem o direito de rejeitá-la, tomando publicamente uma atitude crítica em
relação à norma. A pessoa capaz de direito, por sua vez, como destinatária da norma, não tem o
direito de rejeitá-la. Por isso, em caso de inobservância da norma, pode o Direito cominar sanções
àqueles que estejam obrigados a evitar o injusto, ainda que não concordem com a norma. Logo, uma
eventual lesão normativa somente poderá ser imputada ao sujeito quando esta pessoa tiver
capacidade crítica em relação às suas ações e manifestações próprias e alheias, bem como a
oportunidade jurídica e institucional de participar de modo eficaz no processo democrático de
alteração normativa. Essa capacidade é o critério geral para a capacidade de imputação da pessoa
capaz de direito. A culpabilidade, neste sentido, resulta desta relação de tensão entre a capacidade
de atitude crítica do cidadão e da pessoa capaz de direito.

A concepção de Günther trata a culpabilidade como concepção jurídica, que depende dos processos
institucionalizados juridicamente, através do princípio democrático em que se assegure o direito de a
pessoa deliberativa, no seu papel de cidadão, revelar sua rejeição à norma, através do procedimento
argumentativo. A culpabilidade, pois, é compatível apenas com o Estado Democrático de Direito,
relacionando, inclusive, os conceitos de culpabilidade como censura moral ou como dotada de
critérios preventivos como características de regimes autoritários.

6.4. 2 A infidelidade ao direito em Kindhäuser

Ürs Kindhäuser busca um conceito material de culpabilidade numa sociedade pluralista e


democrática, cuja busca encontra limites normativos no mandado de neutralidade, em que não se
devem indagar as razões e os motivos pelos quais se cumprem as normas jurídicas, pois o Direito
não pode obrigar o sujeito a adotar uma motivação, pois este é o âmbito de uma norma moral.49

A partir desses postulados, Kindhäuser questiona como poderia uma culpabilidade material ser
legítima, se o Direito não oferece razões que podem motivar racionalmente a todos e a cada um a
cumprir a norma penal. As razões da legitimidade da norma, então, são obtidas a partir de sua
legalidade.50

A legitimidade se relaciona com legalidade, pois numa sociedade secularizada e laica não existe
nenhum conteúdo apriorístico das normas jurídicas, sendo que a legitimidade somente poderá ser
deduzida da autonomia dos participantes no processo de integração social, e pressupõe ao mesmo
tempo que o indivíduo não pode ser utilizado como instrumento para a execução de propósitos
heterônomos.

Para Kindhäuser, a culpabilidade material resulta da violação do acordo que fundamenta a norma
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

jurídica, e, com isso, a autonomia comunicativa do participante. Não é a racionalidade, mas a


lealdade comunicativa (fidelidade ao Direito) frente à autonomia de outra pessoa que vincula o autor
com a norma. Logo, a culpabilidade, num Estado Democrático de Direito, é um comportamento que
expressa a carência de fidelidade à lei, que, por sua vez, significa um déficit de lealdade
comunicativa. Afirma que este conceito evita que a personalidade humana seja alvo de uma
vingança, como também afasta a possibilidade de instrumentalização através da prevenção. Isso
porque a censura penal da culpabilidade não se restitui, nem do ponto de vista fático nem tampouco
simbólico, à violação da norma, mas sim a censura da culpabilidade serve para dar uma resposta ao
sentimento geral de frustração que essa fratura produz na sociedade.

Assim, dessa maneira, é definida a culpabilidade material: "A censura da culpabilidade material
contém a censura pela carência de lealdade em face da autonomia comunicativa do participante na
interação. Esta censura de culpabilidade se refere ao autor de forma não objetivante em terceira
pessoa, mas não, por assim dizer, como fator perturbador da integração social, senão certamente
como participante no acordo normativo. A autonomia comunicativa do autor lhe é garantida; e se lhe
solicita aceitar o prejuízo da pena como uma reação simbólica à decepção produzida pela
deslealdade de sua ação e, ademais, o apreciar sua ação desde a perspectiva de outra pessoa".51

As teses defendidas por Günther e Kindhäuser relacionam culpabilidade com legitimidade das
normas. No entanto, a concepção de Günther é capaz de incitar à desobediência civil, pois a
igualdade de condições de participação crítica só existe em situações ideais, enquanto a tese de
Kindhäuser desvincula o dever de obediência ao Direito de qualquer conteúdo, senão o da
obediência em si mesma em face da legitimidade do processo de formação das normas.

Em praticamente todos os Estados existe um déficit de participação democrática, havendo pessoas


mais vulneráveis que possuem menor possibilidade de participar do processo político, e, por essa
razão, podem ser vítimas de uma perseguição institucional, mesmo numa sociedade formalmente
democrática. Além disso, pessoas com déficit de possibilidade de participação no jogo comunicativo
jamais poderiam ser consideradas culpáveis.

O conceito de culpabilidade formulado por Günther e Kindhäuser, contudo, possui um aspecto


garantidor, legitimando a imputação apenas a partir da capacidade individual de autocrítica racional e
à possibilidade de participação efetiva nas regras do jogo democrático, mas carece de um substrato
material que alicerce o dever de obediência, o que permite a estigmatização das pessoas que não
têm condições de argumentar criticamente no jogo político.
7. Conclusão

A culpabilidade formal está no juízo de imputação de um fato ilícito a um autor determinado. Esse
juízo tem-se firmado historicamente como "reprovabilidade", ou "censurabilidade", embora tal
atribuição não seja universalmente aceita como integrante da culpabilidade formal, notadamente pelo
viés moralizante e ambíguo que encerram as expressões "reprovação" ou "censura". Os maiores
problemas, no entanto, estão no fundamento da imputação, que reside na culpabilidade material.

O conceito material de culpabilidade representa um esforço para fundamentar a possibilidade da


imputação da pena a um indivíduo. Se a culpabilidade permite vincular um comportamento criminoso
a um sujeito concreto, de tal modo que se lhe deve impor uma pena em virtude desse
comportamento, é indispensável investigar qual o alicerce da imputação. Isso significa dizer por
quais razões um sujeito será punido em virtude de seu comportamento criminoso, e por que razões
alguém deverá estar isento de responsabilidade criminal, a despeito de seu comportamento típico e
ilícito.

Todas essas questões passam pela discussão sobre a culpabilidade material, que se inicia com os
princípios de imputação individual e subjetiva, chegando até a busca das demais condições que
permitem responsabilizar alguém pela prática de um fato ilícito, e que podem ser, dependendo da
corrente de pensamento adotada, a liberdade de escolha, o "poder atuar de outro modo", a
capacidade de se motivar ou de se dirigir pelas normas, de ser responsável em face das exigências
do Estado ou da condição de coautor das normas jurídicas. O certo é que a noção de culpabilidade
vai se referir a uma determinada concepção de ser humano e vai refletir no próprio âmbito da
condição de pessoa.
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A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

Quando se define o fundamento material da culpabilidade, está-se fazendo, na verdade, um recorte


na definição jurídica de pessoa: trata-se o culpável como alguém dotado de características e
capacidades hábeis a torná-lo responsável, em face dos demais membros da comunidade em que
vive, pelas infrações penais que lhe forem atribuídas. O conceito de pessoa culpável delimita uma
concepção de ser humano como indivíduo responsável. Segue-se, em certa medida, uma tradição
histórica de se atribuir ao ser humano características morais, intelectuais, espirituais que o tornam
distinto dos demais seres vivos. Kant acreditava na autonomia e na racionalidade do ser humano; o
ser humano racional era livre para decidir, de tal maneira que sua conduta fosse transformada em lei
universal.

Atualmente, crê-se que o ser humano culpável é portador de algumas características que o fazem
especial e diferenciado. A doutrina sobre culpabilidade tem invocado diversos predicados para
considerar a pessoa como especial e culpável. Alguns dos postulados mais relevantes entendem que
o homem pode ser: 1) um ser motivável (aí incluídas todas as variações da motivabilidade); 2) um ser
dirigível normativamente; 3) alguém dotado de livre-arbítrio; 4) um cidadão com capacidade
discursiva e liberdade de ação comunicativa; 5) um ser socialmente responsável.

1. FERNÁNDEZ, Gonzalo D. Culpabilidad y teoría del delito. Buenos Aires: B. de F., 1995. vol. 1, p.
139.

2. DÍAZ PITA, Maria Del Mar. Actio libera in causa, culpabilidad y estado de derecho. Valencia: Tirant
lo Blanch, 2002. p. 73.

3. ACHENBACH, Hans. Historische und dogmatische Grundlagen der strafrechtssystematischen


Schuldlehre. Berlin: Schweitzer, 1974. p. 19-21.

4. E que guarda relações com o conceito de imputação subjetiva do Direito Romano. No aspecto,
MOMMSEN, Teodoro. Derecho penal romano. 2. ed. Bogotá: Temis, 1999.

5. ACHENBACH, Hans. Historische und dogmatische Grundlagen der strafrechtssystematischen


Schuldlehre. Berlin: Schweitzer, 1974.

6. CARRARA, Francesco. PROGRAMA DE DERECHO CRIMINAL - PARTE GENERAL. Bogotá:


Temis, 1996. vol. 1, p. 69-71.

7. BUSTOS RAMIREZ, Juan José; HORMAZÁBAL MALARÉE, Hernan. Lecciones de derecho penal.
Madrid: Trotta, 1999. vol. 2, p. 328.

8. STAECHELIN, Gregor. ¿Es compatible la "prohibición de infraprotección" con una concepción


liberal del derecho penal? In: ROMEO CASABONA, Carlos María (coord.). La insostenible situación
del derecho penal. Granada: Comares, 2000. p. 293.

9. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal - Parte general. 7. ed. Buenos Aires: B. de F., 2004. p. 453.

10. MELENDO PARDOS, Mariano. EL CONCEPTO MATERIAL DE CULPABILIDAD Y EL


PRINCIPIO DE INEXIGIBILIDAD: SOBRE EL NACIMIENTO Y EVOLUCIÓN DE LAS
CONCEPCIONES NORMATIVAS. Granada: Comares, 2002. p. 6-28.

11. MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: o fundamento


da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador:
JusPodivm, 2009.

12. ACHENBACH, Hans. Historische und dogmatische Grundlagen der strafrechtssystematischen


Schuldlehre. Berlin: Schweitzer, 1974.

13. FRANK, Reinhard. SOBRE LA ESTRUCTURA DEL CONCEPTO DE CULPABILIDAD. Buenos


Aires: B. de F., 2004. p. 30.

14. Idem, p. 39.

15. MELLO, Sebástian Borges de Albuquerque. O conceito material de culpabilidade: o fundamento


da imposição da pena a um indivíduo concreto em face da dignidade da pessoa humana. Salvador:
Página 14
A evolução do conceito de culpabilidade e a moderna
doutrina alemã

JusPodivm, 2009. p. 137.

16. GOLDSCHMIDT, James. LA CONCEPCIÓN NORMATIVA DE LA CULPABILIDAD. Trad. Ricardo


C. Nuñez. 2. ed. Buenos Aires: B. de F., 2002. p. 90.

17. Fato curioso é que, como visto, Beling não aceita a inexigibilidade na sua teoria da culpabilidade.

18. FREUDENTHAL, Berthold. CULPABILIDAD Y REPROCHE EN EL DERECHO PENAL. Buenos


Aires: B. de F., 2003. p. 71.

19. MELENDO PARDOS, Mariano. El concepto material de culpabilidad y el principio de inexigibilidad


...cit., p. 131-132.

20. MIR PUIG, Santiago. Derecho penal - Parte general. 7. ed. Buenos Aires: B. de F., 2004. p. 526.
CEREZO MIR, José. Curso de derecho penal español - Parte general. Madrid: Tecnos, 2005. vol. 3 -
Teoría jurídica do delito/2, p. 594.

21. FREUDENTHAL, Berthold. Culpabilidad y reproche en el derecho penal... cit., p. 83.

22. PÉREZ MANZANO, Mercedes. Culpabilidad y prevención: las teorías de la prevención general
positiva en la fundamentación de la imputación subjetiva y de la pena. Madrid: Universidad Autónoma
de Madrid, 1990. p. 78.

23. MEZGER, Edmund. Derecho penal. TRAD. DA 6. ED. ALEMÃ (1955). Buenos Aires: Valetta,
2004. t. I, p. 129.

24. DOHNA, Alexander Graf zu. La estructura de la teoría del delito. Trad. da 4. ed. alemã Carlos
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25. MUñOZ CONDE, Francisco. Introducción al derecho penal...cit., p. 262.

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50. Nesse ponto, a influência de Habermas é expressa, como se pode ver no seu Direito e
democracia: entre facticidade e validade, quando Habermas demonstra claramente que a
legitimidade pode ser obtida a partir da legalidade.

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