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Organizador

Eduardo Bruno
DANDARA PRESENTE
Organizador
Eduardo Bruno

IMAGINÁRIOS
URBANOS
PERFORMAN[CE]
D.7=;.89+52,8.89;2?*-8F
IMAGINÁRIOS URBANOS
PERFORMAN[CE] [ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO]
© 2019 Copyright by EDUARDO BRUNO FERNANDES FREITAS
Impresso no Brasil / Printed in Brazil

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Organizador
Eduardo Bruno Fernandes Freitas

Ilustrações
Ruy Aurélio

Diagramação eletrônica
Larri Pereira e Renan Rodrigues

Correção
Kall Lyws Barroso Sales

Capa
Ilustração: Ruy Aurélio
Diagramação: Renan Rodrigues

Fotógrafos
Eduardo Bruno, Igor Dantas, Leticia Barbosa, Natalia Rocha, Rafa Eleuterio e Yuri Piccinini

Impressão e Acabamento
Expressão Gráfica e Editora
Rua João Cordeiro, 1285 - Aldeota - Fortaleza - Ceará
CEP: 60110-300 - Tel.: (085) 3464-2222
E-mail: arte@expressaografica.com.br

Ficha Catalográfica
Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães
CRB 3/801-98

Imaginários urbanos: performance entre o público e o privado / Organizado por


Eduardo Bruno. - Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019.
104 p.
ISBN: 978-85-420-1418-1
1.Performance Urbana 2. Cidades- espaços simbólicos e materiais
I. Bruno, Eduardo II. Título
CDD: 792
Nota editor-curatorial
Esta publicação, que agora chega a você, é fruto de um longo percurso de re-
sistência artística-cultural. Em 2015, Eduardo Bruno (curador), Marie Auip (pro-
dução-geral) e Ruy Aurélio (designer gráfico e ilustração) resolveram tirar do papel
um projeto que há tempos era pensado e desejado, principalmente pelos dois pri-
meiros, um Festival de Performance Urbana no Ceará. No mesmo ano, o pro-
jeto foi inscrito no Edital das Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Cea-
rá (SECULTCE) e, em sequência, contemplado com financiamento do Estado.
Neste momento, juntamente com Leandro Brasilio (jurídico), demos início aos
planejamentos executivos. Contudo, como é costumeiro nas políticas públicas, o
tempo dos gestores não é o mesmo dos artistas-produtores-realizadores e, apenas
em 2017, após mais de um ano de diálogo e cobrança, a SECULTCE paga a pri-
meira parcela do edital. Dinheiro em caixa, a produção do projeto se iniciou com
apoio de produção do Grupo EmFoco e da Sofá Amarelo e com apoio estrutural
da Escola Porto Iracema das Artes.
Convocatória, curadoria, diálogos, produções, cronogramas e, até que enfim,
a semana do evento. O “Festival de Performance Urbana do Ceará – Imaginários
Urbanos”, aconteceu na cidade de Fortaleza/CE, entre os dias 19 e 25 de março
de 2018, com a proposta de investigar o lugar do corpo no espaço urbano e as
relações entre o público e o privado por meio de práticas performativas. Em sua
primeira edição, o evento teve como foco debater as noções de público/privado,
estimulando a reflexão acerca dos espaços que compõem a cidade e como eles
podem ser ocupados, para além dos prescritos físicos-simbólicos-sociais-históricos
vigentes/hegemônicos.
Entre os performers e coletivos selecionados estavam Alysson Lemos, Silvia
Moura, Kakaw Alves, As Nega, Leandro Neto CIA de Dança, Wellington Gadelha,
Maruska Ribeiro, Lívio do Sertão, Thomas Saunders. Marcio Peixoto, Waldírio
Castro, Letícia Barbosa e Natália Coehl. Junto à programação, Patricia Bertucci
e Marcelle Louzada fizeram parte do eixo da produção textual crítica, intitulado
de “Rotas do Olhar” – sessão temática que também compõem essa publicação – e
Kaciano Gadelha, Ferdinando Martins e Ângela Soares foram convidados a com-
por a programação em um curto seminário acerca da pesquisa e da escrita sobre
Performance Urbana. Ainda como parte da programação duas residências, “Cor-
po, Gênero e Cidade” e “Corpos Radicais: Performance e espaço urbano”, foram
ministradas ao longo do evento, culminando com apresentações guiadas por
Bartira Dias e Grupo EmFoco respectivamente.
Foram dias intensos de trocas e afetos, mas, ao final de uma semana de pro-
gramação, o projeto, pensado a alguns anos, não acabava ainda. Para dar por
encerrado a primeira edição do Festival de Performance Urbana do Ceará, ainda
nos interessava registrá-lo por meio de uma publicação, o presente livro. A escolha
em desenvolver um material pós-festival é, também, e talvez principalmente, um
intento em contribuir e disputar o simbólico entorno do movimento da perfor-
mance no Brasil e no mundo.
Novamente, a relação com o poder público é lenta e enfadonha. Mais de um
ano após o festival findar, houve muita inoperância da instituição, lentidão e buro-
cracia nas relações internas da SECULTCE para que conseguíssemos dar corpo a
esta publicação após o pagamento da última parcela do edital. Com isto, após um
longo percurso, neste material bibliográfico, um escopo outro de pensamento e
reflexão entorno da performance é proposto para além de uma tentativa de apenas
relatar e documentar o Festival.
Dividido em quatro sessões – Emaranhados da cidade; Pequenos recortes de
tempo urbano; Rotas do Olhar; Narrativas performáticas – o Livro se materializa
como um caleidoscópico de pensamentos, imagens, percepções e afetos acerca das
práticas performativas no espaço urbano. O que propomos, assim, é relacionar in-
ventivamente os heterogêneos e múltiplos lugares de fala, de cada um dos colabo-
radores desta publicação, a fim de desenvolvermos teorias, pensamentos e práticas
que reflitam diferentes olhares e perspectivas sobre a cidade e arte.
Dito isto, desejo que o que está impresso aqui possa se emaranhar e pulsar junto
a você. Boa leitura.

Eduardo Bruno1

1 Artista-pesquisador. Mestre em Artes Cênicas-ECA/USP, Especialista em Semiótica-UECE e


Licenciatura em Teatro-IFCE. Tem experiência na área de Artes com ênfase nos seguintes temas:
arte contemporânea (Teatro e Visuais), performance e intervenção urbana. Possui trabalhos pu-
blicados em diversas universidades do país, entre elas UFC, UFBA, UNICAMP, USP e etc, além
de capítulos em livros com temáticas relacionadas a arte contemporânea e arte urbana.
Performartísticas, as cidades que manifestejam
Mostrar a rua como um espaço de potência de vida/arte é um elemento predo-
minante nestas performances que agora se apresentam metamorfoseadas em texto.
Permeadas de lutas, de confrontos, de sensibilidades e de resistência, as páginas
seguintes manifestam, por escrito, a voz de um fazer artístico que pulsa nos entre-
meios da cidade e que nos faz confrontar, a todo instante, com nossos preconceitos
sobre o que a arte deveria ser. Sumariamente entendidas como frutos do capital e
para o capital, as cidades, em nossos imaginários, estão relacionadas, predominan-
temente, à ideia de consumo, de trabalho, de relações de poder.
Antes de mais nada, esta obra é um convite para que nós leiamos a cidade em
suas várias formas, para que o nosso olhar seja direcionado às possibilidades desta
que nos rodeia, que nos amedronta, que nos violenta, mas que também nos bene-
ficia com potências de vida. Esta malha citadina, habitada por diferentes corpos,
por diferentes formas de pensar, por diferentes ideias de existência, é também um
campo de batalha simbólica, espacial e social.
Realmente este campo de batalha se manifesta de maneiras diversas e provoca
fissuras no espaço/tempo ao criar, na malha urbana, um colapso entre aquilo que
nos é imposto como verdade e as possibilidades criadas pelo fazer artístico, enten-
didos, também, como uma máquina de guerra.
Incontroladamente a arte flui pelas ruas, transformando-se em parte do tecido
urbano e coexistindo com os espaços e com os transeuntes, já que elas se tecem, se
fiam e se alinham nas andanças dos centros urbanos. Contudo, mesmo estas an-
danças despretensiosas não são imunesa os confrontos com as linhas hegemônicas
que se contorcem para evitar o novo, gerando emaranhados nestas cidades
Emaranhados da cidade1, portanto, introduzem uma perspectiva teórica de como se
dá o fazer artístico no caos urbano. Qual a importância de uma proposta artística que
se manifesta em um centro urbano? Quais as rupturas possíveis e quais os destinos que
são traçados pelo fazer artístico em meio ao caótico fluxo citadino? A apresentação de
uma arte dos territórios exercita o nosso pensar sobre arte e sobre criação estética, um
verdadeiro convite não apenas à reflexão sobre novas formas de insurreições artísticas,
mas também um convite a novas formas de lutar nas trincheiras da cidade.
Lutar, então, se mostra como um verbo de potência ímpar delicadamente re-
presentado no pequeno recorte de tempo urbano2 que desenha corpos em ação nas
cidades, transformando a matéria outrora inerte, em potências de luta e de estética.
Quais possibilidades uma parede, um transporte público, uma peneira podem ofe-
recer para quebrar o fluxo contínuo de uma cidade?
1 Esta seção será apresentada da página (10) até a página (39)
2 Esta seção será apresentada da página (40) até a página (63)
Logo, texto e imagem se encontram num diálogo artístico e nos direcionam aos
sutis detalhes da experiência artística em meio a vida urbana ao utilizarem materiais
corriqueiros como, por exemplo, linha e agulha. Porém, estas performances am-
pliam as significações destes materiais, metamorfoseando-os em objetos sensíveis
que guiam nosso olhar para outras rotas possíveis dentro do campo urbano.
Essas rotas do olhar3 são apresentadas pelos artistas que conduzem o nosso olhar
para suas impressões sobre a performance, mas, ao mesmo tempo, que criam, junto
a elas, outras possibilidades do ver e sentir a performance urbana.
Ver na companhia do outro transforma-se em exercício estético e político, já
que as acepções da realidade nos fazem perceber a ação artística e a reação dos
transeuntes. Ler os comentários de pessoas que dividem o espaço conosco nos faz
perceber como, muitas vezes, eles manifestam violência e poder de subjugação.
Mesmo assim, estes comentários são confrontados pelo fazer artístico que propõe
novas narrativas para o ser-estar nas ruas.
Incrivelmente, estas narrativas performáticas4, transfiguradas em texto pelos
próprios artistas trazem o relato vivo, a experiência e a sensibilidade de quem pro-
põe novas possibilidades de relação com a cidade.
Vistas de longe, estas performances podem despertar a curiosidade dos transeun-
tes e provocar estranhamentos de diversas ordens. Entretanto, com a escrita dos cor-
pos que sentiram a potência da cidade e que participaram dela, a performance se faz
sempre viva, manifestando agora sua existência em texto, permitindo que leitores par-
ticipem das sensações experimentadas para que possam criar novas relações com ela.
Esta obra é, portanto, performance escrita que manifesta o direito à vida e à cida-
de, ao criar embates com narrativas hegemônicas. Ao criarem máquinas de guerra ur-
banas, estas performances, de certa forma, também festejam a cidade. Neste manifes-
tejar, elas nos convidam a participar ativamente da urbe, ampliando nosso olhar para
as infinitas possibilidade de ser e de existir, permitindo outras concepções estéticas e
outras formas de relação com o outro. Por isso, vivam as páginas que agora se apre-
sentam para vocês, leitoras e leitores. Vivacidade na leitura. Viva a cidade na leitura.

Kall Lyws Barroso Sales5

3 Esta seção será apresentada da página (64) até a página (79)


4 Esta seção será apresentada da página (80) até a página (102)
5 Professor adjunto do curso de Letras-Francês da Faculdade de Letras da Universidade Fede-
ral de Alagoas. É doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC
(2014-2018),com bolsa PDSE na Université Bordeaux-Montaigne (2017) e, no mesmo pro-
grama, Mestre em Estudos da Tradução (2014). Tem especialização em Estudos da Tradução
pela UFC. tivas literaturas (2009). Atualmente é professor adjunto do curso de Letras-Francês
da Faculdade de Letras da UFAL. (2018) e atua nas seguintes áreas de pesquisa: Ensino de FLE,
Teoria da Tradução, Tradução de textos Literários francófonos, Ensino de Língua Portuguesa e
Produção textual, Grego Clássico: literatura, teatro e tradução.
SUMÁRIO

Emaranhados da Cidade
Você pode saber disso sem nunca ter pensado nisso ................................. 11

Viver e prever políticas de espaço .............................................................. 18

Imaginários de uma Fortaleza invadida ....................................................... 29

Arte, liberdade e resistência ....................................................................... 35

Pequenos recortes de tempo urbano


Um traço visual do tempo .......................................................................... 41

Bordando na rua ........................................................................................ 42

Fôlego ....................................................................................................... 44

Pegando o sol com a peneira ..................................................................... 46

Terrorismo de gênero ................................................................................. 48

Tiro no escuro ........................................................................................... 50

Vândala, marginal e mulher – travessias batom .......................................... 52

V.N.I .......................................................................................................... 54

(Des)Ordem e Re(Pro)Gresso..................................................................... 56

A morte da bonitinha.................................................................................. 58

Pela força da linha ..................................................................................... 60

Tálamo ...................................................................................................... 62
Rotas do Olhar
Marcelle Louzada em Imaginários Urbanos................................................. 65

Pati Bertucci em Imaginários Urbanos ........................................................ 70

Narrativas performáticas
A Morte da Bonitinha ................................................................................. 81

Fôlego ....................................................................................................... 84

Impressões de um pedaço de tarde em que bordei na rua, na praia ............ 86

(Des)Ordem E Re(Pro)Gresso .................................................................... 88

Pegando o sol com a peneira ..................................................................... 90

“Tálamo”, e as veias desfeitas sob a pele do tecido. ................................... 92

Tiro no escuro – impressões ...................................................................... 94

Um traço visual do tempo ........................................................................ 100


A tomada de consciência sobre o que significa desestabilizar
a norma hegemônica é vista como inapropriada ou
agressiva porque aí se está confrontando poder.
Djamila Ribeiro
Emaranhados
da cidade
Você pode saber disso sem
nunca ter pensado nisso
Eduardo Bruno1
Se você observar, tem uma cerca em todos os lugares de mais prestígio2.
Se você observar, tem uma cerca em todos os lugares.
Se você observar, tem uma cerca!

De onde você estiver se posicionado para ler esse texto, por favor, olhe para sua
frente agora, seja através de uma janela ou até mesmo imediatamente a sua frente.
O que você vê? Como o espaço que se apresenta a sua frente é construído? Não
apenas arquitetonicamente, mas, principalmente e também, pelos corpos. Em uma
certa arquitetura dos corpos, o que você vê? Qual a cor das pessoas ao seu rerdor?
E se voltarmos mais um pouco, se pensarmos no caminho que você fez até chegar
a este lugar. Quantos casais LGBTQI+ você viu no seu percurso de hoje? E até
hoje, quantas mulheres você já conheceu em cargos de grande poder? Quantas
pessoas com deficiência estão estampando as capas dos grandes jornais e revistas do
dia? Certamente, quanto mais centrados nos locais de privilégio estivermos, menos
pensamos em tais perguntas. Contudo exercitar respondê-las, pode ser um bom
percurso para entendermos os fracionamentos urbanos que produzem a paisagem
do “comum-cotidiano”.
A cidade e seus regimes corpóreo-espaciais não são aleatoriamente construídos,
por mais internalizados e naturalizados que estejam, eles são/foram arquitetados a
partir do desejo capitalista-colonizador-eurocêntrico-burguês-branco-macho-capaci-
tista-cisgênero-heterossexual de materializar privilégios e subalternações. No espaço
urbano, preexiste uma paisagem do possível para cada região, você sabe (“mesmo
sem saber”) que corpo/sujeito irá encontrar em cada lugar. Mesmo sem nunca ter
pensado nisso, você sabe que existem: os corpos das esquinas e os corpos dos carros
de luxos (mesmo que, às vezes, os corpos das esquinas sejam chamados para entrar
nos carros de luxos quando estes passam nas esquinas). Você sabe quais são os corpos
estirados ao chão, após uma batida policial, e os corpos estirados na areia da praia,
em uma barraca “top”, em um sábado ensolarado. Você sabe quais são os corpos que

1 Artista-pesquisador. Mestre em Artes Cênicas-ECA/USP, Especialista em Semiótica-UECE e


Licenciatura em Teatro-IFCE. Tem experiência na área de Artes com ênfase nos seguintes temas:
arte contemporânea (Teatro e Visuais), performance e intervenção urbana. Possui trabalhos pu-
blicados em diversas universidades do país, entre elas UFC, UFBA, UNICAMP, USP, além de
capítulos em livros com temáticas relacionadas a arte contemporânea e arte urbana.
2 Elisa Lucinda em Diálogos Ausentes–Itaú Cultural 2017. Disponível em: https://www.youtu-
be.com/watch?v=w5UBFd0wZ94, Acesso: 02 de mar. de 2019..

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quando beijam outros corpos são comemorados e os corpos que quando beijam ou-
tros corpos são apedrejados. Você sabe quais são os corpos que quando proclamam
seus ritos são livremente aceitos e os corpos que não podem falar de sua religiosidade
(no máximo só se for no “sincretismo”).Você sabe quais são os corpos que quando
precisam de tradutores são excluídos e os corpos que quando precisam de qualquer
coisa são bem recebidos. Você sabe muito bem disso, mesmo que não precise pensar.
Você sabe onde cada um desses corpos está e o que eles devem fazer ou estar fazendo.
Eu sei. Você sabe. Ele sabe. Nós sabemos. Vós sabeis. Eles sabem.
Existe uma certa restrição dos possíveis para a cidade. Nas vias públicas não cabe
todo mundo, ou melhor, não cabe todo mundo usufruindo igualitariamente. A dis-
tribuição da violência, do privilégio e do poder não é equânime, os corpos vão sendo
distribuídos no espaço urbano através de uma “cartilha social” historicamente tramada
em “silêncio” e seletividade. Há, no projeto urbanístico (físico e simbólico) de cada
cidade (principalmente no recorte do Brasil), uma certa tentativa (impositiva) de ma-
quinar as diferenças socias através do apagamento histórico, da meritocracia capitalis-
ta, da naturalização dos “costumes” e da cotidianização da “violência-mínima”, sobre
certos corpos, para a manutenção da “ordem e do progresso”.
Contudo, se o mapa da terra devastada já está posto e as cartografias hegemô-
nicas do espaço urbano já estão estriadas, proponho, com este texto, cartogra-
far as micropolíticas que, em descompasso com a norma e a dominação subjetiva
hegemônica, diagramam erupções e hiatos na vida cotidiana. Meu recorte está
calcado nos exercícios moleculares que são produzidos pelas performances urbanas
de estrutura e temática dissidente, ou seja, que amalgamam forma e conteúdo de
modo indissociável ao discurso. Performances urbanas que fazem de sua corpopo-
lítica (GADELHA, 2018) uma forma direta de enfrentamento as subalternizações
impostas a certos corpos/grupos sociais (negros, ameríndios, femininos, deficien-
tes, LGBTQI+, etc).
A esta qualidade de performance (errática, deambulante e de dissidência cul-
tural) venho nomeando enquanto Performance Urbana Nômade3. Tenho sentido
a necessidade de nomeá-la deste modo, pois compreendo que a capacidade de
cooptação e alienação do regime capital-colonialista se infiltra em todas as ordens
3 Performance Urbana Nômade é uma proposta/instrumentalização teórico-prática de estudo e
criação de ações/performances/intervenções estético-políticas no espaço urbano. Inicialmente o
ideário de nomadismo, diluído nas obras de Deleuze e Guatarri, foi importante enquanto ponto
de partida para “rizomar” uma perspectiva acadêmica-artística acerca da performance urbana.
Contudo, ao longo dos percursos (que ainda estão acontecendo) outras linhas de fugas acadêmi-
cas (Suely Rolnik, Jessé Sousa, Didi Huberman, Achile Mbembe, Angela Davis etc....) e também
artísticas (criações minhas e performances de artistas, principalmente no Nordeste Brasileiro)
foram compondo a rede do fazer-pensar atos de resistência no espaço citadino. Com isto, o
prisma conceitual-artístico, Performance Urbana Nômade, que venho cartografando, pode ser
lido tanto como um modo de provocar movimentos e propor processos de criação para/na práxis

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do vivido e, com isto, certos seguimentos performativos já estão em ressonância
com as subalternações/subjetivações hegemônicas.
Longe de pensar que a cultura e as artes são um espaço neutro e de não reprodução
das hegemonias, recorro-me a exercitar o pensamento entorno de práticas artísticas
de desobediência estético-política-civil-social. Para isto, o recorte dos trabalhos per-
formáticos que são criados e realizados no espaço urbano (em uma espécie de relação
site specific) parecem ter uma maior potência para embaralhar e desajustar (de modo
ativo) os preestabelecidos modos para ser/estar/fazer/permanecer na cidade. Ocupar
o espaço urbano, abandonando as galerias/ “espaços de arte” e adentrando na malha
citadina como forma de criar confrontos diretos e reconfigurações poéticas-políticas-
-estéticas, mesmo que por um pequeno hiato de tempo, são os modos maquínicos de
desmonte social possíveis de serem produzidos por performances urbanas nômades.
Nesta perspectiva, na tentativa de produzir conhecimento de desobediência
social, nos interessa voltar o olhar para artistas da performance urbana que arre-
messam seus corpos em um confronto desterritorializante e/ou evidenciador das
relações dissimétricas de poder e distribuição no espaço. “Não estou falando de
uma arte que se afirma discursivamente engajada, mas de uma arte que flui dos
corpos”, uma arte que “não está apenas nas falas das línguas domadas “, ou seja,
artes “que romperam a dramaturgia do Mesmo, no que fugiu da beleza eurocêntri-
ca das Belas Artes” (GADELHA, 2018, p.45). Experiências estético-políticas que
não se importam mais se são lidas ou não como arte, se são produzidas ou não por
“artistas” e se serão ou não bem “acolhidas” pelo público e a “crítica”: ou seja: a arte
como um problema e não como solução!
Se estamos falando de um local da arte (principalmente no recorte da perfor-
mance urbana) que rompe com os repertórios de subalternação e confronta os dis-
positivos de produção de assimetria de poder, violência e privilégio, é por continua-
mos a acreditar nos possíveis, mesmo que nos digam ser impossível. Descontruir
o mundo produzido a imagem e semelhança dos que tomaram/tomam de assalto
os modos de ser/estar/permanecer na vida e no espaço urbano, não é tarefa fácil,
envolve uma zona de risco e indiscernibilidade prévia, contudo, necessária.
Nesse fluxo, alguns artistas da performance produzem suas máquinas de guerra
(DELEUZE, 2012) poético-estético-políticas como forma de estabelecer/tencio-
nar que existem possíveis para os corpos, os imaginários, os simbólicos e os sociais
para além dos télos da norma. Artistas que criam outra qualidade de arte, pois
seus corpos e modos de vida são práticas que não cabem dentro da gramática da
cis-hétero-masculina-branca-capacitista-classista sociedade e arte.

artística, quanto ferramenta/instrumento para a criação de modos outros de diálogo com a per-
formance urbana na escrita acadêmica. (FREITAS, 2018)

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Baratinar e descontruir os modos como os sujeitxs subalternizadxs são repre-
sentadxs nos discursos hegemônicos é espaço fértil para o exercício criativo da
performance urbana. Usa o corpo como questão-problema-agente na relação arte-
-vida através de performances urbanas que desestruturam as tecnologias biopolíti-
cas (FOUCAULT, 2010) e necropolíticas (MBEMBE, 2016), ainda que em curtos
intervalos de tempo, é uma forma micropolítica de desenhar no espaço a existência
do múltiplo heterogêneo das (re)existências do humano. Quando uma paisagem é
invadida por um não-possível e nela materializa-se um confronto, de ordem diversa
e variável, o que se busca não são as respostas, mas a dúvida e o incomodo como
agente emancipador. Por que isto está acontecendo aqui? Isto é possível?
Pondo em prática uma qualidade em arte que propõe (re)existências culturais
e sabotagens dissidentes tanto dos modelos estéticos – historicamente produzido
a favor de certas vidas e de certos corpos – quanto dos temas abordados, sujeitos e
grupos sociais (dissidentes) criam simbólicos que ressoam com modos de vida não
hegemonizados. Se na história da arte (imposta e eurocêntrica) o belo, o grotesco,
o harmonioso, o dissonante, o limpo, o sujo, o claro, o escuro, o certo, os errados
e outras polaridades já estão muito bem desenhadas, na performance urbana não
podemos dizer o mesmo.
Desafiar os territórios de poder é também exercitar produzir criações estéticas
que não se balizem “boas” ou “ruins” apenas com referência as réguas da história
eurocêntrica da arte. Muito mais do que perguntar se a performance/intervenção
foi/é “boa” ou “ruim” o público/coautor/participe/transeunte/etc é convocado a
exercitar a capacidade de reflexão acerca de com o que se consegue ligar/ou não
aquela imagem/ação insurrecionista que surgiu no espaço urbano. Fugir da arte
como apenas bloco de entendimento, para adentrar no exercício de confronto aos
frágeis modos de subjetivação, colocando em risco a cosmologia social (fracassada)
e a epistemologia dominante de sociabilidade, é também um modo outro de pro-
por a relação entre quem faz (o performer) e quem vê (o “público”).
Com isto, o público/coautor/participe/transeunte/etc não necessariamente pre-
cisa compreender e perceber que o que está sendo realizado, em um determinado
recorte de tempo/espaço, é uma “experiência artista”. Ao contrário, muitas
performances urbanas são apenas ações-problemas, estetizações outras e produções
de políticas outras que reivindicam fazer parte do cotidiano não apenas durante
uma “apresentação artística”, mas enquanto possível-social que se instaura nos
espaços e nos corpos por tempo indeterminado.
A performance urbana não precisa de muitos “holofotes”, ela acontece, assim
como a vida acontece. Se a performance é um exercício de arte-vida, então não é
necessário que sua realização seja percebida destacadamente do contínuo da vida,
como um “intervalo”. Ao contrário, quanto mais confusão perceptiva a ação causar,

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quanto mais parecido com a realidade – porém de modo diferente, uma diferença
que assusta, pois parece, mas não é – mais a performance conseguirá produzir fis-
suras no possível da paisagem citadina. A performance urbana rouba a atenção não
apenas por fazer algo que não é convencional e “impossível” a determinado espaço,
mas, também, e principalmente, por fazer algo como se o que se faz fosse “sim”
possível de estar sendo feito, até porque está mesmo sendo realizado.
Sim, aquela moça está pegando objetos da rua, congelando-os em casa e de-
volvendo ao espaço urbano no outro dia (Letícia Barbosa). Aquele homem está
ali sentado enchendo cem balões amarelos, sem fazer nada, apenas enchendo e
convidando pessoas a encher balões amarelos (Alysson Lemos). Aquele grupo,
todo “fantasiado de carnaval” (mesmo sem ser), está atrapalhando o funcionamen-
to “normal” do metrô, pois estão falando “palavrões” e movimentando-se de for-
ma atípica (Sergio Cavalcanti, Delfina Pontes e Thais de Melo e Leandro Neto).
Aquelas duas mulheres negras estão cantando, dançando e tocando músicas em
homenagem a Exu (e outras entidades de matriz-afro/ameríndia) em pleno meio
dia, na encruzilhada de uma rua muito movimentada (Coletivo As Nega). Aquela
moça negra, como uma roupa de noiva (porém toda formada por retalhos), anda
pelas ruas do centro da cidade, sem dizer uma palavra, apenas rasgando lentamente
a roupa e entregando os retalha, com dados de feminicídio no Ceará, até ficar com-
pletamente nua na frente da igreja (Kakaw Alves). Aquele rapaz negro, anda por
um dos bairros de maior privilégio da cidade, com sacolas de lixo preta, entra nelas
e fica parado, rasga e sai da sacola (repetidamente) (Wellington Gadelha). Aquela
moça está andando seminua (apenas lingerie), com uma máscara que cobre metade
de seu rosto (como uma assaltante), com uma bandeira vermelha e colando lambes
de vaginas e pixando com batons (Maruska Ribeiro). Aquele rapaz está sentado
e, silenciosamente, na praça central da cidade, costura com linhas vermelhas uma
bandeira do Brasil rasgada e borda a palavra MARIELLE VIVE (Lívio do Sertão).
Aqueles dois “gayzinhos” estão dançando “afeminadamente”, vestidos de branco
(parecem enfermeiras) enquanto colam cartazes com palavras de ordem e frases
do universo LGBTQI+ (Marcio Peixoto e Thomas Saunders). Aquele rapaz está
andando vestido de terno, blusa-social, gravata, calça-comprida, sapato e uma pe-
neira na mão, erguida sempre a cobrir seu rosto, em plena praia (Waldírio Castro).
Aquelas duas mulheres, vestidas com roupas de festa, estão carregando, pelos bair-
ros de privilégio da cidade, vigas de concreto até se exaurirem (Marcelle louzada
e Natália Coehl). Aquela senhora está sentada em um banco colorido, com mais
dois bancos ao seu redor, bordando árvores em frente à estátua de Iracema da praia
homônima de Fortaleza (Silvia Moura)4.

4 Todos os exemplos citados neste parágrafo foram performances urbanas realizadas como parte

15
Todas essas mulheres e todos esses homens estavam exercitando romper as cer-
cas do possível e caminhar por entre factíveis e perceptos menos estáveis. Cada um
ao seu modo, tomava de assalto o uso da cidade, tencionava os silenciamentos, as
produtividades, os apagamentos, as mortes, as segregações, os possíveis, os impos-
síveis, os simbólicos, os comportamentais e as subalternações do espaço urbano
cotidianizado.
Que a cidade é um lugar de constante disputa de espaço simbólico e material
(isso não é nenhuma novidade). Contudo, tal disputa não acontece de modo a
todos terem condições sócio-históricas semelhantes de acesso a ela. Sem impor-
to um completo pragmatismo social, mas também sem valorar as raras exceções
(embebidas por esforços extraordinários), devemos perceber que as tecnologias de
subalternação vêm se apropriando tão cruelmente da paisagem do possível, que, ao
longo da história, os modos viventes (subjetividades) são produzidos a partir delas.
Na contramão, as potências de disputa simbólica e física contidas em ações perfor-
máticas urbanas, como as acima citadas, alimenta uma maquinação de resistência ger-
minativa, contra-letárgica e afirmativa. Maquinação esta que criam modos de agencia
não apenas nas artes, mas, principalmente, por meio de relações indisciplinares de
saber onde torna-se cada vez mais complexo distinguir onde começa um campo e
termina o outro. Se é que ainda nos interessa isto.
Quando falamos de produções maquínicas de des-subjetivação hegemônica,
é pelo motivo de acreditarmos que fugir da cosmologia imposta é um exercício
diário. Nossos modus vivendi foram cafetinados (ROLNIK, 2018) pelos regimes de
poder, em um âmbito tão profundo de alienação “intrínseca e indissociavelmente
cultural, subjetiva – para não dizer ontológica” (ROLNIK, 2018, p.33) da vida,
que é necessária uma outra tecnologia, estrategicamente maquinada, para subverter
e criar práticas e germinações outras de mundo.
Se a performance urbana é uma delas, não há como confirmar em uma to-
talidade. Entretanto, tenho exercitado fazer, pesquisar, lecionar e criar materiais
simbólicos, por meio de performances urbanas, e, em sua prática, encontrar mo-
dus operandi de fabulação de (re)sistências5. Nessa perspectiva, acredito que as
performances urbanas podem [sim] ser parte de maquinações de enfrentamento
político-sócio-histórico quando dissidentes e nômades. Criações performáticas de
auto-percepção corpórea-social e auto-elaboração estético-política, em um mundo
de exclusões sistemáticas e modelos que se querem universais, são exercícios maquí-

da programação da primeira edição do Festival de Performance Urbana do Ceará: Imaginários


Urbanos, no ano de 2019 na cidade de Fortaleza.
5 Ressalte: A escrita desse texto é também um convite-convocação-manifesto ao compartilha-
mento intelectual-artísticos com outros deambulantes da performance urbana em persistência
ética dissidente com o mundo posto.

16
nicos de resistências que se iniciam como emancipação individual do performer,
mas intentam bem mais que isto.
Deste modo, em um estado de incômodo constante e em ressonância com
Rolnik, provoco e questiono: “Como liberar a vida de sua cafetinagem?” (2018,
p.39). Certamente não acredito que a resposta é algo tão simples e prêt-à-porter,
como muito pensou uma antiga forma de esquerda. Contudo, a trama que é tecida
no emaranhado coletivo de invenções que estão sendo ativadas pela urgência de
(re)existência combativa ao embrutecimento, cada vez mais perverso, das atuali-
zações dos regimes de poder vigente, perpassam pela constante desfamiliarização,
desmecanização e desprodução da/com a paisagem do possível. É necessário “mos-
trar como certas identidades têm sido historicamente silenciadas e desautorizadas no
sentido epistêmico, ao passado que outras são fortalecidas (RIBEIRO,2017, p.29).
Há uma guerra civil entre formas-de-vida que não obedecem aos padrões e
a violência institucional-simbólica e/ou institucional-física e/ou institucional-
-jurídica, sob o manto risível da democracia. Você sabe disto, sem nunca ter
pensando nisso!

Referencial:
DELEUZE, Gilles e Felix Guattari. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. vol. 5. São
Paulo: Editora 2012 ,34.
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 2010.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Revista Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, n.32, p. 122-
151, 2016.
FREITAS, Eduardo Bruno. Performance Urbana Nômade: Cartografias interventivas
no espaço-tempo de Fortaleza/CE. São Paulo: Dissertação (Mestrado) – Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas – Escola de Comunicações e Artes/ Universidade de São
Paulo. 2018. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27156/tde-
27122018-102608/en.php . Acesso: 10 mar. 2019
GADELHA, Kaciano. Corpopolítica: errâncias poéticas decolonizando roteiros. In Pal-
co Giratório: circuito nacional / Sesc. Departamento. Rio de Janeiro: Sesc Departamento
Nacional, 2018.
ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição: Notas Para uma vida não cafetinada. São Paulo:
Editora N-1, 2018.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Editora Letramento, 2017.

17
Viver e prever políticas de espaço
Maria Cecília França Lourenço1
[...] um estudo “retrô” do espaço social em sua história e sua gênese, a partir do presente
remontando a essa gênese–depois retorno ao atual, o que permite entrever, se não prever, o
possível e o futuro. Esse procedimento dá lugar a estudos locais, em diversas escalas, inserin-
do-os na análise geral, na teoria global. Henri Lefebvre. “Prefácio” (2000)

Resumo: o ensaio pretende analisar referências teóricas para se valorizar algo sin-
gular, a saber, a ação de jovens no espaço urbano, entendendo que a democracia se
consolida quando coexistem diferenças e demarcações entre territórios. Convive-se
em época paradoxal, constatando-se por um lado reaparecimento de movimentos
voltados à ocupação de ruas em troca cidadã; por outro, diálogo apenas com pares a
reiterar atitudes isoladas, extremadas, polarizadas e a redundar em exílio compulsi-
vo em telinhas azuladas, isto, note-se, em esfera global. As posturas valem também
no país, em grande parte por inconformismo, em face de crescente violência urba-
na, precários ensino, emprego, habitação e saúde e em variadas áreas. Reuniram-se
pensadores que debatem e formulam conceitos para pensar sobre–Qual a essência
desse contraste?

Introdução
Personagens atuantes nos anos de 1960, que vivenciaram a resistência contra a
pseudo democracia assistem com satisfação a volta de jovens às ruas, com elemen-
tos singulares, entre os quais cito: ironia, cenarização com recursos contemporâ-
neos e uma consciência de que podem e devem participar do espaço social com
questões e críticas, abandonar a inércia, agir em praças, por horas ou dias, a afron-
tar privilégios nelas impressos. Nas praças residem símbolos consagrados de poder
e em escala monumental. Constituem-se por edificações destinadas a inúmeras
finalidades, entre tantas, culto religioso, sede política ou militar e mesmo institui-
ções de produção e mera reprodução de saber, a garantir regalias para seguidores e
exílio para dissidências.

1 Professora e museóloga, graduou-se em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Pen-
teado (1969), defendeu mestrado na ECA-USP (1981) sobre José Ferraz de Almeida Jr.. Tem
doutorado sobre a contribuição de distintos segmentos étnicos na disseminação da arte moderna
na FAU-USP (1990). A tese de Livre Docência (1999) versou sobre museus brasileiros e a recep-
ção da arte moderna e o tema da titularidade voltou-se à musealização da arte oitocentista, no
país (2002). Dirigiu a Pinacoteca do Estado/SP e, na USP, o hoje nomeado Centro de Preserva-
ção Cultural/CPC, as Ruínas Engenho dos Erasmos, Laboratório de Modelos tridimensionais e
o Departamento de Historia/ FAU.

18
Se antes a rebelião tinha foco mais direto ao se aviltar direito básico, hoje, pro-
testa-se, também, contra o domínio de negócios na política, na religião, no ensino,
na cultura, na saúde, na habitação, nos empregos, no comando financeiro, este
difuso e exalado para além do chamado espaço social e estudos locais. Para o bem ou
mal, agora em transportes, sala de espera, vias de circulação, sítio de encontro ou
refeição existem poucos que não aderem ao magnetismo advindo de aplicativos e
redes sociais. Dissemina-se a ilusão de que se trata de algo gratuito, democrático,
escolhido por opção pessoal, acesso e trocas livres, sem se atinar ao lucro a estas
inerentes.
No oposto, a volta ao espaço urbano vem trazendo narrativas distintas, organi-
zações inéditas, uso de mídias como meio e não mero fim narcísico, este uma es-
pécie de ego-curadoria, ou ego-trip. Assim, vem se renovando o código do sensível,
suscitando a revisão em mídias habituais, seja na imprensa, radio TV, ou outros
oficios de difusão. Duas ações ilustram bem tais mutações: a nomeada Primavera
Árabe, em 2010, que ocorreu em frente ao Museu do Cairo, intocado pelos jovens,
em oposição à ditadura, às péssimas condições de vida e à sociedade em castas
hierárquicas. O também chamado Occupy Wall Street/NY, protesto iniciado em 17
de setembro de 2011, no distrito financeiro e invocado por mídia digital.
Tais ações vem gerando imagens dramáticas, apenas comparadas a aquelas em
que levas e levas de humanos fogem da terra natal, relato trágico de diásporas, en-
traves entre local e global, poder versus escravidão, jogo entre vida e morte, todos
estes fundados em existência de dissensões e aberrações financeiras a se confrontar
com democracia. No entanto, realidades sociais distintas, anonimato e expansão
de redes motivam até agressões pessoais, ódio acirrado, notícias falsas (fakenews),
ataques virais e episódios extremos. O contraste origina atos avessos ao clichê, lugar
comum, capazes de lutar por democracia plural.
Em paralelo, movimentos no urbano acendem rancor por desnudar comando
dissimulado e invasão à privacidade. Fundam resistência à naturalização de poderes,
como midiático, político-financeiro. Tal revelação vem acarretando perda de jovens
usuários de redes como o Twitter, o Whatsapp, o Wechat e o Facebook. Desde 2011, ao
se criar Snapchat, além de ensejar trocas imediatas e incluir imagens, neste, postagens
em segundos se apagam, evitando controle indesejado. Outra dissidência adveio de
grandes mídias e culminou no início de 2018 com contestação aos critérios do Google
e, até mesmo, a saída de fortes conglomerados do Facebook, a citar La Stampa, Washin-
gton Post, New Yor Times, Wall Street Journal e no Brasil (jan.2018) Folha de S. Paulo.
A rede Facebook, criada em 2004 na Universidade de Harvard/ EUA, decorridos
14 anos, anunciou que iria mudar algoritmos e privilegiar troca horizontal, ou seja,
família e amigos. Ela vinha sendo acusada de ingerências nas eleições presidenciais

19
estadunidenses, com a fabricação de fakenews a favor de Donald Trump. A prática
jornalística de identificar, de apurar, de consultar e de ouvir diferentes lados não se
aplica às redes, e apropriar-se de trabalho intelectual se tornou algo usual. Igualmente
acendeu alerta, quando do vazamento sobre lucros, ao adquirir, em 2012, o Instagram
por US$ 1 bilhão e, após dois anos, o Whatsapp por US$ 22 bilhões. Se não se paga,
qual seria então a origem dos recursos? Vendem e lucram exatamente com o quê?
Ação crítica no espaço urbano vem ganhando adeptos, formas sensíveis, contun-
dência capazes de desvelar meandros calados por razões escusas. Felizmente, mais e
mais pessoas constatam a veemência em se ocupar o espaço público, na contramão
de certo isolamento, além dos apontados, pela tendência a se “condominizar” em
habitação e em grupos de troca com pares, seja por edifícios e casas, ou adesão aos
referidos aplicativos. Estes compelem o cliente ao diálogo restrito, ou seja, apenas
aos análogos, enchafurdados em notícias e posturas discriminatórias sobre dife-
renças. Redes incidem em enviar a quem as acessa, aquilo que o internauta mais
procura, assim contribuindo para difusão de preconceitos e posições polarizadas,
embora se possa utilizá-las com ganhos e como ferramentas.
Notoriamente atuações em praças e redes vêm motivando ampliação de identida-
des, fazeres entre áreas e dilatação de imaginário urbano, logo distante do real e de cli-
chês sobre a paisagem cultural apreendida. O imaginário se opõe aos objetos como bem
aludiu Jean-Paul Sartre na obra O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação
– “Num mundo imaginário, não há sonho de possibilidades, já que as possibilidades
supõem um mundo real, a partir do qual as possibilidades são pensadas” (p.222, 1996).
O imaginário engendra o novo, em redes ou ato presencial, porquanto nutre-se
de questões, debates, críticas, demandas e desejos humanos, por vezes até em ex-
tensão globalizada, como no caso de ocupações. Se na modernidade a autonomia
da arte se voltava a diluí-la na vida, na atualidade, pouco sentido há em se deno-
minar artes visual, teatro, cinema ou literatura. O que conta são intervalos entre
angulações díspares de enigmas seculares e a identificação coletiva, incidindo em
conteúdo crítico, sensível e relacional, que transforma o antes mero espectador em
ator, a desafiar ou convidar o público para uma experiência da arte total, propalada
pela ópera de Richard Wagner (1813-83) no século antepassado.
E mais – ao se rever designações consagradas pelo uso, se poderia arguir: o
que seria público quando se nomeiam conjuntos por arte pública? Se inserida
dentro de local doméstico, comercial, estádio, igreja, museu ou escola, seriam arte
privada? O termo incidiria apenas em forma implantada em local externo, sem
pretender acesso de espectador, livre ou restrito, mas sob encargo institucional?
Serviriam apenas como adorno e tributo aos ditos vultos históricos pátrio-religio-
so, a introduzir o heroico e o sagrado? Em suma, daria para nomear algo como
arte, artista ou público, depois de espectador virar ator e o curador, criador?

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Espaço público em contraste ao privado
“É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano”
(ARENDT, 2009, p.189)

A rua como suporte para o pensamento divergente subsidia novos modos de


se agir nos espaços de ampla circulação seja por palavras ou atos. A produção
de formas para o urbano, nos anos 1960, efêmera ou estável, crítica, politizada,
denunciatória e em fricção com os cânones, até então consagrados, forneceu vias
para romper com parte de premissas vigentes sobre a propalada autonomia da arte,
em que as funções da arte seriam harmonia e beleza. O citado predicado procura
em parte erigir narrativas, retóricas de persuasão, esclarecer e instruir valores de
poucos a muitos, em extensa camada etária e societária, por outra face, cultuam
pessoas, datas e situações, ajustadas ao poder exercido em instituições distintas.
Antecedente nomeável, se deu decorridos mais de dez anos da Declaração de
Paz relativa à Segunda Guerra Mundial, quando, em 1956, o artista, arquiteto, fi-
gurinista, escritor e agitador, Flávio de Carvalho (1899-1973) desfilou com traje
masculino, a causar assombro no transeunte urbano e anônimo. O corpo masculi-
no, comumente associado a virilidade, transmutou-se em suporte de saiote curto
com preguinhas, blusa em listras, pernas de fora, sandálias, vestimenta singular se
comparado ao transeunte em redor na imagem, que o assiste e o acompanha. Igual-
mente, desafiou a moral conservadora, ao resvalar na diferenciação entre masculino
versus feminino ao escolher para a exibição o então centro pulsante, quando a
pauliceia sonhava galgar a posição de vir a ser a tal locomotiva do Brasil.

Figura 1–Flávio de Carvalho com traje tropical masculi-


no. Diário de S. Paulo, out. 1956

Expressa por palavras, e na busca de de-


mocracia radical, Hannah Arendt (1906-75),
em 1958, editou o texto seminal A condição
humana, quando criticou a ausência de ação
política entre iguais, como na polis, em que
ato se associa à palavra, para formular algo
singular. O termo público em oposição ao
privado já naquele momento para a autora
alemã decorria da premência de duas neces-
sidades, conceituadas como labor para manu-
tenção da vida e subsistência, equivalente a
palavra do grego “oikia”, unidade similar ao

21
feudo medieval, abarcando casa, família, grupo referencial e do que é próprio
ao indivíduo; trabalho direcionado ao artífice ou como bem explicita Arendt
“[...] infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano”
(2009, p.149).
A escritora parecia sentir falta do terceiro fator, repito, ação na polis, como
na Grécia e entre iguais, tendo em vista ser este o campo da liberdade. Labor e
Trabalho compõem para Arendt o espaço privado atinente às demandas primor-
diais e local de relações familiares herdadas. O, então, por ela nomeado espaço
público, ao contrário, difere-se, por conceber política e ação, para esta autora.
Reitere-se, então perseguida por nazistas, clama por liberdade para abrigar plu-
ralismo humano2. Com a polarização iminente entre esquerda versus direita, na
chamada Guerra Fria, Arendt muda o foco e antecipa-se ao contrapor–público
versus privado.
Bem antes, implantar obras em espaço público se espalhou em vasta escala
e na extensão mundial, não obstante, monumento lustroso banaliza-se para o
olhar de passante usual, roto pela repetição, levando as peças a obliterar-se em
meio à paisagem cultural em que antes reluziam. Em que pesem a existência
de predicados formais, inovadores, consensuais, ou mesmo, terem sido erigi-
dos com iniciativas defensáveis, entre tantas, concurso para seleção de artistas,
cotização de recursos, zelo de seguidores, conservação, reprodução em manual
escolar, dinheiro e moeda, formas e seus criadores decaem para invisíveis, en-
tendidas como portadoras de valores refutados e conteúdo agora ajuizado como
inadequado.
Observe-se o ocorrido com a obra de Fernando Botero (1932) “O Pássaro da
Paz”, doada a Medellín/Colômbia, sua cidade natal, na esperança de que bro-
tassem ares libertários no cenário refreado pelo narcotráfico. A peça escultórica
implantada na Praça San Antonio, foi destruída em 1995 matando e ferindo pas-
santes. O artista fez questão de mantê-la no estado em que se deparou após o
ocorrido, e erigiu outra idêntica, como reação à atrocidade, em homenagem às
vítimas e afronta a tal poder. Não temeu e, logo após, em 1998, doou 23 delas
para as ruas de Bogotá, a originar coleção ímpar, uma espécie de crônica de então e
em contraste com centros hegemônicos. Em especial, ao ampliar volumes e formas
femininas com ironia critica formas renascentistas consagradas, como em “Mulher
com espelho”. Curiosamente, inclui índias nativas na mesma acepção, assim equi-
parando-as às demais.

2 Para se avaliar a amplitude do conceito de liberdade para Hannah Arendt caberia acrescentar
a regeneração intelectual da pensadora ao mestre Martin Heidegger, isolado após a Grande Guer-
ra por ocupar cargo acadêmico e declarar se identificar com o nazismo.

22
Figura 2–Fernando Botero. Mulher
com espelho 1982. Foto A. 2015

A própria alteração, mul-


tiplicação e disseminação de
designações para tais formas,
constantes ou efêmeras, em
passeio, ruas e outros supor-
tes urbanos, atestam o variado
papel adquirido por ação polí-
tica, cáustica e crítica. Diver-
samente de outras eras, superou-se a estreita intenção de se elogiar beleza, heróis
cívicos/religiosos, disseminar o óbvio e o funcional. Formam-se práticas que geram
sutilezas a honrar a astúcia do fruidor, mesmo quando figurativas e permanentes,
como em Botero, que fala da América Latina ao se inserir, desde Israel até Rússia,
naquele jardim de escultura, no Museu Hermitage/ São Petersburgo.
Objetos a mimetizar perfis e fatos, heroicizar vultos, com leitura direta e resol-
vida pela placa identificatória vêm dando lugar a outros mais complexos e, também
a ações, a exigir atenção e interpretação, consonantes com tendências que colocam
em questão a tal autonomia, antes imperativa na arte moderna. Abordam-se aqui
títulos para desbordar desígnios conferidos às palavras, com a intenção de analisar
corpos nas praças e pensadores que formularam conceitos, responsáveis pelas alte-
rações para o que antes se reduziu a arte pública. Selecionou-se, entre tantos, teó-
ricos a debater público versus privado, esfera pública, espaço social, espaço praticado,
espaço antagônico e agonístico.

Corpos em ação conjugada


(...) desmaterializando a obra de arte no fim do milênio/ faço um quadro com moléculas
de hidrogênio/ fios de pentelho de um velho armênio /cuspe de mosca pão dormido asa de
barata torta/ meu conceito parece à primeira vista/ um barrococó figurativo neo-expres-
sionista/ com pitadas de art-nouveau pós-surrealista(...).
Zeca Baleiro & Zé Ramalho. Vô Imbolá, 99

A Escola de Frankfurt levará adiante tais vetores relacionados à expressão pú-


blica no senso de Arendt e, em 1962, outro dos chamados pós-marxistas, Jürgen
Habermas (1929) editará o clássico Mudanças estruturais da esfera pública, a cha-
mar atenção de como as mídias, naquele momento associadas à indústria cultural,
cooperavam para talhar opinião. Esta seria moldada ao desejo de forças financeiras
e políticas, sendo que, neste século, com a invenção de mídias céleres, atuam com

23
maior amplidão. Habermas conceitua esfera pública no enclave e mediação entre
Estado e Sociedade sendo, assim, socialmente aceita, porém não institucionalizada.
Defende então a urgência em se barrar tal retórica, com vistas à ampla circulação
de infinitos pontos de vista, a tal pluralidade desejada.
Formas e práticas se alternam e se completam e, assim, na referida década, em
1965, o autor de inovações, textos e polêmicas, Hélio Oiticica (1937-80) efetuará
fricção tensa com a o próprio estatuto da arte, ao inventar os chamados parangolés,
uma anti-arte formada por reunião cromática de tecidos e portados por membros
de Escola de Samba Primeira da Mangueira. O Museu de Arte Moderna MAM/
Rio de Janeiro exibia a antológica mostra “Opinião 65” em oposição ao Golpe de
1964. Em que pese o valor da mostra contrária ao Golpe, em contraste, os passistas
foram barrados ao ingressar no MAM, tendo estes e Oiticica ficado restritos ao
espaço do jardim externo. Não seria então arte?
Se há muito peças residiram em espaços fechados, desde os anos 1960 ganharam
a rua sem convite, na quimera de não serem tragadas pelo mercantilismo, galerias,
curadores e, entre nós, pelo nascente sistema das artes. Parangolés, longe de serem
nomeados como arte, objeto, artista e público, residiram em veste multi colorida,
inicialmente manejadas em dança, rodopios, improvisação, assim transformando o
conceito de objeto estático em mera forma bela a ser contemplada. Chama a aten-
ção a simbiose entre tecido e corpo, pois, como define Oiticica–“o ato de vestir a
obra já implica uma transmutação expressivo-corporal do espectador, característica
primordial da dança, sua primeira condição” (1986, p. 54).
Alguns fatores valem ser recordados na interpretação dos Parangolés: por um
lado, o golpe civil-militar de 1964, desencadeador de reação iminente entre os
mais politizados da farsa sintetizada pela tríade Tradição- Família–Propriedade; por
outro, a forma como Oiticica desmaterializa a chamada arte tradicional, indo além
de Marcel Duchamp e seus objetos retirados do cotidiano. A aproximação com a
favela projeta elo singular entre a dita arte erudita e segmento popular, rebelando-
-se contra as posições nomeadas por intelectualizadas. O autor convoca parceiros
inéditos e, com a ação destes, redefine a unidade artista-obra e, como bem alude
Celso Favaretto conquista seu “estado de invenção” (1992, p. 76).
Durante a década seguinte, autores colocarão questões no debate sobre público
versus privado e Michel de Certeau, na obra A invenção do cotidiano: artes de fa-
zer trará reforço ao diferenciar lugar de espaço. O estudo iniciou-se em 1972, ao
ser requerido a formular informes para reunião europeia de Ministros de Cultura.
Em 1980 partes foram reveladas até se solidificar dez anos após na referida edição.
Introduz o termo espaço praticado: “[...] é o efeito produzido pelas operações que
o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade
polivalente de programas conflitantes(..) (1999 [1990], p.202).

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Atos sensíveis vertem-se em múltiplas formas neste tempo, entre as quais, obras
sujeitas à interferência da própria natureza e distantes do caminhar cotidiano,
como na land art, com a icônica intervenção, em 1969, denominada Plataforma
Espiral de Robert Smithson (1938-73); Acionistas vienenses dentro da Body Art,
a expor uma espécie de corpo sublime e terrificante, ao utilizar dejetos, exibiram
algo avizinhado de mutilação em eventos internos ou no espaço urbano (1960-
70), a citar, Günter Brus (1938) em seu Passeio Vienense (1965); acrescente-se
a arte conceitual em que o conteúdo político se confirma e refuta unidades ha-
bituais–belas artes ou artes plásticas e artes visuais. Transmutam-se tanto a uni-
cidades de áreas em intertextualidades, quanto locais para exposição, suportes,
materiais, poéticas, finalidades e criadores. Desta maneira, o próprio estatuto da
arte foi colocado em xeque.
Ecoam os abalos estudantis de maio de 1968 sintetizados pelo bordão É proibido
proibir a clamar por liberdade em modos, meio universitário, política e relações em
geral. Outras vertentes balizam-se em ação efêmera com roteiro prévio, entre ou-
tros, happening e performance, a aglutinar vídeo, teatro, música, dança e texto, por
vezes ainda prevendo a relação ator-espectador. Ponto nevrálgico se dá com o Grupo
Fluxus, encetado por Joseph Bueys (1921-86) e Wolf Vostell (1932-98), em que o
pacto com figuras do já sólido–sistema de artes alemão, torna-se sem sentido. Con-
vidado a participar da Documenta de Kassel (1982), Bueys espalhou 7 mil pedras
na cidade e propôs a plantação de carvalho para cada uma retirada. Mudam-se en-
foque, finalidade e produto, lembrando que este compusera nessa época o pioneiro
Partido Verde na Alemanha, tendo sido eleito deputado.

Memórias nas ruas


Pois toda interrogação atual acerca do sentido do patrimônio não se inscreve na perspec-
tiva exclusiva da monumentalidade. Ao contrário ela busca uma nova via para traduzir
uma valorização das memórias coletivas. [...] Ao invés de ser considerado uma aquisição,
o patrimônio apresenta-se como uma conquista e apropriação social, desafiando a regula-
ridade do monumento histórico.
(JEUDY, 1990, p.6-7)

Desde os anos 1980 inúmeras mostras coligaram ações efêmeras, a ocorrer nas
cidades, espaço este, por hipótese, capaz de apropriação social. Entretanto, por
vezes essas ações filmadas, ingressaram depois em coleções museicas. Tal fato não
vem impedindo atos críticos na cidade cada vez mais se apartando de espetáculo e
formas apenas belas. Afinal vivia-se o otimismo vazado pela crença em pseudo-e-
clipse de diásporas, sepultamento de Ditaturas na América Latina, Queda do Muro
de Berlim, colapso da União Soviética e o fim da Apartheid. Uma vez mais nasceu a
ilusão de que, distantes os males imediatos, a humanidade reaveria o veio solidário,
25
de trocas, respeito e diálogo. Julgava-se que se superara o susto do pós-guerra, ainda
tangível por meio de muros, cercas, mortos e agredidos em corpo e memória.
Obras em textos e formas logo despontaram a abrir perspectivas singulares para se
discutir a inegável importância de ações no coletivo, como sonhara Arendt. Entre estas
reflexões surgidas ressalte-se a de Henri Lefebvre, desde 1985, conceituando espaço so-
cial. A urbe, para desempenhar sua vocação de unir o diferente, agrega na vida coletiva o
referido espaço, qualificado na condição de produtor de relações, histórias e identidades
para vários segmentos societários e, não apenas, reprodutor de valores conservadores.
Henri Lefebvre (1901-1991) debate a feitura contínua da cidade, em vários
livros, acessíveis por terem sido traduzidos para o português, entre os quais, O
direito à cidade (1968), A revolução urbana, (1970), A produção do espaço (1974)
e por atuação de seus habitantes. Nesta, diferencia três espaços de representação:
concebido, vivido e percebido. O espaço concebido aduz à representação abstrata, idea-
lizada e hierarquizada pelo poder; o vivido se multiplica em símbolos e imagens,
proposições, atores distintos e demarca o espaço social. Então o espaço percebido via
atos, valores e relações opera como intermediário entre os dois – concebido e vivido.
Lefebvre, portanto, coloca o cidadão no centro de ações e rebela-se contra ten-
dências deterministas, fundadas em ação-reação lineares, inferioridade-superiori-
dade de seres, progresso-retrocesso, que desde o século XIX com Hippolyte Taine
(1828-1893) se firmou como espécie de ferramenta, destinada a interpretar a His-
tória de forma cronológica e em palavras hoje discutidas. Para este francês, a aná-
lise ascenderia com o exame de singularidades, sintetizadas por três contingências
decisivas e coercitivas – raça, meio, momento histórico -.
Tal posicionamento fatalista, por não ver saída ao humano, emparedado por
fatores limitantes, dissemina-se em grande produção no derradeiro século XIX,
na busca de desvendar sujeito, dificuldades e tendências. Elaboraram-se grandes
sistemas interpretativos assentados em uma espécie de Indivíduo-Tipo, não raro
inexistente, mas advindo de estatísticas, ou pensar dentro de certas demarcações.
Ainda hoje evocam-se termos herdeiros do último oitocentos, como progresso,
retrocesso, influência, entre tantos, como se a linearidade determinista significasse
um postulado ainda potente.
Como apagar a poeira que parece desejar encobrir a força humana? A cultura
tem produzido reações vigorosas na intenção de desbastar limites, por meio de
aproximação entre áreas tradicionais, a citar artes visuais, teatro, dança, vídeo, cine-
ma, poesia e literatura, reunidas para dialogar e expor aspectos insurgentes. Desde
os Anos 1990 tecnologias vêm igualmente alargando estreitos horizontes abafados
pelo local, regional e nacional ligando motes, costumes singulares, falas, debates e
cidadãos em escala mundial. Ajustados a tais alterações, fervilham antagonismos e
fechamento equivocados, apontados por iminentes criadores.

26
Chamam a atenção aspectos presentes em reflexões díspares: 1) o urbano requer
ser praticado e esta atuação gera mutabilidades desejável para alterar ordens e privi-
légios; 2) há evidência de conflitos a serem discutidos e articulados nas diferenças.
Entre os que irão também incidir nesse ponto de vista se encontra a belga Chantal
Mouffe (1943) já em texto inicial realizado com o argentino Ernesto Laclau em
1985 Hegemony and socialist strategy. Towards a radical democratic politics, a realçar
antagonismos desde o pós-Grande Guerra.
Mouffe defende que, oposto à democracia liberal, se lute por outra, radical e
plural, quando formula o conceito de Agonismo diverso de antagonismo, em que
contendores são inimigos. No Agonismo explicitam-se as diferença, em busca de se
manter uma real democracia, ainda que tendo aspectos irreconciliáveis. O texto
mais conhecido “Por um modelo agonístico de democracia” faz parte do livro The
Democratic Paradox (Mouffe, 2000), traduzido para inúmeros idiomas, a incluir
português. O enfrentamento do antagonismo para a autora em políticas democrá-
ticas se opera no coletivo, partem de liberdade e igualdade de condições.
Criadores, já neste milênio, vêm instalando peças, ações mínimas e críticas que
trabalham com essa tipicidade de conscientizar sobre o passado nefasto, por meio de
formas sutis e que vão de encontro, ou seja colidem, com o transeunte fixado na teli-
nha. Entre tantos lembro Stolperstein (Obtáculos) de Gunter Demnig (1947) feita em
inúmeros países, cerca de 610 lugares na Alemanha e, também, na Áustria, na Hun-
gria, na Holanda, na Bélgica, na República Tcheca, na Noruega e na Ucrânia, confor-
me documenta em site. Desde 1995 estampa conflitos e, em Berlim a 12.2.2008,
realizou homenagem ao centenário de nascimento de Olga Benário Prestes.

Foto 3 Gunter Demnig. Obstáculos. Berlim.


Foto A. em set. 2014

A obra Stolperstein parece se portar como


um tropeço e memorial, em forma 3D com
base retangular. Feita em concreto, de 10 cm x
10 cm, fixa-as em calçadas, perto de locais em
que viveram judeus mortos, cobrindo os blocos
com chapa de latão dourado. Exibem inscrição
formada por uma frase que varia entre Aqui vi-
veu, ou Aqui morou, ou Aqui atuou, seguida por
nome, nascimento, morte e local, em que a pes-
soa foi morta. Baseando-se no livro sagrado dos
judeus, o Talmud, Demnig, em reiteradas falas,

27
alega que evocar o nome permite não morrer e conservar-se na memória. Assim,
invoca tempo e espaço uma das essências nas formas sensíveis contemporâneas, ao
lado de questões de gênero, costume e etnia. Enunciações replicam-se, porém, o
tempo presente erode e demanda se refletir sobre mutações, cada vez mais céleres.
Produtores em palavras, movimentos e ações quando se apartam de valores
restritos, temáticos e ilustrativos engendram a essência daquilo que Henri Lefebvre
tanto debateu em seus textos. Reitere-se a transformação de muitos em cidadãos,
sem se diferenciar o que chamou citadin, vale dizer, todos os habitantes da cidade,
dos substantivados como citoyens, os reconhecidos pelo Estado. Para o autor fran-
cês, e defensor do direito, a cidade deveria se alastrar a todos os seus moradores. As
formas críticas e sensíveis merecem ser renovadas e espalhadas no âmbito do espaço
social. Permanecem e pulsam resistência, nesta hora a demandar repensar o papel
da cultura e de suas instituições.
Ciça, Outono 2019.

Bibliografia citada
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2009 [1958].
CERTEAU, Michel de A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes,
1994.
DEMNIG, Gunther. Spoltperstein. Disponível em: http://www.stolpersteine.eu/en/
home/ Acesso: 12.3.2018
FAVARETTO, Celso. A Invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, 1992.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-
leiro, 2003 [1962].
JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
LACLAU, Ernesto & Mouffe, Chantal. Hegemonía yestrategia socialista: Hacia una ra-
dicalización de la democracia. Madrid: Siglo XXI, 1987 [1985].
LEFEBVRE. Henri. Prefácio [1985] In: A produção do espaço. Trad. Doralice Barros
Pereira e Sérgio Martins.(Do original La production de léspace Paris: Éditions Anthropos,
2000)
______La revoluction urbaine. Paris: Gallimard, 1970
______ Le droit à la ville. Paris: Seuil,1968.
SARTRE, Jean Paul. O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação. São Paulo:
Ática. 1996. [1940].

28
Imaginários de uma Fortaleza invadida
Marie Auip1
A cidade é uma construção de fronteiras, sendo estas oficiais e instituciona-
lizadas com placas, portões, câmeras de vigilância, ou simbólicas que conforme
cita Arantes “separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou, em uma palavra,
ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mutuas relações” (ARANTES,
1994, p.191). Ainda nesta perspectiva, Canclini (2008) aponta que a cidade não
é apenas a sua configuração física, de ocupação de território e construção de edifí-
cios, mas é também o conjunto dos processos culturais e dos imaginários dos que
a habitam.
Sou nascida e criada em Fortaleza (Ceará) no Meireles, bairro classificado com
o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito alto de acordo com o Anuá-
rio do Ceará 2018-2019, naturalmente meu olhar sobre a cidade se deu durante
muito tempo de maneira poetizada. Apresento essas características de forma cons-
ciente e sensível para poder dissertar sobre as percepções que me afetaram durante
a minha observação flutuante no mês de março de 2018 no Imaginários Urbanos
– I Festival de Performance Urbana do Ceará. Mesmo morando em São Paulo há
quatro anos, minhas visitas à Fortaleza são constantes não apenas pelos vínculos
familiares, mas também de trabalho. Sou integrante do EmFoco Grupo de Teatro,
formado por estudantes do Instituto Federal do Ceará, e com ele desenvolvo uma
pesquisa voltada para a intervenção urbana e a dramaturgia através de espaços
não convencionais, com ações que ocorrem em espaços como cemitérios, praças,
supermercados, entre outros, desde 2009.
Acredito ser importante citar o movimento que ocorreu durante as jornadas de
junho, pautada por uma série de manifestações ocorridas em 2013, e que suscitou
diversos debates e ações acerca de novas formas de se ocupar a cidade, além da
polifonia de discursos políticos que estas manifestações evidenciaram como cita
Frúgoli (2018). Essas novas formas de ocupação, e também de se pensar modos de
vida diferentes da lógica neoliberalista, se tornaram a base de um novo modo de
produção de coletivos e artistas. Criações coletivas, arte participativa, práticas de
festivais de rua, ciclovias, recriações de espaços públicos são acontecimentos que
foram e estão sendo vivenciadas não apenas nas grandes capitais do sudeste, mas
em todo o Brasil.
Em Fortaleza posso citar algumas ações importantes; o movimento “Ocupe
o Cocó”, com o objetivo de impedir a construção de viadutos em um dos mais
1 Marie Araujo Auip é especialista em Gestão de Projetos Culturais pela Universidade de São
Paulo e mestranda pelo PPGAC-USP, pesquisadora no Lab. de Práticas Performativas da USP.

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importantes parques da cidade, a pintura de ciclofaixas independente da ordem
do governo pelo grupo Massa Crítica, as festas de rua no centro da cidade pro-
duzidas por diversos coletivos, principalmente na Praça dos Leões, no Bar Lions.
Essas novas formas de reivindicar e se fazer ver se dão por uma notória crise de
representatividade na política, como cita Di Giovanni (2015), ou seja, essas ações
estão mais interessadas em uma autonomia ideológica de seus participantes do que
cumprir jogos políticos de partidos.
Em 2015, a partir da influência dos movimentos já citados e de críticas aos mo-
dos de vida da classe média fortalezense, que serão ainda analisados neste ensaio,
decido juntamente a Eduardo Bruno, enquanto pesquisadora e produtora, realizar
um Festival de Performance Urbana (impulsionada pelo conceito do autor Ha-
kim Bey, de Zona Autônoma Temporária (TAZ2)). O intuito principal do Festival
foi habitar diferentes bairros e produzir pensamentos acerca de uma forma mais
criativa de se vivenciar a cidade. A experiência foi complexa, e aqui me coloco em
tentativa de dissertar um pouco sobre questões políticas e artísticas desses sete dias
de Festival.
Dessa maneira, o objetivo deste ensaio é analisar as interações que se sucede-
ram no Festival “Imaginários Urbanos”, que ocupou artisticamente diversas re-
giões no tecido citadino e as tensões que vieram desta ocupação, já que a dimensão
do conflito é inseparável do espaço público. Segundo Frúgoli (2018) na atualidade
tem se suscitado diversos debates sobre novos modos de se relacionar com o con-
texto urbano, uma visão mais coletiva e de apropriação dos bens simbólicos tem
emergido, mas ainda se impõem muitas fronteiras simbólicas.
Em minha observação, mais detida sobre a cidade, aponto dois aspectos do
imaginário social que gera o medo de ocupar Fortaleza de uma maneira mais
contínua: A primeira é uma enorme utilização de carros como principal meio de
transporte, e assim, pouco investimento nos transportes públicos, confirmo esse
meu pensamento através de uma pesquisa do Departamento Nacional de Trânsito
que em 2016 afirmou que a frota de veículos particulares de Fortaleza era a maior
da região nordeste. Outro aspecto que acredito ser primordial para o imaginário
do medo é que, segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), a
capital mais violenta no Brasil e Fortaleza (CE), sendo a sétima no ranking mun-
dial. Há pouco mais de uma década, Fortaleza tem sido campo de pesquisa e dis-
cussão entre os mais variados segmentos na perspectiva de diagnosticar e procurar
melhorias na questão de Violência Urbana.

2 É uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, mas que libera uma área
possível de autonomia

30
Canclini (2008) faz uma análise sobre as cidades espetáculo e as cidades pa-
ranoicas, sendo as primeiras consideradas “sexy”, emblemas da globalização e das
inovações urbanísticas, como Berlim, Barcelona e Nova York. Em contraste com
estas, as cidades que são noticiadas pela mídia com paisagens catastróficas, ar-
ruinadas, locais de insegurança, ele as denomina de “paranoicas”. Esse medo e
insegurança geram um fator excludente, que é formatado por áreas de vigilância,
condomínios fechados. No final, o imaginário da insegurança torna a cidade iso-
lada de si, no qual as pessoas as deixam de habitar socialmente.
Esse isolamento social vem pautado por uma valoração daqueles que podem
consumir e daqueles que não o podem, como explicita Harvey (2012) em seu arti-
go sobre “O direito à cidade”: “a qualidade de vida urbana tornou-se uma merca-
doria, assim como a própria cidade, num mundo onde o consumismo, o turismo
e a indústria da cultura e do conhecimento se tornaram os principais aspectos da
economia politica urbana” (HARVEY, 2012, p.81). Em meus grupos de whatsapp
com amigos e familiares que moram em Fortaleza, sempre lembram-nos de que
se deve ter cuidado ao sair do prédio, que há inúmeros assaltos, sequestros relâm-
pagos, entre outras questões. A proposta de soluções para estas questões sempre
se dá por meio da repressão: mais policiamento na rua, diminuição da idade pe-
nal, pena de morte, blindar carros. Essa formação de “microestados”, “fragmentos
fortificados, comunidades fechadas e espaços públicos privatizados mantidos sob
constante vigilância” (Ibid., p.81), são o apogeu de uma desigualdade social, que
só aponta caminhos para mais medo e violência.
Mantenho claramente em meu pensamento que um festival na rua não será o
modificador primordial das desordens estruturais de minha cidade e, durante os
sete dias de evento, pude ter uma pequena noção da complexidade apresentada
na urbe. Minha primeira observação foi que, ao me deslocar de carro para buscar
duas artistas, fui alertada por estas a abaixar os vidros do carro para adentrar o
bairro do Pirambu, ao chegar ao local combinado, vimos, através das pichações,
a presença de duas facções: GDE e Comando Vermelho. Em entrevista ao jornal
O Povo, o sociólogo César Barreira, coordenador do Laboratório de Estudos da
Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, afirma que há dois grupos
consolidados, o Comando Vermelho e o PCC e dois outros que tentam ocupar es-
paço e ganhar força — Guardiões do Estado e Família do Norte. “Há uma disputa
de poder entre as facções e também algumas disputas internas e realinhamentos de
interesses”, afirma. Ele explica que tanto a Guardiães do Estado como a Família do
Norte ainda são organizações instáveis, em que não existe hierarquia bem definida,
nem disciplina, e têm uma composição muito jovem.

31
No terceiro dia de festival, um apagão acontece atingindo todos os estados do
Nordeste, na programação, as residências tiveram que ser canceladas, e os funcio-
nários da Escola Porto Iracema das Artes e Centro Cultural Dragão do Mar foram
liberados para voltarem com segurança para casa antes do anoitecer. Eu e o grupo
da residência “Corpos radicais” nos propusemos a ficar mais um pouco em um
restaurante e vivenciar o apagão. Após o segundo black out geral, sinto medo ao
sermos abordados, o que é natural nos arredores do Dragão do Mar, por pessoas
em situação de rua. A polícia então nos aborda e pede para que a gente volte para
a “segurança de nossas casas”, assim o fizemos.
No ultimo dia de Festival, e aqui foquei minha observação, mais detidamente,
a atração principal consistia em um espetáculo que se propunha a realizar uma
cartografia do consumo através da estética performativa tomando a perspectiva de
se inserir corpos radicais na cena urbana. Para poder deslocar o público, o espetá-
culo “Price World ou Sociedade a Preço de Banana” (Grupo EmFoco) utiliza um
ônibus, sendo este também cenário no qual acontecem cenas. Em cada cidade que
é realizado, além da formatação do trajeto base, também se é incluído cenas dos
alunos da residência “Corpos Radicais: Performance e Espaço Urbano”.
Como performer e produtora deste espetáculo, já acordo no dia 24 de março,
sábado, com notícias de ônibus incendiados em vários bairros da cidade em res-
posta aos bloqueios à utilização de celulares nos presídios aprovados na Câmara.
Mesmo assim, após conversa em grupo do Whatsapp, decidimos continuar, e fui
junto a outro integrante do grupo resolver questões de produção. Nas ruas, poucos
carros, como se fosse feriado. No decorrer do dia, mais ataques a ônibus ocorreram
e começaram a gerar uma insegurança nos performers residentes.
De certa maneira, já expomos o público de Price World ao risco, pois, o pró-
prio espetáculo já se propõe a ocupar, praças e ruas durante a noite. Price World é
um safari na cidade, uma crítica à cidades do consumo, inserindo em seu roteiro
ruas luxuosas com marcas famosas até a ocupação de locais como a Praça do Fer-
reira, onde centenas de pessoas em situação de rua passam a noite. O espetáculo
pretende inserir uma lente de aumento no grande mosaico que são estes lugares
sociais, e se constrói em zonas simbólicas de transição, ao colocarmos o público
fortalezense para ocupar o centro da cidade a noite, já ocorreu de espectadores te-
rem que subir correndo de volta ao ônibus, pois foram ameaçados por uma pessoa
que possuía uma faca.
Mesmo nos colocando neste local de liminaridade, de risco, sair naquele ôni-
bus, naquele dia, após sete ataques em variados bairros da cidade e toda frota de
ônibus ser recolhida por uma decisão do Sindicato das Empresas de Transporte
de Passageiros do Estado do Ceará (Sindiônibus), as fronteiras simbólicas neste

32
ponto se tornaram insustentáveis, tanto por uma questão institucional, pois o
Festival é realizado com recursos da Secretaria de Cultura do Estado, como por
um medo pessoal de cada um que fazia parte da equipe. Sendo assim, decidiu-se
cancelar a apresentação: “Por motivos de segurança, e pelas condições de mobili-
dade que nossa cidade se encontra na noite de hoje, informamos que o espetáculo
PRICE WORD foi cancelado. Continuaremos ocupando os espaços dessa cidade,
mas prezando sempre pela segurança de todos. Amanhã continuamos com nossa
programação normal! #imaginafortaleza #festivalimaginariosurbanos” (Publicação
24/03/2018 no Facebook do Imaginários Urbanos).
No Festival chamado “Imaginários Urbanos” vivenciamos alguns conceitos:
a mercantilização das cidades, a perspectiva fragmentada da classe média, mas
também notamos a cidade como algo que pulsa e não apenas um pano de fundo
neutro. Nela vivemos um campo de batalha de complexas contradições, e que essas
ações coletivas, artísticas, ativistas, necessitam continuar para se criar diálogos so-
bre os nossos direitos na vida cotidiana da cidade, pois “a cidade é onde se nasce, se
vive, se ama e se morre” e mais, após essa observação concluo que viver no privado
não é suficiente para se sentir seguro.

Referências:
ARANTES, Antonio. A Guerra dos Lugares, Sobre Fronteiras Simbólicas e Liminaridades
no Espaço Urbano. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.23, p.191-
203, 1994.
BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. 1991, Disponível em http://www.mom.
arq.ufmg.br/mom/arq_interface/4a_aula/Hakim_Bey_TAZ.pdf
CANCLINI, Néstor García. Imaginários culturais da cidade: conhecimento/espetáculo/
desconhecimento. A Cultura pela cidade, Rio de Janeiro: Editora Iluminuras, p. 15-33,
2008.
DI GIOVANNI, Julia R. Artes de abrir espaço. Apontamentos para a análise de práticas
em trânsito entre arte e ativismo. Cadernos de Arte e Antropologia, vol. 4, n. 2, p.13-27,
2015.
HARVEY, David. O direito à cidade. Lutas Sociais, São Paulo, n. 29, p. 73-89, 2012.
FRÚGOLI, Heitor Jr. Ativismos urbanos em São Paulo. Caderno CrH, Salvador, v. 31, n.
82, p. 75-86, Jan./Abr. 2018.

33
Webgrafia:
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/cidade/
ocupacao-em-pracas-e-bares-do-centro-da-cidade-e-realidade-1.1845834
(Acesso 03/04/2019)
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/09/23/investigado-pela-poli-
cia-grupo-pinta-ciclofaixas-e-ganha-fama-em-fortaleza.htm
(Acesso 03/04/2019)
https://raquelrolnik.wordpress.com/2013/09/02/
ocupe-o-coco-resistencia-em-defesa-do-parque-continua-em-fortaleza/
(Acesso 03/04/2019)
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2018/03/onibus-sao-incendiados-em-forta-
leza-na-noite-deste-sabado.html
(Acesso 03/04/2019)
http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SEGURANCA/554899-CAMARA-
-APROVA-URGENCIA-PARA-BLOQUEIO-DO-SINAL-DE-CELULAR-EM-PRESI-
DIOS.html
(Acesso 03/04/2019)
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/03/apagao-atinge-estados-do-norte-e-nor-
deste.shtml
(Acesso 03/04/2019)
http://www.anuariodoceara.com.br/indice-bairros-fortaleza/
(Acesso 24/01/2019)

34
Arte, liberdade e resistência
Coletivo Aparecidos Políticos1
“A liberdade não é uma condição absoluta, mas um resultado
da resistência” - Ai Weiwei.

Durante o Século XIX, nos EUA, surgiu o termo “drapetomania”, ou “mania


de liberdade”. Seria uma patologia caracterizada pela tendência humana de querer
escapar. Entretanto, apenas pessoas negras escravizadas eram diagnosticadas assim.
Ou seja, querer a liberdade e fugir da opressão da escravidão era tido como uma
doença, e não como um direito. Hoje, encarar como uma doença a luta pela liber-
dade nos parece inadmissível. Por que então a aceitamos como crime?
A arte sempre se posicionou na luta pela liberdade. No Brasil, artistas lutaram
pela democracia durante os períodos de ditadura e golpe. E foram vários... É pos-
sível dizer que a arte teve um papel importante para a Ditadura Civil Militar 64-
85, tanto para combatê-la, como para apoiá-la. Artistas como Artur Barrio, Chico
Buarque e Gilberto Gil são lembrados pelo enfrentamento ao sistema. Enquanto
isso, o governo distraía o povo com a criação de um “rei” para cantar músicas que
tiravam o foco da repressão. Há, tanto na censura como na tentativa de criação de
arte para distração, um reconhecimento do potencial da arte. Ela pode ser perigosa
ao escancarar o sistema vigente; logo, esse procura domá-la.
Um exemplo disso é o que acontece com o grafite no Brasil. Os espaços consagra-
dos da arte não são para todos. Por muito tempo, visitar um museu ou uma galeria
era inacessível, tanto pelos preços de ingressos como pelo conteúdo exposto – para
um país cuja educação está em 79ª posição no ranking de bem estar da ONU2, a
educação para a arte não é prioridade. Mas isso não quer dizer que não se produza
arte, mas sim que essa, que é produzida pelas massas, é diferente das que “merecem”
estar expostas – um processo de colonização cruel que afeta a produção, a geração de
conhecimento e a valorização da estética do povo. Que espaço nos resta então? A rua.
Na rua, a arte não pede licença e é vista por todos. O muro, uma verdadeira vio-
lência que limita os espaços de ocupação das pessoas, sofre as interferências visual
de desenhos e pinturas que não precisaram da “consagração da elite” para serem
considerados arte. A rua seria então um espaço mais democrático do que a galeria.

1 O coletivo Aparecidos Políticos atua desde 2010 na luta por Memória, Verdade e Justiça ex-
pondo, por meio de intervenções artísticas, os resquícios da Ditadura Militar 64-85 nos dias de
hoje. O coletivo é composto por Alexandre Mourão, Aspásia Mariana, Marquinhos Abu, Raquel
Santos, Sabrina Araújo, Sara Nina e Stella Maris.
2 https://oglobo.globo.com/economia/idh-educacao-nao-avanca-brasil-fica-estagnado-no-ran-
king-de-bem-estar-da-onu-23067716

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O grafite tem sua origem no protesto. Utilizado em diversas revoluções –
Cubana, Mexicana, Russa – comunicava com o povo rapidamente. Era o poder
da imagem. A ação revolucionária acabou incorporada na lógica do consumo, algo
comum de acontecer no Capitalismo. Hoje, a distinção entre grafite e pichação é
baseada no consumo, tanto que desenhos murais são aceitos, desde que com a per-
missão da pessoa proprietária do muro, enquanto as tags de pichadores são conside-
radas crime ambiental. Ou seja, a lei diz qual a estética aceitável para estar exposta,
ou, por outro ponto de vista, que mensagem é aceita para ser passada ao povo.
No entanto, a crise e a proibição parecem atingir a arte de maneira contrária ao
que se espera: com o grafite dependente de permissão – e, por isso, não livre – e
tido como criminoso, o artista Alexandre Orion passou a fazer desenhos em túneis
com panos úmidos, formando imagens a partir do ato de limpar a fuligem das
paredes. Não havia como enquadrar como crime, mas havia como tentar destruir:
em São Paulo, três caminhões da prefeitura apagaram o mural “Ossário” (2006),
de Orion, no túnel Max Jeffer, em menos de duas semanas, sem, contudo, limpar
o restante do túnel. O que ficou evidente não foi a destruição da obra, mas sim
a implicância infantilóide de um órgão público que, vendo escancarada a falta de
manutenção do lugar, decide apagar a obra. Mas a obra de arte não morre, e a ação
da prefeitura, ainda que não planejada pelo artista, impulsionou seu trabalho e
chamou atenção para tal.
Quando oprimida, a arte grita. E tem na rua seu espaço de propagação. Além
do grafite (compreendendo-o como indistinto da pichação), outras formas de in-
tervenção urbana surgem na luta pela liberdade: performances, lambe-lambes, car-
tazes.... Quanto mais a tentam domar, mais a arte encontra maneiras de intervir e
lutar pela liberdade.
Era abril de 2014, cinquenta anos passados desde o Golpe de 64, quando nós,
do coletivo Aparecidos Políticos, aprontávamos mais uma intervenção urbana que
denunciava os resquícios da Ditadura 64-85 na atualidade. Dessa vez, não eram os
muros o nosso foco, mas sim o ar. A Operação Carcará, proposta para o 65º Salão
de Abril, em Fortaleza, consistia em uma intervenção aérea na cidade onde, do alto
de uma aeronave, lançaríamos 140 pequenos paraquedas com rostos de desapareci-
dos políticos brasileiros perseguidos durante o regime de exceção. O plano de voo?
O 23º Batalhão de Caçadores, no bairro do Benfica. Seríamos loucos? Talvez. Mas,
certamente, além de loucos, artistas.
Aliás, até hoje, questionamos por que seria considerado loucura sobrevoar o
espaço urbano de um país livre? Por que deveríamos temer nossas instituições? A
ação, em si, não ameaçava o Batalhão.

36
No dia em que faríamos a intervenção, viaturas do exército circulavam pelo bair-
ro e, após darmos nossa primeira decolagem, tivemos que voltar ao solo por ordem
da torre. Não tínhamos mais permissão para voo e, em seguida, recebemos a notícia
de que o espaço aéreo da cidade havia sido fechado3. A intervenção não era ilegal,
não feria ninguém, não apresentava riscos e tinha o aval da Prefeitura de Fortaleza.
Mas incomodaria “cachorro grande”. A proibição da Operação Carcará desmasca-
rou a fragilidade da democracia brasileira, onde uma instituição é capaz de fechar
um espaço da cidade mesmo sem jurisdição para tal. Aqui, mais uma vez, não foi
revelado o poder da instituição, mas sim o potencial da arte de incomodar.
Ainda que a intervenção não tenha sido realizada como planejada, o transtorno
gerado pela possibilidade da ação e pelo fechamento do espaço aéreo de uma das
maiores cidades do país foi tão grande que era impossível dizer que a obra não exis-
tia. Sim, havia tomado outro rumo, impulsionado pela censura em pleno regime
democrático. Operação Carcará recebeu o prêmio do Salão de Abril naquele ano.
É comum aos regimes de exceção a perseguição aos artistas. Foi assim na Era
Vargas, na Ditadura 85-64, no golpe de 2016 e no tenebroso, ainda que recém
iniciado, ano de 2019. Em 2016, numa de suas primeiras ações, o governo
golpista extinguiu o Ministério da Cultura e ameaçou retirar a obrigatoriedade do
componente curricular Arte das escolas de Ensino Médio. Medidas desesperadas
para calar aqueles que poderiam desmascarar a ilegitimidade do governo Temer.
Voltou atrás. Se a arte incomoda tanto, se os inimigos da democracia se preocupam
tanto em “domar” a produção artística e ladrar feito cães raivosos, deve ser,
parafraseando Cervantes, porque estamos avançando.
Como exemplo de tentativa de domesticação e silêncio já do atual presidente,
temos o caso do coletivo És uma maluca, cuja exposição Literatura Exposta (2019),
na Casa França-Brasil, foi encerrada antes do tempo previsto pela Secretaria de
Cultura do Estado do Rio de Janeiro, na tentativa de impedir a performance que
seria realizada junto à instalação A voz do ralo é a voz de Deus. A instalação continha
baratas de plástico e fazia alusão às torturas realizadas pelo coronel Brilhante Ustra
durante a Ditadura Militar 64-85. A obra já tinha sofrido com a tortura antes,
pois, ao ser instalada na Casa França-Brasil, teve seu áudio original substituído, a
pedido da Secretaria, por uma receita de bolo – um protesto das artistas que nos
remete a quando tentam calar as mulheres. Com o encerramento da exposição
antes do tempo previsto, as artistas encenaram a performance na rua, na área exter-
na do museu com o áudio original. A voz do ralo, em questão, era a voz do atual
presidente, Jair Bolsonaro, enaltecendo os feitos do coronel.

3 É possível acessar o vídeo da performance no link https://www.youtube.com/watch?v=97FB-


mZccjqE&t=18s

37
A censura é uma medida de desespero adotada por governos ilegítimos, sem re-
presentação popular e que necessitam impor-se. Ela é, antes de tudo, covardia. E tem
efeito reverso na arte: atiça os artistas na luta pela liberdade e expõe a fragilidade de
um governo pautado em proibições. Um dos fundamentos do Estado Constitucio-
nal moderno é o direito à resistência. Ele afirma que, em última instância, toda ação
contra um governo ilegal é uma ação legítima. Não podemos equiparar o peso de um
aparelho de Estado e de todas as suas forças possíveis de repressão com organizações e
indivíduos que exercem seu direito legítimo de resistência (MOURÃO et al. 2015).
Vendo esses exemplos, percebemos que a adversidade é impulso criador. A arte é
resistência. Não podemos sobrevoar um espaço? Pois bem, nossa intervenção então
partirá da terra4. Não podemos falar de política? Burlaremos as proibições, nem
que seja nos últimos 30 segundos5. Fecharão nossas exposições e nossos teatros? A
rua sempre será uma opção.
Se nos tiram todos os aparatos, se queimam nossos museus, se proíbem nossas
exposições, é a rua que nos resta. A arte no espaço urbano não espera, não pede
permissão, não é submissa e não obedece. A intervenção urbana se impõe, é vista, é
vivida não apenas por quem a propõe, mas pelo coletivo cidade, pelos que passam,
pelos que olham, pelos que participam e, assim, criam junto. A rua é lugar de par-
tilha e resistência. Ela é o lugar da arte porque nela, a arte tudo pode.
Ao fazer uso da rua, a arte é violenta como a própria urbes. Violenta no sentido
de impulso criador, de fome de viver. E não tem como estar na rua sem ser política.
Ela é povo, se completa no olhar do outro.
[...] arte ativista, engajada ou intervencionista é muito mais que um gênero
carregado de exemplos de ‘anomalias curiosas’, úteis apenas para enriquecer
o velho cânone da história da arte. Os campos da arte e do ativismo produ-
zem experiências distintas, finalidades e processos que são particulares em
seus meios de atuação. Mas, ao se aproximarem, ao lançarem ações que bus-
cam enfrentar os problemas e os mecanismos de controle que penetram na
vida contemporânea – e que agem sobre os nossos corpos e subjetividades –,
as qualidades mais potentes de ambos podem agrupar-se e criar experiências
como um protesto coletivo, assim como uma rebelião em massa, uma agita-
ção livre ou formas micropolíticas de resistência (MESQUITA, 2011, p. 42)
A intervenção urbana é um ato político. Não no sentido da velha política, mas
num significado amplo que envolve o protagonismo social e a criação conjunta
com o transeunte. Um ato corajoso que transforma a cidade não propriamente em
palco, mas em espaço de criação em constante transformação.

4 https://www.youtube.com/watch?v=MBO6ILJAHUs&t=40s
5 ttps://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/27/roger-waters-exibe-ele-nao-
-em-curitiba-30-segundos-antes-de-proibicao.htm

38
Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta
pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é
o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupa-
ções, os sujeitos que participam ou não delas, etc. Se a arte é política, ela o
é enquanto os espaços e os tempos que ela recorta e as formas de ocupação
desses tempos e espaços que ela determina interferem com o recorte dos es-
paços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das
competências e das incompetências, que define uma comunidade política.
(RANCIÈRE, 2010, p. 46).
A arte, em seu caráter ousado, tem muito a contribuir com a luta pela demo-
cracia. Arte é rompimento. O que é igual, comum, não chama atenção e logo é es-
quecido. A potência da arte está em se fazer vista. As possibilidades da intervenção
urbana são infinitas e ela está aberta a todas e todos.
Por fim, achamos importante concluir com as palavras de José Martí, pai espiri-
tual da Revolução Cubana: “Os direitos se tomam, não se pedem; se arrancam, não
se mendigam”. O direito a uma democracia, a uma cidade livre, será conquistado
com muita luta e muita arte, ocupando o que é nosso por direito.

Referências
MESQUITA, André. Insurgências Poéticas: arte ativista e ação coletiva/ Prefácio de Cris-
tinaFreire. Apresentação de Vera Pallamin–São Paulo: Annablume; Fapesp, 2011
MOURÃO, Alexandre A.; MARTINS, Marcos V. L.; SOARES, Sabrina K. A.; CRUZ,
Sara V.; PACHECO, Stella M., Minimanual da Arte Guerrilha Urbana. 1. ed. Fortaleza:
Expressão Gráfica e Editora, 2015.
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas.
Florianópolis: UDESC/ CEART; v. 1, nº 15, out. 2010.

39
Pequenos recortes
de tempo urbano
Um traço visual do tempo
Letícia Barbosa

Fotos: Leticia Barbosa


Bordando na rua
Silvia Moura
Foto: Igor Dantas
Fotos: Igor Dantas
Foto: Yuri Piccinini

Fôlego
Alysson Lemos
Fotos: Yuri Piccinini
Pegando o sol com a peneira
Waldírio Castro
Foto: Natalia Rocha
Fotos: Natalia Rocha
Terrorismo de gênero
Marcio Peixoto e Thomas Saunders
Foto: Natalia Rocha
Fotos: Natalia Rocha
Tiro no escuro
Leandro Netto Companhia de Dança
Foto: Igor Dantas
Fotos: Rafa Eleuterio
Vândala, marginal e mulher – travessias batom
Maruska Ribeiro
Foto: Rafa Eleuterio
Foto: Eduardo Bruo Foto: Rafa Eleuterio
V.N.I
Wellington Gadelha
Foto: Rafa Eleuterio
Fotos: Rafa Eleuterio
(Des)Ordem e Re(Pro)Gresso
Lívio do Sertão
Foto: Igor Dantas
Fotos: Igor Dantas
A morte da bonitinha
Natália Coehl e Marcelle Louzada
Foto: Rafa Eleuterio
Fotos: Rafa Eleuterio
Pela força da linha
As Nega
Foto: Rafa Eleuterio
Foto: Igor Dantaso Foto: Rafa Eleuterio
Tálamo
Maria Macêdo (Kakaw Alves)
Fotos: Natalia Rocha
Fotos: Natalia Rocha
Rotas do Olhar
Marcelle Louzada1em Imaginários Urbanos
20/03 - Rota Performativa: a presença de facções: GDE e Comando
pela Força da Linha Vermelho. Uma rápida buzinada e duas
performers negras, homossexuais, car-
Performers: As Nega regando um tambor, entram no carro
Olhei dentro dos olhos e me arrepiei ao
- Onde será exatamente a perfor- ver meus proprios privilégios de mulher
mance? Porque, se está escrito na pro- branca, cisgênero, classe média e criada
gramação do festival que será próximo sob preceitos cristãos. O local da per-
ao terminal da Parangaba, como é que o formance ainda estava indefinido, salvo
público vai chegar nesse local, tão vasto o bairro, Parangaba, outra região peri-
e indefinido? férica de Fortaleza. A única exigência
Essas questões permearam as con- de caracterização do local é que deveria
versas na mesa de jantar, na véspera de ser uma encruzilhada. Ainda sem qual-
performance. Na ocasião, a preocupa- quer definição, estacionamos o carro e,
ção estava centrada na formação de pú- em uma volta ligeira no quarteirão, as
blico de uma primeira edição de evento. performers já se posicionavam para ini-
No outro dia, antes de sair para acom- ciar o ritual, pois, a performance, como
panhar a tal performance, visto a cami- dito, já havia começado para mim.
seta do festival e logo sou repreendida,
As primeiras batidas de tambor já
afinal, uma logomarca.
gritavam a diferença em um país predo-
A performance começa antes de
minantemente cristão. Alguns diziam se
qualquer preparo ou anunciação, até
tratar de macumba, outros, magia ne-
mesmo antes da presença das próprias
gra. Muitos curiosos sacavam seus celu-
performers. Da Aldeota ao Pirambu,
lares para rápidos registros e publicações
dentro do carro da produção do fes-
em redes virtuais. Nesse movimento,
tival, meio perdidos entre esquinas,
atravessando de um lado a outro para
semáforos e uma paisagem litorânea,
acompanhar e também registrar a per-
somos alertados pelas performers, por
formance, senti-me, de fato, em uma
whatsapp, a abaixar os vidros antes de
encruzilhada.
adentrar o bairro. Ao chegar, as picha-
ções riscadas no muro vizinho marcam

Marcelle Louzada é pesquisadora das artes e artista do corpo. Doutoranda em Educação pela
UNICAMP, mestre em Artes Visuais pela UFMG e graduada em Psicologia pela UFU, seu trabalho
transita entre arte, educação e experiência da cidade, tendo o corpo como principal referencial inves-
tigativo. Atualmente, desenvolve prática de pesquisa envolvendo crianças e adolescentes residentes
da Ocupação Nove de Julho - Movimento Sem-teto do Centro de SP - MSTC através de oficinas
de dança e Integra a Banda Fisiológica - coletivo de experimentações em arte contemporânea.

65
Enquanto uma performer entoava nos festivais e eventos de arte e, sim, o
cânticos umbandistas, a outra organi- transeunte desavisado que, em um sus-
zava, ao seu lado, uma espécie de al- to, tinha que lidar com o inesperado
tar com chapéus, vinho, velas, flores e acontecimento. A performance urbana
outros utensílios, relacionando-se com abriu uma fissura de discussão naquela
cada um como uma pomba-bailarina terça-feira no bairro, como um buraco
que gira e que gira e que gira. De fato, na pista, e, talvez, nesse dia, muitas pes-
ritual e performance, aqui, eram uma soas que comungam de um mesmo es-
coisa só, assim como corpo e tambor. paço rotineiramente, mas nem mesmo
Pela força da linha, tencionou-se uma se percebem como parte dele, puderam
fuga para além do fugitivo, serpentean- se olhar e se inquietar juntos.
do os preconceitos privados em lugares
públicos. Se “o sangue de Jesus tem po- 21/03 - Rota Performativa: V.N.I.
der”, como muitos entoavam, arrisco-
Performer: Wellington Gadelha
-me a dizer que o sangue que corre nas
veias dessas duas mulheres brasileiras
Um apagão assolou a cidade por
jorra poder pelas vias da urbe.
volta de 15:50 nesta quarta-feira em
Em alguns momentos carreguei lá-
Fortaleza. Descia o elevador. Breque.
grimas nos olhos. Ao atravessar aquela
Escuridão. Gritos de ajuda e num sal-
encruzilhada entre as ruas Sete de
to, pulamos para o terceiro andar, des-
Setembro e Caio Prado, de um lado a
cendo as escadas e saindo rumo à Praça
outro, diferentes públicos se formavam e
Portugal. Nas ruas, uma rotina já meio
se posicionavam. Enquanto um motota-
enviesada, com semáforos desligados e
xista ameaçava bater nas performers, ou-
trânsito descompassado. Uma cidade
tro o alertava que o estado ainda era lai-
sem energia elétrica faz vazar um certo
co. Outro ainda reivindicava a presença
tipo de controle pela luz. Na avenida
e posicionamento da polícia. Em outra
Dom Luiz, um performer negro arras-
via, um vendedor ambulante se aproxi-
ta rolinhos de sacos de lixo amarrados
mou devagar batendo palmas e engros-
em uma linha, em uma caminhada
sando o coro enquanto duas mulheres,
deslocada de sentido. Em uma socie-
uma delas com uma criança no colo,
dade marcada pelo previsível, brechas
dançavam alegremente. Em um deter-
do possível se abrem para o inesperado.
minado momento, um homem carac-
Poucos olham, poucos se afetam, tudo
terizado de Raul Seixas participou desse
carece de regras de conduta agenciadas
envolvimento ao dar as mãos à perfor-
por um inconsciente coletivo que insis-
merbailarina e girar e girar com ela.
te em manter as aparências na avenida
A presença de público no festival,
Dom Luiz, tão iluminada pelos holofo-
tão questionada na noite anterior, dis-
tes ostentados por vitrines e concreto e
sipava-se: este, não era aquele frequente
66
vitrines e um grande vão marcado pelo 22/03- Rota Performativa:
estacionamento Manhattan park, que (Des)Ordem e Re(Pro)Gresso
logo poderá ser mais uma vitrine ou
Performer: Lívio do Sertão
concreto ou vitrine ou concreto. Tudo
é especulação imobiliária, inclusive o
Mesmo nesses tempos duros, mar-
próprio corpo do performer, que, ago-
cados por tantos medos e descompas-
ra, desamarra sacos pretos ensacando a
sos, as praças ainda (re)existem. No sol
si mesmo.
a pino, a Praça do Ferreira, um marco
Do outro lado da rua, olhares curio-
histórico e patrimonial de Fortaleza,
sos, muitos vindos dos trabalhadores
pulsa vida. Muitas pessoas transitam de
daquela região, aqueles que estão do
um lado a outro, outros tantos descan-
lado de dentro das vitrines e concretos e
sam nos extensos bancos da praça. Um
vitrines e concretos. “Se fosse no bairro
senhor alimenta os pombos, outro, com
Pirambu seria um homem-bomba, mas
uma caixa de som acoplada na bicicleta,
aqui nesse local isso só pode ser arte”,
faz seu show, outro, faz uma espécie de
disse a funcionária da farmácia. “Esse
vitrine viva na porta da loja Riachuelo.
homem precisava aprender mesmo to-
Um homem indígena vende produtos
car um piano ou fazer uma arte ao invés
de cura em uma pequena barraca em
de ficar perdendo tempo com esse tipo
uma ponta da praça, na outra, uma
de coisa”, disse o engravatado que ligei-
mulher caracterizada de baiana vende
ramente passava. Um pequeno caos se
acarajés. Um homem de pés descalços,
formava no trânsito que se movimenta-
limpa os bancos da praça com pedaços
va sem as regras de condução via ener-
de uma bandeira do Brasil. A paisagem
gia elétrica. Não há sinal de trânsito e
é borrão de gente e coisa, em recortes
nem de celular.
no tempo-espaço. São muitas histórias
Tudo parece estar suspenso enquan-
possíveis.
to o performer dança com a cabeça
Entendendo que o espaço é uma
ensacada como se quisesse mesmo se
dimensão implícita que molda nossas
libertar. Aos poucos o saco se rasga e
cosmologias estruturantes, faz-se fun-
a dança parece fundir corpo e rua. Em
damental percebê-lo pelo e no corpo,
um suspiro, mais uma vez, percebo-me
como a esfera de possibilidade da exis-
na avenida Dom Luiz, assistindo um
tência da multiplicidade, no sentido da
performer negro se expressar enquanto
pluralidade contemporânea, como a es-
diversos estados brasileiros vivem um
fera na qual distintas trajetórias coexis-
apagão histórico. Estou onde o vento
tem. Na Praça do Ferreira, muita gente
faz a curva, no intervalo dessas regras
tece tessitura de espaço, em um fazer vi-
todas em uma pausa para contempla-
ver que pulula diferença. As processua-
ção. As luzes se acenderam há pouco...
lidades corporais pertinentes ao próprio

67
movimento da vida revelam, portanto, da praça, todo aquele movimento já é o
a coexistência da heterogeneidade. previsível de se estar. Assim, Lívio-ho-
A bandeira do Brasil, antes em pe- mem-menino-sertanejo desloca o olhar
daços, agora está sendo costurada pelo da retina de quem olha. Aos poucos,
homem que, minutos antes, limpava um nome próprio se desenha naque-
com a mesma a própria praça. A ação é le bordado, mas, antes que a bandeira
quase invisível perante tudo o que está possa ser amarrada em uma árvore para
e se constrói nesse agora que urge. Po- assim balançar e dançar, ela precisa de
rém, ela não esconde a atitude da pro- sabão e água. Lava, lava, lava um Bra-
positiva, mesmo nesses tempos duros, sil de sentidos. (Des)Ordem! Re(Pro)
marcados por tantos medos e descom- gresso! Marielle vive, faz viver em nós
passos. O que se costura, ali, com linhas o sonho de que é preciso acreditar e lu-
vermelhas, é um Brasil possível. Depois tar e insistir em acreditar e lutar. Não se
de costurada a bandeira, inicia-se um trata, portanto, de um nome próprio,
processo de bordado. Aproximo-me representável, identificável, mas de uma
cada vez mais e percebo que o homem individuação operando por intensida-
performador canta baixinho um hino, des. Marielle intensifica políticas em
talvez, o hino da bandeira e, por mais nós! No presente espacial, o que somos
introspectivo que aquilo possa parecer, é realmente o que fazemos.
também carrega uma subjetividade es-
pecializada de sentido. Estou na capital 23/03- Rota Performativa:
do Ceará observando Lívio do Sertão, Pegando O Sol com a Peneira
o homem que agora borda letras tortas.
Quem é esse homem-menino-sertane- Performer: Waldírio Castro
jo, o que quer gritar nessa poética espa-
cial tão íntima e ínfima? Alguns dizem O homem carrega em si um traje;
se tratar de loucura, nessa clausura do camisa abotoada até o pescoço, sapa-
fora que urge a homogeneização dos tos pretos que se afundam em pegadas.
modos de vida. Ordem! Ordem! Pro- No horizonte, um deserto de mar, sal e
gresso! Progresso! Processo. Estamos sol, quiosque e cadeiras de plástico. A
tratando de diferença, mas estamos tra- praia anuncia um futuro em extensão,
tando também de um jeito de se estar em um tempo que aparenta escorrer
na diferença. Afinal, tanta performati- despreocupado entre conversas e con-
vidade cabe numa praça, mas um tipo sumos e banhos de mar. Porém, o ho-
de performatividade já instaurada em mem parece querer desinventar objetos,
um sistema de registros. como quem quer dar funções às coisas
Então, Lívio-homem-menino-serta- que não são delas mesmas. Como pe-
nejo não reproduz nada parecido com neirar as intimidades do mundo?
o rotineiramente vivido na intensidade

68
Tento apalpar as palavras como um to sódio. “Tenho uma dor de concha
sopro, na tentativa de não empobrecer a extraviada” *.
imagem. “Sou puxado por ventos e pa-
*fragmentos de “O livro das
lavras”. Meus olhos se inundam de poe-
ignorãças”, de Manoel de Barros
sia ao mirar aquele homem, pegando o
sol com a peneira, em uma paisagem
deslocada de sentido. Ademais, outros
olhos comungam a miragem, cada qual
com seus artefatos. Câmeras de celular
podem captar sinestesias? Meu dese-
jo é me fundir nessa paisagem. Então
mergulho. “Um fim de mar colore os
horizontes”.
O futuro é aqui mesmo onde a ex-
periência transfigura forma de gente.
O homem vira coisa, vibra areia, pin-
tura expressionista, em uma silenciosa
caminhada pela praia. Seu corpo risca
paisagem e se arrisca em um espaço
normatizado pelas convenções do la-
zer e descanso. Afinal, quem se dispõe
a estar na praia por motivos outros que
não os óbvios? Mas, parece mesmo
que o homem quer engolir semióticas
para, enfim, fluir imagéticas. Águas
molharam as sensações. “A luz das
horas me desproporciona”. O homem
continua a caminhar e caminhar como
se quisesse alcançar Iracema na Praia
de Sabiaguaba. Mas o futuro (pre)
serva perigos na carne e num sussur-
ro, uma voz alerta retorno. Antes de
partir, contudo, o homem quer nave-
gar, desinventar corpo para virar barco
e entre uma onda e outra, mergulha,
dissipando tudo como sonho. A vida
urge do lado de lá, em tempos de (in)
delicadeza, dióxido de carbono e mui-

69
Pati Bertucci1em Imaginários Urbanos
19/03- Rota Performativa: Fôlego brincar e, as mães:–Diga obrigada pelo
balão filho! A criança corre e Alysson
Concepção: Alysson Lemos e
sorri.
Alice Dote Ao olhar essa performance, muitas
Performance: Alysson Lemos ideias foram surgindo na minha cabeça
para escrever este texto, mas quando fui
Hoje é feriado em Fortaleza-Ceará, participar da ação, ao soprar a bexiga,
é dia de São José, está tudo bem cal- uma lembrança veio automaticamen-
mo. Poucas pessoas vão aparecendo ao te:–Diga trinta e três.
mesmo tempo em que o sol fica mais Não, não é do poema PNEUMO-
quente na Praça central da Messejana e TORAX de Manuel Bandeira que estou
Alysson Lemos caminha para escolher me lembrando, mas da frase que ouvi
um lugar para colocar sua cadeira, sen- alguns dias no consultório do pneumo-
tar-se e começar a soprar com ar dos logista e outros no hospital. Mais tarde,
seus pulmões as bexigas amarelas. essas palavras me levaram a uma cirur-
A medida em que Alysson enche as gia no pulmão como última alternativa
bexigas as pessoas vão se aproximando. dos médicos para combater uma doen-
A observar. A comentar. Ele aproveita ça sem diagnóstico certo.
para convidar:–Ei, me ajude aqui? O Durante a recuperação foram mui-
transeunte, desconfiado, pergunta:– tos sopros, mas as bexigas teimavam em
Mas, quantos balões é para encher? ficar vazias. Lembro da primeira que
E, depois de encher muitos balões, o consegui encher, gesto que sinalizava a
próprio transeunte acaba por convidar oportunidade de continuação da vida,
outra pessoa:–Preciso ir, ajude ele aqui? depois de tantos problemas.
Enquanto isso, um vendedor ambu- O artista Alysson escreveu no release
lante pegou várias bexigas do saquinho que, com a performance, tinha a inten-
e perguntou se poderia ir encher na sua ção de “evidenciar as íntimas relações
barraca e voltar para devolver depois, entre arte e potência de vida”. Para ele,
assim Alysson ganhou mais dois com- “Fôlego opera um corte na normalidade
panheiros na sua empreitada e pode se cotidiana, desvia fluxos e usos prescri-
dedicar mais a amarrar uma bexiga a tos do espaço urbano, convoca o estar
outra no barbante e criar uma nuvem junto e provoca a inquietude, partindo
amarela. Crianças vão surgindo para de uma reflexão sobre o suicídio, ato de

Doutoranda em Artes pela ECA-USP e, na mesma instituição, se titulou Mestre. Também


possui graduação em Arquitetura e Urbanismo. Trabalha explorando a relação entre a arte, o
corpo, a cidade e a construção de nossas próprias subjetividades

70
extremidade que evidencia o colapso 20/03- Rota Performativa: Tálamo
das relações e as pressões em torno da
Performance: Maria Macêdo
saúde mental. ” Interessante que devi-
(Kakaw Alves)
do a uma experiência que ocorreu na
minha própria história de vida isso faz
Uma mulher negra caminha, em
tanto sentido. Encher ou não o balão
silêncio, com um vestido que costura
após a cirurgia era uma questão de vida
fragmentos de tecidos sublimados por
e de morte.
frases de violência contra as mulheres.
Entretanto, não é apenas da minha
Durante a caminhada pelas ruas do
história que trata a performance, ela
centro de Fortaleza, esta mulher, que se
conversa de alguma forma com todos
parece com uma noiva, começa a arran-
aqueles que se propuseram a participar,
car pedaços do seu vestido e entregar
a encher as bexigas e a se relacionar en-
aos transeuntes. Alguns aceitam, outros
tre si e com o performer na Praça. Sem
recusam, mas o que chama a atenção
contar com aqueles que apenas olharam
são os comentários:
para a instalação de bexigas que ficou na
- Bem novinha e já pirada...
Praça. Quantas mais histórias podem
- Olha o que ela está fazendo, logo
ser lembradas a partir desta imagem?
na frente da igreja mais antiga do Ceará!
Sim, as bexigas vão durar pouco, vão
- Será que ela está pagando
explodir ou se esvaziar, devolvendo o ar
promessa?
para a terra, afinal tudo se movimenta
- Ela parece um fantasma!
no universo. Mas a ocupação da Praça
- Me explica o que está acontecendo
com esta performance lúdica e relacio-
aqui?
nal já faz parte da história, o que nos
- Ela está com os peitinhos de fora,
remete a ideia original de Cidade. Isto
olha lá, cabe na minha boca.
é, dos espaços que se configuram por
- Tire essa mulher louca de dentro
meio de ambientes que possibilitem
da minha loja.
formas de manifestações públicas de
A recepção dos transeuntes é vio-
troca e reconhecimento do outro. Tais
lenta, o corpo feminino é frágil, o que
gestos garantem que os espaços públi-
torna o percurso um risco. Ao mesmo
cos não desapareçam, são atos políticos
tempo, o corpo é coragem e enfrenta-
que reivindicam a vida urbana como
mento desta violência, do machismo,
parte da cultura e vice-versa.
do preconceito e dá voz às denúncias
que se tornaram apenas números para
a sociedade. Este corpo de noiva foi ca-
paz de sublimar e de se apropriar do seu
próprio contexto, para criticá-lo e não
para cobri-lo com o seu véu, afinal foi

71
no espaço da cidade. Vale destacar que 21/03- Rota Performativa:
o espaço social habitável está em crise, Tiro no Escuro
por isso a necessidade de repensar o co-
Leandro Netto Companhia
tidiano urbano, principalmente para
os corpos mais violentados. Tálamo é de Dança
um corpo feminino negro, um corpo Proposição e Direção: Leandro Netto
que carregou com ele muitos outros
Performers: Delfina Pontes, Sérgio
corpos de mulheres negras deste país
Cavalcanti, Thais de Melo
escravocrata.
Hoje foi muito difícil fazer este per-
No estacionamento do Shopping
curso junto com Kakaw Alves. Eu a
Benfica três pessoas descem do carro
observei e ouvi os comentários direcio-
com perucas coloridas. Um segurança
nados a ela, mas na verdade eu queria
se aproxima e pergunta:–O que está
abraçá-la e protegê-la de toda aquela
acontecendo? Elas caminham até a en-
ignorância, porque o meu corpo tam-
trada da estação Benfica do Metrô, uma
bém já sofreu violência. Hoje, aprendi
começa a derrubar moedas, depois as
na pele que tenho privilégios, pois sou
recolhe, e isto acontece inúmeras vezes.
uma mulher branca e as mulheres ne-
Depois ela continua o percurso até a bi-
gras sofrem mais violência do que as
lheteria, compra o seu bilhete e desce
mulheres brancas.
até a plataforma seguida pelas demais.
Hoje, o meu corpo branco sofreu a
Os seguranças logo se aproximam,
violência direcionada ao corpo negro
olham, param ao lado. Se instaura um
dela.
ambiente de tensão.
Hoje, chorei, parei, caminhei e
O trem chega, todas entram, a
abracei.
performer, com um tubo enorme nas
Hoje me lembrei de Marielle, im-
mãos, começa a girar e dançar ao som
possível não lembrar.
de uma música que parte da caixa de
som embutida na roupa. Na estação se-
guinte dois seguranças se aproximam,
travam a porta, param o trem e um
deles pede para a performer descer e o
acompanhar até a saída. Ela se recusa a
sair. Algum dos passageiros pergunta ao
segurança qual é o problema, ele diz:–
São as regras!
O passageiro pergunta:–Que regras
são essas? O segurança responde:–É
proibido tocar músicas no Metrô. A

72
música é desligada imediatamente, mas como nos elucida a filósofa alemã
o segurança insiste que não vai permitir Hannah Arendt, em seus escritos sobre
que o trem siga adiante enquanto o per- a sociedade, que para ela está perden-
former não sair. Mais passageiros per- do o interesse pela vida pública, pois a
guntam qual é o problema, sendo que a individualidade está sobrepujando o so-
música já foi desligada. cial, e o privado o público. O que é um
- São as regras! diz o segurança. problema pois o espaço público possi-
- Se você expulsar ele, vai ter que nos bilita o encontro, o debate, a convivên-
expulsar também e ainda devolver o di- cia, é onde a vida pode ser produzida e
nheiro da passagem de todos! Não está reproduzida objetivamente. Os corpos
acontecendo nada de errado, deixa ele presentes e atuantes dos performers
se expressar! Disse uma das passageiras. nos apresentaram este debate sobre a
Frente aos questionamentos, o segu- política (no sentido amplo do termo),
rança desistiu de negociar e começou a aquela que só pode surgir na esfera pú-
ameaçar: blica. Com a socialização, é possível
- Vocês apoiam isso? Então não re- promover ordem entre as diferenças,
clamem depois, logo eles começam a te afinal, uma sociedade livre não ocorre
roubar! sem o exercício de pensar o mundo em
A ideia da performance urbana, comum.
segundo o release, era a de criar um Sim, nosso corpo faz política!
deslocamento de corpos saturados por
meio de recurso sonoro: “xingamentos, 22/03- Rota Performativa:
peidos e quedas como explosões orgâ- Vândala, Marginal E Mulher –
nicas, excretadas num caminho ordiná-
Travessias Batom
rio e sem volta”. Mas, após o som ser
desligado, o que se viu foi a instauração Performer: Maruska Ribeiro
de uma assembleia pública que discu-
tiu o destino dos performers. Acredito Por volta das nove horas da ma-
que isso pode ser entendido a partir nhã, cheguei ao cruzamento das ruas
da ideia de civilidade, inerente aos es- Coronel Ferraz e Visconde de Sabóia e
paços públicos da cidade, pois é lá que vi um prédio bastante interessante do
se encontram as possibilidades de for- ponto de vista histórico e arquitetô-
jar laços sociais independentemente da nico. De lá dava para escutar algumas
distância social, tendo em vista que a crianças correndo e brincando. Fui até
cidade pressupõe a convivência com o o portão, que tinha uma faixa da Uni-
desconhecido. dade Classista, um homem que me deu
Entretanto, nos dias de hoje, tal boas-vindas.
conceito se encontra adormecido, Só então descobri que este pré-
dio abriga uma ocupação. Entrei nela

73
a procura de Maruska, pois ali seria o Espero firmemente que a Prefeitura
ponto de encontro para a performance de Fortaleza e a Habitafor apresentem,
dela, mas não a encontrei. Entretanto, rapidamente, uma solução para o pro-
tive o prazer de conhecer muitas pes- blema habitacional destas famílias, para
soas que me receberam de braços aber- que elas tenham acesso à moradia de
tos e, entre uma conversa e outra, fiquei qualidade. E, ainda, reforço que uma
sabendo que aquele dia era importante reforma urbana é sem dúvida urgente,
para elas, porque, no período da tarde, não apenas no Ceará, mas no nosso país
haveria uma reunião com representan- como um todo.
tes do Estado para negociar a situação Neste meio tempo a performer che-
da ocupação. gou. A performance dela foi de cunho
Antes da artista chegar, descobri ativista e destacou o direito das mulhe-
também que aquele prédio ocupado res no contexto da Ocupação Gregório
foi uma escola, seu nome era Nossa Bezerra. A ideia foi unir as forças com
Senhora de Aparecida e Jesus, Maria e as mulheres da ocupação e caminhar
José, e estava abandonado a cerca de nas ruas do seu entorno, espaço reple-
quinze anos. Ele foi doado para a Pre- to de armazéns e lojas, no Centro de
feitura de Fortaleza pela Arquidiocese Fortaleza. Entretanto, como o dia era
e faz parte do primeiro tombamento especial para a luta do grupo, poucas
de um conjunto arquitetônico aprova- puderam ir.
do pelo Conselho de Preservação do A performer fez o chamamento às
Patrimônio Histórico e Cultural (Com- mulheres na ocupação, expos a sua ban-
phic); o conjunto compreende imóveis deira e os batons, além de todo o ma-
que datam do fim do século XIX e iní- terial para a ação, cobriu o rosto com
cio do século XX, são eles os prédios do um lenço e saiu para a rua para deixar
Colégio Imaculada Conceição, da Igre- as suas marcas.
ja do Pequeno Grande, da Escola Jesus, Eu e outras mulheres a seguimos, de
Maria e José e da Escola Justiniano de perto, de longe, sempre atentas para a
Serpa, localizados no entorno da Praça recepção das pessoas, entre eles os tra-
Filgueiras de Melo. O grupo Ocupação balhadores dos armazéns, das lojas e os
Gregório Bezerra, da Unidade Classis- transeuntes. O que eu pude constatar
ta Ceará, decidiu invadir o edifício da foi que a maior interferência da per-
antiga escola após a vitória deles na re- formance se deu pela materialidade
tomada das obras da escola municipal e fetichização do corpo feminino, de
no bairro Conjunto Ceará, tendo em maiô, máscara e bandeira, naquele lo-
vista o impasse instaurado pelo Estado cal em que transitavam na sua maioria
na liberação de um local provisório des- homens. As poucas mulheres que ca-
tinado a moradia das famílias. minhavam por ali, em sua maioria, se

74
aproximavam para dizer que apoiavam baixinho, as frases que consegui ouvir
a iniciativa. Os homens, em contrapar- foram: “estou um pouco assustado!”
tida, ficaram irritados, indiferentes ou e “quem se propõe a fazer uma coisa
caçoavam da performer. Apenas um dessas?”.
homem se mostrou solidário e parabe- Durante o festival, eu acompa-
nizou o trabalho realizado pela artista nhei performances e performers em
junto com a ocupação, o que me levou diferentes espaços e, com isso, pude
a pensar que o espaço urbano ainda é ver claramente como a materialida-
um território demarcado pelo poder de do corpo afeta o ambiente urba-
masculino. no. Constatei que, no caso do corpo
feminino, que age diferentemente da
23/03- Rota Performativa: padronização social, há uma sexualiza-
Terrorismo de Gênero ção e hostilização violenta, principal-
mente pelos homens. Entretanto, em
Performers: Marcio Peixoto e relação aos dois performers homosse-
Thomas Saunders xuais há outro tipo de hostilização: ri-
sadas, risadas e mais risadas, tanto dos
Sexta-feira em Fortaleza, dois per- homens quanto das mulheres. Mas por
formers vestidos de “enfermeiras ter- que isso ocorre? Certamente a ques-
roristas” caminhavam e dançavam pela tão do preconceito e da intolerância
Av. da Universidade, no Benfica, com homossexual é marcada por variáveis
o objetivo de imperar novas ordens sociais (raça, situação socioeconômi-
nos muros da cidade com a colagem ca, escolaridade, gênero), assim como
de cartazes (lambe-lambe). pelas mídias e meios de comunicação.
Perto da entrada do campus de Impossível não lembrar de Michel
Ciências Humanas da Universidade Foucault, pois ele afirma que a cons-
Federal do Ceará um transeunte arran- tituição do dispositivo da sexualidade
cou apenas um dos lambes colados du- se dá por elementos que tratam de um
rante a ação, nele estava escrito: “Seja conjunto heterogêneo; que engloba
viado”, mas ele não falou nada. Antes discursos, instituições, organizações
disso, uma mulher também se inco- arquitetônicas, decisões regulamenta-
modou com o ato da fixação do lambe res, leis administrativas, enunciados
e disse para os performers que cha- científicos, proposições filosóficas,
maria a polícia, ao mesmo tempo que morais, filantrópicas e etc. Tal disposi-
arrancava o papel fixo no muro que tivo é o controle normativo do qual as
nem sequer era da sua residência. Com práticas e os discursos partem, e isso se
exceção dessas duas pessoas, ninguém revela não apenas pelo que se diz e se
mais questionou a ação, elas apenas mostra, mas também por meio daquilo
davam risadas e comentavam entre si

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que não se mostra e nem se diz. Se tra- Louzada, performou “A Morte da Bo-
ta de um jogo de relações de poder, da nitinha” junto com Natália Coehl. O
configuração de uma racionalidade, de seu programa de deriva performativa
uma organização por meio das quais o tinha como intuito experienciar o per-
discurso e suas práticas se dão. curso-traçado-catalisador de sensações
Talvez, por isso o preconceito é algo da cidade a serem reverberadas pelo e
velado, mas visivelmente presente no es- no corpo. Pois, como diz o release, o
paço público que produz e é produzido estado de percepção psicofísica de des-
pela sociedade, como um espelho. Nes- continuidade das sensações, mobiliza
ta performance isso ficou muito claro, o corpo em uma dança que só existe a
entretanto, os corpos disruptivos dos partir de cada respiração.
performers atravessaram o preconceito Quando cheguei ao ponto de en-
velado da cidade, como pode ser lido contro a ação estava em pleno aconte-
em um dos lambes que permaneceram cimento, o corpo produzindo o espaço,
colados na avenida: “seja viado” e “se o espaço produzindo o corpo. As duas
me atacar eu vou atacar”. mulheres com vestidos longos, boniti-
nhas, carregavam pedras ou as pedras
25/03- Rota Performativa: as carregavam? Corpo-paisagem, cor-
a Morte da Bonitinha po-objeto, materialidade feminina que
performa as relações de poder ramifica-
Performers: Natália Coehl e das e não localizáveis.
Marcelle Louzada A cidade mais uma vez mostra que
é um território masculino, mais uma
25/03- Rota Performativa: vez ataca os dois corpos femininos que
Bordando na Rua buscam, sonham, sentem e reagem,
Performer: Silvia Moura mas não vamos desistir! Vamos ques-
tionar a ancestralidade da Bonitinha
Ontem, por motivos de segurança que existe em cada uma de nós, vamos
e pelas condições de mobilidade urba- dançar com o desconhecido, vamos nos
na em Fortaleza, o espetáculo PRICE libertar de um corpo organizado e ma-
WORD foi cancelado. Hoje, conti- nipulado, vamos invadir com o prazer
nuamos com a nossa programação. É o de transgredir.
último dia do Festival Imaginários Ur- Sim, a imagem “força o pensamen-
banos, duas performances estão aconte- to”, no sentido de Gilles Deleuze, ten-
cendo em diferentes pontos da cidade do em vista que sugere algo que rompa
para se encontrarem a beira mar. com o horizonte do provável, inter-
A minha parceira nas escritas do fes- rompendo toda organização da cida-
tival, a artista e pesquisadora Marcelle de, todo contexto dominável por um

76
convencionalismo. Afinal, assim, na Como escreveu Michel Foucault:
subtração de elementos de poder, é que nas sociedades modernas, o corpo segue
seria possível liberar a força não mera- dominado por potências opressivas e o
mente comunicativa da imagem. corpo se relaciona à questão da apro-
Eu não pude acompanhar toda a de- priação do espaço. Na medida em que,
riva, parti para a avenida beira mar, mas na modernidade, o exercício do poder
não desisti não, fui acompanhar outra é sutil, exercido por meio de técnicas
mulher, outra de mim, sentada em um disciplinares que não procuram castigar
banco, bordando em frente à estátua ou forçar o corpo a trabalhar, muito di-
de Iracema. Outro corpo com desejo ferente da antiga “forma absolutista do
de se relacionar por meio do bordado poder”, onde o poder era demonstrado
com o outro, com o tempo, com o es- por meio da violência física. O objetivo
paço urbano, criando relações entre os dessas novas técnicas disciplinares seria
passantes e amplificando as possibilida- tornar os homens dóceis politicamente e
des de estado de presença: “um corpo úteis economicamente; extrair dos cor-
e as linhas, pontos e o silêncio, o olhar pos o máximo de produção, já que com
preenchido de sentidos criando pontes a disciplina não haveria capacidade de
entre mim e as pessoas”, como dizia o revolta e de insurreição contra o poder.
release. Entretanto, como disse a artis- Mas o corpo resiste, eles são produ-
ta Silvia Moura, o transeunte não olha tos sociais, assim como os seus produ-
mais para fora, não sente mais o corpo tores, são ativos e relacionais.
do outro, não aceita não fazer nada que Não vamos desistir de lutar por um
não seja um produto para ser comercia- espaço habitável para nossos corpos, to-
lizável. A funcionalização do cotidiano dos os corpos.
da vida urbana também produz corpos Temos direito à cidade!
funcionalizados.
Passei a tarde com Silvia Moura
“Bordando na rua”, aprendi a fazer dois
pontos diferentes, pisei na areia, encon-
trei a rainha Iemanjá no mar, desenhei
o caderno, caminhei, dancei, troquei,
fui levada a caminhar pelas mãos des-
ta mulher-artista incrivelmente forte e
potente.
Hoje aprendi com elas um pouco
mais sobre o que é ser mulher.
Hoje vivi no meu corpo a cidade.

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Narrativas
performáticas
A Morte da Bonitinha
Natália Coehl1
A vista pro mar me acalma.
A vista pra cidade me apavora.

A Pesquisa
A Bonitinha é um corpo feminino privilegiado, que consegue sobreviver no sis-
tema patriarcal sendo conivente a ele, pois sua composição estética é a forma que o
agrada. Tendo um corpo padrão, a Bonitinha também precisa adequar a sua postura
social para se encaixar no movimento tradicional desta estrutura enrijecida. Além
dos padrões estéticos, existem as que já nasceram em berço de ouro, estas vivem em
suas bolhas sem saber o que existe fora dela. A Bonitinha é um dos alicerces que
sustentam o patriarcado. Os sistemas educacionais colocam a Bonitinha num lugar
de se adequar a ele como estratégia de sobrevivência, porém essa percepção se dá
em camadas muito profundas, e o que sobra na superfície é a tentativa de viver em
busca de um conto de fadas, onde a Bonitinha é salva por um príncipe encantado.
O concreto, simbólico do movimento patriarcal capitalista, invade a cidade de
forma opressora, sufocando o direito de respirar dos que trabalham para construí-
-la. O conto de fadas não existe para todos, apesar de ser vendido que, através de
muito esforço, todos podem alcançá-lo. Essa estrutura é construída de baixo pra
cima, embora a ideia venha de cima para baixo. E se optarmos por não construir,
destruir esses alicerces, boicotando o que nos oprime, quebrando nossos muros
internos, abrindo espaço para olhar o outro, abrindo mão de nossos privilégios?
A morte para essa pesquisa não é o contrário de vida, mas sim o caminho para
encontrá-la. Ela é o símbolo para libertação, o fim de um corpo estereotipado e
padronizado. Pensando assim, a morte aqui é o reconhecimento da pessoalidade, é
a quebra do muro social para assim estar aberto para o encontro com o diferente.
Para matar a Bonitinha, se faz necessário um olhar profundo e atento para si, para
perceber as sensações que este corpo traz e, assim, investigar a raiz da Bonitinha e o
que ainda vive, dessa ancestralidade, em nós. Esta é uma possibilidade de processo
de desconstrução de si. Penso que talvez os processos de desconstrução do corpo
devam estar na rua, no fora, no lugar onde os encontros inesperados acontecem.
Talvez assim, consigamos liberar espaços, “desconstruir estereótipos, desmontar
sistemas criados por uma cultura da não vida”2 (Maria Thereza Azevedo).
1 Atriz, diretora, bailarina, performer, preparadora corporal e produtora cultural. Graduou-se
em Artes Cênicas pelo IFCE.
2 LEAL, Maria Lucia, ALCURE, Adriana Schneider, BACELLAR, Camila Bastos e AZEVE-
DO, Maria Thereza. Pedagogias feministas e de(s)coloniais nas artes da vida. Disponível em :
<http://www.seer.ufu.br/index.php/ouvirouver/article/view/36982 >. Acesso em: 4 out. 2017.

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O programa performativo
Por que vocês estão carregando pedras?
Uma criança perguntou.

Como programa ritualístico para A Morte da Bonitinha, Marcelle Louzada e


eu resolvemos carregar, cada uma, um pedaço de concreto, que pesavam aproxi-
madamente 20 quilos, da Praça Portugal, situada no Bairro Meireles, até o Poço da
Draga, que se localiza a quase 4 km de distância dessa praça. Este caminho liga dois
lugares muito diferentes entre si.
Meireles é um bairro onde mora a alta classe social de Fortaleza/CE, nele estão
localizados os condomínios de luxo, as lojas caras, os carros blindados, os muros
altos e uma grande quantidade de câmeras de segurança. Os moradores deste bairro
raramente andam a pé pelas ruas, normalmente eles saem em seus carros para ir à
padaria, que fica a 3 quadras de suas residências. A Praça Portugal fica situada no
coração deste bairro.
O Poço da Draga foi povoado por pescadores, estivadores e trabalhadores da
alfândega. As pessoas que atravessam esta área, talvez não percebam que exista
moradia, pois a localidade se encontra escondida rodeada por galpões. Existe ali,
um enorme movimento de especulação imobiliária e turística, que tem o intuito de
tirar os moradores de lá, transferindo-os para a periferia da cidade, para dar inicio
ao projeto “Fortaleza 2040”, que consiste em construir prédios daquela área até a
Barra do Ceará. Uma ação higienizadora e colonizadora.
O concreto entra para nós como o simbólico do patriarcado, ou o peso da
consciência dos privilégios da Bonitinha. Sentir esse peso é a grande questão deste
trabalho e, ao sentir, observá-lo para depois matá-lo. Dói ser conivente a uma
estrutura que vive e cresce a partir do sangue e suor de toda uma massa oprimida
por não encontrar novas possibilidades de existir fora do sistema capitalista. É aí
que entra o que nos une entre os diferentes caminhos do feminismo, no sentido de
saber quem é o nosso inimigo, e como cada uma age com ele. Para a Bonitinha o
caminho é matar privilégios, encontrar o perigo e se libertar da proteção e do con-
forto que o patriarcado dá, em abundância, cheio de sangue nas mãos. Dissolver,
romper, quebrar os alicerces que sustentam essa estrutura e depois assisti-la ruir.
Levamos 3 horas para chegar ao Poço da Draga. Nesse caminho encontramos
muitas pessoas que nos perguntavam por que estávamos carregando pedras. Ou-
tras disseram que o peso estava leve. Sim, estava leve, é muito mais pesado, basta
olhar em volta e perceber o que construímos até agora. No caminho encontra-
mos muitos prédios e, a medida que nos aproximávamos do Poço, a paisagem
ia se transformando, mostrando um grande monstro de olhos sedentos e cheios
de anseios para ocupar aquele espaço. Um dos projetos criados é que o Poço da

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Draga vire um estacionamento para o futuro e duvidoso aquário em construção
embargada.
Nas palavras de Virginie Despentes, retiradas de seu livro Teoria King Kong,
ela pontua que, “não escreveria o que escrevo se fosse linda, linda o suficiente para
mudar a atitude de todos os homens que cruzam o meu caminho”3. Penso que
o caminho para a desconstrução do corpo da bonitinha é bem árduo e tem uma
oposição ferrenha que é a venda de um corpo feminino estereotipado. A camada
superficial da pele é apenas a beira do precipício. Quando vamos pular para en-
contrar as nossas profundezas, o que nos motiva na vida, o que é existir? Como
ter coragem para saltar em águas desconhecidas? O final do percurso se deu ao nos
encontrarmos com o mar.

3 DESPENTE, Virginie. Teoria King Kong. São Paulo, SP. Editora N-1. 2016.

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Fôlego
Alysson Lemos1
19.03.2018

Dia 19 de março de 2018, dia de São José, feriado na cidade de Fortaleza e seria
a quarta vez da realização da performance: Fôlego. Apesar de algumas sensações
que possam ter se materializado nas outras vezes em que a performance aconteceu,
a intenção é se iniciar num campo completamente aberto, inacabado e a disposi-
ção do que possa surgir.
A primeira sensação que despertou algum pensamento foi a escolha do lugar
que, por ser um espaço não habitual, já cria uma relação com sentidos diversos, do
ponto de vista da descoberta, deixando a performance num lugar ainda mais de va-
zio - que considero aqui de uma extrema potência. O processo de chegada, ao cir-
cular na praça e do escolher o local para a realização, já configura o início da ação.
Por ser feriado, em um local onde o fluxo de pessoas costuma ser intenso dia-
riamente, uma situação já se instaurou diferente, percebendo nos trabalhadores
que insistiram em montar suas barracas, abrirem suas lojas e lavarem os vidros dos
carros no sinal um estranhamento com um corpo que não era comum naquele es-
paço e que naquele determinado dia parecia destoar ainda mais daquela realidade.
Na calmaria da manhã, a performance se iniciou com o propósito estabelecido:
encher 500 balões de cor amarela. A partir dessa ação, as relações começam a esta-
belecer a ação como dispositivo para a construção de relações, as mais diversas, com
diferentes intenções, “relações que podem se configurar como utopias efêmeras que
se alastram para além do tempo instituído pela ação performática”, como afirma
Tânia Alice em seus estudos sobre estética relacional e a arte da performance.
Após a realização da performance um dos pontos que ficou mais latente foi a
relação com o “fazer nada”, e de quanta potência esse “nada” pode operar no espaço
urbano. A valorização do inútil e o esmero em realizar uma tarefa que aparente-
mente não gerar valor nenhum do ponto de vista reprodutivo monetário gera uma
tensão, às vezes aparente, as vezes velada sobre o simples ato de encher balão e de
sua completa insignificância. A fricção do trabalho com espaço público parece
evidenciar esse lugar primordial do consumo em que a rua foi instaurada, onde
qualquer atividade que não possa ser localizada em uma relação de troca que não
seja capital, logo é passível de estranhamento, colocada em um local de absurdo.
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC (2018), Técnico em Produção
de Eventos Culturais pelo Instituto CENTEC em parceria com o Governo do Estado do Ceará,
integrante do Coletivo Os Pícaros Incorrigíveis e do Grupo As 10 Graças de Palhaçaria onde atua
também como produtor/gestor. Co-criador do Projeto Narrativas Possíveis.

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Nesse dia, o trabalho me mostrou um estranhamento ainda maior enquanto
performer, pois, mesmo algumas pessoas estranhando, ou não entendendo, ou não
concordando, se dispuseram com seus corpos, histórias e sentimentos a comparti-
lhar de um momento “inútil”. Os motivos que levaram a isso nunca saberemos, o
que torna ainda mais interessante essa relação, que no espaço público deixa de ser
de troca capital e passa a ser uma troca simbólica, onde se estabelece uma relação
de jogo, que a partir de um ato pequeno, finito como encher balão gera uma trama
infinita de leituras de cada um que se relacionou.
Para refletir sobre essas leituras possíveis, recorro ao relato da Pati Bertucci que,
ao se relacionar com a performance, lembrou de um caso de saúde particular, de
uma série de pensamentos sobre esse lugar, pois essa leitura me faz pensar de ma-
neira também inútil, pois nunca alcançarei resposta, sobre o que passou na cabeça
de Robson, Mateus, Flávia, e de outras pessoas cujos nomes não me recordo, mas
que cruzaram comigo naquele dia de São José, na peleja insignificante de encher
os balões amarelos.

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Impressões de um pedaço de tarde
em que bordei na rua, na praia
Silvia Moura1
Numa tarde de um janeiro de um ano 2018.

Minha ação, minha intervenção era muito simples - eu ia sentar numa calçada
e bordar. Sim, bordar numa calçada numa rua, à tarde. A calçada escolhida, em
princípio, foi na praia de Iracema. Chego, coloco meu banco colorido e um outro
ao lado da minha caixa de bordado com linhas coloridas.
E inicio. Primeiro observo ao redor, ouço os sons que estão por perto, as pes-
soas próximas. Pego o meu grande pano, escolho a linha e começo a bordar. Pes-
soas olham discretamente para mim, outras fazem de conta que eu não estou ali.
Passam ao lado e é como se eu fosse algo do lugar. Pouco depois, escuto um rapaz
perguntar:
- Ei ,ei ...
Pergunto - Eu ????? Ele diz “sim”. Eu estranho.
Ele diz - Dá pra você sair daí ????
Silêncio. Respondo - Não, por quê?????
Ele diz - Você está atrapalhando a foto.
Eles estavam jogando futebol um pouco mais a frente.
Eu pensei...Saio ou não?
Decido e digo: Vou sair não, estou bordando, gostei desse lugar. “Fasta” você….
Ele olhou prum lado, pro outro, e afastou.
Fiquei mais um tempo ali, quieta, bordando devagar e pensando como é difícil
não incomodar. Tudo que se faz chega de alguma forma no outro. Pouco depois,
um homem de uns 40 anos parou e perguntou:
- Você borda sempre aqui ????
Eu disse - nem sempre...
Ele falou - que pena, é irado ...e se foi....
O tempo parece deslizar entre a linha e o bordado. Passa devagar como se tives-
se sido suspenso. Decido andar um pouco. Caminho com meu banco e a caixa de
bordado, em silêncio, observo as pessoas, o mar, ouça música e vou em sua direção.
Uma rave na beira da praia, pessoas dançam, outras bebem, outras observam.
Eu coloco meu banco bem no meio entre o Dj e as pessoas da rave. Um espaço na

1 Silvia Moura é artista das conexões possíveis entre o corpo e o pensamento. Comunica-se por
meio das mais diversas mídias, utilizando a dança, a performance e a palavra como principais pontes
para essa viagem entre sua vida e o olhar do público, uma relação que permeia sua “dança-desabafo”.

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areia vazia e começo a bordar. De novo a sensação de que os olhares parecem querer
colocar a minha ação dentro de um lugar comum daquele espaço.
Uma ou outra pessoa me olha de verdade e trocamos sorrisos. Um casal amigo
pede para tirar foto de mim ali bordando. Tiram e saem. Ninguém me pergunta o
que faço ali bordando numa rave...
É bom bordar com música e perto do mar. Às vezes, parava e ficava só olhando
pro mar, ouvindo a música, o bordado pousado no meu colo como um pássaro….
Interferir na paisagem, sair do combinado, desafiar a rotina do lugar, do com-
portamento costumeiro. Fugir do que se espera, escapar do que já está posto, rom-
per com o olhar.

Tudo fico na entre a linha, o bordado e eu.

Sigo mais um tempo,

Silvia Moura.

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(Des)Ordem E Re(Pro)Gresso
Lívio do Sertão1

Miúdo, ínfimo, tímido, pequenino... Um corpo de movimentos amarrados,


sob o amparo da natureza, também tímida, naquela praça do Ferreira, mas presen-
te, persistindo. A praça território de todos (?); as várias praças numa só: moradia,
descanso, caminho, palanque, tabuleiro, notícia, quitanda...
Mas o que faz aquele sujeito sentado num balde, com seus pés descalços e ves-
tido em uma surrada camiseta vermelha? O que tem nas mãos?
Uma lentidão de agulha que perfurava caminho em busca de juntar as partes.
Uma sutura cuidadosa de um símbolo, que é mais protegido que o povo sob sua
tutela. Um trabalho vagaroso, porém obstinado. Inquebrantável. O remendar de
caminhos e utopias.
Aquele corpo estranho, leve cunha no cotidiano, começava a inquietar passan-
tes e ficantes, mesmo quase apagado sob uma árvore num cantinho mais escuro e
desapercebido daquela praça tão imensa e movimentada.
Uma senhora não se conteve ao passar tantas vezes por ali e ver um rapaz mal-
vestido e a barba por fazer que estava costurando ali em meio a praça, que é lugar
de todos (?), mas não daquele sujeito. Ela não podia seguir seu destino sem saber o
porquê e o pra que daquilo.
Então, ela se dirigiu até ele e de longe já o inquiria, numa voz alta e agoniada:
me mate uma curiosidade e me diga o que tanto tu faz aí sentado ? O rapaz, que
cantava baixinho sua música de trabalho, prosseguiu cantando, mas deu uma pausa
na cirurgia que realizava para lhe mostrar o que tanto ele fazia. No entanto, para
ela não foi suficiente e prosseguiu ainda mais alto: sim, mas o que é isso? É um
protesto? É o quê? E o rapaz calmamente retomou seu trabalho ao passo que ela
meio irritada seguiu com o seu caminho.
Enquanto a areia escorria na ampulheta, que aos olhos de quem passava pare-
ciam sangrar bem mais lenta do que o de costume, a reconstrução estético-poética
da bandeira ia sendo concluída e os passantes e ficantes iam podendo perceber do
que se tratava aquele trapo laboriosamente remendado por aquele operário sem
nome, descalço e maltrapilho.
Ali o rapaz, antes sem nome, se transformava no Subcomandante Insurgente
Marcos... Marcos é gay em San Francisco, negro na África do Sul, asiático na Euro-
pa, Chicano em San Ysidro, anarquista na Espanha, palestino em Israel, indígena

1 Lívio do Sertão deu seus primeiros passos no campo da arte de forma autônoma, sobretudo
no âmbito da escrita literária. É atualmente graduando em Artes Visuais pelo Centro de Artes da
Universidade Regional do Cariri – URCA.

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nas ruas de San Cristóbal, gangue em Neza, roqueiro em CU, judeu na Alemanha
nazista, ombudsman no Sedena, feminista nos partidos políticos, comunista no
pós-guerra fria, presa em Cintalapa, pacifista na Bósnia, Mapuche nos Andes, pro-
fessora CNTE, artista sem galeria ou carteira, dona de casa num sábado à noite em
qualquer colônia de qualquer cidade de qualquer México, guerrilha no México do
final do século 20, atacante na CTM, repórter de nota de depósito interior, mulher
sozinha no metrô às 10 da noite, aposentado em plantón no Zócalo, camponês sem
terra, editor marginal, trabalhador desempregado, doutor sem assento, estudante
insatisfeito, dissidente em neoliberalismo, escritor sem livros ou leitores, e, é certo,
zapatista no sudeste mexicano.
O rapaz ali era a Dilma, sofrendo o golpe jurídico-parlamentar de 2016, Dan-
dara sendo brutalmente assassinada, a verdade sendo distorcida pela Globo, Lula
sendo condenado sem provas, o artista sendo preso em Brasília, as professoras e
professores tendo seus salários cortados em Icó, era o interior sendo esteriotipado,
as mulheres estupradas a cada 11 minutos, a juventude negra que é exterminada
pela polícia...
Ali naquela praça conturbada e quente ele era Marielle mulher negra lésbica e
comunista sendo silenciada pelo capitalismo cada vez mais fascista em nosso Brasil.
E é sendo várias que ele reune forças para remendar aquele símbolo, remendo
que ressignifica aquelas cores e formas e estrelas. É sendo várias que ele esfrega com
água e sabão a bandeira numa tentativa de limpar toda sujeira que antes habitava
aqueles trapos. Esfregando com força, por todos os cantos. Depois água em abun-
dância. Lavagem e purificação.
Por fim a Semente Marielle plantada no verde daquela bandeira revestida de
novo sentido é hasteada na árvore que amparou e protegeu o rapaz operário duran-
te toda a sua labuta. Agora aquela árvore recebia aquela semente com a missão de
dispersá-la aos olhos de quem por ali passava ou ficava.

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Pegando o sol com a peneira
Waldírio Castro1
‘’.... Na linguagem, fazemos uso de signos e símbolos- sejam eles sonoros, escritos, imagens
eletrônicas, notas musicais e até objetos- para significar ou representar para outros indiví-
duos nossos conceitos ideias e sentimentos.’’ - Stuart Hall.

Ao nascermos, a maneira como interpretamos o mundo já está posta. Como


falar, como caminhar e como devemos nos comunicar com as outras pessoas. Nas
cidades, observamos janelas quadradas, prédios com seus andares para cima, e a
forma, pré-estabelecida de como devemos nos vestir/comportar em determinados
lugares. Cada cultura tem seus códigos hegemônicos pré-determinados socio-his-
toricamente, contudo, há sempre constantes rupturas e mudanças que tencionam
infinitamente os padrões sociolinguísticos.
Se um brasileiro, no ano de 2019, voltasse a falar a língua dos tupinambás? Se
ao invés de andarmos com a postura ereta nos rastejássemos como William Pope L2
na performance Tompkins Square Crawl? Se nos comunicássemos apenas por meio
de instrumentos musicais como os instrumentistas que improvisam no Jazz? Se
Frank Owen Gehry3 e Vladu Milunić4 propusessem uma mudança, onde de todas
as construções no mundo não permanecessem mais presas aos ângulos retos e tra-
dicionais da arquitetura assim como no projeto da Casa Dançante (Tančící dům)?
Se não existissem mais etiquetas a respeito de nossa vestimenta? Alguns ‘’Ses’’ são
apenas utopias, mas através da ação, algumas utopias se materializaram, tencio-
nando o status quo e buscando criar portais para outras possibilidades de mundo.
Ao propor a ação “Pegando o Sol com a peneira’’, em uma praia de Fortaleza/
CE, pude observar que as praias, as margens das grandes cidades, parecem ser um
“refúgio” ao sistema hegemônico. Contudo, este suposto “refúgio”, tem muito bem
desenhado quais os sujeitos e os corpos que podem frequentá-lo, quais vestimentas
1 Waldírio Castro é Ator, performer, cantor e dançarino. Atualmente integra a Pós-Graduação
em Semiótica da UECE e o Curso Técnico em Dança do Porto Iracema das Artes. Estudou Can-
to Erudito no curso livre da EMESP. Formado no Curso Técnico Profissionalizante em Teatro
Musical –SESI-SP. Também tem pesquisas com a linguagem da Performance, realizando experi-
mentos performativos em cidades como São Paulo- SP, Rio de Janeiro-RJ, Campina Grande -PB
e Fortaleza-CE. Faz parte do coletivo WE, e tem parcerias com o Grupo Em Foco de Teatro.
2 William Pope. L é um artista e educador visual e teatral que vive em Chicago EUA, conheci-
do por sua prática de arte conceitual onde sua obra perpassa pelas problemáticas de raça, sexo,
poder, consumismo e classe social.
3 Frank Owen Gehry é um arquiteto canadense ganhador do prêmio Pritzker conhecido por
projetar o Walt Disney Concert Hall e a Casa Dançante (Tančící dům) em parceria com Vladu
Milunić.
4 Vladu Milunić é um arquiteto croata conhecido por ter desenhado a Casa Dançante (Tančící
dům) em colaboração com Frank Owen Gehry

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esses sujeitos devem utilizar e qual tipo de consumo é permitido. Deste modo,
visualmente, existe um imaginário da praia, sobretudo no Brasil. Mulheres de bi-
quíni, homens de sunga ou calção de banho, todos em boa forma e bronzeados e
indivíduos sentados em suas barracas tomando uma cerveja gelada ou uma agua
de coco.
Em oposição a este cenário normatizado, e partindo do desejo de materializar
utopias que me inspiraram a ressignificar o espaço-tempo da praia, na sexta-feira
do dia 23 de março de 2018, vestindo um terno cinza, camisa social branca, sapato
social preto, segurando uma peneira de arame para fubá com 30cm de diâmetro
e aro de plástico com bordas vermelhas embaixo de um sol - que só Fortaleza a
cidade do Sol tem- às 13h caminhei na areia da praia do futuro. A imagem de um
homem de terno rasgando a paisagem da praia, já não parecia comum, e como se
não bastasse, o homem estava carregando uma peneira, peregrinando lentamente,
e fitando o horizonte.
O que ele pretende com isso? Por qual motivo ele está vestido daquela maneira?
Por que ele não responde a qualquer pergunta? Idealizo que essas eram algumas
das perguntas que se passavam na mente dos transeuntes. O que de fato eu escutei
foi: Qual droga você tomou? Olha aí o homem da peneira pessoal! - enquanto um
homem filmava- Ei cara, me dá um pouco disso ai que você tomou!
Tencionar o lugar de não produtividade e ocupar a praia em uma deriva me
levou a um estado psicofísico quase que atemporal. O corpo se misturava muitas
vezes a paisagem, eu peneirava o vento que soprava sobre o meu rosto, e já não sen-
tia tanto calor. Em algum momento já não sabia o que era corpo, o que era vento,
o que era areia, muito menos mar. Segui em linha reta, e por não ser originalmente
de Fortaleza, minha memória psicogeográfica do espaço estava sendo construída
naquele momento. Finalizei a ação entrando no mar, ainda vestido de terno e
sapato, ‘eu’ corpo agora era ‘eu’ mar. A imagem final produzida pela ação foi tão
avessa a normalidade que os salva-vidas da praia acharam que eu estava ansiando
dar fim a minha vida. “ Ei você, não pode ficar ai não! ” (Eu estava no raso). Sem
dar ouvidos dei um último mergulho, sai do mar, os salva-vidas me olharam e tudo
terminou bem.
O homem de terno era somente um rasgo na paisagem que possivelmente aque-
las pessoas não verão tão cedo. Tentei, nesta ação, e tento como artista, desenhar
portais para outras possibilidades de existência e de mundos nos olhos dos que me
observavam/atravessam. Os artistas exercitam tornar visíveis ‘multiversos’ de ideias,
conceitos e sentimentos aos olhos de quem só enxerga um universo.

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“Tálamo”, e as veias desfeitas
sob a pele do tecido
Maria Macêdo (Kakaw Alves)1
Nota 1. Palavras substantivadas. reorganizadas. 2. Corpo em constante estado
de denúncia.
Do leito conjugal, as partes constituintes do cérebro. Da singularidade das
transmissões sensíveis, a pluralidade que agrupa um conjunto de mulheres costura-
das por linhas vermelhas. O que fazer quando nos tornamos os números?
Quais as palavras que te pesam as roupas?
______________________________________________________________

Tálamo é um corpo feminino negro que transita silenciosamente pelas ruas.


Um corpo que carrega em si outros corpos femininos que foram/são violentados
de alguma forma, num país que é o quinto mais violento para mulheres, e que mais
mata transexuais e travestis no mundo.
A maioria dos casos de violência contra as mulheres são tidos como crimes pas-
sionais, cometidos por ex-companheiros, namorados ou maridos que não admitem
não possuírem os corpos das mulheres. As linhas aqui desfeitas percorrem a pele
do tecido como veias que disseminam informações sobre essas violências diárias
silenciadas por uma sociedade patriarcal, machista,LGBTfóbica, racista e misógi-
na, causando uma fratura exposta sobre as roupas que nos apertam, descosturando
estes vestidos de violência que nos vestem o corpo.

O que fazer quando nos tornamos os números?


A performance ecoa como um grito de revolta pelo direito de existir nas nos-
sas diferentes formas de sermos mulheres, e de transitarmos nos diversos espaços
ser sermos agredidas físico ou psicologicamente. Lidar com estatísticas nos dá um
panorama assustador da naturalização do feminicídio, (pois não esqueçamos que
em 2018 completou-se dez anos do caso Eloá, transformado em reality show pelas
emissoras de TV), e as proporções aos quais ele atinge, além de servir como um ins-
trumento de reflexão para a elaboração de políticas públicas que nos protejam de
forma efetiva, e pensarmos a interseccionalidade dentro do movimento feminista.

1 Maria Macêdo (Lavras da Mangabeira-CE, 1996, Juazeiro do Norte) Artista/ Professora/


Pesquisadora em Artes Visuais. Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais/URCA. Membra
do Grupo de Pesquisa NZINGA: Novos Ziriguiduns (Inter)Nacionais Gerados na Arte/CNPq.
Pesquisadora no Projeto YABARTE: Processos gestacionais na arte contemporânea a partir dos
pensares e fazeres negros femininos. https://magianegrar.wixsite.com/mariamacedo

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Pautar o feminicídio é deixar evidente que nós mulheres negras somos a maioria
entre as vítimas de violência doméstica, e que ao passo que o número de violências
contra as mulheres brancas diminuem, o nosso segue crescente. É lembrar que uma
a cada três mulheres indígenas são violentadas ao longo da vida, que entre as mu-
lheres lésbicas os números aumentam gradativamente, sendo registrado entre 2000
e 2017 180 homicídios, e que em 2017 registramos o maior número de violência
contra mulheres trans e travestis, além das várias mulheres que nem sequer entram
nas estatísticas…
As diversas notícias a respeito do Estado do Ceará foram as principais motiva-
doras da criação do meu trabalho, pois pareciam cartografar de forma cruel as rotas
que o meu corpo cruza/cruzaria diariamente. Corpo interiorano que se reinventa
na região do Cariri Cearense. O Cariri encantado onde mulheres são assassinadas
em praça pública, os assassinos são reduzidos a patologias, e as manchetes ainda
anunciam a morte em nome do “amor”.
Eu temo os grandes centros urbanos, assim como temo o meu Cariri, até por-
que na cidade onde moro há uma extrema devoção por um homem que ganhou
fama em cima do milagre de uma mulher negra, Maria de Araújo, verdadeira santa
condenada ao esquecimento. Fortaleza me assusta, e realizar esta ação na cidade
que já esteve entre as três mais violentas do nordeste me levou para outros entendi-
mentos da potência de um corpo que cria e transgride com a Arte. As experiências
de cidades são potencialidades de transmutação do corpo, naquele dia os pés des-
calços que queimavam sobre o chão indicavam que os caminhos estavam abertos, e
de que nós mulheres somos fertilizantes dessa terra mãe que nos acolhe.
Nós que nascemos em estado constante de luta pelo direito de existir continua-
remos rompendo as amarras que tentam nos imobilizar. Em tempos de desgoverno
e retrocesso, lembremo-nos de nossas ancestrais que lutaram para que nossos cami-
nhos fossem menos lamacento do que o delas.

TODAS NÓS, VIVAS. PRESENTES. PULSANTES.


Eloá Cristina, Claúdia, Marielle Franco, Dandara dos Santos, Laysa Fortuna,
Kaiowá Marinalva, Silvany Inácio, Margarida Alves, e todas que ainda resistem
entre as calçadas desenfreadas deste país.
Presentes!

93
Tiro no escuro – impressões
Leandro Netto Cia De Dança1

Como membro da Leandro Netto Cia de Dança, pude participar da perfor-


mance TIRO NO ESCURO, realizada no I Imaginários Urbanos que desestabi-
lizou o sistema Metrofor, mas ainda mais a mim mesmo. Desde o momento da
idealização, consideramos o posicionamento mais interessante enquanto compa-
nhia de dança contemporânea de Fortaleza num espaço público. A ideia de intervir
no sistema de transporte público veio à mente quase instantaneamente, uma vez
que pesquisamos, sobretudo, a partir do movimento. Ao mover nossos corpos pelo
espaço através da dança, encontramos na performance um caminho possível para
desdobrar a nossa pesquisa para a realidade daqueles que não tem tanto acesso ao
trabalho de conteúdo artístico, ou mesmo para provocar estranhamento no traje-
to realizado mecanicamente por outros, que pouco percebem o movimento que
acontece ao seu redor.
Inquietamos-nos com o posicionamento do poder público e privado para com
as tantas mortes em massa nos últimos meses, mas principalmente com o direcio-
namento errôneo que as providencias tem sido tomadas. Observamos cada vez
mais repressão para com as minorias, assim como a deturpação dos fatos através
da mídia, o que tende a fortalecer uma postura de indiferença na sociedade. Foi
importante partir dessa sensibilidade para propor, através da performatividade, a
provocação do movimento, que vem de um deslocamento que pessoas realizam em
seus percursos diários.
Foram semanas de preparação, o que nos manteve em efervescência por toda
a imprevisibilidade do que poderia acontecer. Ao realizar o percurso, previa-
mente com câmera na mão, a repressão já foi revelada quando os seguranças nos
interceptaram e solicitaram que guardássemos o material fotográfico. A partir
desse ponto se tornou visível a potência do poder privado sobre um equipamen-
to público, o que ameaçaria mais ainda o futuro da ação, mas potencializaria o
seu discurso a partir de suas possíveis reações.
Preparando a ação, houve momentos de muita conjectura sobre quais seriam as
provocações mais viáveis para o ambiente, o que me deixou aflito enquanto per-
former tendo um olhar de direção em meu corpo. Lidar com as reações e reverbe-
rações de minha intervenção seria de minha inteira responsabilidade, e a definição
de minha ação deveria concluir a ideia de todo o circuito.
1 Desde o seu surgimento em 2015, a companhia tem como foco o estudo do movimento alia-
do às múltiplas espacialidades, aos sons provocados pelos corpos e seus afetos, tendo como base
a dança contemporânea. Há o anseio de pesquisar sobre ancestralidade, mazelas da humanidade,
buscar reflexões sobre espiritualidade, provocar ironias e verborragias.

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Contrastaria, então, através de minha imagem e ações, com os momentos que
me precederam. Vesti-me do bizarro, do medonho, de palhaço, para falar através
da performance de tantas chacinas no Brasil, e que a minha presença se estabelece
enquanto denúncia e incômodo aos transeuntes, mas é necessária.
Com escritas sob um grande papelão que se desenrolaria pelo chão, bexigas
coloridas, sapatos de sapatear e uma vela de aniversário chamativa, senti dezenas de
olhares de medo em minha direção, assim como nojo, desconfiança e repulsa, du-
rante todo o trajeto. Crianças que me apontavam rindo ao me avistar eram silencia-
das pelos pais assustados, o que prenunciava o pavor que vinha dos seguranças do
espaço. Estes tremulavam a voz nas duas vezes que tentaram se comunicar comigo,
ao tentar me interromper sem sequer se aproximar.
Pude lidar com bastante calma e silencio até o final, mesmo com tamanho
peso dentro de meu peito. Fantasiei-me para sentir o que muitas pessoas sentem
todos os dias: rejeição. Senti-me completamente sozinho, ainda que diversas pes-
soas estivessem me assistindo de longe, e do outro lado era observado com bastante
apreensão, enquanto escrevia em meu corpo dados estatísticos de mortes causadas
pela violência. A sensação de isolamento afundou-me, e cheguei ao máximo a es-
tourar a última bexiga em meu próprio rosto, quando retirado do local pelos meus
companheiros.
A volta foi tenebrosa, cheia de dor de cabeça. Acredito ainda estar voltando aos
poucos para mim mesmo, já que possuo o privilégio da descaracterização. Entendo
que é um caminho sem retorno, e assim permaneço afundado e ruminando.

Sergio Cavalcanti
______________________________________________________________

Segue um texto relatando um pouco do que aconteceu quarta de manhã. É mui-


to difícil escrever sobre essa experiência. A sensação de que as palavras não abarcam
é constante. A enxurrada de afetos embaralha tudo. Preferi mandar logo o que eu
consegui elaborar, mas gostaria de completar esse texto - com a chegada, enfim, na
última estação
Nunca tive um figurino tão lindo! Foi o que pensei ao vestir pela primeira
vez toda a fantasia. Sim, fantasia. Dessa vez, para mim, não se tratava de figurino.
Pode ir, disseram-nos, poucos minutos antes das 9h. Saímos juntos do estaciona-
mento. Ao pisar na rua, tudo mudo. Que sensação incrível! Desfilo pela calçada en-
quanto uma fotógrafa não para de bater fotos minhas. O ônibus passa, as pessoas
gritam, mas não compreendo o quê. Sigo andando inabalavelmente. Existe uma
certeza nisso que não consigo explicar. A sensação era maravilhosa. Ao chegar em
frente à estação, encontro muito espaço. Feliz, giro. Giro muito. Giro até que moedas

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começam a se espalhar pelo espaço - elas estavam dentro da minha cauda de sereia.
Ao ouvi-las caírem, visualizo as quão espalhadas estão e começo a recuperá-las. Cor-
dialmente, pego uma por uma no chão, até todas estarem novamente comigo. Cir-
culo no espaço em busca de alguma que tenha ficado para trás. Ao acreditar estar
com todas, pauso. Há algo estranho agora. Algo de triste. Logo após recuperá-las, eu
deveria me sentir feliz, não? Tão feliz quanto eu estava incialmente, não? Não. Pauso.
Até que percebo que tem uma moeda prestes a escapar da minha mão. Deixo-a cair e
escuto-a chegar no chão. Assim sigo, de uma por uma. A cada tilintar de um impacto,
sinto meu peito apertar um pouco mais. Umas mais, outras menos. Quando minha
mão já está vazia e tudo parece o mais triste que pode ser, volto a resgatá-las. Há nisso
algo de consolador. Cada uma que volta para minha mão gera uma mudança na
áurea que sinto. A tristeza vai se dissipando e algo do início retorna. Mas logo logo
elas estão em minha posse novamente. E algo dessa alegria se perde.
Enquanto fiscalizo o local, garantindo que estão todas em minhas mãos,
uma delas escapa. Ouço-a tocar o chão. É aí que emerge instantaneamente o
primeiro puta que pariu! Dito uma vez, torna-se uma enunciação persisten-
te. Algo se perdeu nesse caminho. Continuo a procurar se ainda resta alguma
moeda no chão. Não, estão todas aqui. E a angústia é maior. O puta que pa-
riu se intensifica. A tristeza transita pela raiva. Enquanto isso, as moedas es-
correm pela minha mão novamente. Uma a uma! Isso é importante. Até que
todas estão no chão mais uma vez. Eu busco 3,20. Já é hora. É preciso seguir.
Ao ter essa quantia em mãos, caminho para entrar na estação. Terminando de des-
cer as escadas, ainda, sem cessar, emitindo em alto e bom tom o “puta que pariu”
que ecoa na minha cabeça, escuto um homem perguntar “O que é isso? Ela tá
armada?”. “Não, são só moedas!”, alguém responde. Busco a menor fila e me
posiciono para aguardar minha vez. “Puta que pariu”. A mulher que estava na
minha frente libera o guichê e eu me aproximo. O olhar dela me penetra, assim
como sinto muitos olhares vindo da longa fila ao lado. Apesar de vê-la apenas pe-
rifericamente, sinto ali algo de compreensivo. Por esse instante, parece que estou
um pouco menos só. Mas não, não vou me iludir, vou manter o foco: entregar as
moedas, receber o cartão, pegar o metrô. É preciso seguir. O “puta que pariu” não
para. Após entregar o dinheiro destinado a uma passagem, a moça da bilheteria
me devolve o bilhete, um cartão. Sigo. Procuro onde entrar, desço mais escadas
e me deparo com os trilhos vazios. “Puta que pariu”. Será que vai demorar? Es-
perar parece insuportável. Os gritos se intensificam novamente. “PUTA QUE
PARIU!” O eco que escuto me agrega forças, mas depois de um certo ponto,
sinto o corpo cansar.

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O volume diminui. Puta que pariu. Eu me permito sentar. Resmungo mais
baixinho. Levanto novamente. Olho para a placa que identifica a estação em que
estou. Ler aquilo me irrita. Talvez algo parecido como o olhar da senhora um pou-
co antes. Por fim, sinto que acabo aceitando as palavras. Lá no fundo sinto que sim,
vai ficar bem. O “puta que pariu” se desvanece, apesar da chateação ainda estar pul-
sando em meu corpo. Sentia-me cansada. Meio surrada. Naquele instante só queria
que tudo isso passasse, só queria que ficasse tudo bem mesmo. Ainda era difícil.
O ápice da raiva deu lugar para uma melancolia que não me permitia ficar
bem. De vez em quando eu percebia minha roupa. Tentava me ajeitar e lembrava
como eu estava radiante. Mas isso já não me sustentava. Eu era outra. A fantasia
não passava de roupa no corpo. A única roupa que eu tinha naquele instante. E eu
não via a hora disso tudo acabar.
Parecia um pesadelo. Avistei a outra moça que estava comigo. Ela apontava
para frente um cano feito papelão como se fosse uma luneta. Nele estava anun-
ciado: “Tiro no Escuro”. O outro garoto estava encostado na parede, segurando
um cano de papelão também, mas bem mais calibroso. Esse, porém, era só algo
pesado que o palhaço macabro carregava. Um dos seguranças, então, anunciou
no rádio algo do tipo: “Tem que ver a bolsa dele”. Achei que o revistariam, mas
não aconteceu.
O trem chegou, finalmente! - após algum tempo de espera que para mim foi
suficientemente longo. Entrei no vagão e procurei um lugar vazio para sentar. Os
assentos estavam lotados, só avistei uma opção. Fui lá e sentei. Os olhares me
incomodavam. Eu sabia que minha roupa estava chamando atenção. Que saco!
Algumas pessoas se aproximavam para tirar fotos minhas. Puta que pariu. Tentava
encontrar uma posição menos receptiva. Ninguém percebia que eu não ia nada
bem? Que invasão!
Após algumas insistências, decidi tentar dormir. Talvez assim passasse mais rá-
pido. Eu só queria chegar o quanto antes na última estação. Eu só queria que isso
tudo acabasse. Eu só queria acordar desse pesadelo. O “puta que pariu” não saía
da minha cabeça. Uma denúncia insistente e dolorosa. Eu estava cansada, mas isso
não passava, mesmo que agora, acontecesse de forma silenciosa.
Ouço, então, uma música vindo lá de trás. Foda-se. Continuo tentando dormir
para passar mais rápido. Até que um murmurinho estranho começa a surgir. Es-
cuto muitas pessoas falando. O trem está parado. Assim ele fica durante um bom
tempo. Não sei quanto em minutos, mas demorou. “Puta que pariu”. “Eu só quero
paz!” “Libera a porra desse trem”. As pessoas ao redor se comovem com a situação lá
atrás. Eu não entendo bem o que acontece. Também não tenho disposição de ten-
tar entender. “Só vamo, puta que pariu!” Uma mulher se aproxima de mim e diz:

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“Eu quero tirar uma foto com essa moça”. Puta que pariu. Era só o que me faltava.
Permaneço calada me viro mais pra janela. A mulher senta em minha frente e
aponta o celular para mim. Eu olho lá para fora, tento abstrair. Puta que pariu,
eu só quero chegar logo no fim. Ela insiste em tentar se comunicar comigo. “Ela
tá triste porque tão acabando com a apresentação de teatro deles”, interpreta ela.
Puta que pariu. Se ela soubesse... Cubro o rosto impacientemente. “Ô, ela tá com
vergonha...”, interpreta ela novamente. Suspiro e mentalizo paciência. Nem que eu
quisesse eu conseguiria explicar para essa mulher o que estava acontecendo comigo.
Nem que eu quisesse. Ela seguiu viagem apontando o celular para mim de tempos
em tempos, mesmo quando o trem voltou a andar. Chamou alguém para sentar
ao lado dela e, de vez em quando, acho que ela mostrava para essa pessoa as fotos
que havia tirado. Suponho eu, pelo pouco que vi perifericamente. Tinha medo de
que qualquer olhar direto parecesse um convite, então focava nas paisagens que
passavam. Quando mais alguém se aproximava para me fotografar, eu tentava a
estratégia do sono. Era o que eu conseguia fazer para lidar com essa situação.

Att,
Thais.
______________________________________________________________

Tiro no Escuro...... a performance no Metrô de Fortaleza.


A trajetória do metrô. Continuidade ou quebra de outros tons que se realizam
em estações de início e fim.

O Início
Começou com a construção de um figurino que, desde o início, foi pensado em
ser composto de funis espalhados pelo corpo representando orifícios como olhos,
ouvidos, boca, seios, genitais e ânus. Outro ponto de partida foi o peido. Haveria
uma trilha sonora sobre tipos de peidos que acompanharia o trajeto da performance
dentro do Metrô.

A Performer
Embora não houvesse uma construção de personagem, pois não há atuação
na performance, a pessoa dentro do metrô era uma forma que, embora tente, não
consegue mais esconder sua humanidade, há horas que isso lhe dá uma sensação
e liberdade e outras vergonhas. Ela tenta se libertar, mas algo sempre a faz voltar
a um status quo inesgotável. Ao final tudo parece igual. Enquanto isso seu corpo
transborda e demonstra.

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O Contexto
Os olhos que observam e julgam, os ouvidos que não ouvem, as narinas que
não suportam o odor da realidade. Os seios que podem ser ou não ser, que podem
sustentar a vida, mas são objetos de vergonha. A vagina que é porta de entrada e
saída, de amor e sofrimento. E o orifício mais repugnante...por ele saem os mais
escrotos sons, cheiros e matéria orgânica, mas no fundo todos o desejam, desejo de
ter, desejo de dar, violação e prazer que se confundem. Aquele que se solta em um
último suspiro quando se morre.

A Preparação
Uma escada, um espelho, formas de ovos, a entrega do corpo, botas, meias,
marcas, digitais, laranja, olhos, peitos descompensados, perucas rosas, boca branca.
No caminho um muro que de brega passou a ser profundo, um limpador de vidros
e a performance inicia.

A Interação
Tente outra vez. Olhe nos meus olhos. Céu da Boca. Reclame aqui. Olha para
o céu meu amor. Ouvidoria Pública. Países Baixos. Cruzeiro do Sul. Intolerância
de poucos que deu vida ao apoio de muitos. As paradas nas estações se tornam um
risco, mas o fluxo a faz voltar. As mudanças de posição buscam uma alternativa ou
uma defesa para um a vida de fingimentos, um mundo de fingimentos, uma busca
da verdade, ou uma busca do nada. Não há final, embora se aguarde o peido final
da morte que relaxa e que se caga.

Delfina

99
Um traço visual do tempo
letícia barbosa 1

As relações de tempo não podem ser vistas na percepção ordinária, sendo na


imagem, enquanto criadora, que tal percepção acontece (Didi-Huberman). a in-
tervenção urbana um traço visual do tempo consiste em coletar/recuperar objetos
encontrados na rua ou no lixo, provenientes de algum descarte, devolvendo-os ao
espaço urbano, desta vez, no interior de estruturas de gelo. é uma experiência itine-
rante de inserção na paisagem urbana de uma imagem paradoxal, à medida que um
objeto no interior dessa estrutura pode nos trazer a ideia de coisa fixa e movimento
constante ao mesmo tempo. o que derrete não é o objeto em si, mas o gelo em seu
entorno. o que se pretende, tenta preservar? o que resta? o que se propõe?
O processo de um traço visual do tempo iniciou, em 2017, após a mudança da
artista para a Box Preparação, casinha de artistas localizada no bairro do Cordei-
ro, zona oeste do Recife. inicialmente, consistiu em realizar longas caminhadas e
errâncias pelo bairro, uma forma de mapeamento dos lugares e reconhecimento
de territórios. com o tempo, fui observando resíduos provenientes do lixo, seja
industrial ou doméstico, sobretudo resíduos oriundos de casas e estabelecimentos
nas proximidades da conhecida avenida caxangá.
Caminhar atento para as possibilidades artísticas que os resíduos do consumo
poderiam ocasionar. caminhar, parar, observar, coletar.
A relação com o lixo, no processo desse trabalho, trouxe imagens da infância,
na cidade de Carnaíba, sertão do Pajeú, em Pernambuco, cidadezinha atraves-
sada pelo Rio Pajeú que, normalmente seco, abrigou em seu percurso um lixão
durante muitos anos. é desse rio e desse sertão que vem a relação com a água,
em meus processos. é da curiosidade pela imensidão de coisas que compõem um
lixão e no que estas mesmas coisas são capazes de se transformar que urge um
traço visual do tempo.
Os objetos coletados são devolvidos à cidade, novamente, no interior das cáp-
sulas/blocos de gelo, na tentativa de chamar a atenção das pessoas que atravessam
e/ou permanecem naqueles locais onde as cápsulas são deixadas. o processo foi
realizado enquanto obra, pela primeira vez, no Festival Imaginários Urbanos, em
Fortaleza – CE, em março de 2018, durante uma semana.

1 letícia barbosa– recife – pernambuco . performer . colagista . artista visual . pesquisadora


livre. corpa matuta solta no mundo em busca de saberes e cosmovisões outras . canta, dança, faz
poesia . interessada em maneiras de construir imagem . decolonialidade . pós-pornô . ativismo
.construção de identidade e imaginário em américa latina.

100
Dois dias antes do início do festival, cheguei na cidade e realizei diversas cami-
nhadas e errâncias, conversando com pessoas, pedindo informações para chegar
em lugares que não conhecia, lugares que supunha, lugares indicados pelas pessoas.
fui, de modo imersivo, construindo trajetos que costuravam a casa onde eu estava
hospedada e os lugares onde as cápsulas seriam deixadas.
Durante os cinco dias do festival, diariamente, congelava os objetos em fôrmas
de cozinha mesmo, muitas vezes em utensílios de plástico, pois, era o que eu tinha
para viabilizar a execução do trabalho naquele momento. diariamente, realizava
a pé, com a cápsula no interior de um isopor, o trajeto anteriormente desenhado
para se chegar ao lugar onde a cápsula seria deixada. sem qualquer mistério, desin-
formava a cápsula e a deixava em um ponto fixo enquanto realizava a observação e
o registro, por meio de uma câmera fotográfica.
Os registros realizados em fotografia também sofriam atravessamentos. pessoas
que, por diversos motivos, estavam e /ou passavam pelas cápsulas perguntavam,
curiosas: o que isso? o que você está fazendo? você tem que esperar o gelo inteiro derreter?
o que você vai fazer depois que terminar? e, assim, relações momentâneas, porém,
genuínas aconteciam.
Algumas pessoas esperavam o derretimento comigo, conversando sobre diver-
sos assuntos. sugeriam, por vezes objetos a serem congelados, ângulos de obser-
vação. “parece uma boca”, “é uma casca de laranja?”, “parece uma flor”, “olhando
daqui, moça, parece um bicho, uma borboleta”, “esse peixe congelado somos nós”.
caminhar, deambular, percorrer, perder-se, deixar-se encantar, encontrar, ficar
perplexa, assumir responsabilidade ética e estética no momento de parar, perma-
necer, entender as poéticas urbanas, observar, construir imagens com a paisagem,
refletir sobre os tempos, ser paisagem, encarar a pausa como parte do caminhar,
seguir como um rio…
Fricções entre a prática artística, memória e algumas leituras, como walkscapes
– o caminhar como prática estética e caminhar e parar, de Francesco Careri, têm deli-
neado a pesquisa. neste momento, o que realizar com as fotografias? tantas quantas
meu desejo de capturar o tempo. agora, redesenhar o processo e iniciar em outro
lugar, com outras histórias, outras pessoas e percursos?
Onde essas fotografias podem continuar compondo e funcionando, enquanto
traços ou indícios visuais de tempos? talvez, estampadas em paredes e calçadas, re-
cortando-as, colando-as, lambendo a cidade da poética que se constrói a partir dela
mesma. a cidade e os resíduos produzidos por ela ainda somos nós. e o que, então,
realizar diante/com/a partir disso?
Os confetes foram os primeiros resíduos encontrados, em um saquinho, na
avenida caxangá. decidi levá-los a Fortaleza e supor, talvez, o que há de comum

101
entre essas duas capitais nordestinas. um presente, quem sabe. quem se desfez
de um carnaval?
Deixei a cápsula com os confetes no Mercado de São Sebastião, centro da ci-
dade de Fortaleza. salvo engano, em um dia de domingo. no Mercado de São Se-
bastião, encontrei muitas cabeças de peixe. na Estação Otávio Bonfim passava um
ônibus cujo letreiro gritava: METRÓPOLE II. eu costumo guardar os objetos em
casa, reaproveitá-los, quando é possível. compreendendo esse reaproveitamento e
as possibilidades ainda enquanto pesquisa e processo de pesquisa.

102
Centro
MARIELLE PRESENTE
O que pode a performance urbana? Esta obra busca apresentá-
la a leitores interessados em descobrir as potências artísticas da
cidade. As performances presentes neste trabalho são máquinas de
guerra. Esta guerra simbólica, uma batalha estético-político-cultural,
impulsiona performers de diversas cidades a costurarem possíveis
leituras do espaço urbano. Dividida em quatro partes, Emaranhados
da cidade, Pequenos recortes de tempo urbano, Rotas do olhar e
Narrativas performáticas, a trama das escritas se complementa
com relevantes ensaios teóricos, afetuosos relatos de experiências e
delicados registros fotográficos de performers-artistas-nômades que
transformam o espaço das cidades em espaço de criação artística.

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