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Introdução
O objetivo desta comunicação é problematizar o conceito de fetichismo à luz de
duas perspectivas teóricas diferenciadas. Em uma delas, a autora tenta apreender o
significado simbólico do objeto fetiche ‘pulseira de escrava’, utilizada por uma mulher
no século XIX, enquanto na outra o autor antropólogo busca apresentar uma nova
metodologia para dar conta dos fetichismos visuais disseminados nas imagens digitais
da metrópole contemporânea. Por meio destas duas perspectivas pretende-se mostrar
que o conceito de fetichismo guarda uma ambiguidade que pode ser o ponto de partida
para uma contribuição a teoria crítica.
Durante anos Hannah utilizou uma pulseira de escrava de couro, muito suja, e
uma corrente de cadeado em volta de seu pescoço. Ela dizia que era um signo de seu
amor e servidão a Munby: “o signo de que sou serviçal e pertenço ao Mestre”. Uma vez,
durante um jantar na casa de uma família burguesa, pediram a Hannah que retirasse sua
pulseira de escrava e a corrente que ela portava, enquanto servia à mesa. Recusando-se,
perdeu o emprego. Surge então a pergunta “como entender essa pulseira de escrava que
faz parte de sua zona de fetiches?”
Segundo McClintock, analisando o significado social do objeto fetiche: “No
fetiche da pulseira de escrava, raça, gênero e classe se sobrepõem e se contradizem: a
pulseira de escrava é sobreterminada”, é o “signo proibido do trabalho da mulher”. Ao
recusar tirar a pulseira durante o jantar Hannah estava recusando a abjecção (supressão)
social de seu trabalho e da sujeira doméstica. Sua ação e recusa representa um desejo de
reconhecimento do seu valor social em uma experiência marcada pela memória
traumática da desigualdade, da violência e da crise social. O fetiche-pulseira de escrava
encena a história do capital industrial assombrada pela traumática escravidão imperial,
3
fazendo da “memória um objeto repetível”. Nesse sentido, a autora propõe que Hannah
“se adornou com seus próprios grilhões simbólicos”.
Desta perspectiva, o sadomasoquismo seria a representação performática de uma
memória de violência, mobilizando elementos da cultura cotidiana do poder, porém
subvertendo-os em roteiros e rituais. Esses rituais encenados numa cena sadomasoquista
3
seriam uma forma de “organização teatral do risco social” na qual a encenação das
fantasias masoquistas revelaria a memória de violações do eu. Nesse “teatro de signos”
haveria uma ritualização repetitiva e compulsiva, a memória de um trauma ao mesmo
tempo individual e social; como “teatro de conversão”, “ele faz o mundo andar para trás
exibindo o primitivo como um personagem do tempo histórico da modernidade”, uma
performance teatral comunitária no seio da razão ocidental.
(Simon Yotsuya)
Não se trata de acreditar que o mundo é perfeito, mas pelo contrário, trata-se de
‘criar asas’ e escapar do mundo pelo sonho. Não se trata de negar o mundo ou
destruí-lo, tampouco de idealizá-lo; trata-se de denegá-lo, de deixá-lo em
suspenso pela denegação, para se abrir a um ideal, por sua vez suspenso na
fantasia. Contesta-se a fundamentação do real para fazer surgir um puro
fundamento ideal. (op. cit, p. 35)
Referencias bibliográficas
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Pietz, Wiliam, Le Fetiche. Genéalogie d’un próbleme (Paris, Kargo & L’Éclat, 2005).
Safatle, Vladimir, O fetichismo: colonizar o Outro (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2010).
Stallybrass, Peter, O casaco de Marx: roupas, memória, dor. (Trad. Tomaz Tadeu, Belo
Horizonte, Autêntica Editora, 2008).
Stoller, Robert, Observando a imaginação erótica (Rio de Janeiro, Imago, 1998).
1
McClintock , Anne, “Couro Imperial: raça, travestismo e o culto da domesticidade”. In Cadernos Pagu,
20, 2003. Anne McClintock é uma intelectual e escritora feminista nascida em Harare no Zimbabue, que
trabalha com sexualidade e gênero nos EUA.
2
Idem.
3
Cf. Stoller, Observando a imaginação erótica, 1998.
4 M. Taussig citado por Massimo Canevacci, Fetichismos visuais: corpos erópticos e metrópole
comunicacional, 2008, p. 235.
5
Cf. Wiliam Pietz, Le Fetiche. Genéalogie d’un próbleme, 2005.
6 De Brosses, 1988, p. 52.
7
Assoun, Le fètichisme, 1994, p. 36.
8 Canevacci, op. cit., p. 241.
9 Canevacci, op. cit., p. 241.
10 Sigmund Freud, “O inquietante [1919]”, em História de uma neurose infantil, Além do princípio de
prazer e outros texto (1917-1920), 2010, p. 348.
11 Idem, p. 247.
12 Essa mesma crítica nós encontramos em Stallybrass, para quem, apesar da brilhante análise sobre o
funcionamento do capitalismo e a forma mágica da mercadoria, Marx “apagou a verdadeira mágica pela
qual outras tribos (e quem sabe, até mesmo nós próprios), habitam e são habitados por aquilo que elas
9
tocam e amam. Para dizer de outra forma, amar coisa é, para nós, algo constrangedor (...). É porque as
coisas não são fetichizadas que elas continuam sem vida” (Stallybrass, 2008, p. 15).
13
Canevacci, op. cit., p. 14.
14 Canevacci, op. cit., p. 303.
15
Idem, p. 51.
16 Idem, p. 267.
17 Idem, p. 277.
18 Idem, p. 269.
19 Idem, p. 272.
20 Idem, p. 272.
21 Idem, p. 273.
22 Adorno citado por Idem, p. 275.
23 Idem, p. 275.
24 Benjamin, citado por Idem, p. 280.
25 Canevacci, op. cit., p. 280.
26 Ibidem.
27 Ibidem.
28 Citado por Idem, p. 281.
29 Canevacci, op. cit., p. 282 e 286.
30 Idem, p. 282.
31 Idem, p. 292.
32 Idem, p. 295.
33Canevacci, op. cit., p. 279.
34 Idem, p. 253.
35 Idem, p. 266.
36 “O que faz da civilização ocidental etnocida? Tal é a verdadeira questão. A análise do etnocídio
implica, para além da denuncia dos fatos, uma interrogação sobre a natureza, historicamente determinada,
do nosso mundo cultural”. Pierre Clastres, “Do etnocídio” em Arqueologia da violência: pesquisas de
antropologia política (São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 86 e 91).
37
Freud, “Neurose e psicose”, “A negativa”, “Fetichismo”, “A cisão do eu no processo de defesa”, em
Escritos de psicologia do inconsciente, 1923-1940, 2007.
38
Freud, 2007, p. 165.
39
Idem.
40 Freud op. cit., p. 74.
41
Deleuze, Gilles, Sacher-Masoch: o frio e o cruel, 2009.