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Redenção/CE
Dezembro/2013
“DESENVOLVIMENTO” E “MEIO AMBIENTE”: PERCEPÇÕES CONFLITUOSAS NO
CASO DA UHE BELO MONTE. HEGEMONIA E RESISTÊNCIA.
Resumo
Este trabalho tem como objetivo principal analisar os conflitos sociais advindos do projeto de
instalação da usina hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu, no estado do Pará, que é
resultado de percepções contrastante dos conceitos de “Desenvolvimento” e “Meio
Ambiente”. O caso de Belo Monte não é o único quando se trata de discussões e conflitos em
áreas atingidas, devido à instalação de usinas hidrelétricas no Brasil, no entanto, é
emblemático de uma situação que aponta para o que pode ser uma crise da democracia e do
sistema ambiental brasileiro. Esses conflitos, mais do que desacordos pontuais entre o
governo federal e povos indígenas, além de outras populações tradicionais (ribeirinhos, etc.)
da região do Xingu, apontam para cosmovisões de mundo distintas e diferentes percepções e
construções dos conceitos de “Desenvolvimento” e “Meio Ambiente” em que uma delas é
vista como hegemônica e inelutável e a outra oferece resistência e apresenta outra relação
entre o homem e o meio ambiente como possibilidade.
Breve histórico
Como atesta Daniel Zugman (2013), a partir do Ano 2000, Belo Monte passa a figurar
mais constantemente nos noticiários do país. A principal razão foi o início da realização do
Estudo de Impacto Ambiental (EIA), realizado pela Fundação de Amparo e Desenvolvimento
da Pesquisa (FADESP), centro de pesquisa ligado à universidade federal do Pará. O início da
realização do EIA e a medida provisória 2.152-2/2001(Conhecida como “MP do Apagão”),
entre outras disposições determinou que o Conselho Nacional do Meio Ambiente
(CONAMA) estabelecesse formas de licenciamento simplificado para empreendimentos
ligados ao setor energético.
Nesse contexto, se intensificaram iniciativas de comunidades locais afetadas e
opositores à hidrelétrica por todo o Brasil, com a promoção de debates e eventos sobre o
tema, além do envio de cartas e documentos ao congresso nacional e à presidência da
república. A principal queixa dos questionamentos e reclamações das populações locais e
povos indígenas era a alegação de que os povos afetados pela usina não haviam sido ouvidas
até o momento, sendo que as medidas e iniciativas do governo federal vinham sendo tomadas
em detrimento dos direitos indígenas, assegurados na constituição federal promulgada em
1988 e na convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no
Brasil pelo decreto 5.051/2004. Ambas as medidas determinam que os povos indígenas
afetados sejam antecipadamente consultados cada vez que medidas legislativas e
administrativas sejam suscetíveis de afetá-los diretamente.
Não obstante, se mostrando completamente indiferente aos apelos dos povos indígenas
e de outras populações locais tradicionais da região afetada pelo empreendimento, o
Congresso Nacional em 2005, aprovou o decreto legislativo 788/2005, autorizando a obra.
Depois de uma acirrada discussão de questões processuais, liminares e muitas reviravoltas no
caso, o licenciamento ambiental foi retomado em 2009. Contrariando pareceres da equipe
técnica e com alguns estudos ainda em fase de andamento, o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA) “misteriosamente” emitiu parecer aceitando o
EIA apresentado.
Apesar das inúmeras inconsistências reveladas nos estudos de impactos sócio-
ambientais e irregularidades no processo de licenciamento e da constante resistência de povos
indígenas e outras populações locais da região afetada pela hidrelétrica, o projeto continuou
firme mesmo sem o consentimento das comunidades atingidas por Belo Monte. No dia 20 de
Abril de 2010 (ironicamente, um dia após o dia nacional do Índio) aconteceu o leilão para que
fossem definidos os investidores privados responsáveis pela execução da obra, sagrando-se
vencedor o consórcio Norte Energia S.A, constituído por empreiteiras, fundos de pensão e
empresas compostas de capital público e privado.
Nesse sentido, podemos concluir que o licenciamento ambiental que constitui um
considerável avanço no marco regulatório ambiental desde a década de 1980 se mostra
limitado por uma lógica urbano-capitalista centralizadora e de apropriação autoritária dos
recursos naturais, tendo em vista que o processo de licenciamento se inicia quando os projetos
já foram aprovados pelo planejamento centralizado. A obra aparece como fato inquestionável,
inelutável. Mais do que desacordos pontuais e autoritarismos singulares do estado nacional
brasileiro, o caso da UHE Belo Monte aponta para uma conjuntura global em que o Brasil está
inserido, que é regido por um “espaço de fluxos” e da globalização dos mercados, que são
indiferentes aos contextos sociais dos lugares e às reais necessidades da nação (SANTOS,
2001).
Todo esse processo de contradição entre interesses globais e locais gera nas sociedades
o que Milton Santos chama de “esquizofrenia do espaço”. O território e o lugar são
esquizofrênicos, porque enquanto acolhem os vetores da globalização, que se instalam para
impor sua nova ordem, ao mesmo tempo neles se produz uma “contra-ordem”, - resultado de
“contra-racionalidades” que lutam contra a chamada “Razão Hegemônica”- por que há uma
produção acelerada de pobres, excluídos e marginalizados. (SANTOS, 2001).
É necessário olhar para essa “lógica global” de uma forma diferente. Ao contrário do
discurso neoliberal, que defende a existência de um estado mínimo que permite que a “mão
invisível” do mercado opere livremente, Milton Santos defende um estado forte e ativo. O
geógrafo afirma que é o estado nacional que, afinal, regula o mundo financeiro e constrói as
estruturas necessárias para a viabilidade das grandes empresas. Dessa forma, o estado
nacional pode se posicionar com uma maior autonomia ante ao mercado global de maneira
que se busquem os interesses reais e mais emergentes da nação. A soberania de cada estado
depende, fundamentalmente, da forma como o governo de cada país decide fazer sua inserção
no mundo globalizado. Não há apenas um caminho, um pensamento que seja único, e este não
é obrigatoriamente o da passividade. Dessa forma, cabe ao estado procurar implantar medidas
e buscar iniciativas que realmente traduzam os interesses da nação, iniciando por um amplo
debate nacional sobre o modelo de “Desenvolvimento” a ser adotado, conceito esse que, aliás,
está longe de ser unívoco na sociedade brasileira.
Essas “categorias” e percepções sobre o meio ambiente que vigoram como legítimas e
hegemônicas aparecem mascaradas por um discurso que evoca “interesses globais” com
pretensões de universalidade e de consenso. Nessa lógica, todas as posições discordantes
(povos indígenas e populações ribeirinhas, por exemplo) são vistas como demonstrações de
interesses mesquinhos e particulares, sendo apenas reflexo de motivos pessoais e pontuais em
contraste com um suposto “interesse público” que deve ser atendido. É afirmado ainda, que o
projeto Belo Monte afirma está em perfeita consonância com o compromisso “nacional” de
assegurar o uso racional de recursos naturais, a proteção ambiental e o desenvolvimento
sustentável (Através da utilização de uma chamada “energia limpa”)¹. Além de propiciar uma
nova fonte de energia elétrica importante para apoiar o crescimento econômico e demográfico
do país, a usina de Belo Monte também melhoraria as condições de vida das comunidades
locais, além de intensificar a produção ambiental na área.
No entanto, o argumento de que o “interesse público” é favorável à implantação de
Belo Monte se mostra uma inverdade flagrante ante aos fatos concretos e subestima a
capacidade crítica da sociedade brasileira. A verdade é que todo esse processo gira em torno
do favorecimento de grandes empresas (empreiteiras, polos industriais, etc.) Processo esse em
que as populações locais (indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores, etc.) representam as
pessoas que estão no “caminho” – no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento
-; pessoas que são classificadas e descartadas como obsoletas. Nesse sentido o único e real
interesse é pelo resultado final (a implantação de Belo Monte), representando um estilo de
gestão autoritária e caracteristicamente moderno: - em que atrocidades são cometidas contra
outras formas de ser, saber e fazer do Brasil – indireto, impessoal e mediado por complexas
organizações e funções institucionais. Tudo isso remete a um significado simbólico em que a
nova sociedade deve destruir todas as formas que lembrem o “passado”, a fim de que não se
possa mais voltar atrás. (BERMAN, 1986).
Como atesta o filósofo Marshall Berman, o perigo do chamado “progresso” não está
nos avanços científicos e tecnológicos em si, mas sim, no uso político que essas tecnologias
recebem. O ideal seria que a sociedade fosse capaz de participar ativamente e de escolher o
modelo de desenvolvimento a ser buscado pelo seu próprio país. Devemos criar e ouvir
diferentes formas de conceber o desenvolvimento de cada nação, de forma que o homem não
exista em função do modelo de desenvolvimento criado, mas este, sim, em função do homem.
Dessa forma o desafio passa a ser o de reorientar o “progresso” de maneira a torná-lo
compatível com a preservação do equilíbrio ecológico do planeta. (LOWY, 2005) Mostra-se
necessário dessa maneira, juntar esforços para colocar outra vez o homem no centro do
processo e consequentemente retirar o dinheiro em estado puro dessa posição. (SANTOS,
2001).
Relembrando Marx (2006), podemos dizer que no contexto do capitalismo moderno,
todos os valores (inclusive, os humanos) foram “transmutados em valor de troca”, ou seja,
uma ordem que relaciona nosso valor humano ao nosso preço de mercado. Nesse mesmo
sentido, Berman afirma que:
Considerações Finais
Notas
i
O prejuízo econômico decorrente do funcionamento sazonal da usina, que resultará
da ociosidade operativa de Belo Monte - imposta inexoravelmente pela vazão natural
flutuante do rio Xingu, a qual impõe um gap superior a 60% entre a potência instalada
e a potência média estimada durante o ano. Esta omissão na análise, simultaneamente,
afeta a conclusão sobre a viabilidade técnica e econômica da obra bem como abre
capítulos futuros de ameaças ambientais e sociais já identificadas no passado sobre
grandes extensões territoriais potencialmente alagáveis, caso sejam construídos
barramentos a montante para regularizar a vazão do rio. (Fonte: Painel de
Especialistas.) Disponível em:
www.internationalrivers.org/files/Resumo%20Executivo%20Painel%20de%Especialis
tas out2009.pdf).
ii
Em outubro de 2009, o Painel de Especialistas, composto por antropólogos,
sociólogos, biólogos, engenheiros elétricos e mecânicos, economistas geógrafos,
especialistas em energia, ecólogos, ictiólogos, hidrólogos, etnólogos, zoólogos,
cientistas políticos e pesquisadores da área de saúde pública e da assistência social,
protocolou no IBAMA e no Ministério Público Federal um documento de análise
crítica dos Estudos de Impacto Ambiental da UHE Belo Monte (disponível em
www.internationalrivers.org/files/Resumo%20Executivo%20Painel%20de%Especialis
tas out2009.pdf), no qual apontava, dentre outros, 8 pontos críticos do projeto.
iii
Esse trecho citado faz parte de uma palestra proferida pela professora Andreia
Zhouri, na mesa redonda: “Sujeitos sociais e espaços urbanos: Questões e
contribuições para a Psicologia Social”, durante o XIII Encontro Nacional da
ABRAPSO. O texto foi publicado no periódico: “Comunidades, Meio Ambiente,
Desenvolvimento. nº17.” O artigo é paginado, porém não consta nele o ano da
publicação.
iv
Essas citações são fragmentos de uma comunicação oral do professor Gustavo Lins
Ribeiro, em um seminário intitulado: “A Hidrelétrica de Belo Monte e a questão
indígena”, realizado no dia 7 de fevereiro de 2011, na universidade de Brasília (UnB),
organizado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Fundação Darcy
Ribeiro e a própria UnB. Esse seminário reuniu acadêmicos, lideranças indígenas e de
movimentos sociais, (Como por exemplo, o Movimento Xingu Vivo e o Movimento
dos atingidos por barragens), além de procuradores da república e representantes do
governo federal. Os vídeos desse seminário se encontram hospedados no canal da
ABA, no site: www.youtube.com.
Referências Bibliográficas:
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São
Paulo: Cia. das Letras, 1986.
LOWY, Michael. Progresso destrutivo: Marx, Engels e a ecologia. In: Ecologia e socialismo.
São Paulo: Cortez Editora, 2005.
MARX, Karl. A mercadoria. In: O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
Livro 1, Volume 1.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
ZHOURI, Andreia. Justiça ambiental, diversidade cultural e accountability: Desafios para a
governança ambiental. Revista Brasileira de Ciências Sociais – Vol. 23 Nº 68, out, 2008, p.
97-106.
ZUGMAN, Daniel Leib. O Dever de Consulta aos povos indígenas e a construção da usina de
Belo Monte. Revista de Direito/GV. Ano 2, Vol.1, Nº 3, jul, 2013, p. 94-106.
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